sexta-feira, 24 de julho de 2020

Educação Integral

A importância da educação transcende ao que lhe tem sido atribuído, em face do imediatismo dos objetivos que os métodos  aplicados perseguem.

A falta de estrutura moral do educador - isto é, do equilíbrio psicológico e afetivo, das noções de responsabilidade e dever, da abnegação em favor do aprendiz, da paciência para repetir a lição até impregnar o ouvinte, sem irritação nem reprimenda, e do amor - constitui fator adverso ao êxito do empreendimento que é base de vida na construção do homem integral.

Quando se educa, são canalizados os valores latentes no indivíduo para o seu progresso, fornecendo os recursos que facultam a germinação dessas potências que dormem no cerne do ser.

Educar é libertar com responsabilidade e consciência de atitudes em relação ao educando, a si mesmo, ao próximo e à Humanidade.

Quando se reprimem e se impõem condicionamentos pela violência, uma reação em cadeia provoca a irrupção da revolta, que explode em atos de agressividade que asselvaja.

A tarefa da educação é, sobretudo, de iluminação de consciência, mediante a informação e vivência do conhecimento que se transmitem.

Quem educa evita a manifestação da delinquência e do desequilíbrio social, estabelecendo metas de promoção da vida.

A punição significa falência na área educativa.

A repressão representa insegurança educacional.

A reprovação demonstra fracasso metodológico.

O educando é material maleável, que aguarda modelagem própria para fixar os caracteres que conduzem à perfeição.

O educador cria hábitos, estimula atitudes, desenvolve aptidões, conduz. É o guia, hábil e gentil, ensinando sempre pela palavra e pelo exemplo, não se cansando nunca do ministério que abraça.

A escola é o prosseguimento do lar, e este é a escola abençoada na qual se fixam os valores condizentes com a dignidade e o engrandecimento ético-moral do ser.

A educação é fenômeno presente em todas as épocas. O pajé que ensina, o guru que orienta, o mestre que transmite lições são educadores diversos através dos tempos.

A verdadeira educação ocorre no íntimo do indivíduo, sendo um processo verdadeiramente transformador.

Qual semente que sai do fruto e, semelhante à vida que esplende saindo da semente, quando os fatores são-lhe propícios, a educação é  mecanismo semelhante da vida a serviço da Vida.

É certo que o homem se apresenta imperfeito, por enquanto, todavia é, potencialmente, perfeito; e, à educação compete o papel de desenvolvê-lo.

A divina semente que nele jaz, a educação põe-se a germinar.

Sempre se educa e se sai educado, quando se está atento e predisposto ao ensino e à aprendizagem.

Todos somos educadores e educandos, conscientemente ou não.

A educação, porém, há que ser integral, do homem total.

Jesus, o Educador por Excelência, prossegue, paciente, amando-nos e educando-nos, havendo aceitado apenas o título de Mestre, porque, em verdade, O é.

Texto de Divaldo Franco, pelo espírito Joanna de Ângelis. Do livro Momentos de Meditação. Livraria Espírita Alvorada Editora, 3ª Edição, 2014. 

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Ser Ou Não Ser Don Juan

No próprio mito de Don Juan, sedutor contumaz, já se detectou o fenômeno da inflação fálica, com um componente peculiar: a constante mudança de parceiras seria, na verdade, um gesto de inflação fálica para afirmar a si mesmo uma virilidade ameaçada por pulsões homossexuais. Para o ensaísta e historiador espanhol Gregório Marañón, o dom-juanismo parece ser um fenômeno ligado à adolescência tanto física quanto psicológica. Esse mesmo traço juvenil é que comprova a frágil virilidade de Don Juan, "pois a adolescência é precisamente a idade da indeterminação, da vacilação normal do sexo" - e isso faria parte do fascínio que ele exerce nas mulheres. Segundo Marañón, muitos continuam sendo Don Juan até o fim da vida exatamente porque mantêm para sempre os traços dessa indeterminação juvenil. O fenômeno faz sentido, pois remete diretamente às idiossincrasias do puer aeternus. Mas há também o exibicionismo, que Marañón considera como "a reação psicológica que corresponde a uma deficiência específica" - não só de sua masculinidade mas também de sua paternidade, como no caso de outro mulherengo famoso, Giacomo Casanova de Seingalt, que não deixou descendência por ser supostamente estéril. Afinal, a boa mercadoria não precisa de propaganda, observa Marañón, citando um ditado espanhol. Além de trombetear suas façanhas, como se precisasse reafirmar publicamente uma virilidade insegura, Don Juan evita qualquer compromisso, ostentando outro claro traço de dubiedade: para realizar suas façanhas, ele está sempre viajando de cidade em cidade, quase em fuga. Enquadrando-se, portanto, naquele exemplar do macho mítico que vagueia sem rumo certo, sempre em busca da identidade masculina periclitante - que o filão do western americano tão bem captou. Daí porque não existiria Don Juan sem o cavalo veloz, com o qual ele foge e parte para a próxima conquista feminina. Em última análise, Don Juan ama as mulheres, mas não a mulher. Seu segredo é outro: o "sexo equívoco", nas palavras de Marañón. Para ele, a "virilidade equívoca" de Don Juan parece ser confirmada pelo físico de "indecisa varonilidade" daqueles que podem ser considerados, historicamente, exemplos clássicos de dom-juanismo. Assim, um dos possíveis personagens reais que inspiraram o primeiro Don Juan literário, no romance de Tirso de Molina, seria o sevilhano Don Miguel de Mañara, cujo retrato feito pelo conhecido pintor espanhol Murillo mostra um jovem com traços de linda donzela. Do mesmo modo, o único retrato autêntico que se conhece de Giacomo Casanova mostra-nos um homem de traços femininos perfeitos e delicados. "O modelo não parece um homem mas uma bela mulher, talvez porque Casanova se desejasse assim, em seu subconsciente", comenta Marañón. Observação semelhante pode ser feita sobre todos os Don Juan históricos conhecidos: são figuras muito distantes do protótipo grosseiro e enérgico do varão. Ao contrário, a apurada maneira de se vestir e os cuidados com a apresentação física borram ainda mais as fronteiras com o estereótipo de virilidade. Entre outros personagens históricos que inspiraram a figura literária de Don Juan, há um exemplo ainda mais eloquente: um certo Don Juan de Tassis, conde de Villamediana, que viveu em Madri no início do século XVII (contemporâneo, portanto, do escritor Tirso de Molina). Famoso por sua extraordinária beleza, elegância e capacidade de sedução, ele era também um valente toureiro e um sonetista pródigo. o que só vinha aumentar seus encantos. Teve um número lendário de amantes, a mais famosa das quais teria sido a própria rainha Isabel de Bourbón. Quando o conde Villamediana foi assassinado, o rei Felipe IV levou a cabo investigações que conduziram à surpreendente descoberta de uma verdadeira confraria de homossexuais, incluindo-se aí desde criados e bufões até senhores da aristocracia. Ao final de um processo judicial, os mais humildes foram condenados à morte e executados, conforme exigência da lei, enquanto os aristocratas partiram para o exílio. Ora, documentos secretos, que só neste século foram descobertos pelo historiador Alonso Cortés, indicam que Villamediana estava não só implicado no mesmo processo por "pecado nefando" (prática homossexual), mas era o próprio chefe do grupo. Entre esses documentos cuidadosamente guardados, constava inclusive uma ordem do próprio rei, exigindo que "por estar o conde já morto, guarde-se segredo do que existe contra ele, para não conspurcar sua memória". Graças a esse segredo que durou três séculos, segundo narra Marañón, criou-se a lenda de que Villamediana teria sido morto por vingança do rei, irritado com suas bravatas heterossexuais.

Quanto a Casanova, consta que teria sido fascinado por mulheres travestidas de homens - fato nada incomum em Veneza, sua cidade natal, onde as prostitutas de fato costumavam vestir-se de homens para atrair mais clientes. Isso pode nos fazer crer que "talvez as mulheres nunca tenham sido os verdadeiros objetos do seu desejo", na conclusão de Peter Trachtenberg. Como se daria esse processo tortuoso? O típico Don Juan vivenciaria a necessidade neurótica de possuir a mãe e destituir o pai, através de "um nascisismo em que se alternam grandiosidade, insegurança e estados psíquicos primitivos", como megalomania e paranóia. Ora, a interpretação freudiana dos homens afetiva e sexualmente insatisfeitos baseia-se na sua impossibilidade de superar a mãe como objeto sexual paterno: a procura obsessiva e posse nunca satisfatória de centenas de diferentes mulheres ocorre porque para eles nenhuma mulher consegue equivaler ao objeto de desejo do pai. Na busca da mãe, há portanto uma busca de definição do pai, do masculino. Ou seja, a obsessão em possuir a mãe remete diretamente ao desejo de desvendar através dela a identidade do pai para, assim, identificar-se com seu significante masculino, seu falo penetrador. Ao analisar o longo poema Don Juan de Byron (escrito em meio a aventuras dom-juanescas bissexuais), o psicanalista austríaco Otto Rank observa que aí a identificação de Don Juan com o pai "encontra sua expressão poética na primeira aventura amorosa do herói (...) com uma pessoa que simboliza nitidamente a mãe infiel". Portanto, a fixação dom-juanesca na figura da mãe seria, no fundo, uma fixação no pai, tentativa de apossar-se da mãe enquanto elemento por excelência que define e garante a virilidade paterna. Em outras palavras, a tentativa reiterada de possuir o objeto de desejo do pai é o mesmo que buscar a posse do seu falo. Nessa busca de identificação, Don Juan se considera narcisicamente o único objeto de amor possível: trai os maridos porque não pode, por sua própria natureza, ter um rival no amor, segundo Rank. Para voltar a Casanova, nas mulheres ele procura a figura do homem primeiro: seu verdadeiro objeto de desejo, por detrás das mulheres, seria o pai como sua primeira referência masculina, meta impossível de uma busca fálica obcecada e tortuosa. Nesse contexto, convém lembrar que, em suas memórias, Casanova mostra uma "absoluta secura sentimental" com as crianças. E isso talvez venha reforçar sua fantasia de ser o objeto erótico exclusivo perante o pai.

A psicanalista Melanie Klein acrescenta outros dados, na sua interpretação. A endêmica infidelidade do homem dom-juanesco não seria apenas a tentativa (frustrada) de reviver inconscientemente a mãe (seu objeto de amor inicial) em cada amante. Mais ainda: ele mudaria constantemente de parceira para evitar a dependência e assim defender-se do medo de uma nova perda da mãe - fato que já lhe trouxe tanta dor. O corolário kleiniano óbvio é que todo grande garanhão esconde um menino assustado. Mas parecem demasiado frágeis essas tentativas de reencontrar a mãe, ao mesmo tempo em que o macho afirma (ou tenta recuperar) seu falo. Ainda que constantemente buscada, uma tal "solução" à crise do masculino resulta inevitavelmente falsa e ineficaz, podendo levar à problematização e até dissolução de muitas uniões heterossexuais. Mesmo que encontre uma mulher no casamento, a tendência é o homem continuar buscando indefinidamente sua identidade, ao contrário da segurança conjugal que possa aparentar. Evidencia-se aqui também como o masculino tende a manter-se em permanente estado de crise e busca fálica.

É interessante apontar algumas encarnações do mito de Don Juan, com todos os seus paradoxos, nos dias atuais. Basta pensar nos grandes playboys internacionais ou em conquistadores notórios como o ex-presidente americano John Kennedy - que não poupava sequer o sexo masculino, como a imprensa tem revelado. Mas há exemplos sobretudo no cinema e na TV dos grandes estúdios, com seus astros exclusivos que foram tornados verdadeiros Don Juan, numa profusão que mascarava certa ausência. Do ator americano Marlon Brando corre a fama de que sua atividade de sedução exercia-se até mesmo nos camarins, durante intervalos das peças que representava. Só tardiamente seus biógrafos (assim chamados não-autorizados) revelaram inúmeros casos, às vezes tempestuosos, com homens. Entre nós, há igualmente uma vigilância sistemática mas dúbia, que às vezes permite lapsos freudianos, como no caso de Jece Valadão, machão brasileiro oficial e assumido. Numa entrevista tipo pingue-pongue, em 1990, ele teceu brilhantemente seu ideário. Depois de mencionar que nunca levou porrada na vida, mas sempre deu a primeira, elencou as coisas de que não gostava: "Jiló, mulher feia, mau-caratismo e homem banana. Sem falar em bicha." Perguntado sobre o que já fez de ilegal na vida, respondeu: "Se ilegal é tirar a virgindade, eu tirei 12. Sem contar os cinco casamentos, pois nenhuma delas era virgem." Quanto ao seu maior vício, confessa: É mulher. Continua sendo o meu único vício." No final, o jornalista lhe pergunta: "Se fosse uma mulher, qual a primeira coisa que faria?" A resposta de Jece Valadão foi curta e grossa: "Daria para todo mundo." A ambiguidade aí contida certamente deixa emergir a fantasia desejante mais secreta, e por isso mais poderosa, que o Don Juan acalenta no seu coração de conquistador.

Capítulo 7 do livro Seis Balas Num Buraco Só - a crise do masculino, de João Silvério Trevisan. Editora Record. 1998.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

Resposta a Vinícius de Moraes

Não sou um diamante nato
nem consegui cristalizá-lo:
se ele te surge no que faço
será um diamante opaco
de quem por incapaz do vago
quer de toda forma evitá-lo,
senão com o melhor, o claro,
do diamante, com o impacto:
com a pedra, a aresta, com o aço
do diamante industrial, barato,
que incapaz de ser cristal raro
vale pelo que tem de cacto.

Poema de João Cabral de Mello Neto retirado da coletânea Os Melhores Poemas, Global Editora, 2ª Edição, 1989. Seleção de Antônio Carlos Secchin.

O Artista Inconfessável

Fazer o que seja é inútil.
Não fazer nada é inútil.
Mas entre fazer e não fazer
mais vale o inútil do fazer.
Mas não, fazer para esquecer
que é inútil: nunca o esquecer.
Mas fazer o inútil sabendo
que ele é inútil, e bem sabendo
que é inútil e que seu sentido
não será sequer pressentido,
fazer: porque ele é mais difícil
do que não fazer, e dificil-
mente se poderá dizer
com mais desdém, ou então dizer
mais direto ao leitor Ninguém
que o feito o foi para ninguém.

Poema de João Cabral de Mello Neto retirado da coletânea Os Melhores Poemas, Global Editora, 2ª Edição, 1989. Seleção de Antônio Carlos Secchin.

Catar Feijão

Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na da folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com o risco.

Poema de João Cabral de Mello Neto retirado da coletânea Os Melhores Poemas, Global Editora, 2ª Edição, 1989. Seleção de Antônio Carlos Secchin.

O Sertanejo Falando

A fala a nível do sertanejo engana:
as palavras dele vêm, como rebuçadas
(palavras confeito, pílula), na glace
de uma entonação lisa, de adocicada.
Enquanto que sob ela, dura e endurece
o caroço de pedra, a amêndoa pétrea,
dessa árvore pedrenta (o sertanejo)
incapaz de não se expressar em pedra.

Daí porque o sertanejo fala pouco:
as palavras de pedra ulceram a boca
e no idioma pedra se fala doloroso;
o natural desse idioma fala à força.
Daí também porque ele fala devagar:
tem de pegar as palavras com cuidado,
confeitá-las na língua, rebuçá-las;
pois toma tempo todo esse trabalho.

Poema de João Cabral de Mello Neto retirado da coletânea Os Melhores Poemas, Global Editora, 2ª Edição, 1989. Seleção de Antônio Carlos Secchin.

terça-feira, 21 de julho de 2020

O Vassoureiro

Em um piano distante alguém estuda uma lição lenta, em notas graves. De muito longe, de outra esquina, vem também o som de um realejo. Conheço o velho que o toca, ele anda sempre pelo meu bairro; já fez o periquito tirar para mim um papelucho em que são garantidos 93 anos de vida, muita riqueza, poder e felicidade.

Ora, não preciso de tanto. Nem de tanta vida, nem de tanta coisa mais. Dinheiro apenas para não ter as aflições da pobreza; poder somente para mandar um pouco, pelo menos, em meu nariz; e de felicidade um salário mínimo: tristezas que possa aguentar, remorsos que não doam demais, renúncias que não façam de mim um velho amargo.

Joguei uma prata da janela, e o periquito do realejo me fez um ancião poderoso, feliz e rico. De rebarba me concedeu 14 filhos, tarefa e honra que me assustam um pouco. Mas os periquitos são muito exagerados, e o costume de ouvir o dia inteiro trechos de óperas não deve lhes fazer bem à cabeça. Os papagaios são mais objetivos e prudentes, e só se animam a afirmar uma coisa depois que a ouvem repetidas vezes.

Chiquita, a pequenina jabota, passeia a casa inteira, erguendo com certa graça o casco pesado sobre as quatro patinhas tortas, e espichando e encolhendo o pescoço curioso, tímido e feio. Nunca diz nada, o que é pena, pois deve ter uma visão muito particular das coisas.

Agora não se ouve mais o realejo; o piano recomeça a tocar. Esses sons soltos, e indecisos, teimosos e tristes, de uma lição elementar qualquer, têm uma grave monotonia. Deus sabe por que acordei hoje com tendência a filosofia de bairro; mas agora me ocorre que a vida de muita gente parece um pouco essa lição de piano. Nunca chega a formar a linha de uma certa melodia. Começa a esboçar, com os pontos soltos de alguns sons, a curva de uma frase musical; mas logo se detém,e volta, e se perde numa incoerência monótona. Não tem ritmo nem cadência sensíveis. Para quem a vive, essa vida deve ser penosa e triste com o esforço dessa jovem pianista do bairro, que talvez preferisse ir à praia, mas tem de ficar no piano. Na verdade eu é que estou pensando em ir à praia, eu é que estou preso ao teclado de máquina. Espero que esta crônica, tão cansativa e enjoada para mim, possa parecer ao leitor de longe como essa lição de piano me parece no meio da manhã clara: alguma coisa monótona e sem sentido, ou às vezes meio desentoada, mas suave.

Passa o vassoureiro. É grande, grosso e tem bigodes grossos como todos os de seu ofício. Aos 50 anos darei um bom vassoureiro de bairro. De todos os pregões, o seu é o mais fácil: "Vassoura... Vassoureiro..." e convém fazer a voz um tanto cava. Ele me parece digno, levando entrecruzadas sobre os ombros, numa composição equilibrada e sábia, tantas vassouras, espanadores e cestos. Seu andar é lento, sua voz é grave, sua presença torna a rua mais solene. É um homem útil.

Não ousaria dizer o mesmo de mim mesmo; mas, enfim, já trabalhei, já cumpri o meu dever, como o velho do realejo e a mocinha do piano; vagamente acho que mereço ir à praia.

Crônica de abril de 1949. Retirada do livro 200 Crônicas Escolhidas - as melhores de Rubem Braga. Editora Record, 9ª Edição, 1993.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Julieta

Julieta veio pulando num pé só e perguntou: "Você já viu o Saci-Pererê?" Nós ainda não tínhamos visto e ficamos um tanto constrangidas. Só Paulina, a mentirosa, se atreveu a dizer que sim, mas nós sabíamos que não era verdade, pela sua maneira de revirar os olhos e de franzir os lábios por cima dos dentes acavalados. Paulina mentia sempre.

Julieta, porém, acreditava no Saci-Pererê, e contava a sua história com tanto realismo que ela mesma ficava com medo e olhava para as esquinas e para detrás das árvores, muito inquieta. Mas, se era um molequinho tão pequeno, de uma perna só, e pulando pelos ares, não chegávamos a achá-lo muito perigoso. Recomeçávamos a brincadeira. Pelo seguro, cantaríamos debaixo da varanda. "Não, não", - explicava Julieta - "o Saci-Pererê é muito perigoso, porque tem um cachimbo aceso! É todo preto, e leva aquela brasa na boca!"

Todas as noites, antes de dormir, esperávamos ver passar entre as árvores o cachimbo do Saci-Pererê. E brigávamos com Julieta por sua causa.

Julieta era colorista. "Vocês já viram pitanga?" Paulina dizia: "Já..." toda apressada, com a dentuça de fora. "Mentira!" - dizia Julieta. "Pitanga, por aqui, só na casa do General, que é muito longe, do lado de lá, por detrás da barreira, onde há um formigueiro enorme e umas galinhas-d'angola e muitos escorpiões!" Paulina arregalava os olhos e nós todas ficávamos olhando para a sua mentira. Só Julieta é que conhecia a tal fruta chamada pitanga. E prometia levar-nos um dia até os fundos da casa do General.

Julieta conhecia o passarinho Bico-de-lacre. Paulina também. "Mentirosa!" E cambaxirra? E pintassilgo? E araponga? Paulina quase chorava de raiva, porque ninguém acreditava nela. "Tenho até um alçapão!" - "Um alçapão!" A roda toda desatava a rir, porque ninguém ignora que uma menina - mesmo uma menina mentirosa - não brinca com alçapão nem atiradeira, que são coisas de rapaz. "Mas eu armei um alçapão e peguei um canário-da-terra!"

"Canário-da-terra!" Julieta fazia assim com a boca. "Estou falando de Bico-de-lacre, menina!"

Julieta era uma pretinha muito engraçada. Pulava num pé só, acreditava no Saci-Pererê, já tinha comido pitanga e conhecia o passarinho Bico-de-lacre. Usava colarzinho de coral, sabia muitas histórias de assombração, tocava qualquer música com um pedaço de papel de seda e um pente fino.

"Vocês já viram fazer puxa-puxa? Eu, já." Sabia de doces: de cocada preta e cor-de-rosa, de bala de ovo, de baba-de-moça, e de bolos muito finos que só se fazem para festas de casamento.

Sabia de costura, também: de cerzir e de chulear. Sabia muitas coisas de linha e de lã, que se tecem com bastidores, grampos e variadíssimas agulhas. "Eu faço muitos pontos de crochê e de tricô, e borlas com rodelas de papelão por dentro. Já bordei todo o alfabeto num talagarça!" Paulina levantava as sobrancelhas: uma vez... uma vez, tinha feito um porta-jornais todo bordado a ponto de cruz. Muito difícil! E estava começando a aprender piano com uma prima. Revirava a boca cheia de dentes, para perguntar por sua vez: "Vocês sabem o que é um sustenido?" Ah, isso ninguém sabia.

Mas Julieta já tinha falado com um "clove". Que era um "clove"? Isso ninguém sabia também. Julieta contava: era uma espécie de palhaço, mas não era um palhaço. Era muito diferente. Diferente na roupa, diferente na cartolinha... E a cara! Os "cloves" eram horríveis! Usavam máscara de meia, com uma boca muito grossa e uns olhos caídos assim para os lados... A boca também era caída. (E Julieta ia imitando um "clove".) E o nariz esborrachado. E uma carapinha cor de fogo, de duas pontas. Às vezes, de duas cores: do lado de cá, vermelha, do lado de lá, verde... Horríveis! Qualquer pessoa ficaria com medo. Mas Julieta já tinha falado com um!

A roupa dos "cloves" era uma beleza. Umas calças tão franzidas, tão franzidas que não acabavam mais... E um casaquinho todo bordado de lantejoulas, com uma beiradinha de arminho. Ao sol, o "clove" ficava lindo. (Ela queria dizer clown, mas tinha aprendido assim. E as meninas gostavam muito das palavras ditas por Julieta.)

Julieta ia levar as costuras da tia. "Quando eu voltar, fico brincando, também." Nós continuávamos a bater palmas e a dizer versos. (Porque era tempo do Giroflê...) E ela voltava, chupando balas. As balas eram de mil cores, com recheio de mosaico imitando rosas pequeninas. Não podíamos entender como se fazia aquele recheio marmoreado. Nem Paulina se atrevia a dar qualquer explicação. Aquilo pertencia ao mundo dos mistérios, onde só mais tarde penetraríamos. Julieta, com a boca cheia de açúcar, observava: "Isto é como o arco-íris..." Paulina corrigia: "Você quer dizer o arco-da-velha?" "É a mesma coisa. Mas o dr. Aristides só diz arco-íris!" As meninas pensavam: "Mas que velha seria aquela, do arco?" Devia ser outra mentira de Paulina. Menina incorrigível!

"Vocês também nunca viram mula-sem-cabeça?" - "Nunca." - "Pois existe!" E existiam uns porões cheios de almas do outro mundo, que rezavam ladainhas e arrastavam correntes, tudo por causa de uma Sinhá Velha que andou toda a vida de chicote na mão. Mas era um pouco longe. Era preciso andar umas três ruas...

"Vocês já viram nascer criança?" - "Eu nasci numa abóbora!" - afirmava Paulina. - "Numa abóbora!" - "Tenho certeza!" Julieta dizia com muita naturalidade: "Criança nasce como os gatinhos. Tal e qual. Com a diferença que é gente!"

Pois uma vez ela veio pulando num pé só, e dizia: "Estou brincando de 'Mamãe cangueira'." E soprava, ao mesmo tempo, num apito de pau, que lhe manchava a boca de roxo.

As meninas começaram a rir: "Olha a tinta que está saindo! Olha a tinta do apito! Você está com a boca toda encarnada!"

Julieta tirou o apito da boca, olhou para ele, olhou para as meninas, e ponderou: "Isto não é encarnado. Nem vermelho. Nem roxo. - Esta cor se chama solferino!"

As meninas chamavam Julieta, que ia passando, com travessinhas de pedras espetadas no cabelo duríssimo. "Tudo isso é brilhante, Julieta?" Perguntaram sinceramente. Brilhante era uma pedra muito conhecida. Até se cantava:


"Se esta rua, se esta rua fosse minha,
Eu mandava, eu mandava ladrilhar
Com pedrinhas, com pedrinhas de brilhante..."

"Não, estas são pedras-d'água. Comprei no mascate." Pedras-d'água! As meninas achavam lindíssimo que houvesse pedras-d'água, e ficavam mirando, felizes, as travessinhas de Julieta.

Depois, ela fez a Primeira Comunhão, e ficou linda, com um vestido de fazenda que devia ser muito cara, porque se chamava "nanzuque". Ele entendia muito de fazendas, pois a tia era costureira. Havia o "ponjê", o "mol-mol", a "cassa"... Mas o vestido dela era de nanzuque. Todas meninas murmuravam: "Nanzuque... Nanzuque..." Era uma palavra muito bonita.

Julieta passou a contar histórias de santos, milagres, castigos do Céu. Julieta era colorista: adorava o grande vitral da igreja, as fitas azuis e encarnadas das Filhas de Maria e das senhoras do Sagrado Coração. E descrevia as roupas dos sacerdotes, suas meias, seu anel. Ia buscar na chácara ramos de flores para os altares. Mostrava-nos as dálias, duras e orvalhadas, e perguntava: "Não parecem casas de de marimbondo? Tão bem feitinhas!" E dava-nos semprevivas, uma flor que não morre nunca. "Mas nós todos morremos" - dizia, muito sábia. - "Minha mãe já me disse que eu vou ficar pra semente..." (Era Paulina, a dos dentes acavalados.)

Julieta já tinha visto vários mortos. "Vocês também já viram? A gente estica. Fica muito fria, muito dura e amarela. Mas é só o corpo. A alma vai para o Céu, o Inferno ou o Purgatório!" E quando relampejava, nós pensávamos que o Céu se abria um pouquinho para mostrar o Inferno todo em fogo: mas logo se fechava, sem que pudéssemos ver aqueles Diabos de garfo que trabalham entre as labaredas.

Julieta já ganhava dinheiro. Fazia enxovais de tricô para recém-nascidos, e ia levar às freguesas seus embrulhos muito bem feitos, com sapatinhos, touquinhas, casaquinhos... Às vezes, parava, para mostrar seu trabalho às meninas, abrindo os papéis com muito cuidado e segurando os alfinetes nos dentes. "Tudo em ponto de arroz, com fitinha nº 1..."

Nós, porém, éramos muito pequenas. Continuávamos a brincar de roda, embaixo das árvores.

Paulina ia sempre mentindo. O Saci-Pererê não aparecia. As pessoas casavam-se. As crianças nasciam. Os velhos morriam. As almas do outro mundo cantavam ladainhas nos porões. A Virgem Maria caminhava na lua. O Diabo revolvia as brasas do Inferno...

"O Diabo tem dois chifres,
Giroflê, Giroflá..."

Nós sabíamos que tudo ia passando... Tudo era mentira e verdade. Nós também íamos passando, de mãos dadas... Era o tempo do Giroflê!

Conto de Cecília Meireles, do livro Giroflê Giroflá, da Coleção Veredas. Editora Moderna, 6ª Edição, 1992.

domingo, 19 de julho de 2020

Josefina

Encontrei-a no mais belo jardim do mundo. Jardim sem grandezas de relvado ou jorros dágua, sem estátuas nem balaustradas. Jardim arruinado, com uma arquitetura inverossímil de arames, tijolos, canos, latas, e um tanque a desmoronar-se, amolecido em limo, sob torneiras que mansamente lacrimejavam. O resto, uma profusão de bichos que escondiam seus mágicos sussurros dentro da terra, no meio das pedras, por cima das árvores...

Era, porém, o mais belo jardim do mundo, porque Josefina passava por ali, e suas saias crepitavam nas folhas secas, e seus dedos tão brancos armavam raminhos com malvas, miosótis, amores-perfeitos, - raminhos de trazer ao peito, de colocar diante dos santos, de pousar nas mãos dos mortos... E eu sempre pensei que era dele que falávamos quando íamos cantando, debaixo das laranjeiras:

"Fui passear no jardim das flores,
Giroflê, Giroflá..."

Os vestidos de Josefina eram como o seu jardim, com raminhos de junquilhos, chuva de violetas, estrelinhas de jasmins correndo por umas fazendas pensativas, umas fazendas melancólicas, roxas, cor de poente, cor de aflição. Ela era ainda menina, mas vestia-se como uma pessoa antiga: parecia uma viúva pequenina. Apenas um colarzinho iluminava esses vestidos tristes: era de contas lisas, umas contas de vidro tão roliças, tão lustrosas, que pareciam colhidas num rio, e guardavam a transparência e a fluidez das águas, e eram mais azuis do que o céu. Esse colar alegrava os vestidos, alegrava tudo: de longe se via o seu colar, antes de se avistarem os olhos de Josefina, que eram tão bonitos mas tão tristes, veludosos, quietos lilases, como os de um coelho branco.

E eu, quando via Josefina, já não queria ver mais nada, e só desejava ficar para sempre com um carretel de linha na mão, ajudando-a a fazer os seus raminhos de malva, miosótis, amor-perfeito e outras maravilhas que só se veem bem quando se olha de muito perto, quando se é criança, quando não se tem pressa, quando se está descobrindo o mundo.

E o que me espantava era não estarem ali todas as crianças da Terra, todos os bichos, mesmo todos os homens e mulheres, reis, sacerdotes, anciãos, escribas e fariseus, para verem Josefina sentada ao pé do tanque de limo, com o regaço cheio de flores, com o vestido cheio de flores, toda ela cheia de flores, amarrando flores em pequeninos ramos como nenhum artista jamais pintou ou descreveu.

Havia pombos que arrulhavam em redor de Josefina e libélulas que valsavam com seus vestidos de gaze e seus adereços de ametista. E o sol cobria o chão de medalhinhas de ouro, as aranhas estendiam umas teias enormes, como guarda-chuvas de cristal, e ficavam no meio, sonhando com o universo.

Mas, ao entardecer, Josefina dirigia seus passos, nuns sapatinhos pequenos como os de qualquer criança, dirigia seus passos muito leves, como folhas entre folhas, para dentro de casa: porque ultimamente, tossia; - e era tão pálida e tão débil! - e tão pobre que só se podia tratar com água de melissa e rebuçados...

E eu ficava tão espantada de que não viessem todas as crianças, e os bichos, e os reis e sacerdotes, e os escribas , mesmo os homens e as mulheres - já não digo da Terra, mas do bairro - com um remédio para a tosse de Josefina. A tosse que ela abafava num lencinho, com os seus dedos tão brancos e ainda úmidos de flores.

E os meus olhos ficavam tão pesados que nem queria dos seus rebuçados, e intimamente sabia que amanhã, que para o mês, que qualquer dia Josefina ia morrer.

E morreu. No silêncio de uma noite. No silêncio de sua triste alcova. Quando as flores estavam nascendo. Quando eu estava dormindo.

De rosto, de corpo, de mãos, não mudou nada. Ela fora sempre como um anjo de cera ou marfim. Seus olhos tão calmos, violáceos, prateados, seus olhos veludosos de coelho branco ficaram um pouquinho entreabertos, como as caixas de nácar que naquele tempo se usavam para as joias. Tinha nas pálpebras uma penumbras azuis, como certas campânulas.

Nunca soube quem lhe deu o vestido de cetim, a coroa de prata, para ser enterrada como as santas dos altares. Em redor de seu pescoço, onde antes se assentavam as contas lustrosas, feitas de água e de céu, corria agora um crespo enfeite de renda prateada, que brilhava muito, à luz dos círios.

Suas mãos eram tão jovens, tão tenras, que, mesmo mortas, se conservavam arredondadas, sem nenhuma dureza, sem esqueleto, com a substância de suas flores, e um desenho de pombos lunares.

De modo que a morte de Josefina foi como uma estranha festa. Não tinha pai nem mãe. (Só podia ter sido sem pai nem mãe.) E havia umas velhinhas que choravam de vez em quando, sempre que olhavam para o seu claro rosto imóvel entre os bandós do cabelo negro, sob a coroa de prata. E quem entrava também chorava um pouquinho, como se fosse formalidade. E aspergiam-na com um raminho de alecrim molhado num copo dágua, e rezavam de mãos postas, e desapareciam na sombra. E ela, em prata e cteim, brilhava como um espelho.

E eu ficava por ali, triste e despercebida, querendo brincar com suas mãos tão claras e seus negros cabelos copiosos. Querendo levá-la para o jardim, para aquele recanto de águas e pedras desmoronadas onde moravam borboletas e libélulas, para aquelas sombras cheias de aranhas e pássaros...

Vieram muitas palmas, ramos, uns enfeites de flores em forma de coração, com folhas de palmeirinha por baixo e laços azuis e brancos, de umas fitas tão leves que se via o sol através. E cheirava a horta, a rega, a jardim, aos campos imensos da madrugada, quando o sol pinta os cavalos e os bois de rosa e verde... E respingavam a morta com água alcanforada, como se o seu corpo fosse um canteiro de seda.

Tudo era acima de mim! E eu me perguntava se não viriam reis, sacerdotes, toda aquela gente poderosa, de que me falavam constantemente, ver que Josefina morrera e não poderia fazer mais seus lindos raminhos multicores; e morrera (eu o sabia! eu o sabia!) porque só tinha podido tomar água de melissa e rebuçados para a tosse. E queria perguntar-lhe se isso era possível, e se ninguém sofreria, quando eu o contasse, e queria ver se não ficariam desesperados, arrependidos, e se ninguém a ressuscitava.

Ah! não vieram... Não a ressuscitaram! A casa pobre e apertada cheirava a chácara, a cera, a luz, a café. Porque serviam café numas xicrinhas de beiço lascado, como se  fosse parte do cerimonial sorver-se um gole, enxugar-se o bigode, fazer-se tinir a colherzinha no pires. Depois, sentados em redor, esperavam. Esperavam que o tempo passasse. Rezavam, choravam e conversavam muito baixinho.

E o caixão estava cheio de dálias, rosas e flores tão açucaradas que formigas pequeninas viajavam em fila pelo cetim branco... Mas não houve raminho amarrado com a graça, com o sentimento dos que Josefina amarrou para tanta gente, naquele tempo em que todos se enfeitavam com flores, e os raminhos queriam dizer diferentes coisas, conforme estivessem colocados no cabelo, no peito, na cintura... No tempo em que cada flor tinha um significado, era uma palavras...

E não soube mais nada: não me deixavam ver o resto. Certamente para que eu não sofresse. Mas eu já tinha sofrido tudo.

Mais tarde, quando falavam nela, diziam: "Morreu como um passarinho". E indagavam uns para os outros: "Que veio fazer a este mundo?"

Então, meus olhos se enchiam de água; meus olhos ficavam como aqueles velhos tanques de limo, - e eu via de longe seu rosto, suas mãos, seu colar azul consolando o vestidinho triste, - e dentro de mim repetia também aquela pergunta.

Mas nem os reis nem sacerdotes nem os escribas e muito menos os fariseus responderiam...

Conto de Cecília Meireles, do livro Giroflê Giroflá, da Coleção Veredas. Editora Moderna, 6ª Edição, 1992.

sábado, 18 de julho de 2020

O Dia Abriu Seu Para-Sol Bordado

O dia abriu seu para-sol bordado
De nuvens e de verde ramaria.
E estava até um fumo, que sabia,
Mi-nu-ci-o-sa-men-te desenhado.

Depois surgiu, no céu azul arqueado,
A Lua - a Lua! - em pleno meio-dia.
Na rua, um menininho que seguia
Parou, ficou a olhá-la admirado...

Pus meus sapatos na janela alta,
Sobre o rebordo... Céu é que lhes falta
Pra suportarem a existência rude!

E eles sonham, imóveis, deslumbrados,
Que são dois velhos barcos, encalhados
Sobre a margem tranquila de um açude...


Poema de Mário Quintana retirado da coletânea Os Melhores Poemas, Global Editora.  3ª Edição, 1987. Seleção de Fausto Cunha.