domingo, 29 de abril de 2012

Mãe

                  Domingos Pellegrini Jr.




O filho chegou estremecendo as tábuas do assoalho. Respira forte; cheiro de abobrinha cozida, fritura, sabão de coco; a camisa azul suada, os sapatos chocos; mas a mãe repara: não choveu - em que madrugadas foi o filho buscar chuva? No útero dela,, o avental úmido; na cara dele, a barba de três dias. Ele vai até o tanque no fundo do quintal, afasta os tinhorões, lava a cara, a nuca, os cabelos; a mãe desconfia: espantando sono, espantando temores. E fica vendo que fica no vento, magro e duro, fitando algum horizonte pralém dos lençóis no varal.

Quando a mãe chama - Vem almoçar, meu filho - ele não vem logo; ela engana a aflição espantando dos pratos uma poeira, tão fina que não existiria se o filho não continuasse mirando muito além dos lençóis molhados.

- Vem, meu filho, vem - e a cachorra continua estirada com as tetas nos ladrilhos. Já vou, mãe, já vou. A ninhada desmamou, as tetas da cachorra estão descansadas, a cachorra está descansada; os filhotes estão no mundo com garras e dentes.

- Vai esfriar na mesa, meu filho.
- Já vou, mãe, já disse que já vou.

Mas o que é que esse menino tanto vê nesse varal, o que é que tanto lê nesses lençóis, meu Deus do céu? Só pode ser coisa desses livros, esses livros que ele traz e esconde lá em cima do guarda-roupa, lê, devolve, traz outros, lê, devolve e nunca termina de pensar.

Abobrinha, arroz, feijão; e carne moída.

O filho mastiga os pensamentos de boca bem fechada; e a mãe não pode abrir a boca do filho e arrancar essas pedras; e sabe que ele vai cuspir de repente as palavras, retas, vão ficar encravadas na parede e sempre que ela olhar, pelo resto da vida, vai ver a decisão do filho ali do lado de São Jorge matando o dragão, eternamente repetindo entre as moscas e as lagartixas:

- Mãe, vou sumir.

Não mata sua mãe, meu filho - ela quase mas não diz; sabe que o filho não é ruim, não há de ser, não pode ser - e por que seria? É bonito, tem saúde, não desgosta de trabalho nem passou fome um dia que fosse na vida: então que motivo pode ter pra essa raiva tão contra tudo?

- Por que, meu filho, que te falta?
- Pra mim, nada, mas não sou só eu no mundo, mãe.

Ela fica só balançando a cabeça, o prato ainda vazio. Ele molha miolo de pão no caldo de carne, joga no chão e a cachorra disputa com o último filhote que nenhum vizinho pediu. O filhote avança, a cachorra rosna e ameaça, ele não recua, ela morde, ele vai se encolher num canto, ela come depressa. A mãe fica olhando e balançando a cabeça.

- Não entendo, meu filho. Por que tanta preocupação com os outros?

- A gente não é cachorro, mãe - ele passa outro pedaço de pão no prato, joga para o filhote.

Ela levanta os olhos do prato, vê a ponta de um livro lá em cima do guarda-roupa. Suspira como se tivesse comido muito, começa a tirar a mesa e leva também o prato limpo, de tão acostumada a lavar dois pratos.

Depois uma nuvem cinza acompanha o filho enquanto mexe nas gavetas, junta as calças e camisas, e a mãe sabe em cada uma onde está cada cerzido, e que botões precisam ser reforçados; e se arrasta com agulha e linha atrás do filho estremecendo a casa de gaveta em gaveta: - Minha certidão de nascimento, mãe, cadê?

- Aqui, meu filho, aqui, mas pra quê? - ela abre a boca mas a pergunta não sai, fica ecoando da garganta até as varizes. - Pra que de repente a certidão de nascimento se tem tantos outros documentos?

Mas ela sabe em que canto de fundo de gaveta está o papel, e pega com tanto cuidado como se pudesse quebrar; mas ele rasga - e pergunta também das fotos.

- Preciso sumir mesmo, mãe, sem deixar nada pra trás. Pro meu próprio bem.

Ela entrega o maço de fotos amarrado com cadarços - Do seu primeiro par de sapatos, meu filho, mas é pro seu próprio bem...

Ele revê as fotos uma por uma, rasga umas, devolve as de menino e ela fica olhando com olhos perdidos no tempo. Mesmo de costas enchendo a mala, ele sente o cheiro de aflição e de sabão de coco da mãe; e se apressa: esse cheiro cresce e pesa nas costas; e enfia a escova de dentes entre meias e cuecas. A mãe então senta com o peso das fotos no colo, e com a confirmação de todos os pressentimentos: é verdade, o filho vai sair fugido; só podem ser os livros, as companhias, essas madrugadas fora de casa, as unhas sujas de tinta e os olhos secos de sono.

Sente um cansaço de se afundar no chão, mas não consegue ficar sentada; zonzeia pela casa atrás do filho e as tábuas rangem, rangem mais ainda porque o filho nada fala, embrulha pão com queijo; e os chinelos da mãe se martirizam das tábuas para os ladrilhos, dos ladrilhos para as tábuas, procurando se achar entre a sala e a cozinha. Mas, de repente, em quatro passos o filho alcança a porta da frente, a mão na maçaneta destampa a casa para o vento. E ele pega a mala depressa, a outra mão larga a maçaneta e abraça - Até, mãe - mas ela sempre sentirá a mão do filho quando pegar na maçaneta; e enquanto ele desaparece entre os alecrins, o vento vem e vai com a voz dele, vai e vem - Eu volto, mãe.

- Deus queira, meu filho - ela fala tão baixinho que nem se escuta. O filho não olha para trás e ela não fecha a porta, fica na varanda com o vento e o cheiro dos alecrins, muito tempo na varanda com o cheiro suado e azul dos alecrins.

Agora experimenta descruzar as mãos sobre a garganta, nem se lembra quando foi que colocou as mãos ali; tinha vontade de chorar mas não chorou, apertou a garganta e assim ficou até agora. Agora consegue andar na varanda e reparar em quem passa, uns ladeira abaixo, outros ladeira acima na direção do filho. E todo dia nessa hora acostuma olhar a rua, principalmente rua acima por onde o filho partiu quando as azaléias ainda não tinham florido. Agora rega o antúrio e não mais se preocupa em cortar as folhas secas, o tempo há de fazer tudo que deve ser feito. Depois entra e, da ponta do corredor, vê o filho lá na pia do banheiro, curvado com a cara respingando e esticando a mão pra toalha. Agora ela já passa pela porta do quarto e vê o filho sentado na beira da cama, a cabeça enfiada no livro porque está anoitecendo; e dá uma tristeza de ver o filho lendo assim porque estraga a vista.


Depois ela ouve um estalo como se fosse mas não é a maçaneta; continua tirando os chinelos e calçando os sapatos, foi só uma tábua que estalou com o calor. Agora já está entregando na pensão os lençóis lavados e passados, uma pilha tão alta nos braços que mal consegue ver por onde anda; deixa tudo junto com um suspiro e fica esfregando a dor nas costas e amolecendo os braços endurecidos; e  respondendo que não, ainda não tem notícia nenhuma do filho, a arrumadeira sempre pergunta, ela sempre responde do mesmo jeito, e assim, nessa hora parece sempre um dia repetido. Mas não: o filho pode até ter voltado, pode estar em casa esperando a janta, então ela diz que tem de voltar logo.


Vai costurar com o rádio ligado e quase não ouve quando batem na porta os dois que, agora, já estão revistando a casa e perguntando. A senhora não tem mesmo notícia nenhuma dele? Nem uma fotografia?


E agora ela acompanha os dois homens na noite, as mãos cruzadas sobre o útero.


Agora sentada, o olhar perdido num cinzeiro duma escrivaninha, escuta mais perguntas, repete respostas,  trançando e apertando os dedos. Repete que o filho é bom, podem acreditar, nunca foi farrista, nunca foi briguento, um primor de moço, só vendo. Os homens riem, dizem que ela não conhece o próprio filho, que ele é um perigo pra todas as famílias. Ela balança a cabeça como se uma mola disparasse no pescoço, não, não, não, não é possível, devem estar confundindo com algum outro, outra mãe, outro filho; pois o dela até o dinheiro que ganhava com tanto sacrifício, coitado, queria dar todo em casa; de modo que só pode ser confusão, ela conhece bem o filho. Mas dizem que não, que conhecem melhor; e não querem falatório, querem respostas, disparam as perguntas uma atrás da outra. Quem ia em casa. Com quem ele andava. Nomes. Fotografias. Conhece este? E este, já viu alguma vez?


Ela olha através das fotos, só repete que não, não e não. Mas ele saía à noite? Viajava? Trazia livros? Embrulhos? Falou de algum endereço alguma vez? Tinha arma?


Não, não. Não, de jeito nenhum, não conhecem o filho dela, só podem estar confundindo com outro.


Os homens dão murros na mesa, ela não se assusta. Essa dona é escolada, dizem, essa velha esconde leite; mas ela diz que não, não sabe de nada do que estão perguntando, só sabe que o filho era e decerto continua sendo bom. Vê fotos dos amigos dele e repete que não, nunca viu nenhum, só podem  mesmo estar confundindo com outro, e isso vai enervando tanto os homens que acendem um cigarro no outro, ela tosse na sala enfumaçada.


Quando vê, tem um amigo do filho ali na frente dela, a cara inchada de apanhar; mas nem precisa apanhar mais pra dizer que sim, que reconhece essa mulher como mãe do - e diz um outro nome; ela levanta da cadeira: - Não falei? Estão confundindo meu filho com outro - mas recebe um safanão e cai sentada de novo.


- Senta aí, sua cadela, e só responde o que for perguntado.


E ela continua respondendo não, não e não e, quando perguntam se nunca tinha ouvido o nome de guerra do filho, responde que só podem estar confundindo com outro, o filho dela não é de guerra, é um moço bom. Então perguntam de novo se ela não conhece mesmo o amigo dele, ali de cara inchada e olhar no chão. - Hem, conhece ou não conhece, sua cadela? - e ela responde mais uma vez  que não; pode até ter conhecido mas é muito esquecida, e aproveita pra dizer baixinho que estão mesmo confundindo, não é uma cadela, não é uma cadela não, senhor.

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