sábado, 27 de julho de 2024

Educa (30)

          "Não sabeis vós que sois o tempo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós?"                  - Paulo. (I CORÍNTIOS, 3:16)


Na semente minúscula reside o germe do tronco benfeitor.

No coração da terra, há melodias da fonte.

No bloco de pedra, há obras-primas de estatuária.

Entretanto, o pomar reclama esforço ativo.

A corrente cristalina pede aquedutos para transportar-se incontaminada.

A joia de escultura pede milagres do buril.

Também o espírito traz consigo o gene da Divindade.

Deus está em nós, quanto estamos em Deus.

Mas, para que a luz divina se destaque da treva humana, é necessário que os processos educativos da vida trabalhem no empedrado caminho dos milênios.

Somente o coração enobrecido no grande entendimento pode vazar o heroísmo santificante.

Apenas o cérebro cultivado pode produzir iluminadas formas de pensamento.

Só a grandeza espiritual consegue gerar a palavra equilibrada, o verbo sublime e a voz balsamizante.

Interpretemos a dor e o trabalho por artistas celestes de nosso acrisolamento.

Educa e transformarás a irracionalidade em inteligência, a inteligência em humanidade e a humanidade em angelitude.

Educa e edificarás o paraíso na Terra.

Se sabemos que o Senhor habita em nós aperfeiçoemos a nossa vida, a fim de manifestá-lo.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

quinta-feira, 25 de julho de 2024

O ser e o nome

 Homossexualidade ou homossexualismo? Homossexual ou gay? Uma discussão sobre o uso da melhor palavra


Tim Cook, presidente executivo da Apple, escreveu em ensaio na Bloomberg Businessweek, de novembro de 2014: "Apesar de nunca ter negado minha sexualidade, nunca a reconheci publicamente, até agora. Então deixe-me ser claro: tenho orgulho de ser gay, e considero que ser gay é um dos maiores dons que Deus me deu."

Ignorando as incontáveis manifestações de estupidez gloriosa inspiradas pelo assunto, como as leis que criminalizam e condenam à morte homossexuais em pelo menos cinco países islâmicos, o manifesto de Cook pode inspirar uma pequena discussão de natureza semântica.

A palavra "homossexualismo" foi proscrita da literatura médica nacional desde que o Conselho Federal de Psicologia deixou de classificar as relações homoafetivas como doença, distúrbio ou perversão. Isso ocorreu em 1985. O que aliás, já tinham feito a Associação Americana de Psiquiatria e a Associação Americana de Psicologia dez anos antes. Essas entidades e os especialistas preferem o substantivo "homossexualidade", desprovido - segundo interpretações - do teor psiquiátrico. Muitos gays acha, que mesmo "homossexualidade" e "homossexual" são estigmatizantes, daí preferirem "gay", palavra surgida em 1969 em New York como termo que se poderia chamar de politicamente correto e livre de estigmas.

Sectarismos

O fato é que se ampliou em esferas homossexuais uma forte repulsão à palavra "homossexualismo" para definir a prática da relação amorosa entre indivíduos do mesmo sexo. A maioria prefere a palavra "homossexualidade". Dizem alguns dos que repudiam o uso de "homossexualismo" que esse termo induz ao erro porque o sufixo "-ismo" indica a presença de um agente tóxico, como: absintismo, alcoolismo, ergotismo, eterismo, hidrargirismo, iodismo.

Uma pequena tolice sectária. Porque "-ismo" indica também movimentos sociais, ideológicos, políticos, opinativos, religiosos e personativos: atletismo, comunismo, cristianismo, feminismo, heroísmo, islamismo, judaísmo, marxismo, modismo, socialismo, tropicalismo. Sem contar neologismos ou nem tanto: getulismo, juscelinismo, janguismo, lulismo, lulopetismo, petismo, malufismo e outros.

Claro que aos vocábulos de matriz político com frequência se atribui certa dose de malignidade (palavra, aliás, terminada em "-idade" e proveniente de "mal", da má qualidade das coisas.

Nada contra respeitar as convicções das comunidades gays e a decisão das entidades médicas e psicoterapêuticas, que aboliram a palavra "homossexualismo" de seu vocabulário e agora utilizam "homossexualidade", embora por razões discutíveis.

Ofensa

De todo modo, homossexualismo, homossexualidade e homossexuais são palavras bem formadas e, como a maioria delas, dependerão do contexto em que forem usadas e da entonação com que forem ditas, para soar ou não ofensivas.

Mesmo "gay", proposta para substituir "homossexual" de qualquer sexo supostamente primário, por ser isenta de ranço, sempre dependerá da contextualização para ecoar bem ou não aos ouvintes ou leitores.

E daí? Daí se conclui que cada um vive como pode e quer com as denominações que preferir por sua natureza, e ninguém tem nada com isso, a não ser as pessoas interessadas. De passagem, convém lembrar também que é impróprio falar em "preferência sexual", "opção sexual" ou "escolha sexual", porque a sexualidade não decorre de escolha, opção, preferência, mas de tendência, de natureza, de combinação, de composição ou estrutura genética, como reconhecem os sábios da área.

Em relação à nomenclatura adequada a cada fenômeno, claro que dicionários não precisam nem devem expressar ideologia nem tomar partido já que são apenas registros do vocabulário. Por isso o Houaiss registra com a neutralidade que convém aos dicionários:

HOMOSSEXUALISMO: (substantivo masculino) a prática de relação amorosa e/ou sexual entre indivíduos do mesmo sexo; mesmo que homossexualidade. Obs.: por oposição a heterossexualismo.

HOMOSSEXUALIDADE: (substantivo feminino) condição de homossexual; homossexualismo. Obs.: por oposição a heterossexualismo.

Não que a discussão semântica - ou sob qualquer aspecto - precise se restringir ao significado quase sempre neutro exposto pelos dicionários. Mas pode ser um bom começo.


Texto de Josué Machado retirado da revista Língua Portuguesa, Ano 9, número 116, Junho de 2015, Editora Segmento, São Paulo.

quarta-feira, 24 de julho de 2024

Sirvamos (29)

 "Servindo de boa-vontade, como sendo ao Senhor, e não aos homens." - Paulo. (EFÉSIOS, 6:7.)


Se legislas, mas não aplicas a Lei, segundo os desígnios do Senhor, que considera as necessidades de todos, caminhas entre perigosos abismos, cavados por tuas criações indébitas, sem recolheres os benefícios de tua gloriosa missão na ordem coletiva.

Se administras, mas não observas os interesses do Senhor, na estrada em que te movimentas na posição de mordomo da vida, sofres a ameaça de soterrar o coração em caprichos escuros, sem  desfrutares as bênçãos da função que exerces no ministério público.

Se julgas os semelhantes e não te inspiras no Senhor, que conhece todas as particularidades e circunstâncias dos processos em trânsito nos tribunais, vives na probabilidade de cair, espetacularmente, na mesma senda a que se acolhem quantos precipitadamente aprecies, sem retirares, para teu proveito, os dons da sabedoria que a Justiça conserva em tua inteligência.

Se trabalhas na cor ou no mármore, no verbo ou na melodia, sem traduzires em tuas obras a correção, o amor e a luz do Senhor, guardas a tremenda responsabilidade de quem estabelece imagens delituosas para consumo da mente popular, perdendo em vão, a glória que te enriquece os sentimentos.

Se foste chamado à obediência, na estruturação de utilidades para o mundo, sem o espírito de compreensão com o Senhor, que ajudou as criaturas, amando-as até o sacrifício pessoal, vives entre os fantasmas da indisciplina e do desânimo, sem fixares em ti mesmo a claridade divina do talento que repousa em tuas mãos.

Amigo, a passagem pela Terra é aprendizado sublime.

O trabalho é sempre o instrutor do aperfeiçoamento.

Sirvamos sem prender-nos.

Em todos os lugares do vale humano, há recursos de ação e aprimoramento para quem deseja seguir adiante. Sirvamos, em qualquer parte, de boa-vontade, como sendo ao Senhor e não às criaturas, e o Senhor nos conduzirá para os cimos da vida.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

quinta-feira, 18 de julho de 2024

A Morte Anunciada

 Entre 20 e 30 idiomas desaparecem por ano - uma média de uma língua a cada duas semanas


Linguistas preveem que metade das mais de 6 mil línguas faladas no mundo desaparecerá em um século - uma taxa de extinção que supera as estimativas mais pessimistas quanto à extinção de espécies biológicas. Há até conexão entre a diversidade linguística e a biodiversidade: os países com a maior diversidade biológica têm em geral também a maior diversidade linguística. Tanto que a Unesco propôs, por analogia com a palavra "biosfera", o termo "logosfera" para o conjunto de línguas do mundo.

Segundo a entidade, 96% da população mundial falam só 4% das línguas existentes. E apenas 4% da humanidade partilha o restante dos idiomas, metade dos quais se encontra em perigo de extinção. Entre 20 e 30 idiomas desaparecem por ano - uma média de uma língua a cada duas semanas.

A menos que cientistas e líderes políticos façam um esforço mundial para deter o declínio das línguas locais, provavelmente 90% da atual diversidade linguística da humanidade se extinguirão.

Visão de mundo

A perda de línguas raras é lamentável por várias razões. Em primeiro lugar, pelo interesse científico que despertam: algumas questões básicas da linguística estão longe de estar inteiramente resolvidas. E essas línguas ajudam a saber quais elementos da gramática e do vocabulário são realmente universais, isto é, resultantes das características do próprio cérebro humano.

A ciência também tenta reconstruir o percurso de antigas migrações, fazendo um levantamento de palavras emprestadas, que ocorrem em línguas sem qualquer parentesco. Afinal, se línguas não aparentadas partilham palavras, então seus povos estiveram em contato em algum momento.

Quando uma língua morre, perde-se para sempre uma peça desse intrincado quebra-cabeça. Perde-se também o saber específico de uma cultura e uma visão de mundo única.

Um comunicado do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) diz que "o desaparecimento de uma língua e de seu contexto cultural equivale a queimar um livro único sobre a natureza". Afinal, cada povo tem um modo único de ver a vida. Por exemplo, a palavra russa mir significa igualmente "aldeia", "mundo" e "paz". É que, como os aldeões russos da Idade Média tinham de fugir para floresta em tempos de guerra, a aldeia era para eles o próprio mundo, ao menos enquanto houvesse paz.

Competição

Na África, um dos continentes com o maior número de línguas ameaçadas, 80% delas não apresentam registros escritos. Mas mesmo que uma língua tenha sido totalmente documentada, tudo o que resta depois que ela se extingue é um esqueleto fossilizado. E estudar fósseis nunca é a mesma coisa que estudar espécies vivas.

As principais causas para a extinção das línguas são a dominação econômica e cultural e a  explosão demográfica. Isso leva os falantes de uma língua a ter dúvidas sobre a sua utilidade. Muitos - até as crianças - consideram sua própria língua inferior à língua dominante e param de usá-la. Do mesmo modo como os idiomas oficiais europeus sufocaram progressivamente os dialetos locais a partir de fins do século 19, o mesmo fenômeno se verifica hoje em escala global, com as grandes línguas de cultura (inglês, espanhol, russo, árabe, mandarim, etc.) suplantando os falares regionais e tradicionais.

No entanto, as próprias línguas de cultura também competem entre si: assim como o latim, hegemônico na Idade Média, foi aos poucos dando lugar ao francês como idioma da ciência e da erudição, este também viu seu declínio diante do inglês na passagem do século 19 para o 20 especialmente após a Segunda Guerra Mundial. Especialistas antecipam que o próprio inglês possa perder terreno, nas próximas décadas, para línguas de nações emergentes, como o hindi e o mandarim.

Por outro lado, uma esperança de reverter a tendência à extinção em massa de línguas é a forte migração para os grandes centros urbanos. O contato entre duas ou mais populações no mesmo espaço territorial acaba conduzindo a miscelâneas linguísticas, como ocorreu no passado com o michif (misto de francês com a língua indígena canadense cree) e o mednyi (mistura de russo e aleúte, língua do Alasca). Atualmente, a presença de imigrantes africanos e asiáticos nas grandes cidades europeias já sinaliza o surgimento de novos dialetos.

Mudança de forma

Tudo isso significa que talvez a diversidade linguística não se reduza tão drasticamente, mas sobretudo mude de forma. De qualquer maneira, a extinção é para sempre: uma língua desaparecida sem documentação jamais voltará a ser falada. Com isso, muitas informações preciosas sobre modos de vida e relacionamento com a natureza se perderão definitivamente.

Apesar de tudo, muitos esforços estão sendo feitos, por governos, universidades e ONGs, para reverter esse quadro, em alguns casos com sucesso. Línguas que se encontravam em risco iminente de desaparecimento voltaram a ser faladas depois de introduzidas na escola, o que fez surgir novas gerações de falantes. Algumas dessas línguas hoje demonstram novamente grande vitalidade. Sendo a humanidade tão numerosa hoje (mais de 7 bilhões de indivíduos), nem mesmo toda a tecnologia da comunicação pode fazer com que todos venhamos um dia a falar uma única língua - o que seria o sonho dos capitalistas e o pesadelo dos linguistas.


Texto de Aldo Bizzocchi retirado da revista Língua Portuguesa, Ano 9, número 116, Junho de 2015, Editora Segmento, São Paulo.

quarta-feira, 17 de julho de 2024

Brasil confunde "devo" e "posso"

 Prática do pensamento confundente faz verbos mudarem sentidos no país


Em 1999, tive o privilégio de entrevistar, em Madri, o pensador Julián Marías e conversamos sobre um fecundo conceito de Ortega y Gasset: "pensamento confundente". Trata-se do fato de as línguas pensarem  conjuntamente em uma palavras o que outras distinguem em diversas. É, portanto, conceito relativo e sem  valores a priori: em termos abstratos, não é melhor ser confundente ou "distinguente" e não há carga pejorativa na denominação "confundente".

Em geral, há clara tendência ao confundente nas línguas orientais, mas ocorre confusão/distinção em toda língua. Quem faz legendas em português para um filme inglês tem de decidir se traduz you por "você" ou "senhor", pois o inglês usa you tanto para a conversa de amiguinhos na creche quanto para dirigir-se ao severo avô. O mesmo ocorre na situação inversa: como legendar, em inglês, o confundente "grande" do português? Ao usá-lo pode não se estar pensando no físico big, mas em great, em grandiosas conquistas: "Grande Uruguai: desclassificou a Argentina!" ou "Grande Uruguai: legalizou a maconha!", etc.

Sobre o positivo do confundente, assim se expressava Marías:

"Trata-se de uma dupla dimensão do pensamento. Há uma função, diríamos, normal do pensamento que é distinguir e determinar as diferentes formas de realidade. Por outro lado, se esta fosse a única função do pensamento, não haveria como lidar intelectualmente com realidades complexas em suas conexões, nas quais interessa ver o que há de comum e, portanto, o tipo de relações que há entre realidades que, de resto, são diferentes. É o que Ortega denominava 'pensamento confundente'. Gosto do exemplo da palavra 'bicho', muito vaga, que se refere a milhões de animais, mas nos comportamos ante um 'bicho' de uma maneira, de certo modo, homogênea: em muitas ocasiões as diferenças não contam e não nos importa a espécie (haverá centenas de milhares de  coleópteros, mas, para muitos efeitos, não interessa). O 'pensamento confundente' é muito importante e é complemento ao pensamento que distingue."

O verbo "dever"

Se, como regra geral, prevalece o fenômeno nas línguas orientais, o português tem acentuados confundentes. Sobretudo o do Brasil, com nossa propensão ao genérico, à indeterminação, ao neutro. Certa vez, dirigindo-me a um colega, vizinho de prédio no campus, a quem costumava dar carona, perguntei:

- E aí, vai para a USP amanhã?

- Devo ir.

Assim, sem mais, o interlocutor não tem como saber o que significa esse "devo", entre nós, muito confundente. Como traduzi-lo para o inglês (should, have to, supposed to, must, ougt...)? "Devo" pode ser a mais absoluta e imperativa decisão de ir ("devo ir, senão a USP desmorona") à mais descomprometida e frágil intenção ("falei 'devo ir', mas aí apareceu um desenho animado legal na TV e eu não fui").

O brasileiro, que não sabe dizer "não", vale-se do "dever" neste sentido. Se alguém convida você à formatura da neta dele no ensino fundamental, a resposta "Devo ir" é, claramente, a forma polida que vale por um sonoro "não". Claro que é um passo a mais na atitude neutra, tão frequente entre nós, que se instala em uma indeterminação confundente, dispensando-se do peso de decidir... E não deixa de ser inquietante que tenhamos toda essa gama de significados em torno de um verbo tão fundamental como "dever".

O mesmo ocorre com "poder". O dicionário Aurélio dá 15 sentidos a ele; o Houaiss, 12. Em espanhol haveria que se acrescentar outro: "ser más furte que otro, ser capa de vencerle. 'En la discusión me puede"' (Dicc. de la Real Academia). Quando se contempla a meteórica ascensão da nova força política da Espanha, o ¡Podemos!, fundado em 2014, não haverá aí - além da alusão ao "Yes, we can!" - uma outra, implícita, evocação desse poder, como ser capaz de se impor ao oponente? Esse sentido já não é mais comum entre nós, mas o hino comemorativo da Copa de 1958 dizia: "A taça do mundo é nossa/ Com brasileiro não há quem possa", hoje tão em desuso quanto outro verso que chama a seleção de "esquadrão" de ouro... Foi nessa época que Dorval (do lendário ataque: Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe), após virada do Santos, quando questionado sobre como foi possível a façanha, declarou:

- Futebol não é para quem quer; é para quem pode!

E hoje temos outra forma nova, ainda não dicionarizada: "tá podendo", para indicar diversas formas de poder... E "Pode?" é indicação de algo absurdo ou imoral: "Uma hora e meia de fila de espera para entrar naquela droga de restaurante... Pode?".

Nosso "poder", "posso fazer", em português concentrado em uma única forma, é em inglês - como faz notar o filósofo Vilém Flusser, diversificado em: I may do/ I can do/ I am able to do/ I am allowed to do.

- Você faz uma cesta de três pontos para eu ver?

- Não posso ("agora estou ocupado com alongamentos")/("não vê que sou portador de deficiência e incapaz, sequer, de segurar a bola?")/ ("estou destreinado")/ ("o técnico nos proibiu de arriscar esse tipo de lance").

Flusser em aguda intuição - vê no "poder" em português (em contraste com o inglês e com o alemão), um decisivo alcance metafísico:

"Poder e dever são conceitos ligados entre si, e tenho certeza de que um estudo fenomenológico das duas palavras esclarecerá fundamentalmente o sistema ontológico que suporta a língua portuguesa". (Língua e Realidade. 3ª ed. São Paulo: Annablume, 2007: 144.)"



Texto de Jean Lauand, professor titular sênior da FEUSP e titular dos programas de pós-graduação em Educação e Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo. Retirado da revista Língua Portuguesa, Editora Segmento, São Paulo, Ano 9, número 116, Junho de 2015.

sábado, 13 de julho de 2024

Alguma Coisa (28)

                "Não necessitam de médico os que estão sãos, mas sim os que estão enfermos."                                - Jesus. (LUCAS, 5:31)


Quem sabe ler, não se esqueça de amparar o que ainda não se alfabetizou.

Quem dispõe de palavra esclarecida, ajude ao companheiro, ensinando-lhe a ciência da frase correta e expressiva.

Quem desfruta o equilíbrio orgânico não despreze a possibilidade de auxiliar o doente.

Quem conseguiu acender alguma luz de fé no próprio espírito, suporte com paciência o infeliz que ainda não se abriu a mínima noção de responsabilidade perante o Senhor, auxiliando-o a desvencilhar-se das trevas.

Quem possua recursos para trabalhar, não olvide o irmão menos ajustado ao serviço, conduzindo-o, sempre que possível, a atividade digna.

Quem estime a prática da caridade, compadeça-se das almas endurecidas, beneficiando-as com as vibrações da prece.

Quem já esteja entesourando a humildade não se afaste do orgulhoso, conferindo-lhe, com o exemplo, os elementos indispensáveis ao reajuste.

Quem seja detentor da bondade não recuse assistência aos maus, de vez que a maldade resulta invariavelmente da revolta ou da ignorância.

Quem estiver em companhia da paz, ajude aos desesperados.

Quem guarde alegria, divida a graça do contentamento com os tristes.

Asseverou o Senhor que os sãos não precisam de médico, mas, sim, os enfermos.

Lembra-te dos que transitam no mundo entre dificuldades maiores que as tuas.

A vida não reclama o teu sacrifício integral, em favor dos outros, mas, a benefício de ti mesmo, não desdenhas fazer alguma coisa na extensão da felicidade comum.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

sábado, 6 de julho de 2024

Destruição e Miséria (27)

 "Em seus caminhos há destruição e miséria." - Paulo. (ROMANOS, 3:16)


Quando o discípulo se distancia da confiança no Mestre e se esquiva à ação nas linhas do exemplo que o seu divino apostolado nos legou, preferindo a senda vasta de infidelidade à própria consciência, cava, sem perceber, largos abismos de destruição e miséria por onde passa.

Se cristaliza a mente na ociosidade, elimina o bom ânimo no coração dos trabalhadores que o cercam e estrangula as suas próprias oportunidades de servir.

Se desce ao desfiladeiro da negação, destrói as esperanças tenras no sentimento de quantos se abeiram da fé e tece vasta rede de sombras para si mesmo.

Se transfere a alma para a residência escura do vício, sufoca as virtudes nascentes nos companheiros de jornada e adquire débitos pesados para o futuro.

Se asila o desespero, apaga o tênue clarão da confiança na alma do próximo e chora inutilmente sob a tormenta de lágrimas destrutivas.

Se busca refúgio na casa fria da tristeza, asfixia o otimismo naqueles que o acompanham e perde a riqueza do tempo, em lamentações improfícuas.

A determinação divina para o aprendiz do Evangelho é seguir adiante, ajudando, compreendendo e servindo a todos.

Estacionar é imobilizar os outros e congelar-se.

Revoltar-se é chicotear os irmãos e ferir-se.

Fugir ao bem é desorientar os semelhantes e aniquilar-se.

Desventurados aqueles que não seguem o Mestre que encontraram, porque conhecer Jesus-Cristo em espírito e viver longe dele será espalhar a destruição, em torno de nossos passos, e conservar a miséria dentro de nós mesmos.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

sábado, 29 de junho de 2024

Os Botequins

Noite fria e, como todas as noites, o botequim deserto. José sentava-se à mesa do fundo, o gordo vinha com a garrafa. Enquanto ele ficava no botequim (e ficava até a hora de fechar), o gordo deixava a garrafa aberta no balcão. José trazia o jornal dobrado no bolso. O cálice fazia um círculo úmido na mesa.

Antes de beber, lia uma notícia inteira. Erguendo o cálice e fechando os olhos, engolia dum trago. Ao abri-los, via no teto a sombra redonda da lâmpada. O gordo contornava o balcão, enchia o cálice até a borda, derramada uma gota. José esperava o dia em que, atrás do jornal, iria lamber a gota perdida.

Na quarta ou quinta dose bebia em mais de um gole. Estendia as pernas sob a mesa, contemplava a sombra do teto, lia o jornal. Não olhava para o gordo de calva brilhosa, galhinho de arruda na orelha. Se demorava em servir, José batia o cálice na mesa.

O botequim era corredor escuro, três ou quatro mesas encostadas à parede e o balcão no meio, atrás do qual o gordo curvava a cabeça sob as garrafas. No balcão um vidro de pepinos com mancha de bolor no vinagre.

E nenhum espelho na parede. José não gostava de se olhar. Descobriu aquele botequim e vinha, toda noite, sentar-se à sua mesa, o jornal no bolso. Sempre o mesmo, puído nas dobras. Lia notícia completa antes de emborcar a primeira dose.

Raros intrusos que se aventuravam no botequim davam as costas a José. Quem gosta de ficar no botequim vazio, de cara com um desconhecido? A sua mesa junto ao reservado. Cada vez que alguém entrava, José sentia o odor ácido de amoníaco. De chapéu, o rosto na sombra, bebendo seus tragos. Hora de fechar, o gordo tirava da barriga o avental sujo e, sem olhar para o cliente, contava o dinheiro da gaveta.

José Avançava preguiçoso ao longo das mesas. Tinha casa e família, preferia o botequim, desenhando na mesa os círculos úmidos. Botequim frio, escuro e pestilento. Com ninguém falava, sequer o patrão. Ali não se sentia só. No balcão a garrafa aberta. Mulher alguma diria: Não beba mais, por favor... Pelas cinco chagas de Nosso Senhor, seja esse o último cálice! Não tinha vergonha de beber no botequim. O gordo era pessoa que compreendia as coisas. Além do mais, não havia espelho.

O gordo compreendia. Quando José não tinha dinheiro, deixava o jornal no bolso, depois do quinto cálice ainda o bebia dum trago. Fim de noite, empurrava a cadeira e saía, sem que o patrão corresse atrás. Noite seguinte, voltava; o relógio no bolsinho do colete, a aliança na mão balofa do gordo haviam sido a sua aliança e o seu relógio. Por amor da família - se é que tinha família - sujeitava-se a encher o cálice do único freguês?

No balcão, ao lado do vidro de pepinos, um prato com ovos cozidos, a casca escura de pó. O gordo ali debruçado, raminho fresco de arruda na orelha. Medo da solidão, conservava o botequim aberto, na esperança de que alguém entrasse? O último bar funcionando no domingo, sem a fumaça dos cigarros, sem o burburinho das vozes, sem o bafo azul dos botecos.

Naquela noite um desconhecido surgiu no botequim deserto, além do gordo e de José na mesa do fundo. Em vez de dar-lhe as costas, sentou-se à mesa próxima. O patrão serviu-o e retirou-se. O outro saudou José e, lívido, careta de medo, misturou o pó rosado no copo.

José observou a sombra redonda no teto, as duas manchas de goteira, o vizinho que, depois de beber, deixava a cabeça cair na mesa e o braço pender até o chão - lentamente o copo veio rolando a seus pés

O gordo, sem tirar o avental, recolhia o dinheiro da gaveta. José afastou-se devagar e, a cada passo, sentia a meia encharcada. Por mais cansado, podia andar a noite inteira na chuva. Não era hora de ir para casa. Teria de achar outro botequim e começar outra vez.


Texto de Dalton Trevisan retirado do livro Cemitério de Elefantes, Editora Record, 11ª Edição, Rio de Janeiro, 1997.

Obreiro Sem Fé (26)

 "... e eu te mostrarei a minha fé pelas minhas obras." - (TIAGO, 2:18)


Em todos os lugares, vemos o obreiro sem fé, espalhando inquietação e desânimo.

Devota-se a determinado empreendimento de caridade e abandona-o, de início, murmurando:

- "Para quê? O mundo não presta."

Compromete-se em deveres comuns e, sem qualquer mostra de persistência, se faz demissionário de obrigações edificantes, alegando: - "Não nasci para o servilismo desonroso."

Aproxima-se da fé religiosa, para desfrutar-lhe os benefícios, entretanto, logo após, relega-se ao esquecimento, asseverando: - "Tudo isto é mentira e complicação."

Se convidado a posição de vidência, repete o velho estribilho: - "Não mereço! Sou indigno"..."

Se trazido a testemunhos de humildade, afirma sob manifesta revolta: - "Quem me ofende assim?"

E transita de situação em situação, entre a lamúria e a indisciplina, com largo tempo para sentir-se perseguido e desconsiderado.

Em toda parte, é o trabalhador que não termina o serviço por que se responsabilizou ou o aluno que estuda continuadamente, sem jamais aprender a lição.

Não te concentres na fé sem obras, que constitui embriaguez perigosa da alma, todavia, não te consagres à ação, sem fé no Poder Divino e em teu próprio esforço.

O servidor que confia na Lei da Vida reconhece que todos os patrimônios e glórias do Universo pertencem a Deus. Em vista disso, passa no mundo, sob a luz do entusiasmo e da ação no bem incessante completando as pequenas e grandes tarefas que lhe competem, sem enamorar-se de si mesmo na vaidade e sem escravizar-se às criações de que terá sido venturoso instrumento.

Revelemos a nossa tarefa, através das nossas obras na felicidade comum e o Senhor conferirá à nossa vida o indefinível acréscimo de amor e sabedoria de beleza e poder.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

terça-feira, 25 de junho de 2024

Duas Rainhas

Duas gorduchinhas, filhas de mãe gorda e pai magro. Não sendo gêmeas, usam vestido igual, de preferência encarnado com bolinha. Sob o travesseiro mil bombons, o soalho cheio de papelzinho dourado.

Rosa tem o rosto salpicado de espinhas. Dois anos mais moça, Augusta é engraçadinha, para quem gosta de gorda. Três vezes noiva de sujeitos cadavéricos, esfomeados por aquela montanha de doçuras gelatinosas. Os amores desfeitos pela irmã.

- A Rosa é muito tirana - desculpa a outra sem azedume.

Duas pirâmides invertidas que andassem, largas no vértice e fininhas na base. Manchas roxas pelo corpo de se chocarem nos móveis. Lamentam-se da estreiteza das portas. Sua conversa predileta sobre receita de bolo. Nos aniversários, primeiras a sentarem-se à mesa ou, para lhes dar passagem, todos têm de se levantar.

O terceiro noivo, mais magro, com mais cara de fome, conquista Augusta, apesar da oposição da irmã. Instalados na casa do pais, Glauco proíbe-a de acompanhá-lo ao portão. Não a leva ao baile, queixa-se de que nela todos se esbarram. No cinema, as suas carnes opulentas extravasam da cadeira. O marido, inquieto, vigia a todo instante o vizinho.

Segue-o ao banheiro, enquanto ele faz a barba. Fechados no quarto, não saem senão para as refeições.

- Já se viu - exclama Rosa para a mãe - que pouca vergonha!

O marido quase não dorme - transborda Augusta do leito -, embevecido a vê-la roncar. Por insinuação dele, preocupa-se com as formas. Ela perde alguns quilos, Rosa engorda. Saem juntas para as compras.

- A senhora está esperando? - pergunta a caixeira para Rosa. - De quantos meses?

- Minha irmã que...

Augusta tricoteia casaquinho de lã, que nunca termina. Com dor no coração soube o marido que é falsa a gravidez - ela come escondida. Cada gaveta, manancial de gulodice. Então a arrasta em longas caminhadas; a moça tropeça de pé inchado e, de esfregar uma na outra, em carne viva a coxa roliça.

Glauco deu para beber. Recusa-se a fazer visita, desconfia do riso às suas costas.

- Você tem vergonha de mim - choraminga Augusta.

- Que bobagem, meu bem.

- Tem, sim.

- Se ao menos evitasse bolinha no vestido.

- Bem avisei - suspira Rosa. - Esse casamento não dava certo.

Ele tentou aliança com o sogro. Discutiu com Augusta, Rosa e a sogra, dona Sofia. A moça chorou, fez dieta e perdeu dois quilos, que recuperou semana seguinte.

Sempre beliscando algum petisco e anunciando uma para outra:

- Amanhã é dia de regime!

Lambiscam e recordam os sonhos. Nenhuma borboleta ou esquilo. Todos os bichos proporcionais: rinoceronte, foca, hipopótamo. As noites de Rosa agitam-se de cavalos empinados relinchantes. Augusta prefere um elefante branco:

- O elefante chegou, ergueu as patas, riu para mim.

- Não se olhe tanto ao espelho - resmunga o marido.

Uma tarde explode o escândalo. Dona Sofia e Augusta vão ao dentista, na volta encontram Rosa em pranto. Glauco investiu, derrubou-a no sofá, aos gritos e beijos:

- Minha rainha das pombinhas!

Ai de Augusta, só quer morrer: entre golinhos do licor de ovo, ingere punhado de pílulas, catando azuis e rosas, enjeitando as amarelas - língua babosa, de porrinho, jura eterna viuvez.

Agora as duas no quarto do casal. O marido, esse, no de hóspede. Chega tão bêbado que dona Sofia lhe tira o sapato e deita-o vestido. Cada uma engordou cinco quilos - abaixo do joelho enrolam a meia na liga.

- Viu o Glauco?

- Magro que dá pena.

Abanam-se com ventarola. Mordiscam bombom prateado de anisete:

- Não sei onde com a cabeça.

- Gente magra é tão feia!

Contemplam-se orgulhosas: bem pequeno o pé torneado com roscas de mesa antiga de jacarandá.

- Amanhã dia de regime - anuncia Augusta, em nuvem de talco para evitar queimadura nas dobras.

Depois do almoço ficam de pé par facilitar a digestão. Sem encostar no peitoril, dói o estômago dilatado. Mãos apoiadas na janela - uma janela para cada uma -, vendo a gente magra e feia que passa.

- Que tal pedacinho de goiabada? - sugere uma delas.

Derrete-se a guloseima na língua. Rosa tremelica o papo rubicundo. Suspendendo a perna com duas mãos, Augusta cruza os joelhos.


Texto de Dalton Trevisan retirado do livro Cemitério de Elefantes, Editora Record, 11ª Edição, Rio de Janeiro, 1997.