quinta-feira, 26 de abril de 2012

Um guarda-chuva no parque

                                  Sylvia Orthof

Lá estava a velha: muito magrinha, com o seu guarda-chuva vermelho, num vestido de bolinhas brancas sobre fundo azul-marinho. Magrinha e velha. Será que eu já disse que ela era velha? Devo ter dito, tenho mania de repetir as coisas, como aquele animador de programas de tevê: Engraçado, coloquei dois pontos pra dizer como o animador falava, aí me deu um branco, esqueci. As bolinhas eram brancas, sobre fundo azul-marinho, mas quem olhasse ia jurar que o vestido era preto. Todas as velhinhas magras geralmente usam preto, sobretudo quando desenhadas em livros. É o óbvio.

Mas havia o guarda-chuva vermelho. Será que guarda-chuva tem hífen? Vou olhar no Aurélio.

Deu preguiça. Abri na palavra " gorduroso ". Ora, isso nada tem a ver com a velha magra! Ela rodava o guarda-chuva, vermelho, insolitamente rubro, como os lábios de Marilyn.

Não chovia, mas o guarda-chuva girava sobre a cabeça da velha magra, de vestido de bolinhas, fundo azul da noite. O azul da noite era um tecido, fulgurante de falsas estrelas, sabia? Local: um parque de diversões. Onde? Qualquer lugar, contanto que...

A velha girava o guarda-chuva e sorria a sua dentadura branca sobre o fundo azul da noite e tudo piscava, inclusive a roda-gigante. Aliás, o guarda-chuva girava no mesmo ritmo, só agora que me dou conta de que a velha estava ali, e que a velha sou eu.

Comprei o guarda-chuva vermelho por causa de uma professora (isso foi há mais de meio século) - que teve um ousado guarda-chuva grená. Naquele tempo, os guarda-chuvas todos eram negros e bem compotados. Escrevi compotados, de compota, mas você entendeu. Os erros, adoro os erros... eros... era uma vez...

Era uma vez uma velha magrinha, de guarda-chuva escarlate, como os lábios rubros de um beijo. Era eu, ali, no parque, e a roda girava. Se eu parar de girar o meu guarda-chuva, tenho certeza absoluta de que enguiço a roda-gigante. É preciso tomar tento, girar, rodar, tal qual uma ciranda de moto-perpétuo. Meu nome é Perpétua, sabia? Acho que foi por causa deste nome que continuo viva, enquanto os outros vão morrendo, morrendo. Eu me chamo perpetuamente assim e sou eu que comando a roda-gigante, luzes brancas que piscam sobre a noite azul-marinha... ou azul-marinho?

A menina está ali: cabelos louros, rindo, sentada na roda-gigante. Eu a olho, tomo conta, é minha neta, sabia? Linda. Eu sou avó de Linda. Ela é eternamente, perpetuamente linda, com seus cachos enroladinhos, que parecem molas. Linda gira, por causa do meu guarda-chuva que rege a roda. Preciso girar em ritmo certo, que é para não assustar a minha netinha Linda, que está num grupo de crianças, mas só ela é que se destaca, nem vejo as outras, todas cinzentas, comuns. Minha neta parece uma estrela e sorri. Linda.

Já é tarde para crianças ficarem no parque de diversões. No meu tempo, os guarda-chuvas eram negros, as crianças na cama logo depois da janta.

A gente brincava na calçada, brincava, brincava. As mães vinham e chamavam:

- Hora do banho!

O banho com sabonete cheiroso, depois o talco, o vestido engomado para jantar com a família. Tinha reza antes do jantar, minha avó era muito religiosa.

Tomávamos sopa. Eu odiava sopa de macarrão, que era pra engrossar as pernas. Gordura é formosura, dizia o pai, olhando para a minha magreza, apreensivo. Magra não casava, ficava para tia.

Mas eu, mesmo magra, casei. Era lindo o meu marido, naquele uniforme de major do exército!

Agora estou viúva... há quanto tempo? O tempo é um ponteiro que gira, preciso ficar atenta, perpetuamente comandando a roda-gigante.

Meu Deus! Fiquei rememorando, esqueci de girar o guarda-chuva e a roda parou!

Onde está minha neta? Onde? Onde?

Novas pessoas estão embarcando... Fecho o guarda-chuva e corro, procurando sua cabecinha de cachos.

É noite. É tão difícil achar uma criança, santo Deus, é noite e vejo, ali no fundo, o trem-fantasma, com seus anúncios de caveiras requebrantes.

Sou velha e magra, mas ainda não sou caveira, se não encontrar minha neta, vou ter um ataque do coração, sinto as palpitações me impedindo de respirar direito e grito:

- Linda! Linda!

Tropeço sobre o guarda-chuva e caio. A senhora está bem? Estou mal, perdi minha neta, seu guarda, minha neta neste parque, ela é loura, veja o retrato dela, procure-a, pelo amor de Deus!

Alto-falantes chamam por Linda. Perpétua, eu, quase desfalecida de horror e medo. Pegaram meu endereço, uma criança sumiu, vão telefonar para a minha filha... onde está o meu guarda-chuva? Perdi minha sombrinha vermelha, seu guarda... chuva... lindamente perpétua é a imagem da fotografia da menina, de cachos louros.

Minha filha chega, apressada, chamada pelo telefonema.

- Filha, perdi... perdi...

- Ela perdeu a netinha loura, a menina desta foto, ela estava na roda-gigante.

Minha filha olha o retrato, abana a cabeça e diz:

- Ela não tem neta. O retrato é dela, da minha velha, quando menina.

Silêncio. Todos me olham.

- Mas eu era linda, gente! Eu me perdi, eu me procuro, entendem? Esta velha magra não sou eu: eu tenho cachos louros, estava na roda do tempo... mas me distraí. Vocês viram meu guarda-chuva?

conto do livro Papos de Anjo.

2 comentários:

  1. Grata pela publicação. Este conto é ótimo para trabalhar com os alunos. Bjo

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  2. Grata pela publicação. Este conto é ótimo para trabalhar com os alunos. Bjo

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