quarta-feira, 4 de abril de 2012

" Nóis Mudemo "

                          Fidêncio Bogo


O ônibus da Transbrasiliana deslizava manso pela Belém-Brasília rumo a Porto Nacional. Era abril, mês das derradeiras chuvas. No céu, uma luazona enorme pra namorado nenhum botar defeito. Sob o luar generoso, o cerrado verdejante era um presépio, todo poesia e misticismo.

Mas minha alma está profundamente amargurada. O encontro daquela tarde, a visão daquele jovem marcado pelo sofrimento, precocemente envelhecido, a crua recordação de um episódio que parecia tão banal... Tentei dormir. Inútil. Meus olhos percorriam a paisagem enluarada, mas ela nada mais era para mim que o pano de fundo de um drama estúpido e trágico.

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As aulas tinham começado numa segunda-feira. Escola da periferia, classes heterogêneas, retardatários. Entre eles, uma criança crescida, quase rapaz.

- Por que você faltou esses dias?
- É que nóis mudemo onti, fessora. Nóis veio da fazenda.

Risadinhas da turma.

- Não se diz " nóis mudemo ", menino! A gente deve dizer: nós mudamos, tá?
- Tá, fessora!

No recreio, as chacotas dos colegas: Oi, nóis mudemo! Até amanhã, nóis mudemo!
No dia seguinte, a mesma coisa: risadinhas, cochichos, gozações.

- Pai, não vô mais pra escola.
- Oxente! Módi que?

Ouvida a história, o pai coçou a cabeça e disse:

- Meu fio, num deixa a escola por uma bobagem dessa! Não liga pras gozações da mininada! Logo eles esquece.

Não esqueceram.

Na quarta-feira, dei pela falta do menino. Ele não apareceu no resto da semana, nem na segunda-feira seguinte. Aí me dei conta de que eu nem sabia o nome dele. Procurei no diário de classe e soube que se chamava Lúcio - Lúcio Rodrigues Barbosa. Achei o endereço. Longe, um dos últimos casebres do bairro. Fui lá, uma tarde. O rapazola tinha partido no dia anterior para a casa de um tio, no sul do Pará.

- É professora, meu fio não aguentou as gozações da mininada. Tentei fazê ele continuá, mas não teve jeito. Ele tava chatiado demais. Bosta de vida! Eu devia de tê ficado na fazenda coa família. Na cidade nóis não tem veis. Nóis fala tudo errado.

Inexperiente, confusa, sem saber o que dizer, engoli em seco e me despedi.

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O episódio ocorrera há dezessete anos e tinha caído em total esquecimento, ao menos de minha parte.

Uma tarde, num povoado à beira de Belém-Brasília, eu ia pegar o ônibus, quando alguém me chamou. Olhei e vi, acenando para mim, um rapaz pobremente vestido, magro, com aparência doente.

- O que é, moço?
- A senhora não se lembra de mim, fessora?

Olhei para ele, dei tratos à bola. Reconstruí num momento meus longos anos de sacerdócio, digo, de magistério. Tudo escuro.

- Não me lembro não, moço. Você me conhece? De onde? Foi meu aluno? Como se chama?

Para tantas perguntas, uma resposta lacônica:

- Eu sou " nóis mudemo ", lembra?

Comecei a tremer.

-Sim, moço. Agora me lembro. Com era mesmo seu nome?
- Lúcio - Lúcio Rodrigues Barbosa.
- O que aconteceu com você?
- que aconteceu? Ah, fessora! É mais fácil dizer o que não aconteceu. Comi o pão que o  diabo amassô. E êta diabo bom de padaria! Fui garimpeiro, fui boia-fria, um " gato " me arrecadou e levou num caminhão pruma fazenda no meio do mato. Lá trabaiei como escravo, passei fome, fui baleado quando consegui fugi. Peguei tudo quanto foi doença. Até na cadeia fui pará. Nóis ignorante às veis fais coisa sem querê fazê. A escola fais uma farta danada. Eu não devia de tê saído daquele jeito, fessora, mas não aguentei as gozações da turma. Eu vi logo que nunca ia consegui falá direito. Ainda hoje não.

- Meu Deus!

Aquela revelação me virou pelo avesso. Foi demais pra mim. Descontrolada, comecei a soluçar convulsivamente. Como podia ter sido tão burra e má? E abracei o rapaz, o que restava do rapaz, que me olhava atarantado.

- O ônibus buzinou com insistência.
- O rapaz afastou-se de mim suavemente.
- Chora não, fessora. A senhora não tem curpa.

Como? Eu não tenho culpa? Deus do céu!

Entrei no ônibus apinhado. Cem olhos eram flechas vingadoras apontadas para mim. O ônibus partiu. Pensei na minha sala de aula. Eu era uma assassina a caminho da guilhotina.

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Hoje tenho raiva da gramática. Eu mudo, tu mudas, ele muda, nós mudamos, mudamos, mudaamoos, mudaaamooos... Superusada, mal usada, abusada, ela é uma guilhotina dentro da escola. A gramática faz gato e sapato da língua materna - a língua que a criança aprendeu com seus pais e irmãos e colegas - e se torna um terror dos alunos. Em vez de  estimular e fazer crescer, comunicando, ela reprime e oprime, cobrando centenas de regrinhas estúpidas para aquela idade.

E os lúcios da vida, os milhares de lúcios da periferia e do interior, barrados nas salas de aula: " Não é assim que se diz, menino! " Como se o professor quisesse dizer: " Você está errado! Os seus pais estão errados! Seus irmãos e amigos e vizinhos estão errados! A certa sou  eu! Imite-me! Copie-me! Fale como eu! Você não seja você! Renegue suas raízes! Diminua-se! Desfigure-se! Fique no seu lugar! Seja uma sombra! "

E siga desarmado para o matadouro da vida...

Este texto sempre me emocionou...

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