sexta-feira, 13 de abril de 2012

Em noites de Lua cheia

                    Marina Colasanti

Houve um tempo em que a Lua era só cheia, sempre redonda, visível, igual. E nesse tempo houve uma noite em que, avançando no céu, ela se viu de repente refletida lá embaixo, na água parada de um poço. Achou-se tão linda, mesmo a distância, que quis se ver mais de perto. E desviando-se do seu caminho, aproximou-se, debruçou-se na beira do escuro, debruçou-se mais, até que... tchibum!!! sem nem saber como, caiu lá no fundo.

A noite fez-se negra como nunca. Calaram-se os sapos, emudeceram os grilos. Pela primeira vez prisioneira, a Lua foi obrigada a esperar a chegada do dia.

E assim, presa entre paredes limacentas do poço, o pastor a surpreendeu quando chegou na manhã seguinte, para dar de beber às suas ovelhas. A princípio não conseguiu acreditar. Olhou para o céu, procurou entre as nuvens. Só o sol brilhava. Tornou a olhar para baixo. Não havia engano possível. Redonda e branca a Lua parecia boiar na água, como uma gema na clara.

O que fazer para tirá-la dali? Devagar, cuidando de não acertá-la, o pastor baixou o balde. Esperou que afundasse, depois balançou-o de leve. E começou a puxar a corda. Tentava pescar a Lua. Mas o balde era pequeno, a alça atrapalhava, e a  Lua, molhada, escorregava feito um peixe. Vezes e mais vezes o pastor tentou, sem resultado. Quanto mais insistia, mais nervoso ficava. Quanto mais nervoso, mais improvável a pescaria.

Por fim, desconsolado, sentou-se. Ao redor, as ovelhas pastavam, alheias aos seus esforços. O sol já havia avançado muito. Quando a tarde chegasse ao fim, nada mais poderia ser feito. E era preciso libertar a Lua para que iluminasse a noite.

Então, como se a tivesse colhido entre as avencas, a ideia mais simples lhe ocorreu.

Rodeou o poço com os braços, respirou fundo, e puxou com tanta força que, num arranco, conseguiu entorná-lo de boca para baixo. Lá veio a água toda, escura como um rio. E no meio da água, a Lua, rolando sobre a grama.

Rolou, rolou, parou junto ao focinho de uma ovelha. Que vendo-a tão branca e lisa, numa só bocada a engoliu.

Em vão o pastor sacudiu a ovelha, em vão levantou-a pelas patas traseiras para obrigá-la a vomitar a Lua. O que ela havia engolido, engolido guardou. E o pastor não teve outro remédio senão juntar o rebanho e voltar ao redil.

Porém à noite, trancada a porta, apagado o lampião, percebeu que o redil continuava iluminado. Era a ovelha comilona que brilhava, aluz da barriga varando pele e pelo.

Latia o cachorro, agitavam-se as outras ovelhas. Com  aquela luz, ninguém conseguiria dormir. O pastor pegou a ovelha no colo, levou para fora. E depois de ajeitá-la sobre alguma palha, voltou, trancando a porta do redil enfim escuro. No calor do rebanho, dispôs-se a dormir.

Dormiam todos profundamente quando o lobo, que vagava pela noite em busca de comida, passou ali por perto. E vendo uma luz onde sempre havia escuridão, foi se aproximando aos poucos. Esgueirou-se atrás de uma árvore, deslizou para trás de um arbusto, rastejou quase. Até encontrar aquela ovelha, mais branca que qualquer outra, dormindo indefesa. E num salto, antes que conseguisse acordar, devorá-la.

Agora, com a ovelha e a Lua na barriga, era ele que brilhava. Mas, sem sabê-lo, certo de estar protegido pela escuridão, continuou suas andanças. E andando, aproximou-se da aldeia.

Mais do que o uivo, foi a estranha claridade que alertou o caçador. Há tempos vasculhava os bosques atrás daquele assassino de rebanhos. E eis que, de repente, o tinha ao seu alcance. Levantou o fuzil. Por mais que se esgueirasse, o lobo enluarado era um alvo fácil. De nada lhe adiantaram o tronco da árvore, os galhos do arbusto. Bastou um tiro. E lá estava ele estirado, morto.

A pele luminosa era troféu bem melhor do que o caçador havia esperado. Mas, assim que rasgou a barriga do lobo com o facão, a pele apagou-se. A Lua, mais uma vez, rolou branca sobre a grama.

Branca, redonda, e úmida. Foi fácil para o caçador confundi-la com um queijo. E antevendo a alegria das quatro filhas que dormiam em casa, guardou-a no bornal.

Clareava a manhã quando o caçador depositou a Lua sobre a mesa da cozinha. Ferveu o leite, partiu o pão. As meninas, ainda de camisola, esperavam. Então ele pegou o facão e cortou a Lua em quatro pedaços de acordo com o tamanho e a fome de cada uma. A mais velha ganhou o pedaço maior. O outro foi para a segunda. Um menor coube à terceira. E a caçula, que era ainda tão pequena, ficou apenas com uma fatiazinha estreita.

Comeram tudo. Não ficou nada nos pratos. E com seus pedaços de Lua na barriga, por baixo das camisolinhas brancas, foram brincar do lado de fora da casa.

Brincaram naquele dia, voltaram a brincar no dia seguinte. Não sabiam que a Noite, cansada da escuridão, havia decidido tomar a Lua de volta.

No terceiro dia, as meninas pulavam corda no gramado, quando uma águia branca veio descendo em círculos lá do alto. Um súbito mergulho, as garras cravadas na roupa da mais velha, elá se foi ela carregada para o céu. Logo, baixou uma cegonha branca e, agitando suas grandes asas, agarrou a segunda com o bico, subindo com ela para o azul. E desceu uma gaivota branca para buscar a terceira. E uma pomba branca levou e menorzinha pela trança.

A águia voou, voou. A garça voou, voou, voou. E voou a gaivota. E a pomba voou. Até chegarem na grande lona da noite. Onde, abrindo garras e bicos, depositaram as irmãs.

Ali elas vivem até hoje, revezando-se para iluminar a escuridão. Há noites em que a mais velha fica acordada, enquanto as outras dormem. Noites em que a vigília cabe à pequena, ou à do meio. E até mesmo noites em que todas dormem abraçadas, e a  única luz visível é a das estrelas. Mas as noites mais bonitas são aquelas em que as quatro ficam acordadas e, como naquele dia distante, brincam de roda, girando de mãos dadas no céu. É quando, olhando daqui debaixo, vemos a Lua inteira, redonda, cheia. Como antigamente.

conto do livro Entre a Espada e a Rosa. 

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