segunda-feira, 28 de julho de 2025

Uma Esperança

Aqui em casa pousou uma esperança. Não a clássica que tantas vezes verifica-se ser ilusória, embora mesmo assim nos sustente sempre. Mas a outra, bem concreta e verde: o inseto.

Houve um grito abafado de um de meus filhos:

- Uma esperança! E na parede bem em cima de sua cadeira! Emoção dele também que unia em uma só as duas esperanças, já tem idade para isso. Antes surpresa minha: esperança é coisa secreta e costuma pousar diretamente em mim, sem ninguém saber, e não acima de minha cabeça numa parede. Pequeno rebuliço: mas era indubitável, lá estava ela, e mais magra e verde não podia ser.

- Ela quase não tem corpo, queixei-me.

- Ela só tem alma, explicou meu filho e, como filhos são uma surpresa para nós, descobri com surpresa que ele falava das duas esperanças.

Ela caminhava devagar sobre os fiapos das longas pernas, por entre os quadros da parede. Três vezes tentou renitente uma saída entre dois quadros, três vezes teve que retroceder caminho. Custava a aprender.

- Ela é burrinha, comentou o menino.

- Sei disso, respondi um pouco trágica.

- Está agora procurando outro caminho, olhe, coitada, como ela hesita.

- Sei, é assim mesmo.

- Parece que esperança não tem olhos, mamãe, é guiada pelas antenas.

- Sei, continuei mais infeliz ainda.

Ali ficamos, não sei quanto tempo olhando. Vigiando-a como se vigiava na Grécia ou em Roma o começo de fogo do lar para que não apagasse.

- Ela se esqueceu de que pode voar, mamãe, e pensa que só pode andar devagar assim.

Andava mesmo devagar - estaria por acaso ferida? Ah não, senão de um modo ou de outro escorreria sangue, tem sido sempre assim comigo.

Foi então que farejando o mundo que é comível, saiu de trás de um quadro uma aranha. Não era uma aranha, mas me parecia "a" aranha. Andando pela sua teia invisível, parecia transladar-se maciamente no ar. Ela queria a esperança. Mas nós também queríamos e, oh! Deus, queríamos menos que comê-la. Meu filho foi buscar a vassoura. Eu disse fracamente, confusa, sem saber se chegara infelizmente a hora certa de perder a esperança:

- É que não se mata aranha, me disseram que trás sorte...

- Mas ela vai esmigalhar a esperança! - Respondeu o menino com ferocidade.

- Preciso falar com a empregada para limpar atrás dos quadros - falei sentindo a frase deslocada e ouvindo o certo cansaço que havia na minha voz. Depois devaneei um pouco de como eu seria sucinta e misteriosa com a empregada: eu lhe diria apenas: você faz o favor de facilitar o caminho da esperança.

O menino, morta a aranha, fez um trocadilho, com o inseto e a nossa esperança. Meu outro filho, que estava vendo televisão, ouviu e riu de prazer. Não havia dúvida: a esperança pousara em casa, alma e corpo.

Mas como é bonito o inseto: mais pousa que vive, é um esqueletinho verde, e tem uma forma tão delicada que isso explica por que eu, que gosto de pegar nas coisas, nunca tentei pegá-la.

Uma vez, aliás, agora é que me lembro, uma esperança bem menor que esta, pousara no meu braço. Não senti nada, de tão leve que era, foi só visualmente que tomei consciência de sua presença. Encabulei com a delicadeza. Eu não mexia o braço e pensei: "e essa agora? Que devo fazer?" Em verdade nada fiz. Fiquei extremamente quieta como se uma flor tivesse nascido em mim. Depois não me lembro mais o que aconteceu. E, acho que não aconteceu nada.


Conto de Clarice Lispector retirado do livro Felicidade Clandestina, Editora Nova Fronteira, 3ª Edição, Rio de Janeiro, 1981.

domingo, 27 de julho de 2025

Prefácio à 1ª Edição do livro Além do Carnaval

Conheci James Green nos anos 70. Ambos recém-chegados ao Brasil. James, mais jovem, dando aulas de Inglês em São Paulo; eu, um pouco mais velho, dando aulas de Antropologia em Campinas. Meu amigo e então aluno Edward MacRae estava muito ativo no incipiente movimento gay de São Paulo e o apartamento dele, na Praça da República, virou um ponto de encontro de muita gente, entre os quais James. Naqueles tempos idos do regime militar a "política de identidades", desenvolvida por feministas, negros, índios e gays, tinha não pouca dificuldade em ganhar a simpatia dos amigos da esquerda "marxisante". Este pregavam que a vitória da "luta maior", ou seja, do socialismo, resultaria inexoravelmente no fim da opressão das assim chamadas "minorias" sexuais, étnicas e de gênero. Dessa óptca, os movimentos das "minorias" eram desqualificadas como uma forma de "luta menor". James era um entre vários que tentavam construir pontes entre as duas posições.

Eu não tinha muito jeito para militância. Tinha tentado me envolver com o movimento gay nos Estados Unidos, mas descobri que não me identificava com a aparente necessidade de subordinar tudo a uma única identidade. Uma das minhas identidades, a de antropólogo, vinha consolidar uma dificuldade de me conformar com aquelas identidades fixas e naturalizadas que supostamente governam ou devem governar toda nossa sociabilidade. A antropologia me ajudava a pensar essas identidades em sua gênese social e histórica, ou seja, como construções nascidas, consolidadas, enfraquecidas e mortas ao longo do tempo e nos espaços sociais.

Tentei reconciliar minha simpatia pela luta contra o preconceito em relação à homossexualidade com minhas restrições à militância por meio da pesquisa de campo e da escrita, até mesmo como membro fundador do jornal Lampião de Esquina. Comecei a entender que o mundo que conhecera na Inglaterra, dividido entre homossexuais e heterossexuais, representava apenas uma maneira de organizar as relações sexuais. Aqui no Brasil, ficou cada vez mais claro que para muita gente era demasiado importante saber da "atividade" ou "passividade" sexual dos homens, e que, para alguns, o parceiro sexual ideal deveria ser um "homem mesmo", de preferência com mulher e filhos. Mais  importante do que o sexo dos parceiros era a sua relativa "masculinidade" ou "feminilidade". Assim, "bicha" com "bicha" seria uma forma de lesbianismo. Numa pesquisa sobre os cultos afro-brasileiros, facilitada pela minha amiga e então aluna Anaiza Vergolino e Silva, pude ver esse "sistema" na sua forma mais acabada. Com o tempo, porém, ficou também claro que essa não era a única maneira de organizar as relações sexuais e afetivas entre homens no Brasil. Surgia nas classes médias urbanas uma forma de pensar e praticar relações sexuais e afetivas entre homens que era muito semelhante ao que me era familiar na Inglaterra. Nesse meio, todos os homens que mantinham relações com outros homens, independentemente do que faziam na cama, eram considerados homossexuais. Além disso, havia um certo repúdio à divisão entre "ativos" e "passivos" e uma ênfase crescente na igualdade entre parceiros. Essa posição foi mais ou menos predominante no movimento homossexual que espelhava o movimento feminista com sua crítica aos papéis de gênero convencionais. Eu identificava essa nova forma de pensar as relações entre gente do mesmo  sexo (o mesmo movimento se dava entre as mulheres) como mais um aspecto da formação da ideologia individualista nas classes médias urbanas já identificada por antropólogos amigos meus, principalmente no Museu Nacional, onde lecionava à época. Mas depois de escrever alguns artigos, parti para outras bandas. Entre outras coisas, tinha medo de me tornar um "homossexual profissional". Vi que a antropologia pós-moderna estava rumando para uma espécie de solipsismo. A sua origem calcada no encontro entre uns e outros diferentes estaria dando lugar a um novo ethos que privilegiaria encontros entre semelhantes; mulheres escrevendo sobre mulheres; homossexuais sobre homossexuais; negros sobre negros; subalternos sobre subalternos, e assim por diante. Pode ser que estivesse enganado, mas pressentia que essa tendência sinalizava mais uma etapa na concretização e naturalização das identidades sociais.

Mas, evidentemente, nunca deixei de me interessar por pesquisas sobre sexualidade, e fico cada vez mais feliz com a qualidade das pesquisas sobre sexualidade, em geral, e sobre homossexualidade, em particular, no Brasil. E é por isso que felicito James Green pela sua esplêndida história dos homens que gostam de outros homens no Rio de Janeiro e em São Paulo do fim do século XIX até 1980, agradecendo-lhe a honra de escrever este prefácio.

Depois da sua passagem por São Paulo na década de 1970, James Green voltou para os Estados Unidos e para a academia, cursando o seu doutorado em História na Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Mas James não é apenas um narrador de histórias. Combina o afã do historiador de adentrar o passado por meio de cuidadosa pesquisa de arquivos, literatura de época e entrevistas com os sobreviventes de tempos idos, com clara preocupação "antropológica" em entender a lógica cultural de cada situação histórica e as continuidades e transformações que podem ser detectadas entre cada uma delas. Isso ele faz não procurando verificar uma "identidade homossexual" perene e imutável ao longo do tempo, mas justamente verificando a maneira pela qual os seus "nativos" (e aqui inclui os homens que gostaram de outros homens, e todos os outros, médicos, jornalistas, policiais, religiosos, psiquiatras que opinaram sobre o assunto) conceituaram o sexo entre homens e a natureza dos homens, eles próprios envolvidos nessa atividade. E, para evitar que a sua própria linguagem se imponha ao material pesquisado, mantendo, dessa forma, uma saudável distância entre os conceitos do narrador e os dos seus personagens, James Green lança mão de termos como "homens que procuraram outros homens para aventuras sexuais", "erotismo do mesmo sexo", "homens que gostam de relações sociais e eróticas com outros homens" para descrever o "objeto" do seu estudo. Perfeito! Como o leitor verá, este livro tem a seriedade que se exige de uma tese de doutorado, mas é escrito numa linguagem direta e acessível a todos.

Além do Carnaval vai muito mais adiante que as minhas primeiras intuições sobre a estruturação da homossexualidade no Brasil. Embora verifique a presença de um movimento geral do modelo "ativo-passivo", "bicha-bofe" para "homossexual-homossexual" ao longo do século, James demonstra a existência de uma certa identidade entre homens que gostam de outros homens, independentemente da sua suposta "atividade" ou "passividade", anterior ao surgimento de uma identidade de "entendidos" na década de 1940, e, mais tarde, de "gay" na década de 1970. Na sua descrição da sociedade homoerótica no Rio de Janeiro na virada do século XIX para o século XX, James identifica a presença da figura do fanchono, que teria sido um homem associado ao papel de "ativo" nas relações sexuais, mas com uma distinta preferência para sexo com outros homens, e não faute de mieux. Todos, argumenta James, compartilhavam o mesmo mapa moral da cidade e as regras que subentendiam as relações sexuais e eróticas entre eles. E, embora não sendo o seu material disponível para a descrição e análise desse período relativo aos frescos e fanchonos, eles próprios, mas sim aos agentes de polícia, escritores e chargistas, a maioria deles do lado de fora do mundo das relações homoeróticas, há fortes evidências de que o que se fazia sexualmente nem sempre estava de acordo com as regras estabelecidas no modelo "ativo-passivo". Mas como poderia ser de outra forma? Afinal, são as regras que definem as contravenções e, como James nota, os médicos ficaram um tanto perplexos com os homens que se declararam simultaneamente "ativos" e "passivos". Quebrando a taxonomia estabelecida se tornam, evidentemente, anômalos.

Uma outra virtude deste livro está nas relações que o autor estabelece entre o mundo dos homens que gostam de outros homens e as grandes mudanças sociais, políticas e econômicas ao longo desses oitenta anos. James Green incorpora a história de homens que gostam de outros homens à história geral desse período. Primorosa é a sua análise da relação entre as migrações rural-urbana e Nordeste-Sudeste que acompanharam a industrialização do país, e a importância desta para a trajetória de jovens com gostos homossexuais. Estes puderam encontrar uma vibrante sociabilidade dos grandes centros urbanos, particularmente Rio de Janeiro e São Paulo, mesmo que, escapando do opróbrio familiar, corressem o risco de cair nas garras das autoridades policiais e da medicina legal. Embora a homossexualidade per se nunca tenha sido considerada ilegal no período que James estuda, havia leis que permitiam a repressão policial, entre as quais a de vadiagem e a do atentado ao pudor. Há uma análise extensiva da produção científica dos médicos e legistas sobre o assunto, e o autor demonstra claramente a dívida destes para com os produtores de teorias da Europa enquanto tentavam dar conta do que observavam no Brasil. Não chega a ser surpresa que a maioria dos que caíam nas mãos da polícia e dos médicos eram os sempre mais vulneráveis nesta sociedade: os negros e os pobres em geral. É por essa razão que o historiador tem mais acesso a informações sobre a homossexualidade entre pobres e negros do que as camadas médias e altas. Essa concentração de negros e pobres nos gabinetes de polícia, argumenta James, permite uma associação entre "doença" e "perversão sexual" com os "atavismos" associados aos descendentes de africanos no Brasil, comum na literatura médico-legal.

Outro ponto alto deste livro é a reconstrução de vida de homens que gostaram de outros homens pela análise da sua produção jornalístico-caseira ao longo das décadas de 1960 e 1970. Esse material somado aos depoimentos de quem fez esses jornais, reproduzidos por meio de copiadores, resulta num rico entendimento da sociabilidade da época, bem como das regras implícitas que a governavam. E o que chama a atenção do autor, e do leitor também, é a capacidade que essa gente possui de criar uma solidariedade baseada em preocupações e gostos compartilhados. Essa solidariedade não é, sem dúvida, ausente de tensões internas e brigas de ciúmes, por um lado, nem, por outro, de posturas divergentes perante a homossexualidade. Ainda assim, essa solidariedade revela uma enorme capacidade para a criatividade e produção de prazer, apesar de estar rodeada pela hostilidade de grande parte do mundo. Penso, até, que a malícia, como que ritualizada, poderia ser interpretada contraintuitivamente como mais um ingrediente da solidariedade. Fale mal, mas fale de mim...

A parte final do livro trata do período militar. Apesar de ataques moralizantes sobre a imprensa homossexual e investidas dos policiais contra os travestis de São Paulo, esse período também viu o nascimento de música e teatro populares, que vão colocar em questão os papéis de gênero convencionais, viu o nascimento de uma identidade e de grupos militantes "gay", bem como o surgimento de uma imprensa profissional que vai esmagar a produção caseira anterior, e o crescimento de uma pletora de bares e boates para atender ao "mercado gay". É justamente aqui que vamos encontrar a tensão, à qual me referi no início do prefácio, entre um socialismo convencionalmente marxista e um de viés mais libertário. Há também uma tensão entre o estilo "leve", malicioso e espalhafatoso da sociabilidade homossexual revelada no carnaval e na imprensa caseira e um novo estilo "sério" e reivindicatório que surge junto com o movimento gay.

É evidente que este livro muito interessará aos homens que gostam de outros homens. Mas não só a esses. As relações de James Green estabelece entre as mudanças na vida social dos homens que gostam de outros homens e as transformações na sociedade como um todo fazem que esta obra tenha uma importância muito mais abrangente. É de esperar que agrade também a todos aqueles que se interessam pela história recente do Brasil, afinal, acrescenta-se uma dimensão da história social do Brasil que não pode ser ignorada por ninguém.

A narrativa de Além do Carnaval termina no ano de 1980. Resta ainda um outro livro a ser escrito: a calamidade da Aids, por um lado, e, por outro, a vertiginosa expansão das redes e serviços para homens que gostam de homens, tal como se observa ao longo dos últimos vinte anos do século XX. É de esperar que James Green tenha vontade e tempo de trazer a sua história para os dias de hoje. Creio que vai encontrar muitas das mesmas tensões que notou anteriormente, pois sabemos que o processo social não descarta o passado quando inaugura o aparentemente novo. A Aids veio para ressuscitar as velhas relações entre homossexualidade e doença. Preocupações com "atividade" e "passividade" continuam a permear o campo das relações sexuais entre homens. Há ainda os desentendimentos entre aqueles que imaginam uma identidade "gay" transcultural e transecular e aqueles que preferem pensar na particularidade dos arranjos de cada lugar e cada tempo. E é também impossível não ver no presente a mesma tensão entre o ódio homófobo, que resulta em chantagem e morte, e a persistente produção de um "mundo vibrante" pelos homens que gostam de outros homens. Viva!


Prefácio de Peter Fry à 1ª edição do livro Além do Carnaval - A homossexualidade masculina no Brasil do século XX, de James N. Green, Editora Unesp, São Paulo, 2019, 2ª Edição.

sábado, 26 de julho de 2025

Quem serve, prossegue (82)

 "O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir." - Jesus. (MARCOS, 10:45)


A Natureza, em toda parte, é um laboratório divino que elege o espírito de serviço por processo normal de evolução.

Os olhos atilados observam a cooperação e o auxílio nas mais comezinhas manifestações dos reinos inferiores.

A cova serve à semente. A semente enriquecerá o homem.

O vento ajuda as flores, permutando-lhes os princípios de vida. As flores produzirão frutos abençoados.

Os rios confiam-se ao mar. O mar faz a nuvem fecundante.

Por manter a vida humana, no estágio em que se encontra, milhares de animais morrem na Terra, de hora a hora, dando carne e sangue a benefício dos homens.

Infere-se de semelhante luta que o serviço é o preço da caminhada libertadora ou santificante.

A pessoa que se habitua a ser invariavelmente servida em todas as situações, não sabe agir sozinha em situação alguma.

A criatura que serve pelo prazer de ser útil progride sempre e encontra mil recursos dentro de si mesma, na solução de todos os problemas.

A primeira cristaliza-se.

A segunda desenvolve-se.

Quem reclama excessivamente dos outros, por não estimar a movimentação própria na satisfação de necessidades comuns, acaba por escravizar-se aos servidores, estragando o dia quando não encontra alguém que lhe ponha a mesa. Quem aprende a servir, contudo, sabe reduzir todos os embaraços da senda, descobrindo trilhos novos.

Aprendiz do Evangelho que não improvisa a alegria de auxiliar os semelhantes permanece muito longe do verdadeiro discipulado, porquanto companheiro fiel da Boa Nova está informado de que Jesus veio para servir, e desvela-se, a benefício de todos, até ao fim da luta.

Se há mais alegria em dar que em receber, há mais felicidade em servir que em ser servido.

Quem serve prossegue...


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

sábado, 19 de julho de 2025

Primavera ao correr da máquina

Os primeiros calores da nova estação, tão antigos como um primeiro sopro. E que me faz não poder deixar de sorrir. Sem me olhar ao espelho, é um sorriso que tem a idiotice dos anjos.

Muito antes de vir a nova estação já havia o prenúncio: inesperadamente uma tepidez de vento, as primeiras doçuras do ar. Impossível! Impossível que essa doçura de ar não traga outras! Diz o coração se quebrando.

Impossível, diz em eco a mornidão ainda tão mordente e fresca da primavera. Impossível que esse ar não traga o amor do mundo! Repete o coração que parte sua secura crestada num sorriso. E nem sequer reconhece que já o trouxe, que aquilo é amor. Esse primeiro calor ainda fresco traz: tudo. Apenas isso, e indiviso: tudo.

E tudo é muito para um coração de repente enfraquecido que só suporta o menos, só pode querer o pouco a aos poucos. Sinto hoje, e também mordente, uma espécie de lembrança ainda vindoura do dia de hoje. E dizer que nunca, nunca dei isto que estou sentindo a ninguém e a nada. Dei a mim mesma? Só dei na medida em que a pungência do que é bom cabe dentro de nervos tão frágeis, de mortes tão suaves. Ah, como quero morrer. Nunca ainda experimentei morrer - que abertura de caminho tenho ainda à frente. Morrer terá a mesma pungência indivisível do bom. A quem darei a minha morte? Que será como os primeiros calores frescos de uma nova estação. Ah, como a dor é mais suportável e compreensível que essa promessa de frígida e líquida alegria da primavera. É com tal pudor que espero morrer: a pungência do bom. Mas nunca morrer antes de realmente morrer: pois é tão bom prolongar essa promessa. Quero prolongá-la com tal finura. Eu me banho, nutro-me da vida melhor e mais fina, pois nada é bom demais para me preparar para o instante dessa nova estação. Quero os melhores óleos e perfumes, quero a vida da melhor espécie, quero as esperas as mais delicadas, quero as melhores carnes finas e também as pesadas para comer, quero a quebra de minha carne em espírito e do espírito e do espírito se quebrando em carne, quero essas finas misturas - tudo o que secretamente me adestrará para aqueles primeiros momentos que virão. Iniciada, pressinto a mudança de estação. E desejo a vida mais cheia de um fruto enorme. Dentro desse fruto que em mim se prepara, dentro desse fruto que é suculento, há lugar para a mais leve das insônias que é a minha sabedoria de bicho acordado: um véu de alerteza, esperta apenas o bastante para apenas pressentir. Ah, pressentir é mais amenos do que o intolerável agudo do bom. E que eu não esqueça, nessa minha fina luta travada, que o mais difícil de se entender é a alegria. Que eu não esqueça que a subida mais escarpada, e mais à mercê dos ventos, é sorrir de alegria. E que por isso e aquilo é que menos tem cabido em mim: a delicadeza infinita da alegria. Pois quando me demoro demais nela e procuro me apoderar de sua levíssima vastidão, lágrimas de cansaço me vêm aos olhos: sou fraca diante da beleza do que existe e do que vai existir. E não consigo, nesse adestramento contínuo, me apoderar do primeiro regozijo da vida.

Conseguirei captar o regozijo infinitamente doce de morrer? Ah, como me inquieta não conseguir viver o melhor, e assim poder enfim morrer o melhor. Como me inquieta que alguém possa não compreender que morrerei numa ida para uma tonta felicidade de primavera. Mas não apressarei de um instante a vida dessa felicidade - pois esperá-la vivendo é a minha vigília de vestal. Dia e noite não deixo apagar-se a vela - para prolongá-la na melhor das esperas. Os primeiros calores da primavera... Mas isso é amor! A felicidade me deixa com um sorriso de filha. Estou toda bem penteada. Só que a espera quase já não cabe mais em mim. É tão bom que corro o risco de me ultrapassar, de vir a perder a minha primeira morte primaveril, e, no suor de tanta espera tépida, morrer antes. Por curiosidade, morrer antes: pois já quero saber como é a nova estação.

Mas vou esperar. Vou esperar comendo com delicadeza e recato e avidez controlada cada mínima migalha de tudo, quero tudo pois nada é bom demais para a minha morte que é a minha vida tão eterna que hoje mesmo ela já existe e já é.


Crônica de Clarice Lispector retirada do livro A Descoberta do Mundo, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1999.

A Candeia Viva (81)

 "Ninguém acende a candeia e a coloca debaixo do módio, mas no velador, e assim alumia a todos os que estão na casa." - Jesus. (MATEUS, 5:15)


Muitos aprendizes interpretaram semelhante palavras do Mestre como apelo à pregação sistemática, e desvairaram-se através de veementes discursos em toda parte. Outros admitiram que o Senhor lhes impunha a obrigação de violentar os vizinhos, através de propaganda compulsória da crença, segundo o ponto de vista que lhes é particular.

Em verdade o sermão edificante e o auxílio fraterno são indispensáveis na extensão dos benefícios divinos da fé.

Sem a palavra, é quase impossível a distribuição do conhecimento. Sem o amparo irmão, a fraternidade não se concretizará no mundo.

A assertiva de Jesus, todavia, atinge mais além.

Atentemos para o símbolo da candeia. A claridade na lâmpada consome força ou combustível.

Sem o sacrifício da energia ou do óleo não há luz.

Para nós, aqui, o material de manutenção é a possibilidade, o recurso, a vida.

Nossa existência é a candeia viva.

É um erro lamentável despender nossas forças, sem proveito para ninguém, sob a medida de nosso egoísmo, de nossa vaidade ou de nossa limitação pessoal.

Coloquemos nossas possibilidades ao dispor dos semelhantes.

Ninguém deve amealhar as vantagens da experiência terrestre somente para si. Cada espírito provisoriamente encarnado, no círculo humano, goza de imensas prerrogativas, quanto à difusão do bem, se persevera na observância do Amor Universal.

Prega, pois, as revelações do Alto, fazendo-as mais formosas e brilhantes em teus lábios; insta com parentes e amigos para que aceitem as verdades imperecíveis; mas não olvides que a candeia viva da iluminação espiritual é a perfeita imagem de ti mesmo.

Transforma as tuas energias em bondade e compreensão redentoras para toda gente, gastando, para isso, o óleo de tua boa-vontade, na renúncia e no sacrifício, e a tua vida, em Cristo, passará realmente a brilhar.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

quarta-feira, 16 de julho de 2025

Brincar de Pensar

A arte de pensar sem riscos. Não fossem os caminhos de emoção a que leva o pensamento, pensar já teria sido catalogado como um dos modos de se divertir. Não se convidam amigos para o jogo por causa da cerimônia que se tem em pensar. O melhor modo é convidar apenas para uma visita, e, como quem não quer nada, pensa-se junto, no disfarçado das palavras.

Isso, enquanto jogo leve. Pois para pensar fundo - que é o grau máximo do hobby - é preciso estar sozinho. Porque entregar-se a pensar é uma grande emoção, e só se tem coragem de pensar na frente de outrem quando a confiança é grande a ponto de não haver constrangimento em usar, se necessário, a palavra outrem. Além do mais exige-se muito de quem nos assiste pensar: que tenha um coração grande, amor, carinho, e a experiência de também se ter dado ao pensar. Exige-se tanto de quem ouve as palavras e os silêncios - como se exigiria para sentir. Não, não é verdade. Para sentir exige-se mais.

Bom, mas, quanto a pensar como divertimento, a ausência de riscos o põe ao alcance de todos. Algum risco tem, é claro. Brinca-se e pode-se sair de coração pesado. Mas de um modo geral, uma vez tomados os cuidados intuitivos, não tem perigo.

Como hobby, apresenta a vantagem de ser por excelência transportável. Embora no seio do ar ainda seja melhor, segundo eu. Em certas da tarde, por exemplo, em que a casa cheia de luz mais parece esvaziada pela luz, enquanto a cidade inteira estremece trabalhando e só nós trabalhamos em casa mas ninguém sabe - nessas horas em que a dignidade se refaria se tivéssemos uma oficina de consertos ou uma sala de costuras - nessas horas: pensa-se. Assim: começa-se do ponto exato em que se estiver, mesmo que não seja de tarde; só de noite é que não aconselho.

Uma vez por exemplo - no tempo em que mandávamos roupa para lavar fora - eu estava fazendo o rol. Talvez por hábito de dar título ou por súbita vontade de ter caderno limpo como em escola, escrevi:  rol de... E foi nesse instante que a vontade de não ser séria chegou. Este é o primeiro sinal do animus brincandi, em matéria de pensar - como - hobby. E escrevi esperta: rol de sentimentos. O que eu queria dizer com isto tive que deixar para ver depois - outro sinal de se estar em caminho certo é o de não ficar aflita por não entender; a atitude deve ser: não se perde por esperar, não se perde por não entender.

Então comecei uma listinha de sentimentos dos quais não sei o nome. Se recebo um presente dado com carinho por pessoa de quem não gosto - como se chama o que sinto? A saudade que se tem de pessoa de quem a gente não gosta mais, essa mágoa e esse rancor - como se chama? Estar ocupada - e de repente parar por ter sido tomada por uma súbita desocupação desanuviadora e beata, como se uma luz de milagre tivesse entrado na sala: como se chama o que se sentiu?

Mas devo avisar. Às vezes começa-se a brincar de pensar, e eis que inesperadamente o brinquedo é que começa a brincar conosco. Não é bom. É apenas frutífero.


Crônica de Clarice Lispector retirada do livro A Descoberta do Mundo, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1999.

Quando Chorar

Há um tipo de choro bom e há outro ruim. O ruim é aquele em que as lágrimas correm sem parar e, no entanto, não dão alívio. Só esgotam e exaurem. Uma amiga perguntou-me, então, se não seria esse choro como o de uma criança com a angústia da fome. Era. Quando se está perto desse tipo de choro, é melhor procurar conter-se: não vai adiantar. É melhor tentar fazer-se de forte, e enfrentar. É difícil, mas ainda menos do que ir-se tornando exangue a ponto de empalidecer.

Mas nem sempre é necessário tornar-se forte. Temos que respeitar a nossa fraqueza. Então, são lágrimas suaves, de uma tristeza legítima à qual temos direito. Elas correm devagar e quando passam pelos lábios sente-se aquele gosto salgado, límpido, produto de nossa dor mais profunda.

Homem chorar comove. Ele, o lutador, reconheceu sua luta às vezes inútil. Respeito muito o home que chora. Eu já vi homem chorar.


Crônica de Clarice Lispector retirada do livro A Descoberta do Mundo, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1999.

sábado, 12 de julho de 2025

Se Você Aparecer

 Nunca vi o amor

No formato que ele tem

Ele mesmo em si

Não é ninguém

Não tem pai nem mãe

Não tem filho nem avó

Ele é tão sozinho

Que dá dó


Ai, amor, não chore não

Penso muito em você

Posso até lhe dar a mão

Se você aparecer


Nunca vi o amor

E não é curiosidade

Gosto dele desde que nasci

Acho que é invisível

Só por discrição

Não é convencido

Isso não

Sei que ele tem sido

Muito bem lembrado

Sempre nessas horas

De aflição


Nunca vi o amor

Do jeitinho que ele é

Eu não sei se é homem

Ou se é mulher

Não sei se já tem

Ou terá um amor qualquer

Ou se está sozinho

Porque quer


Ai, amor, não chore não

Penso muito em você

Posso até lhe dar a mão

Se você aparecer

Nunca vi o amor


Música de Ná Ozzetti e Luiz Tatit gravada no CD De Lua lançado em 2024 pela Circus Produções Culturais e Fonográficas.

Corações Cevados (80)

 "Cevastes os vossos corações, como num dia de matança." - (TIAGO, 5:5.)


Pela prosperidade e aperfeiçoamento do mundo, trabalha o Sol, que é a suprema expressão da Divindade Vital no firmamento terrestre.

Colabora o verme na intimidade do solo, preparando ninho adequado às sementes.

Contribui a aragem, permutando o pólen das flores.

Esforça-se a água, incessantemente, entretendo a vida física e purificando-a.

Serve a árvore, florindo, frutificando e regenerando a atmosfera.

Coopera o animal, ajudando as realizações humanas, suando e morrendo para que haja vida normal no domínio da inteligência superior.

Indefectível lei de trabalho rege o Universo.

O movimento e a ordem, na constância dos benefícios, constituem-lhe as características essenciais.

Há, porém, milhões de pessoas que se sentem exoneradas da glória de servir.

Para semelhantes criaturas, em cujo cérebro a razão dorme embotada e vazia, trabalho significa degredo e humilhação, inferno e sofrimento. Perseguem as facilidades delituosas, com o mesmo instinto de novidades da mosca em busca de detritos. Conseguida a solução de ordem inferior que buscavam, circunscrevem as horas e as possibilidades ao desenfreado apego de si mesmas, imitando o poço de águas estagnadas que se envenena facilmente.

No fundo, são "corações cevados", de acordo com a feliz expressão do apóstolo. Criam teias densas de ódio e egoísmo, indiferença e vaidade, orgulho e indolência sobre si próprios, e gravitam para baixo. Descendo, descendo, pelas pesadas vibrações a que se acolhem, rolam vagarosamente para o seio das vidas inferiores, onde é natural que encontrem a exigência de muitos, que se aproveitam deles, à maneira do homem comum que se vale dos animais gordos para a matança.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

domingo, 29 de junho de 2025

Um Homem Público

Até que ponto terá sido compreensível para ele mesmo o seu próprio ato? Mal posso imaginar o seu desarvoramento solitário. Quando um ato irracional provoca monstruoso eco, o homem provavelmente se sente quase inocentado diante daquilo que seu grito provocou: de vibração em vibração, o desabar da avalanche. A verdade ele mesmo não sabe, talvez nunca saiba, pois já se afogou sob os pretextos. Ele foi "pessoal", o que é crime num homem público. O sacrifício de um líder ou de um santo ou de um artista - que chegaram àquilo que são exatamente por terem sido pessoais - é o de não o serem mais. A cruz de um homem é esquecer-se de sua própria dor. É nesse esquecer-se que acontece então o fato mais essencialmente humano, aquele que faz de um homem a humanidade: a dor própria adquire uma vastidão em que os outros todos cabem e onde se abrigam, são compreendidos; pelo que há de amor na renúncia da própria dor, os quase mortos se levantam. O verdadeiro sentido de Cristo seria a imitação de Cristo. O próprio Cristo foi a imitação de Cristo.

O Brasil inteiro poderia ter subido através do sofrimento daquele homem, através do que ele em si mesmo sabia sobre o medo, a ambição, e sobre a própria tendência ao desatino. Assim como a transcendência da vontade de matar está em, por se conhecer esse abismo, impedir que os outros matem. Mas aquele homem público se restringiu a si mesmo. Da grandeza dos defeitos humanos ele fez defeitos pequenos. Criminoso por pequenez. Era homem a ser ajudado, não a ajudar.


Crônica de Clarice Lispector retirada do livro Para Não Esquecer, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 2020.