sexta-feira, 13 de abril de 2012

Pausa

              Moacyr Scliar

Às sete horas o despertador tocou. Samuel saltou da cama, correu para o banheiro, fez a barba e lavou-se.
Vestiu-se rapidamente e sem ruído. Estava na cozinha, preparando sanduíches, quando a mulher apareceu, bocejando:
- Vais sair de novo, Samuel?

Fez que sim com a cabeça. Embora jovem, tinha a fronte calva; mas as sobrancelhas eram espessas, a barba, embora recém-feita, deixava ainda no rosto uma sombra azulada. O conjunto era uma máscara escura.

- Todos os domingos tu sais cedo - observou a mulher com azedume.
- Temos muito trabalho no escritório.

Ela olhou os sanduíches:
- Por que não vens almoçar?
- Já te disse: muito trabalho. Não há tempo. Levo um lanche.

A mulher coçava a axila esquerda. Antes que voltasse à carga, Samuel pegou o chapéu:
- Volto de noite.

As ruas ainda estavam úmidas de cerração. Samuel tirou o carro da garagem. Guiava vagarosamente; ao longo do cais, olhando os guindastes imóveis, as barcaças atracadas.

Estacionou o carro numa travessa quieta. Com o pacote de sanduíches debaixo do braço, caminhou apressadamente duas quadras. Deteve-se ao chegar a um hotelzinho velho e sujo. Olhou para os lados e entrou furtivamente. Bateu com as chaves do carro no balcão, acordando um homenzinho que dormia sentado numa poltrona rasgada. Era o gerente. Esfregando os olhos, pôs-se de pé:

- Ah! seu Isidoro! Chegou mais cedo hoje. Friozinho bom este, não é? A gente...
- Estou com pressa, seu Raul - atalhou Samuel.
- Está bem, não vou atrapalhar. - Estendeu a chave. - É o de sempre.

Samuel subiu quatro lanços de uma escada vacilante.

Ao chegar ao último andar, duas mulheres gordas, de chambre floreado, olharam-no com curiosidade:
- Aqui, meu bem! - uma gritou, a outra riu.

Ofegante, Samuel entrou no quarto e fechou a porta à chave. Era um aposento pequeno: uma cama de casal, um guarda-roupa de pinho; a um canto, uma bacia cheia d'água, sobre um tripé. Samuel correu as cortinas esfarrapadas, tirou do bolso um despertador de viagem, deu corda e colocou-o na mesinha-de-cabeceira.

Puxou a colcha e examinou os lençóis com o cenho franzido; com um suspiro, tirou o casaco e os sapatos, afrouxou a gravata. Sentado na cama, comeu vorazmente quatro sanduíches. Limpou os dedos no papel de embrulho, deitou-se e fechou os olhos.

Dormir.

Em pouco tempo, dormia. Lá embaixo, a cidade começava a mover-se: os automóveis buzinando, os jornaleiros gritando, os sons longínquos.

Um raio de sol filtrou-se pela cortina, estampou um círculo luminoso no chão carcomido.

Samuel dormia. Nu, corria por uma planície imensa, perseguido por um índio montado a cavalo. No quarto abafado ressoava o galope. No planalto da testa, nas colinas do ventre, no vale entre as pernas, corriam, perseguidor e perseguido.

Samuel mexia-se e resmungava. Às duas e meia da tarde sentiu uma dor lancinante nas costas. Sentou-se na cama, os olhos esbugalhados: o índio acabava de trespassá-lo com a lança. Esvaindo-se em sangue, molhado de suor, Samuel tombou lentamente; ouviu o apito soturno de um vapor. Depois fez-se silêncio.

Às sete horas o despertador tocou. Samuel saltou da cama, correu para a bacia, lavou-se. Vestiu-se rapidamente e saiu.

Sentado numa poltrona, o gerente lia uma revista.

- Já vai, seu Isidoro?
- Já - disse Samuel, entregando a chave. Pagou, conferiu o troco em silêncio.

- Até domingo que vem, seu Isidoro - disse o gerente.
- Não sei se virei - respondeu Samuel, olhando pela porta; a noite caía.

- O senhor diz isto, mas volta sempre - observou o homem, rindo.

Samuel saiu.

Guiou lentamente ao longo do cais. Parou um instante para olhar os guindastes recortados contra o céu avermelhado. Depois seguiu para casa.




conto do livro O Carnaval dos Animais.

2 comentários:

  1. Excelente texto. É uma pena que poucas pessoas compreendem a qualidade dele. 'Pausa' não é um texto qualquer: há nas "entrelinhas" uma situação que foge do padrão da sociedade (homem casado com uma mulher que sai de casa para descansar). A verdade é que esse personagem vai a um hotel localizado no cais "lugar onde os marinheiros desembarcam e, evidentemente, procuram mulheres para satisfazê-los" à procura de "outro" tipo de fuga.

    Sempre que trabalho com esse texto em sala de aula (sou professor) meus alunos não compreendem os verdadeiros motivos dessa fuga da "realidade", pois simplesmente os alunos/leitores ignoram a presença do índio e das metáforas que aparecem no texto...
    Continue postando contos, pois é na internet que os jovens leitores encontram um pouco da cultura literária brasileira.

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    1. Obrigado pelo comentário. É verdade: poucos entendem as metáforas do texto; mas bastaria olhar o parágrafo onde aparecem as figuras de Samuel nu, o índio e o cavalo. Todos elementos masculinos e altamente simbólicos...

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