domingo, 23 de agosto de 2020

Passagem Para Pasárgada

O cara chega na estação rodoviária, dirige-se ao guichê de uma empresa:

- Me dá aí uma passagem.

- Pra onde?

- Pra Pasárgada. Vou-me embora pra Pasárgada.

- Sinto muito, fazemos linha somente no interior paulista. Não serve Botucatu?

- Não. Tem que ser pra Pasárgada.

- Então tente outra empresa. Quem sabe s São Jorge...?!

Tentou. Ao chegar no guichê da viação São Jorge, perguntou:

- Tem passagem pra Pasárgada?

- Pasárgada..., Pasárgada..., fica no estado de Goiás?

- Não sei, pode ficar...

- Peraí um pouquinho, tá?

O funcionário da empresa grita para o seu colega de trabalho:

- Ô João, Pasárgada fica em Goiás?

- Não, que eu saiba não.

O funcionário volta-se para o homem:

- Infelizmente não. Talvez fique no Mato Grosso do Sul. Tá vendo aquela empresa ali?

- Tô.

- Pode ser que...

O homem vai até lá. Espera alguns minutos na fila e finalmente:

- Pasárgada fica no Mato Grosso do Sul?

- Não. Ouvi dizer que é no Maranhão, pertinho de São Luís.

- Obrigado.

O homem dirige-se a uma empresa nordestina:

- Quero uma passagem pra Pasárgada.

- Tá maluco? Pasárgada fica perto de Sabará, Minas Gerais. A empresa Tiradentes é quem faz essa linha. Esta empresa só vai para o Nordeste.

Caminhou meio desanimado para a viação Tiradentes:

- O funcionário da empresa Padre Cícero me informou que Pasárgada fica próxima a Sabará. Me dá aí uma passagem.

- Ele deve ter-se enganado, meu senhor. Pasárgada é uma cidade paraense. Um amigo meu até já foi pra lá!

- Então quero uma passagem pro Pará.

- O senhor dirija-se àquela empresa ali. Nossos ônibus só vão até Minas Gerais.

Já cansado de tanto andar pela rodoviária, o homem não se deixa desanimar por completo:

- Quero uma passagem pro Pará.

- Belém?

- Não. Pasárgada.

- Pasárgada? Tem certeza?

- Tenho. Fui informado que Pasárgada fica no interior paraense.

- Não fica não. Há vinte anos que trabalho nesta empresa e nunca vendi uma passagem pra essa tal de Pasárgada. O senhor não confundiu Pará com Paraná?

- Pode ser... mas, o senhor tem certeza que não é no Pará?

- Tenho. Garanto pro senhor.

E qual é a empresa que vai pro Paraná?

- É aquela ali, tá vendo?

- Tô. Obrigado.

Quase sem voz o homem sussurra ao ouvido do vendedor:

- Quanto custa a passagem pra Pasárgada?

- Pasárgada fica no Brasil?

- Acho que fica.

- Se fica, pode ter certeza que não se encontra no Paraná! Que tal conhecer Foz do Iguaçu? Já viu as cataratas de perto?

- Obrigado, já conheço. Eu quero mesmo é ir pra Pasárgada.

Depois de percorrer todas as empresas, caminhou para a saída da rodoviária, mas reparou que não havia perguntado para aquela escondidinha ali no canto:

- Viação Sonhos do Poeta, às suas ordens.

- Quero ir pra Pasárgada, tem passagem?

- Sinto desapontá-lo, mas a empresa fechou essa linha.

- Por quê?

- Não deu lucro.

- Ué, eu ouvi dizer tanta coisa bonita sobre lá.

- Sim é verdade. Mas faz tempo que trabalho aqui e uma só pessoa foi para lá, por isso resolveram fechar.

- E quem foi?

- Um minutinho, deixa verificar no registro. Pasárgada..., Pasárgada..., tá aqui! Foi um tal de Bandeira, Manuel Bandeira. O senhor conhece?

- É, já ouvi falar, dizem até que ele era amigo do rei...

Conto de Alexandre Azevedo retirado do livro Que Azar, Godofredo! Atual Editora, 13ª Edição, 1998, Série Transas e Tramas.

sábado, 22 de agosto de 2020

Caminhos do Coração

Multiplicam-se os caminhos do processo evolutivo, especialmente durante a marcha que se faz no invólucro carnal.

Há caminhos atapetados de facilidades, que conduzem a profundos abismos do sentimento.

Apresentam-se caminhos ásperos, coalhados de pedrouços que ferem, na forma de vícios e derrocadas morais escravizadores.

Abrem-se, atraentes, caminhos de vaidade, levando a situações vexatórias, cujo recuo se torna difícil.

Repontam caminhos de angústia, marcados por desencantos e aflições desnecessárias, que percorrem com loucura irrefreável.

Desdobram-se caminhos de volúpias culturais, que intoxicam a alma de soberba, exilando-a para as regiões da indiferença pelas dores alheias.

Aparecem caminhos de irresponsabilidade, repletos de soluções fáceis para os problemas gerados ao longo do tempo.

Caminhos e caminhantes!

Existem caminhos de boa aparência, que disfarçam dificuldades de acesso e encobrem feridas graves no percurso.

Caminhos curtos e longos, retos e curvos, de ascensão e descida, estão por toda parte, especialmente no campo moral, aguardando ser escolhidos.

Todos eles conduzem a algum lugar, ou se interrompem, ou não levam a parte alguma... São apenas, caminhos: começados, interrompidos, concluídos...

Tens o direito de escolher o teu caminho, aquele que deves seguir.

Ao fazê-lo, repassa pela mente os objetivos que persegues, os recursos que se encontram à tua disposição íntima, assinalando o estado evolutivo, a fim de teres condição de seguir.

Se possível, opta pelos caminhos do coração.

Eles, certamente, levarão os teus anseios e a tua vida ao ponto de luz que brilha à frente, esperando por ti.

O homem estremunha-se entre os condicionamentos do medo, da ambição, da prepotência e da segurança que raramente discerne com correção.

O medo domina-lhe as paisagens íntimas, impedindo-lhe o crescimento, o avanço, retendo-o em situação lamentável, embora todas as possibilidades que lhe sorriem esperança.

A ambição alucina-o, impulsionando-o para assumir compromissos perturbadores que o intoxicam de vapores venenosos decorrentes da exagerada ganância.

A prepotência anestesia-lhe os sentimentos, enquanto lhe exacerba as paixões inferiores, tornando-o infeliz, na desenfreada situação a que se entrega.

A liberdade a que se aspira, propõe-lhe licenças que se permite sem respeito aos direitos alheios nem observância dos deveres para com o próximo e a vida, destruindo qualquer possibilidade de segurança, que, aliás, é sempre relativa enquanto se transita na veste física.

Os caminhos do coração se encontram, porém, enriquecidos da coragem, que se vitaliza com a esperança do bem, da humildade, que reconhece a própria fragilidade e satisfaz-se com os dons do espírito - ao invés do tresvariado desejo de amealhar coisas de secundária importância - os serviços enobrecedores e a paz, que são a verdadeira segurança em relação às metas a conquistar.

Os caminhos do coração encontram-se iluminados pelo conhecimento da razão, que lhes clareia o leito, facilitando o percurso.

Jesus escolheu os caminhos do coração para acercar-se das criaturas e chamá-las ao Reino dos Céus.

Francisco de Assis seguiu-Lhe o exemplo e tornou-se o herói da humildade.

Vicente de Paulo optou por eles e fez-se o campeão da caridade.

Gandhi redescobriu-os e comoveu o mundo, revelando-se como o apóstolo da não violência.

Incontáveis criaturas, nos mais diversos períodos da Humanidade e mesmo hoje, identificaram esses caminhos do coração e avançam com alegria na direção da plenitude espiritual.

Diante dos variados caminhos que se desdobram convidativos, escolhe os caminhos do coração, qual ovelha mansa, e deixa que o Bom Pastor te conduza ao aprisco pelo qual anelas.

Texto retirado do livro Momentos de Felicidade. Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, 5ª Edição, 2014.

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

A Lua

Nem luz, nem luar. O céu e as ruas permaneciam escuros, prejudicando, de certo modo, os meus desígnios. Sólida, porém, era a minha paciência e eu nada fazia senão vigiar os passos de Cris. Todas as noites, após o jantar, esperava-o encostado ao muro da sua residência, despreocupado em esconder-me ou tomar qualquer precaução para fugir aos seus olhos, pois nunca se inquietava com o que poderia estar se passando em torno dele. A profunda escuridão que nos cercava e a rapidez com que, ao sair de casa, ganhava o passeio jamais me permitiriam ver-lhe a fisionomia. Resoluto, avançava pela calçada, como se tivesse um lugar certo para ir. Pouco a pouco, os seus movimentos tornavam-se lentos e indecisos, desmentindo-lhe a determinação anterior. Acompanhava-o com dificuldade. Sombras maliciosas e traiçoeiras vinham a meu encontro, forçando-me a enervantes recuos. O invisível andava pelas minhas mãos, enquanto Cris, sereno e desembaraçado, locomovia-se facilmente. Não parasse ele repetidas vezes, impossível seria a minha tarefa. Quando vislumbrava seu vulto, depois de tê-lo perdido por momentos, encontrava-o agachado, enchendo os bolsos internos com coisas impossíveis de serem distinguidas de longe.

Bem monótono era segui-lo sempre pelos mesmos caminhos. Principalmente por não o ver entrar em algum edifício, conversar com amigos ou mulheres. Nem ao menos cumprimentava um conhecido.

Na volta, de madrugada, Cris ia retirando de dentro do paletó os objetos que colhera na ida e, um a um, jogava-os fora. Tinha a impressão de que os examinava com ternura antes de livrar-se deles.

Alguns meses decorridos, os seus passeios obedeciam ainda a uma regularidade constante. Sim, invariável era o trajeto seguido por Cris, não obstante a aparente falta de rumo com que caminhava. Partindo da sua casa, descia dez quarteirões em frente, virando na segunda avenida do percurso. Dali andava pequeno trecho, enveredando imediatamente por uma rua tortuosa e estreita. Quinze minutos depois atingia a zona suburbana da cidade, onde os prédios eram raros e  sujos. Somente estacava ao deparar uma casa de armarinho, em cuja vitrina forrada de papel crepom, encontrava-se permanentemente exposta uma pobre boneca. Tinha os olhos azuis, um sorriso de massa.

Uma noite - já me acostumara ao negro da noite - constatei, ligeiramente surpreendido, que os seus passos não nos conduziriam pelo itinerário da véspera. (Havia algo que ainda não amadurecera o suficiente para sofrer tão súbita ruptura.)

Nesse dia, o andar firme em linha reta, evitando as ruas transversais, pelas quais passava sem se deter. Atravessou o centro urbano, deixou para trás a avenida em que se localizava o comércio atacadista. Apenas se demorou uma vez - assim mesmo espontaneamente - defronte a um cinema, no qual meninos de outros tempos assistiam filmes em série. Fez menção de comprar entrada, o que deveras me alarmou. Contudo, sua indecisão foi breve e prosseguiu a caminhada. Enfiou-se pela rua do meretrício, parando a espaços, diante dos portões, espiando pelas janelas, quase todas muito próximas do solo.

Em frente a uma casa baixa, a única da cidade que aparecia iluminada, estacionou hesitante. Tive a intuição de que aquele seria o instante preciso, pois se Cris retrocedesse, não lograria outra oportunidade. Corri para o seu lado e, sacando do punhal, mergulhei-o nas suas costas. Sem um gemido e o mais leve estertor, caiu no chão. Do seu corpo magro saiu a lua. Uma meretriz que passava, talvez movida por impensado gesto, agarrou-a nas mãos, enquanto uma garoa de prata cobria as roupas do morto. A mulher, vendo o que sustinha entre os dedos, se desfez num pranto convulsivo. Abandonando a lua, que foi varando o espaço, ela escondeu a face no meu ombro. Afastei-a de mim, e, abaixando-me, contemplei o rosto de Cris. Um rosto infantil, os olhos azuis. O sorriso de massa.

Conto de Murilo Rubião retirado do livro Contos Reunidos, Editora Ática, 1998.

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Alexandre e Cesária

No sertão do Nordeste vivia antigamente um homem cheio de conversas, meio caçador e meio vaqueiro, alto, magro, já velho, chamado Alexandre. Tinha um olho torto e falava cuspindo a gente, espumando como um sapo-cururu, mas isto não impedia que os moradores da redondeza, até pessoas de consideração, fossem ouvir as histórias fanhosas que ele contava.

Tinha uma casa pequena, meia dúzia de vacas no curral, um chiqueiro de cabras e roça de milho na vazante do rio. Além disso possuía uma espingarda e a mulher. A espingarda lazarina, a melhor espingarda do mundo, não mentia fogo e alcançava longe, alcançava tanto quanto a vista do dono; a mulher, Cesária, fazia renda e adivinhava os pensamentos do marido. Em domingos e dias santos a casa de enchia de visitas - e Alexandre, sentado no banco do alpendre, fumando um cigarro de palha muito grande, discorria sobre acontecimentos da mocidade, às vezes se enganchava e apelava para a memória de Cesária. Cesária tinha sempre uma resposta na ponta da língua. Sabia de cor todas as aventuras do marido, a do bode que se transformava em cavalo, a da guariba mãe de família, da cachorra morta por um caititu acuado, pobrezinha, a melhor cachorra de caça que já houve. E aquele negócio de onça-pintada que numa noite ficara mansa como bicho de casa? Era medonho. Alexandre tinha realizado ações notáveis e falava bonito, mas guardava muitas coisas no espírito e sucedia misturá-las. Cesária escutava e aprovava balançando a cabeça, curvada sobre a almofada trocando os bilros, pregando alfinetes no papelão de renda. E quando o homem se calava ou algum ouvinte fazia perguntas inconvenientes, levantava os olhos miúdos por cima dos óculos e completava a narração. Esse casal admirável não brigava, não discutia. Alexandre estava sempre de acordo com Cesária, Cesária estava sempre de acordo com Alexandre. O que um dizia o outro achava certo. E assim, tudo se combinando, descobriam casos interessantes que se enfeitavam e pareciam tão verdadeiros como a espingarda lazarina, o curral, o chiqueiro das cabras e a  casa onde moravam. Alexandre, como já vimos, tinha um olho torto. Enquanto ele falava, cuspindo a gente, o olho certo espiava as pessoas, mas o olho torto ficava longe, parado, procurando outras pessoas para escutar as histórias que ele contava. A princípio esse olho torto lhe causava muito desgosto e não gostava que falassem nele. Mas com o tempo se acostumou e descobriu que enxergava melhor por ele que pelo outro, que era direito. Consultou a mulher:

- Não é, Cesária?

Cesária achou que era assim mesmo. Alexandre via até demais por aquele olho: Não se lembrava do veado que estava no monte? Pois é. Um homem de olhos comuns não teria percebido o veado com aquela distância. Alexandre ficou satisfeito e começou a referir-se ao olho enviesado com orgulho. O defeito desapareceu, e a história do espinho foi nascendo, como tinham nascido todas as histórias dele, com a colaboração de Cesária. São essas histórias que vamos contar aqui, aproveitando a linguagem de Alexandre e os apartes de Cesária.

Apresentação do livro Histórias de Alexandre, de Graciliano Ramos, Editora Record, 2007.

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

As Formigas (A Conversa)

Foi a coisa mais bacana a primeira vez que as formigas conversaram com ele. Foi a que escapuliu da procissão que conversou: ele estava olhando para ver aonde que ela ia, e aí ela falou para ele não contar pro padre que ela tinha escapulido - o padre ele já tinha visto que era o formigão da frente, o maior de todos, andando posudo.

Isso aconteceu numa manhã de muita chuva em que ele ficara no quentinho das cobertas com preguiça de se levantar, virado para o outro canto, observando as formigas descendo em fila na parede. Tinha um rachado ali perto por causa da chuva, era de lá que elas saíam, a casa delas.

Toda manhã aquela chuva sem parar, pingando na lata velha lá fora no jardim, barulhinho gostoso que ele ficava ouvindo, enrolado no cobertor, olhando as formigas e conversando com elas, o quarto meio escuro, tudo escuro de chuva.

A conversa ficava interessante quando ele lembrava de perguntar uma porção de coisas e elas também perguntavam pra ele. (Conversavam baixinho para os outros não escutarem.) Mas às vezes não lembrava nada para conversarem, e ficava chato, ele acabava dormindo - formiga tinha hora que era feito gente mesmo.

O bom é que ninguém precisava gritar nem também mentir, como as pessoas estavam sempre fazendo. E também poder ficar olhando assim, sem falar nada, só olhando, sem precisar falar. Gente, se tinha outra perto, logo uma tinha que falar, ninguém aguentava ficar calado: vaca amarela, pulou a janela, cagou na tigela, mexeu, mexeu, quem falar primeiro come a bosta dela: logo uma falava ou ficava fazendo hum, hum, e ria - ninguém aguentava. Ficar só assim olhando, tão bom, que ele nem sabia direito se estava acordado mesmo ou sonhando, as formigas uma atrás da outra, descendo, a fila certinha.

Uma tarde entrou no quarto e viu a mancha de cimento novo na parede, brutal, incompreensível.

- Pra quê que o senhor fez isso? Pra quê que o senhor fez assim com minhas formigas?

O pai não entendia, e o menino chorando, chorando. Então o pai deu no espalho. Mas a mãe pediu para ele ter paciência: nesse tempo de chuva as crianças ficam muito excitadas porque não podem sair à rua e não têm onde brincar.

De manhã o menino acordava e olhava para a mancha de cimento na parede. Ficava olhando, até que sentia um bolo na garganta e cobria a cabeça com o cobertor.

Conto de Luiz Vilela retirado do livro Contos da Infância e da Adolescência, Série Rosa dos Ventos, 1996.

terça-feira, 18 de agosto de 2020

O moço que não tinha nome

Era um moço que não tinha nome. Nem nunca tinha tido. Um moço que, não tendo nome, também não tinha rosto.

- Psiu! - chamavam-no as pessoas.

E ele, acostumado desde pequeno, atendia. Porém, quando se aproximava, quem o tinha chamado via em lugar do rosto dele seu próprio rosto refletido, como num espelho. E enchia-se de espanto.

Assim, sem olhos ou sorriso que fossem seus, ninguém conseguia escolher um nome que a ele se ajustasse, tornando-o único, impossível de ser confundido com qualquer outro.

Era muita ausência para ele carregar. E cedo decidiu que, tão logo estivesse crescido, dono enfim da sua vida, partiria à procura do rosto que lhe pertencia e que, certamente, havia de estar perdido em alguma parte do mundo.

Chegada a idade, juntou suas coisas, saiu da aldeia e começou a andar.

Andou e andou. Nos castelos que lhe davam hospedagem, examinava ansioso os quadros e as tapeçarias, aproximava-se atento das esculturas, mesmo as mais miúdas que enfeitavam às vezes uma sopeira de prata ou o cabo de um talher. Quem sabe, entre tantos cavalheiros retratados, entre tantos homens pintados e bordados, não estaria algum cujo rosto, por engano ou descuido, fosse o seu? Até sobre os bastidores das damas se debruçava, na esperança de que o ponto que vinham de fazer estivesse arrematando um nariz, o traço de uma sobrancelha que a ele caberia.

Desse modo viajava, fazendo seu rumo como quem atravessa um rio pulando de pedra em pedra. Passava de uma cidade a outra, de uma casa a outra sempre procurando, nas famílias que se reuniam ao redor das lareiras, nas multidões das feiras, e até nos broches de esmalte que enfeitavam os decotes, nos camafeus e nas pedras entalhadas dos anéis.

Sem nunca, naqueles anos todos, afastar seu caminho da procura.

E nesse caminho, um dia, encontrou a moça que voltava da fonte.

Ia tão atenta para não entornar o cântaro equilibrado no alto da cabeça, que nem o viu chegar pela trilha. E quando ele se aproximou, oferecendo-se para carregar o cântaro, foi com surpresa agradecida que encarou o rosto vazio. Mais do que com espanto.

Andando devagar, para prolongar a caminhada, o moço acompanhou-a até em casa. Mas na manhã seguinte, bem cedo, foi esperá-la na fonte. E quando ela chegou, novamente se ofereceu para carregar o cântaro.

Assim aconteceu também no outro dia, e nos que vieram depois. Agora já se demoravam sentados à beira da nascente, conversando sem pressa, enquanto o tempo escorria junto com o regato. E a  cada novo encontro, ela olhava os próprios olhos refletidos nele e os via ficarem mais brilhantes, olhava sua boca e só lhe via sorrisos.

Pouco a pouco, a ausência do rosto foi perdendo a importância. O moço tinha tantas coisas para contar, tanta doçura na voz, que ela passou a achá-lo mais e mais bonito. Era como se nada lhe faltasse. Nem mesmo o nome. Pois não precisava chamá-lo, já que sempre o encontrava à sua espera, não importava a hora em que chegasse.

Porém, na fonte, começavam a boiar as primeiras folhas mortas. O regato, que tinha levado o verão lentamente levou o outono. E afinal o inverno chegou, engolindo as tardes em seu ventre frio. Breve a fonte gelaria. E a moça percebeu que, sem água para buscar, não teria mais desculpa para sair de casa.

Envolta no xale, ainda foi à fonte durante alguns dias. Mas naquela manhã em que as beiradas do regato começavam a fazer-se de cristal, o medo de perder o moço atravessou-a como um vento. Quis retê-lo, chamá-lo. Em ânsia estendeu-lhe as mãos. E quase sem sentir, num sopro, Amado! foi o nome que lhe deu.

Ondejou seu reflexo no rosto do moço. Lentamente, seus olhos espelhados perderam a nitidez, desfez-se o contorno dos lábios. Naquele vazio, só restava uma névoa, trazidos de longe pelo chamado de um nome, começaram a aflorar duas sobrancelhas espessas, depois a aresta de um nariz, a sólida linha de um queixo, a ampla testa. Traços cada vez mais nítidos, desenhando o rosto enfim encontrado.

Pingentes de gelo formavam-se nas folhas. Adensavam-se as nuvens. Mas ele, o homem que agora tinha rosto e nome, sorria como um sol.

Conto de Marina Colasanti retirado do livro Longe Como O Meu Querer, Editora Ática, Série Sinal Aberto, 1997.

24 de Outubro

O vizinho do andar superior - e que nunca cheguei a ver - fazia às vezes ruídos esquisitíssimos, não consegui decifrá-los nas minhas noites acesas, eram ruídos noturnos: coisas esponjosas que se arrastavam pelo chão, pensei em panos úmidos mas os ruídos passaram por vibrações, criaram vida e se puseram deslizantes como cobras indo e vindo num ritmo comandado. Muitas cobras - seria um amestrador de circo? Cessaram de repente e começou um barulho trepidante, ágil como o movimento circular de uma máquina de rodinhas, rodinhas de borracha, talvez um carrinho de boneca, embora certa noite as rodas do carrinho tomassem inesperadamente dimensões adultas, ficaram rodas mais responsáveis, difíceis - uma cadeira de paralítico?

Os novos inquilinos que chegaram são silenciosos. Tão silenciosos que ouço no silêncio o som de uma pena raspando o papel numa letra caprichada - um velho escritor? Quando cessa o ruído rascante da pena que já deve estar muito usada, começa o ruído delicado de alfinetes caindo no chão, dezenas de alfinetes que depois são recolhidos numa caixinha de papelão. Quando a caixa transborda, são espetados numa almofadinha - um alfaiate? Fiquei adiando a pergunta que ia fazer ao porteiro sobre os meus vizinhos mas eles se  mudaram, chegaram inquilinos novos e até agora não ouvi nada. Absolutamente nada. Continuo esperando.

Trecho de Lygia Fagundes Telles retirado do livro A Disciplina do Amor - Fragmentos, Editora Nova Fronteira, 7ª Edição, 1980.

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Casas Amáveis

Vocês me dirão que as casas antigas têm ratos, goteiras, portas e janelas empenadas, trincos que não correm, encanamentos que não funcionam. Mas não acontece o mesmo com tantos apartamentos novinhos em folha?

Agora, o que nenhum arranha-céu poderá ter, e as casas antigas tinham, é esse ar humano, esse modo comunicativo, essa expressão de gentileza que enchiam de mensagens amáveis as ruas de outrora.

Havia o feitio da casa: os chalés, com aquelas rendas de madeira pelo telhado, pelas varandas, eram uma festa, uma alegria, um vestido de noiva, uma árvore de Natal.

As casas de platibanda expunham todos os seus disparates felizes: jarros e compoteiras lá no alto, moças recostadas em brasões, pássaros de asas abertas, painéis com datas e monogramas em relevos de ouro. Tudo isso  queria dizer alguma coisa: as fachadas esforçavam-se por falar. E ouvia-se a sua linguagem com enternecimento. Mas, hoje, quem se detém a olhar para as rosas esculpidas, acentos, estrelas, cupidos, esfinges, cariátides? Eram recordações mediterrâneas, orientais: mitologia, paganismo, saudade. (Que quer dizer saudade? E para que e o que recordar?)

Os jardins tinham suas deusas, seus anões; possuíam mesmo bosques, onde morariam ecos e oráculos; e pequenas cascatas, pequenas grutas com um pouco d'água para os peixinhos. Possuíam canteiros de flores obscuras - violetas, amores-perfeitos - para serem vistas só de perto, carinhosamente, uma por uma, de cor em cor. (Hoje, estes ventos grandiosos apagam tudo.)

E, lá dentro, as casas tinham corredores crepusculares, porões úmidos, habitados por certos fantasmas domésticos, que de vez em quando se faziam lembrar, com seus pálidos sopros, seus transparentes calcanhares, suas algemas de escravidão. As famílias abrigavam cortejos de mortos.

E havia as claraboias. Luz como aquela? Nem a do luar! - uma suavidade de cinza e marfim, a maciez da seda, o fulgor da opala.

As casas eram o retrato de seus proprietários. Sabia-se logo de suas virtudes e defeitos. Retratos expostos ao público: nem sempre simpáticos, mas geralmente fiéis.

Agora, os andaimes sobem, para os arranha-céus vitoriosos, frios e monótonos, tão seguros de sua utilidade que não podem suspeitar da sua ausência de gentileza.

Qualquer dia, também, desaparecerão essas últimas casas coloridas que exibem a todos os passantes suas ingênuas alegrias íntimas - flores de papel, abajures encarnados, colchas de franjas - e suas risonhas proprietárias têm sempre um Y no nome, Yara, Nancy, Jeny...  Ah! não veremos mais essas palavras, em diagonal, por cima das janelas, de cortininhas arregaçadas, com um gatinho dormindo no peitoril.

Afinal, tudo serão arranha-céus. (Ninguém mais quer ser como é: todos querem ser como os outros são.)

E eis que as ruas ficarão profundamente tristes, sem a graça, o encanto, a surpresa das casas, que vão sendo derrubadas. Casas suntuosas ou modestas, mas expressivas, comunicantes. Casas amáveis.

Crônica de Cecília Meireles retirada do livro Escolha o Seu Sonho, Editora Record, 21ª Edição, 1998.

domingo, 16 de agosto de 2020

Minhas Queridas Formigas

É só eu estender e pegar aquela montanha, mas não quero. Me contento em ficar olhando, que ela é bonita a gente olhando sem pegar. Esse negócio de pegar para ver é com criança e eu já estou bem velho. E tudo o que pego mato logo, porque meus dedos são duros e poderosos demais; tudo é delicado para eles. O outro dia peguei um franguinho que tinha vindo para o meu quintal, sem querer apertei o pescoço dele - só devagar, para ele não gritar tanto. Morreu. Dei ele para as minhas formigas, que há muito tempo elas andavam com uma fome danada, comendo todas as folhas das minhas árvores. E eu gosto muito das minhas formigas e das minhas árvores. Às vezes vêm outras formigas aqui, mas eu faço feitiço, um que minha mãe me ensinou, e elas vão embora. É só pegar uma galinha ou outro bicho qualquer, morto, e enterrar no formigueiro. Elas não aguentam o mau cheiro da carne estragada, fogem pra bem longe, vão abrir formigueiro noutro lugar. No ano passado eu queria acabar com um formigueiro de umas saúvas muito safadas, não tinha achado nem um cachorrinho sem dono para enterrar. Aí apareceu aquele negrinho, filho dos crentes. Botei ele mesmo no formigueiro. As formigas foram todas embora. Parece que elas foram parar justamente na casa dos crentes, porque eles deram de chorar, e não andavam mais nem pela casa deles, o dia todo ficavam nas ruas, a falar com os outros, acho que perguntando por um meio de acabar com as bichinhas. Vieram até aqui, mas não falaram nas formigas não. Para disfarçar, perguntaram se eu não tinha visto o negrinho. Eu disse que não, ora essa. E disse que não, porque no dia em que vieram cá eu não tinha visto mesmo. Eu só tinha visto ele na véspera, quando botei em baixo da terra. E de lá não saíra. Mas eles queriam saber do menino nada. Queriam era saber de quem eram as formigas terríveis. Eu que não sou bobo, não ia dizer nada. Elas vieram aqui porque quiseram, as minhas formigas são outras, são daquele formigueiro do meio do quintal. Eu conheço todas elas; elas não entram na minha casa, me respeitam. Formiga dos outros entra. Agora eu vou dar de espantar elas também com roupa de cigano. Roupa de cigano também é bom. A gente enterra a roupa do cigano no formigueiro, elas vão embora. Cigano é povo que gosta de andar por tudo quanto é parte. Formiga pega da roupa deles e dá de andar feito louca, não para em lugar nenhum. Vai cada vez mais pra longe de onde saiu. Aliás, elas ficam sempre saindo, que é como os ciganos fazem. O professor Ático Vilas Boas me disse uma vez que a roupa de cigano serve até para a  gente fazer vizinho mau se mudar. É só a gente jogar a roupa do cigano para dentro da casa dele. Eu nunca experimentei com vizinho. Eu tenho uma roupa de cigano comigo. Tirei daquela ciganinha morena que o outro dia, há uns três meses, veio aqui para ler a minha mão. Ela não sabia ler mão nada. Ela pegou a minha mão e começou a dizer que eu era rico, muito rico. Isso todo mundo sabe. Todo mundo anda querendo botar a mão na minha riqueza. A cigana deu de falar bobageiras, foi me irritando. Depois ela viu que eu não queria mesmo dar nada, começou a se esfregar em mim, perguntou se eu não queria levar ela para o meu quarto. Ora, eu sei que ela queria era ver os meus trens, para ver se eu tinha alguma coisa para ser levada. Então eu disse que ela podia entrar, levei ela para o meu quarto. Lá, apertei o pescoço dela; ela não resistiu. Ninguém resiste. Meus dedos são duros e fortes demais da conta. Apertei devagarinho, ela estrebuchou, mas não deu muito trabalho. Eu estava mesmo precisando de um corpo para acabar com um novo formigueiro de umas formigas invasoras. Ela tinha um corpo moreno bem bonito, mas já estava morta, que é que eu podia fazer mais? Além de tudo, eu estava precisando era de acabar com as formigas que não eram minhas. Guardei as roupas para o primeiro formigueiro que aparecesse e levei a cigana morena para os fundos. Enterrei de noite e de manhã já não tinha mais nenhuma formiga no quintal. Só as minhas mesmo. Elas sabem que eu só faço isso por causa delas, não é? Se vêm outras por aqui, onde é que vou poder arranjar comida para todas? Meus braços são muito longos, mas não gosto de esticá-los muito não. É chato. Às vezes, quando elas estão com muita fome mesmo, que começam até a comer as folhas das minhas árvores, estico o braço até o quintal dos outros e arranjo um bicho e mesmo uma planta qualquer para elas. Mas os vizinhos não gostam muito e reclamam demais. Por causa de um vaso de flores ou de um gatinho, como gritam. Um até disse uma vez que ia me matar. Isso foi há muitos anos. Depois ele veio na minha casa para pedir desculpas, porque queria ver se eu arranjava algum dinheiro para ele. Foi só  saber que sou rico e mudou logo. Mandei ele voltar no dia seguinte, mas fiz ele jurar que vinha sem dizer nada a ninguém. Eu disse que tinha gostado dele, que só ele ter vindo para pedir desculpas já mostrava que era um homem de bem, e tal e coisa, mas que eu tinha um medo de que todo mundo acabasse sabendo que eu andava soltando a minha fortuna por aí. Que ele viesse em segredo, eu daria o dinheiro. Nem era emprestado. Emprestar para quê? A riqueza era muita e era para isso que eu desejava ela, para distribuir com os outros. Na certa ele pensou que estava lidando com um doido, que joga dinheiro fora, feito o Munir Calixto, o Domingos Félix de Souza, o Paulo Gomide Leite ou o Bariani Ortêncio. Veio de noite, às escondidas, satisfeito, quase chorando de alegria. Foi com ele que acabei com um formigueiro que não tinha mais tamanho, que estava dando cabo de todas as minha árvores. Ninguém nem não veio procurar por ele aqui. Também,  se viesse, eu ia dizer que não sabia de nada. Não gosto de falar muito com estranhos. É chato. E quanto mais gente fala, mais eles querem saber. Concordam com tudo o que a gente diz, só porque sabem que a gente tem dinheiro. Ser rico e poderoso é assim; não tem ninguém sincero por perto. Só as minhas queridas formigas é que são sinceras, não me importunam. Só comem mesmo das minhas folhas, quando a fome é grande. Por isto é que estou com vontade de comprar uma geladeira. Assim poderei ir armazenando os bichos que arranjar e até os meninos que de vez em quando pulam para o meu quintal e eu pego quando me dizem que não tem família. Sempre tive pena dos meninos sem família, coitados. Guardar fora do gelo é ruim, dá um mau cheiro danado. E as minhas formigas não gostam muito de carne estragada, acho que é porque elas têm nojo dos vermes que se acumulam nela. Eu também não gosto. Nem não como carne de gado por causa disso. A gente nunca sabe se mastigou direito, ela vai para o estômago mal mastigada, acaba apodrecendo lá dentro. Coisa nojenta! Nem não gosto de pensar...

Se eu esticasse o braço abriria aquela janela lá em frente. Uma vez abri, vi um casal se beijando na sala. Ela é muito bonita, está sempre recebendo visitas de rapazes.Os pais não sabem de nada, porque eles entram de noite, quando todo mundo está dormindo. Eu, que não durmo nunca, vejo tudo. Um deles, uma noite, ficou no meu portão esperando ela abrir a janela. Fiquei com pena del, mandei entrar para vigiar da minha janela. Ele gostou tanto, que quase me beijou a mão. Sou assim: gosto de ajudar gente desinteressada. Ele ficou na janela, perto de mim, um tempão. Cheguei a pensar que ele bem me serviria se tivesse formigueiro novo no meu quintal. Mas não tinha, coitado. Ele não pôde ser útil para mim, embora se tivesse oferecido muito para o que precisasse dele. Como a moça estava demorando a abri a janela, estiquei o meu braço todo-poderoso e abri. Tinha outro sujeito lá, com ela. Coitado do rapaz; foi-se embora, triste, nunca mais o vi por aqui. A moça nunca soube quem abrira a janela. Quando ela ia fugir com um tipo gordo e esquisito, eu soube, porque ouvira quando eles combinavam tudo naquela sala. Na noite em que ele parou o carro, quase em frente da minha casa, eu estiquei o braço e virei o carro. Depois, toquei fogo. Todo mundo da rua correu para ver o incêndio. Gostaram muito do espetáculo. Até eu bati palmas e ri à ufa. O sujeito gordo corria de uma parte para outra, a moça chorava e os pais dela gritavam feito loucos. Tinha muita gente na casa deles naquele dia. Parece que ela tinha marcado encontro com todos os rapazes que entravam pela sua janela, pois reconheci uns dez, que todos tinham ido para assistir à sua fuga com o gordo. Foi a maior festa a que a rua assistiu. Pena é que não tenham sabido que fora eu o autor da brincadeira. Não gosto de falar dessas coisas com desconhecidos; eles começam a fazer perguntas, a rir, trocam olhares de zombaria. Conheço bem essa gente. Meus olhos enxergam longe e quando quero vejo através das paredes. Quem vai acreditar nisto? Ninguém. Mas eu vejo. É só querer, que tenho que me concentrar um pouco. Quando precisei de saber o que estavam tramando contra mim, no dia em que desapareceu um garotinho louro, muito sujo, que andava por aí, eu me concentrei e ouvi tudo o que faziam e cochichavam contra mim, na sala ao lado do meu quarto. Estavam comentando que eu era louco, que eu não sabia o que fazia e bem que poderia ter matado o garoto. Outros diziam que eu era inofensivo, mas que devia ser examinado pelo doutor Samir Helou, que é muito mais louco do que eu, porque tem mania de automóveis e de velocidade. Eu nem não tenho carro nem gosto de correr. Gosto é de ficar aqui em casa, parado, pensando nas minhas queridas formigas. O garotinho tinha entrado porque não havia nenhum formigueiro invasor no meu quintal. Aposto que o doutor Samir nem tem formigueiro dele mesmo. Diabo, nem sempre posso ter formigueiro para mudar do meu terreno, e as minhas queridas formigas andavam bem alimentadas com um galo índio que eu tinha arranjado para elas. Se eu já tivesse a geladeira, vá lá, mas ficar com um menino a se estragar dentro de casa, ah, isto não! Então mandei que ele desse o fora. Ele correu pela porta da frente mesmo e nunca mais voltou. Que é que eu podia saber dele? Foi isso o que eu disse a eles, acrescentando que ouvira e vira o que eles andaram falando e fazendo na minha sala. Eles ficaram tão impressionados que deram o fora sem nem ao menos aceitar o cafezinho que eu lhes oferecera. Felizmente, porque eu não tinha café em casa. Aliás, eu nunca tive, porque não gosto de café; só tomo chá das folhas das minhas laranjeiras. Não é muito bom a gente andar por aí, mostrando que pode fazer certas coisas,  porque aguça muito a curiosidade dos outros. Depois do que disse, foi o diabo para mim. A novidade correu asinha. deu de vir gente em minha casa todo dia, que quase fiquei doido. Todos querendo que eu adivinhasse futuro, que dissesse o que outras pessoas andavam fazendo ou pensando, em outros lugares. Quando eu simpatizava com as pessoas, fazia o que me pediam. Nunca erro quando me concentro. Quando eu não simpatizava, mandava voltar de noite, para usar nas formigas. Disse para o padeiro que a mulher dele tinha outro homem e ele viu que tinha mesmo. Eu adivinho de verdade. Agora tem vindo menos gente aqui, tem dia até que nem não vem ninguém. Eu soube que foi o Padre Pereira que andou proibindo e ameaçando todo mundo, só porque eu tinha curado um menino de uma doença que os médicos não conheciam e ainda fiz uma paralítica andar. Que é que tem fazer isso? Nunca nem não disse a ninguém que era santo, isso não. Nem não gosto de santos, detesto todos eles. São feitos de barro, não prestam para espantar nem para alimentar formigas. Só gosto de quem serve para essas coisas, que um dia pode ser útil para mim. Mas faço o que quero fazer e ninguém pode me impedir. Aquele padre não devia falar certas coisas de mim, que ele não me conhece. Fiquei não gostando dele. Se ele vier aqui, eu mostro para o que ele serve. Ele vai ver quem eu sou e do que eu sou capaz. Talvez até eu use ele num formigueiro novo. Pena é que o meu quintal ande tão cheio de ossos. As formigas nem não querem mais vir para aqui. É capaz até de não ter mais nenhuma, fora as minhas mesmo, porque o pedacinho de terra delas é sagrado. Lá eu não enterro nada. Ponho a carne por fora, com cascas de laranja, que assim elas gostam mais, depois que eu as habituei a gostar de carne. Mas tem de ser carne de bicho pequeno, que gente não serve.: cheira muito mal. Gente só serve para pôr embaixo da terra, para espantar formigas invasoras. Uma ou outra, quando se cuida bem, pode ser. A maioria não. Gente espanta as formigas e ainda aduba as minhas terras. Ah, ia me esquecendo disso! Ainda aduba as minhas terras! E quem gosta disso são as minhas queridas árvores, as minhas queridas árvores!

Conto de Anatole Ramos retirado do livro Antologia do Conto Goiano I - dos anos dez aos sessenta. Organizadoras: Darcy França Denófrio e Vera Maria Tietzmann Silva, CEGRAF/UFG, 2ª Edição, 1993.

sábado, 15 de agosto de 2020

A Bênção da Alegria

Um semblante jovial, em qualquer idade, cativa, reunindo as criaturas em sua volta atraídas pela claridade da alegria.

Uma expressão de face cordial inspira confiança e convida outras pessoas à convivência fraterna.

Um sorriso de júbilo, tranquilo, renova a esperança de viver nos indivíduos que se deixaram debilitar, assim, redescobrindo que é possível ser feliz. A irradiação da alegria sem balbúrdia alcança outros corações que se mimetizam, reencontrando motivação para prosseguir na existência redentora.

A alegria é como um sol que modifica a paisagem em sombras, apresentando a beleza que se encontrava oculta.

Necessária para a vida, gera otimismo, e este produz estímulos e forças que dão resistência para os desafios que fazem parte da existência humana.

Mesmo quando, aparentemente, não haja razão para sorrisos, a felicidade por encontrar-se reencarnado, com excelentes oportunidades que acenam para o triunfo, motiva à alegria que deve permanecer no homem

Quando a tristeza se instala nos sentimentos, a caminhada se faz mais penosa.

Com alegria, as distâncias a vencer parecem menos largas e os problemas a solucionar se tornam mais fáceis.

Alegria é presença de Deus no coração.

Coloca a cor da alegria na tua face, e as sombras da tristeza baterão em retirada.

Considera a luta e o sofrimento sob a luz da alegria, e as forças que pareciam entorpecidas pelas sombras dos desencantos assomarão, auxiliando-te a lograr a vitória.

Deixa que o fluxo do entusiasmo te vitalize todos os valores adormecidos, e eles despertarão para o grande embate que te plenificará.

Faze que, aqueles que choram ao teu lado, compartam das bênçãos da tua alegria.

Assegura-te do bem-estar que esparzes e não te detenhas, mesmo quando surjam os momentos graves na condição de testemunhos.

Com o pensamento ligado a Deus, a Fonte Inexaurível de onde haurirás os recursos superiores, mantém o clima de alegria.

Nada te impeça de manter-te feliz. Nem as enfermidades, nem as dores morais, nem as necessidades físicas.

Não permitas que o êxito te distraia na volúpia da presunção nem que o fracasso te magoe, derrubando-te no abismo da depressão.

Um e outro são acidentes que ocorrem, mas de permanência relativa.

A glória de hoje pode tornar-se a queda de amanhã.

A alegria, porém, em qualquer circunstância, deve tornar-se um acontecimento normal, constante, permanente e modelador da tua existência.

Na alegria sincera, que se exterioriza de ti, todos encontrarão a força da amizade alentadora, encarregada de proporcionar saúde e prosperidade.

Assim, torna-te um exemplo vivo, como se conduzisses uma tocha acesa iluminando os caminhos humanos.

Todos que estejam contigo, percebendo o teu natural regozijo se alegrarão, formando um grupo harmônico que alterará o ambiente social para melhor.

Desta alegria geral sairá o hino da bem-aventurança, sensibilizando quantos o ouçam e aspirem à felicidade.

Todo o Evangelho de Jesus é uma constante canção de alegria, rica de esperanças e paz.

Medita nisso, pratica-o, e a tua existência se renovará, porque alegria é saúde e é vida.

Texto retirado do livro Momentos de Alegria. Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, 4ª Edição, 2014.