terça-feira, 17 de abril de 2012

Porta Estandarte

                          Geraldo Vandré/Fernando Lona


Olha que a vida tão linda
Se perde em tristezas assim
Desce teu rancho cantando
Essa tua esperança sem fim
Deixa que a tua certeza
Se faça do povo a canção
Pra que teu povo cantando
O teu canto ele não seja em vão

Eu vou levando a minha vida enfim
Cantando
Que canto sim
E não cantava se não fosse assim
Levando
Pra quem me ouvir
Certezas e esperanças pra trocar
Por dores e tristezas que bem sei
Um dia ainda vão findar
Um dia que vem vindo
E que eu vivo pra cantar
Na avenida girando
Estandarte na mão pra anunciar

Olha que vida
Tão linda
Tão linda
Perdida
Perdida


Fruto do Suor

                      Tony Osanah/Enrique Bergen



A terra nova era um paraíso
O milho alto e os rios puros
Dormia o ouro
A cobiça ausente
Era o índio senhor do continente.

Foram chegando os conquistadores,
Os africanos e os aventureiros.

O índio altivo se mesclou ao escravo
Nascia um novo tipo americano.

O interesse fabricou carimbos,
O ódio à toa levantou paredes
A baioneta desenhou fronteiras,
A estupidez nos separou em bandeiras.

Tenho um filho desta terra,
Foi um amor sem passaporte,
Se o estar foi brasileiro,
Não me chames de estrangeiro.

Cada pedra, cada rua 
Tem um toque de imigrantes
Levantaram com seus sonhos
Um país que não tem donos.

O suor fecunda o solo
E a semente não pergunta
Brasileiro ou imigrante
Só o fruto é importante

Não me sintas forasteiro
Não me inventes geografias
Sou tua raça
Sou teu povo
Sou teu irmão no dia-a-dia

canção do repertório do grupo Raíces de América. 

segunda-feira, 16 de abril de 2012

O feio vício da inveja

                 Lya Luft


Antigamente se dizia que a masturbação era o feio vício. Eu digo: a inveja é um vício feiíssimo, secundado pelo ressentimento. Juntos preparam o caminho do inferno. Não aquele religioso, com diabos espetando o  traseiro da gente, mas o do ridículo e da falta de respeito por si mesmo, para começar.

Aceitamos muito mal o sucesso alheio, a alegria alheia, o amor alheio. Quando não gostamos de nossa própria vida, odiamos pensar que alguém esteja contente com a sua. Supervalorizamos o momento bom do outro, não para o curtirmos com ele, mas como se isso o tornasse maior ou melhor que nós, e o tratamos como réu: culpado de não fracassar, não ser vaiado, não ficar sozinho nem mofar na prateleira. A mim em geral me diverte um pouco observar essas coisas, mas às vezes me espanta.

Lygia Fagundes Telles, a quem aqui homenageio, que me incentivou a fazer ficção nos idos da década de 70, já então reclamava do " olho turvo da inveja vertendo sua lágrima verde de bílis ". Pois outro dia tive de escutar alguém amargo e chato, além do mais bastante inadequando, condenando os chamados best-sellers e seus autores, na minha cara. Por acaso um entre meus tantos livros de momento vende bem, e não vou me desculpar por isso. Ao mesmo tempo tal pessoa injuriava os leitores que compram coisa tão ruim...

O que é um best-seller? Entre nós era, até pouco tempo atrás, o livro estrangeiro que vendia milhões, enquanto o autor brasileiro chupava o dedo. Hoje se rotula assim também o livro de autor brasileiro que não mofa nas prateleiras.

Quero dizer que cansei. Nem por desinformação, burrice ou má vontade me perguntem se, depois de ser tachada de escritora " complicada ", hermética e obscura por tantos anos, passei - para alguns menos elegantes - a " facilitar para me nivelar aos leitores ". Se só vulgarização e baixo nível vendem uma obra, o Espírito Santo - para quem nele acredita - teria descido de nível ao inspirar a Bíblia , o livro que mais vende no mundo. Somos realmente tão tolos?

Sempre há os que detestam autores cujo trabalho é mais amplamente reconhecido, seja por qualidade, sorte ou essa marca de imponderável que faz com que um livro " pegue " ou não. Sempre há os que acham defeito no empresário bem-sucedido (" deve ser corrupto "), no casal feliz (" mas com certeza ele a passa para trás "), na mulher bonita (" ah, mas eu soube que ela... "). A lista do ressentimento e da calúnia é longa. Sinto lhes dizer, mas coisas boas acontecem, pessoas às vezes se amam de verdade, felicidade existe, famílias podem ser unidas, sucesso ocorre e, acreditem, não é caminho para o céu ou porta para qualquer academia - nenhuma, aliás, me interessa.

De preferência, nem deem tanta opinião se não forem críticos, resenhistas, professores - e, mesmo aí, aceitem seus limites. " Seu primeiro romance foi o melhor de todos ", me diz alguém (depois dele escrevi mais uns nove...). " Você devia escrever só romances, são muito melhores que seus ensaios e  poemas ", opina outro, e alguém logo a seguir comenta: " seus ensaios são mais interessantes, esqueça a ficção ". Um livro meu de poemas que acaba de sair comete o pecado de aparecer em listas de mais vendidos: já me divirto imaginando a reação das pessoas que vivem reclamando que " brasileiro não lê ", mas criticam aqueles cujos livros vendem bem e aqueles que os compram.

Ninguém mais ou menos sensato ou vagamente bem-educado perguntaria à francesa Marguerite Yourcenar , se viva fosse e de repente vendesse bem um livro seu (Memórias de Adriano esteve nas listas...): " Madame Yourcenar, a senhora agora se rebaixou para agradar aos leitores comuns, os ignorantes que compram best-sellers? ". Então, não perguntem o mesmo a nenhum escritor brasileiro de sucesso. Somos igualmente dignos de respeito. Mas há quem não consiga deixar o feio vício. Ai de nós!

Minha História

                 Dalla/Pallotino
                 versão: Chico Buarque


Ele vinha sem muita conversa
Sem muito explicar
Eu só sei que falava
E cheirava e gostava de mar
Sei que tinha tatuagem no braço
E dourado no dente
E minha mãe se entregou
A esse homem perdidamente
Ele assim como veio
Partiu não se sabe pra onde
E deixou minha mãe
Com o olhar cada dia mais longe
Esperando, parada, pregada
Na pedra do porto
Com seu único velho vestido
Cada dia mais curto
Quando, enfim, eu nasci
Minha mãe embrulhou-me num manto
Me vestiu como se eu fosse assim
Uma espécie de santo
Mas por não se lembrar de acalantos
 A pobre mulher
Me ninava cantando cantigas de cabaré
Minha mãe não tardou alertar toda a vizinhança
A mostrar que ali estava bem mais
Que uma simples criança
E não sei bem se por ironia
Ou se por amor
Resolveu me chamar com o nome do Nosso Senhor
Minha história, esse nome
Que ainda hoje carrego comigo
Quando vou bar em bar
Viro a mesa, berro, bebo e brigo
Os ladrões e as amantes
Meus colegas de copo e de cruz
Me conhecem só pelo meu nome
De Menino Jesus



A versão desta música é de 1971, portanto, no auge da ditadura militar no Brasil. A composição original é italiana e chama-se Gesubambino. Na tradução literal seria Menino Jesus, vetada obviamente pelo conservadorismo da época.
Se analisarmos cuidadosamente a letra, veremos que existe toda uma alegoria entre Maria e Jesus; a diferença é que a mulher da música é uma prostituta e o Jesus nada tem de salvador.
Tenho verdadeiro fascínio por essa canção e pela possibilidade de interpretação que ela propicia. Todos nós sabemos a conduta irrepreensível que Maria teve e não acho ofensivo a comparação feita entre as duas mulheres... E além do mais, chamar o homem de Menino Jesus parece que o torna mais humano, como o verdadeiro Jesus sempre quis ser...

domingo, 15 de abril de 2012

Há Sempre Alguém

O mundo inteiro está cheio de pessoas.
Há pessoas caladas que precisam de alguém para conversar.
Há pessoas tristes que precisam de alguém que as conforte.
Há pessoas tímidas que precisam de alguém que as ajude a vencer a timidez.
Há pessoas sozinhas que precisam de alguém para brincar.
Há pessoas com medo que precisam de alguém para lhes dar a mão.
Há pessoas fortes que precisam de alguém que as faça pensar na melhor maneira de usarem a força.
Há pessoas habilidosas que precisam de alguém para ajudar a descobrir a melhor maneira de usarem a sua habilidade.
Há pessoas que julgam que não sabem fazer nada e precisam de alguém que as ajude a descobrir o quanto sabem fazer.
Há pessoas apressadas que precisam de alguém para lhes mostrar tudo o que não tem tempo para ver.
Há pessoas impulsivas que precisam de alguém que as ajude a não magoar os outros.
Há pessoas que se sentem de fora e precisam de alguém que lhes mostre o caminho de entrada.
Há pessoas que dizem que não servem para nada e precisam de alguém que as ajude a descobrir como são importantes.
Precisam de alguém.
Precisam de um amigo.




autoria desconhecida

Para Pensar

Hoje existem grandes edifícios e estradas mais largas, porém,
temperamentos pequenos e pontos de vista estreitos.
Gostamos mais, porém, desfrutamos menos.
Temos casas maiores, porém, famílias menores.
Temos mais compromissos, porém, menos tempo.
Temos mais conhecimentos, porém, menos discernimento.
Temos mais remédios, porém, menos saúde.
Multiplicamos nossos bens, porém, reduzimos nossos valores humanos.
Falamos muito, amamos pouco e odiamos demais.
Chegamos à Lua, porém, temos problemas para atravessar a rua e conhecer nosso vizinho.
Conquistamos o espaço exterior, porém, não o interior.
Temos mais dinheiro, porém, menos moral...
É tempo de mais liberdade, porém, de menos alegrias...
Temos mais comidas, porém, menos vitaminas...
Dias em que chegam dois salários em casa, porém, aumentam os divórcios.
Dias de casas mais lindas, porém, de lares desfeitos.
Por tudo isso, proponho que de hoje em diante e para sempre...
Não deixe nada " para uma ocasião especial ", porque cada dia que você viver será uma ocasião especial.
Procure Deus, conheça-O, leia mais, sente na varanda e admire a paisagem sem se importar com as tempestades.
Passe mais tempo com a família e com seus amigos, coma sua comida preferida, visite lugares que ama.
A vida é uma sucessão de momentos para serem desfrutados, não apenas para sobreviver.
Use suas taças de cristal, não guarde seu melhor perfume, é bom usá-lo cada vez que sentir vontade.
As frases " um dia desses ", " algum dia ", elimine-as de seu vocabulário.
Escreva aquela carta que pensava escrever " um dia desses ".
Digamos aos nossos familiares e amigos o quanto os amamos.
Por isso, não protele nada daquilo que somaria à sua vida sorrisos e alegria.
Cada dia, hora e minuto são especiais... e você não sabe se será o último...




autoria desconhecida

Círculo Mágico


O Círculo Mágico é uma expressão inspirada nos rituais
e costumes da era primitiva.

Todas as atividades consideradas importantes para estes povos
eram celebradas em forma de círculos,
denominados MÁGICOS.

Acreditavam estes povos que, através da energia
emanada entre as pessoas componentes da roda (círculo),
os maus espíritos eram afastados e os bons ali
permaneciam.

A forma circular vem-nos acompanhando 
ao longo da história nas rodas cantadas,
na forma de lua cheia, do sol,
da Terra, da bola.

No círculo enxergamos todos no mesmo plano,
enxergamos aquele que está perto
e os mais distantes.
Não há o primeiro, nem o último.
Nele nos sentimos iguais.

E... Quando entramos no círculo,
não estamos a disputar liderança.
Estamos confiando nos amigos.
Afinal... só damos as costas
ao outro quando nele confiamos.

A SIMBOLOGIA DO CÍRCULO MÁGICO

- neste círculo somos todos iguais;
- não há o primeiro, não há o último;
- estamos todos no mesmo plano;
- neste círculo enxergo você à minha direita, você à minha esquerda e você distante de mim;
- que permaneçam neste círculo: a motivação, a cooperação, a disponibilidade, o ânimo, a comunicação efetiva, a flexibilidade, a alegria, o compromisso comigo e como o outro;
- expulsemos do círculo mágico: a desmotivação, a crítica maliciosa, a apatia, a inveja, a competição exagerada, o autoritarismo e as  forças negativas;
- e... neste círculo simbolizamos nossa força de união como grupo;
- mesmo quando ele for desfeito, permanecerá a força do CÍRCULO MÁGICO.


autoria desconhecida

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Em noites de Lua cheia

                    Marina Colasanti

Houve um tempo em que a Lua era só cheia, sempre redonda, visível, igual. E nesse tempo houve uma noite em que, avançando no céu, ela se viu de repente refletida lá embaixo, na água parada de um poço. Achou-se tão linda, mesmo a distância, que quis se ver mais de perto. E desviando-se do seu caminho, aproximou-se, debruçou-se na beira do escuro, debruçou-se mais, até que... tchibum!!! sem nem saber como, caiu lá no fundo.

A noite fez-se negra como nunca. Calaram-se os sapos, emudeceram os grilos. Pela primeira vez prisioneira, a Lua foi obrigada a esperar a chegada do dia.

E assim, presa entre paredes limacentas do poço, o pastor a surpreendeu quando chegou na manhã seguinte, para dar de beber às suas ovelhas. A princípio não conseguiu acreditar. Olhou para o céu, procurou entre as nuvens. Só o sol brilhava. Tornou a olhar para baixo. Não havia engano possível. Redonda e branca a Lua parecia boiar na água, como uma gema na clara.

O que fazer para tirá-la dali? Devagar, cuidando de não acertá-la, o pastor baixou o balde. Esperou que afundasse, depois balançou-o de leve. E começou a puxar a corda. Tentava pescar a Lua. Mas o balde era pequeno, a alça atrapalhava, e a  Lua, molhada, escorregava feito um peixe. Vezes e mais vezes o pastor tentou, sem resultado. Quanto mais insistia, mais nervoso ficava. Quanto mais nervoso, mais improvável a pescaria.

Por fim, desconsolado, sentou-se. Ao redor, as ovelhas pastavam, alheias aos seus esforços. O sol já havia avançado muito. Quando a tarde chegasse ao fim, nada mais poderia ser feito. E era preciso libertar a Lua para que iluminasse a noite.

Então, como se a tivesse colhido entre as avencas, a ideia mais simples lhe ocorreu.

Rodeou o poço com os braços, respirou fundo, e puxou com tanta força que, num arranco, conseguiu entorná-lo de boca para baixo. Lá veio a água toda, escura como um rio. E no meio da água, a Lua, rolando sobre a grama.

Rolou, rolou, parou junto ao focinho de uma ovelha. Que vendo-a tão branca e lisa, numa só bocada a engoliu.

Em vão o pastor sacudiu a ovelha, em vão levantou-a pelas patas traseiras para obrigá-la a vomitar a Lua. O que ela havia engolido, engolido guardou. E o pastor não teve outro remédio senão juntar o rebanho e voltar ao redil.

Porém à noite, trancada a porta, apagado o lampião, percebeu que o redil continuava iluminado. Era a ovelha comilona que brilhava, aluz da barriga varando pele e pelo.

Latia o cachorro, agitavam-se as outras ovelhas. Com  aquela luz, ninguém conseguiria dormir. O pastor pegou a ovelha no colo, levou para fora. E depois de ajeitá-la sobre alguma palha, voltou, trancando a porta do redil enfim escuro. No calor do rebanho, dispôs-se a dormir.

Dormiam todos profundamente quando o lobo, que vagava pela noite em busca de comida, passou ali por perto. E vendo uma luz onde sempre havia escuridão, foi se aproximando aos poucos. Esgueirou-se atrás de uma árvore, deslizou para trás de um arbusto, rastejou quase. Até encontrar aquela ovelha, mais branca que qualquer outra, dormindo indefesa. E num salto, antes que conseguisse acordar, devorá-la.

Agora, com a ovelha e a Lua na barriga, era ele que brilhava. Mas, sem sabê-lo, certo de estar protegido pela escuridão, continuou suas andanças. E andando, aproximou-se da aldeia.

Mais do que o uivo, foi a estranha claridade que alertou o caçador. Há tempos vasculhava os bosques atrás daquele assassino de rebanhos. E eis que, de repente, o tinha ao seu alcance. Levantou o fuzil. Por mais que se esgueirasse, o lobo enluarado era um alvo fácil. De nada lhe adiantaram o tronco da árvore, os galhos do arbusto. Bastou um tiro. E lá estava ele estirado, morto.

A pele luminosa era troféu bem melhor do que o caçador havia esperado. Mas, assim que rasgou a barriga do lobo com o facão, a pele apagou-se. A Lua, mais uma vez, rolou branca sobre a grama.

Branca, redonda, e úmida. Foi fácil para o caçador confundi-la com um queijo. E antevendo a alegria das quatro filhas que dormiam em casa, guardou-a no bornal.

Clareava a manhã quando o caçador depositou a Lua sobre a mesa da cozinha. Ferveu o leite, partiu o pão. As meninas, ainda de camisola, esperavam. Então ele pegou o facão e cortou a Lua em quatro pedaços de acordo com o tamanho e a fome de cada uma. A mais velha ganhou o pedaço maior. O outro foi para a segunda. Um menor coube à terceira. E a caçula, que era ainda tão pequena, ficou apenas com uma fatiazinha estreita.

Comeram tudo. Não ficou nada nos pratos. E com seus pedaços de Lua na barriga, por baixo das camisolinhas brancas, foram brincar do lado de fora da casa.

Brincaram naquele dia, voltaram a brincar no dia seguinte. Não sabiam que a Noite, cansada da escuridão, havia decidido tomar a Lua de volta.

No terceiro dia, as meninas pulavam corda no gramado, quando uma águia branca veio descendo em círculos lá do alto. Um súbito mergulho, as garras cravadas na roupa da mais velha, elá se foi ela carregada para o céu. Logo, baixou uma cegonha branca e, agitando suas grandes asas, agarrou a segunda com o bico, subindo com ela para o azul. E desceu uma gaivota branca para buscar a terceira. E uma pomba branca levou e menorzinha pela trança.

A águia voou, voou. A garça voou, voou, voou. E voou a gaivota. E a pomba voou. Até chegarem na grande lona da noite. Onde, abrindo garras e bicos, depositaram as irmãs.

Ali elas vivem até hoje, revezando-se para iluminar a escuridão. Há noites em que a mais velha fica acordada, enquanto as outras dormem. Noites em que a vigília cabe à pequena, ou à do meio. E até mesmo noites em que todas dormem abraçadas, e a  única luz visível é a das estrelas. Mas as noites mais bonitas são aquelas em que as quatro ficam acordadas e, como naquele dia distante, brincam de roda, girando de mãos dadas no céu. É quando, olhando daqui debaixo, vemos a Lua inteira, redonda, cheia. Como antigamente.

conto do livro Entre a Espada e a Rosa. 

Pausa

              Moacyr Scliar

Às sete horas o despertador tocou. Samuel saltou da cama, correu para o banheiro, fez a barba e lavou-se.
Vestiu-se rapidamente e sem ruído. Estava na cozinha, preparando sanduíches, quando a mulher apareceu, bocejando:
- Vais sair de novo, Samuel?

Fez que sim com a cabeça. Embora jovem, tinha a fronte calva; mas as sobrancelhas eram espessas, a barba, embora recém-feita, deixava ainda no rosto uma sombra azulada. O conjunto era uma máscara escura.

- Todos os domingos tu sais cedo - observou a mulher com azedume.
- Temos muito trabalho no escritório.

Ela olhou os sanduíches:
- Por que não vens almoçar?
- Já te disse: muito trabalho. Não há tempo. Levo um lanche.

A mulher coçava a axila esquerda. Antes que voltasse à carga, Samuel pegou o chapéu:
- Volto de noite.

As ruas ainda estavam úmidas de cerração. Samuel tirou o carro da garagem. Guiava vagarosamente; ao longo do cais, olhando os guindastes imóveis, as barcaças atracadas.

Estacionou o carro numa travessa quieta. Com o pacote de sanduíches debaixo do braço, caminhou apressadamente duas quadras. Deteve-se ao chegar a um hotelzinho velho e sujo. Olhou para os lados e entrou furtivamente. Bateu com as chaves do carro no balcão, acordando um homenzinho que dormia sentado numa poltrona rasgada. Era o gerente. Esfregando os olhos, pôs-se de pé:

- Ah! seu Isidoro! Chegou mais cedo hoje. Friozinho bom este, não é? A gente...
- Estou com pressa, seu Raul - atalhou Samuel.
- Está bem, não vou atrapalhar. - Estendeu a chave. - É o de sempre.

Samuel subiu quatro lanços de uma escada vacilante.

Ao chegar ao último andar, duas mulheres gordas, de chambre floreado, olharam-no com curiosidade:
- Aqui, meu bem! - uma gritou, a outra riu.

Ofegante, Samuel entrou no quarto e fechou a porta à chave. Era um aposento pequeno: uma cama de casal, um guarda-roupa de pinho; a um canto, uma bacia cheia d'água, sobre um tripé. Samuel correu as cortinas esfarrapadas, tirou do bolso um despertador de viagem, deu corda e colocou-o na mesinha-de-cabeceira.

Puxou a colcha e examinou os lençóis com o cenho franzido; com um suspiro, tirou o casaco e os sapatos, afrouxou a gravata. Sentado na cama, comeu vorazmente quatro sanduíches. Limpou os dedos no papel de embrulho, deitou-se e fechou os olhos.

Dormir.

Em pouco tempo, dormia. Lá embaixo, a cidade começava a mover-se: os automóveis buzinando, os jornaleiros gritando, os sons longínquos.

Um raio de sol filtrou-se pela cortina, estampou um círculo luminoso no chão carcomido.

Samuel dormia. Nu, corria por uma planície imensa, perseguido por um índio montado a cavalo. No quarto abafado ressoava o galope. No planalto da testa, nas colinas do ventre, no vale entre as pernas, corriam, perseguidor e perseguido.

Samuel mexia-se e resmungava. Às duas e meia da tarde sentiu uma dor lancinante nas costas. Sentou-se na cama, os olhos esbugalhados: o índio acabava de trespassá-lo com a lança. Esvaindo-se em sangue, molhado de suor, Samuel tombou lentamente; ouviu o apito soturno de um vapor. Depois fez-se silêncio.

Às sete horas o despertador tocou. Samuel saltou da cama, correu para a bacia, lavou-se. Vestiu-se rapidamente e saiu.

Sentado numa poltrona, o gerente lia uma revista.

- Já vai, seu Isidoro?
- Já - disse Samuel, entregando a chave. Pagou, conferiu o troco em silêncio.

- Até domingo que vem, seu Isidoro - disse o gerente.
- Não sei se virei - respondeu Samuel, olhando pela porta; a noite caía.

- O senhor diz isto, mas volta sempre - observou o homem, rindo.

Samuel saiu.

Guiou lentamente ao longo do cais. Parou um instante para olhar os guindastes recortados contra o céu avermelhado. Depois seguiu para casa.




conto do livro O Carnaval dos Animais.