quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Todo Mundo no Mundo

Todo mundo tá perdido,
Isso ninguém pode negar
Então junta todo mundo
Que é pro mundo melhorar
Então junta todo mundo
Que é pro mundo melhorar

Tem indiano, brasileiro, africano, libanês
Cada qual com seu talento
Dando as mãos viramos três

Tem inglês, tem argentino, italiano, português
O melhor de cada um a gente soma dessa vez

Esse mundo tá perdido
Isso ninguém pode negar
Então junta todo mundo
Que é pro mundo melhorar

Então junta todo mundo
Que é pro mundo melhorar

Tem francês, tem espanhol, americano, japonês
Cada qual com seu talento
Cada um dá o que fez

Tem cigano, alemão, tibetano, tem chinês
O melhor de cada um a gente soma dessa vez

Música de Laura Finocchiaro que fecha seu CD Copy Paste - Música Orgânica, lançado em 2013.

terça-feira, 13 de outubro de 2020

Meu Amigo Pedro

Muitas vezes Pedro você fala
Sempre a se queixar da solidão
Quem te fez com ferro, fez com fogo, Pedro
É pena que você não sabe não

Vai pro seu trabalho todo dia
Sem saber se é bom ou se é ruim
Quando vai chorar vai ao banheiro
Pedro as coisas não são bem assim

Toda vez que eu sinto o paraíso
Ou me queimo torto no inferno
Eu penso em você, meu pobre amigo,
Que só usa sempre o mesmo terno

Pedro onde cê vai eu também vou
Mas tudo acaba onde começou

Tente me ensinar das tuas coisas
Que a vida é seria, e a guerra é dura
Mas se não puder, cale essa boca, Pedro
E deixa eu viver minha loucura

Lembra, Pedro, aqueles velhos dias
Quando os dois pensavam sobre o mundo
Hoje eu te chamo de careta, Pedro
E você me chama vagabundo

Pedro onde cê vai eu também vou
Mas tudo acaba onde começou

Todos os caminhos são iguais
O que leva à glória ou à perdição
Há tantos caminhos, tantas portas
Mas somente um tem coração

E eu não tenho nada a te dizer
Mas não me critique como eu sou
Cada um de nós é um universo, Pedro
Onde você vai também eu vou

Pedro onde cê vai eu também vou
Mas tudo acaba onde começou

Música de Raul Seixas e Paulo Coelho retirada do CD Há 10 Mil Anos Atrás. Lançado originalmente em LP em 1976.

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Meu Amigo João

 Saindo agora do escritório dele, recordei-me subitamente das palavras de minha mãe. A vida é uma ciranda, dizia ela, a gente dá a mão para uma pessoa hoje, outra nos estende a sua amanhã. E, como se reescrevesse o meu evangelho, lembrei-me da primeira vez em que o vi: João estava sob a sombra de uma mangueira no quintal de nossa vizinha, onde eu fora buscar folhas de louro a pedido de mamãe. Movia-se, silencioso, como uma serpente, procurando pedras no chão, com as quais depois derrubou duas mangas maduras; uma, que logo mordeu, sugando o suco como um seio; a outra, que deu a mim, a contemplá-lo admirado. Havia pouco ele se mudara com a tia para a vila onde morávamos e, naquela manhã, ao me estender a fruta, disse apenas, É pra você!, e sumiu entre as árvores. Comoveu-me a sua inesperada generosidade, eu não estava habituado a ganhar nada de estranhos, era eu quem sempre dava. E descobri que ele não entrara ali como eu, pelo portão: João pulara o muro da vizinha. Mas em vez de desprezá-lo pelo roubo, admirei-o pela ousadia.

Surpreendeu-me na semana seguinte, quando nos encontramos no catecismo e a professora, após ler a Bíblia, explicou que João significava "amigo de Cristo", e ele sorriu docemente pra mim, sua mais nova conquista. Foi numa dessas aulas que me entreguei de fato a ele - já então nos conhecíamos melhor e bastava vê-lo amarrado à grossa corda de seu silêncio, os lábios unidos por pregos invisíveis, para saber que não se resignava à sua condição. Era uma tarde de inverno e, de repente, o horizonte enegreceu e uma inesperada tempestade desabou. Trovões eclodiam, ininterruptos, bombardeando nossos ouvidos; relâmpagos desenhavam no céu formas horripilantes, que víamos, assustados, pelos vidros da janela. A professora fechou a cortina, acendeu a luz da sala onde nos reuníamos em roda, e tentou nos acalmar, enquanto galhos de árvores se estatelavam na rua ao bramir da ventania. A luz tremeu uma vez, outra, e na terceira se apagou. Vou procurar uma vela, disse ela, e então alguém sussurrou, aflito, Ai, meu Jesus! Reconheci a voz de meu amigo e senti o ar que sua mão deslocava, rasgando as trevas à procura da minha - e prontamente a estendi.

Minha mãe se alegrava ao me ver com João. Nós dois nos divertíamos horas a fio com meus automóveis, piões, quebra-cabeças, soldados e índios do Forte Apache, dinheiros e cheques do Banco Imobiliário. E me elogiava, sempre em voz alta, para meus irmãos ouvirem, que eu sabia dividir como um autêntico cristão; afinal, ninguém podia ser feliz sozinho, o paraíso na terra eram as boas companhias. Não me admirou, numa das poucas vezes em que fui à casa de João - era sempre ele quem vinha à nossa -, encontrar em seu quarto brinquedos meus, alguns que eu supunha ter perdido: um avião de guerra, um carro de polícia, o trem elétrico. Ao me ver repentinamente ali, ele deu de ombros e me chamou para brincar na rua, como se aqueles brinquedos não tivessem para ele o valor que eu sabia ter. Não que eu os quisesse de volta, João é quem desejava ocultá-los de mim. Mas não me aborreci, eu sabia que nada pode ser dado se já não é do outro. E era eu ganhar uma bicicleta nova para ceder a ele a minha velha, sem hesitar em trocá-las no caminho e deixá-lo saborear algo que me alegrava possuir só para lhe oferecer. Era sobrar papel-alumínio, com o qual minha mãe encadernava meus livros, para igualmente encadernar os dele. Era soar o sino do recreio para sentarmos num banco, e eu dar a  ele o meu lanche e assistir à sua voracidade, ao seu jeito de comer, ruminante, os maxilares se movendo com vigor, quando então parecia um homem, e só voltava a ser menino se eu olhasse para suas mãos pequenas, seus pés balançando sem tocar o chão, seus cabelos revoltos ao vento. Era chegar o inverno para que eu admirasse meus agasalhos sobre seu corpo, vivendo o susto de me ver nele - água para seu batismo -, e não foram poucas as ocasiões em que menti, afirmando não me servirem mais para que pudessem vestir João. Era chegar o sábado para irmos juntos à banda e corrermos até o suor escorrer pelas nossas faces em fogo, e depois nos deitarmos na grama, o coração como um bumbo, trovejando, e ele transbordar seus silêncios, e eu gastar todas as moedas que ganhava em pipocas, beijus, amendoins, refrigerantes e tudo o mais que eu podia comprar para agradá-lo.

Na juventude, tive plena certeza de que João era o senhor absoluto de minha amizade. Passávamos horas em mesas de bar, eu pedindo com satisfação a marca de cerveja que ele apreciava, concedendo-lhe sempre a regalia de encerrar as nossas noites à hora que lhe fosse conveniente. Numerosas vezes o levei cambaleante para casa, atravessando a névoa da madrugada, enquanto ele prometia, aos brados, que haveria de ser importante para o mundo, sem se importar de já o ser para mim. Foi o tempo de urdir devaneios, fabricar os fios para tecermos o nosso futuro, emaranhar-nos na meada de nossas crenças ingênuas e viver o alumbramento que a descoberta do corpo feminino nos proporcionava. Como touros enfurecidos, saíamos às ruas, em busca da costela que nos faltava, experimentando uma garota e outra, convictos de que ocupavam o nosso vazio, até começarem a nos doer, mostrando o seu duvidoso encaixe. Rompíamos manhãs, perfurávamos tardes, desvirginávamos madrugadas, confidenciando um ao outro as nossas aventuras amorosas. Chegamos a partilhar, em épocas distintas, a mesma jovem. Eu a namorei primeiro, ou foi Madalena quem se meteu ao meu lado em nossa ciranda. Mas, depois de alguns meses, ela preferiu seguir João, como um apóstolo, e só me restou ouvi-lo contar, em detalhes cruéis, as suas vivências com Madalena. Constrangia-me que ele soubesse o quanto eu havia me dado a ela e o pouco que ela lograra receber de mim. Eu renascera em Madalena, mas João a possuíra, e ela, certamente pelo gosto de ser possuída, morreria por ele, apesar das pedras que meu amigo lhe atirava, sobretudo, se eu estivesse por perto. Mais tarde ele a abandonou: Madalena era apenas uma ermida, e João queria oficiar a sua missa numa catedral.

Comecei a me preparar para o vestibular, seguindo o exemplo de meus irmãos que cursavam faculdade em cidades vizinhas e, de tanto eu insistir, meu pai obteve no cursinho em que me matriculara uma bolsa de estudos para João. O diabo do mundo nos tentava com suas maravilhas e nos atiramos aos livros com a obstinação dos peregrinos. Não nos bastava viver entre margens de rio; queríamos lançar redes no oceano, enfiar nas mãos dos incrédulos os cravos de nossa vitória. E, como eu me empenhasse em demasia nos estudos, quase sem lazer, meu pai, temendo que o excesso fosse um obstáculo para eu atingir meu intento, oferecia-me às vezes o carro para dar uma volta. Se não saía com nenhuma garota, João ia comigo. Eu o deixava dirigir pelas ruas afastadas do centro, mas ele não se satisfazia plenamente, porque desejava se exibir à luz esfuziante das avenidas. Foi quem mais festejou quando meu pai me deu um Fiat no dia em que entrei na faculdade. Empenhou-se em me embriagar, estendendo-me a todo instante o cálice da glória, e em me raspar os cabelos, obrigando-me a dar uma face e depois a outra para escrever o nome da faculdade na qual eu entrara. Meu coração hesitava, queria disparar com a alegria do triunfo, mas se continha, receoso de que tanta satisfação o magoasse. Na semana seguinte, saiu o resultado de seu exame e foi a minha vez de vazar de felicidade ao descer o dedo pela folha do jornal e materializar seu nome na lista dos aprovados. Armei uma festa para ele, e, como acontecera dias antes comigo, João oscilava entre o sol daquela certeza e as nuvens de inquietude: a faculdade era pública, mas ele também teria de se mudar para a capital, e trinta moedas não bastariam para sustentá-lo. Calma, meu amigo, eu lhe disse. E lembrei das nossas aulas de catecismo, Não cai um fio de cabelo sem que Deus não queira. Ele respondeu, amargo, Já é hora de Deus transformar as pedras de meu caminho em pães.

O milagre aconteceu. Meu pai alugou uma quitinete em São Paulo e João foi morar comigo. o que agradou especialmente minha mãe; ela se sentia segura, achava que, junto a ele, eu enfrentaria melhor os perigos da metrópole e teria ao meu lado um guardião. Abnegado, meu pai conseguiu uma aposentadoria para a tia de João e ela, mensalmente, passou a lhe enviar algum dinheiro para que comprasse seus livros. O mais, que não era muito, eu lhe dava. Apetecia-me repartir o meu pão com ele, multiplicar em dois o meu peixe.

Vivemos quatro anos metidos nos bancos da universidade, nas salas pulguentas dos cineclubes, nas pistas enfumaçadas dos inferninhos, nos corpos rijos das mulheres que nos amaciavam a fúria libidinosa, nos botecos imundos onde transformávamos vinho em água. Muitos conhecidos vinham a mim, reivindicando o posto de escolhidos, mas João era o amigo que nenhum superaria em meu coração.

Quando estávamos para colar grau, surgiu Marta e o arrebatou com sua sensualidade voraz, sua beleza saturnina, seu rico pai - o dedo que faltava à mão de João. Não tardou para Marta engravidar e se desentender com o pai que não aprovou sua união com meu amigo e a deserdou. Eles se casaram em dezembro e no sorriso de João havia uma linha de contrariedade que só minha alma podia soletrar. Na gritaria de seu silêncio, ele desafiava Deus. Providenciei um jantar para os noivos, convidando uma dúzia de colegas, e comemoramos as suas bodas. Eu me sentia feliz em entregá-lo a ela, julgava-me um bem-aventurado e seguia as palavras de Cristo: Quem quiser ganhar a vida perdê-la-á; mas quem quiser perdê-la por mim, tudo ganhará. Dei a ele todas as minhas economias para que pudesse ter uma lua-de-mel decente, embora não a de seus sonhos, e pagar adiantado três meses de aluguel de um modesto apartamento no centro da cidade, que eu encontrara para o casal.

No ano seguinte, João começou a trabalhar como trainee numa multinacional, eu me encaixei numa empresa, e seguimos a vida. Quando a criança nasceu, ele me convidou para batizá-la e, nesse dia, eu soube que meu amigo vivia cheio de dívidas, e no universo de seus credores não havia espaço para o perdão. Eu planejava vender meu carro e fazer um curso nos Estados Unidos, já comunicara o plano à minha família, mas vendo João em apuros, agradeci a Deus a oportunidade de servi-lo. Consumei o negócio e dei o dinheiro apurado a ele, inventando a meu pai, cuja situação financeira declinava, que haviam me roubado o carro e eu não renovara apólice do seguro.

Atirei-me ao trabalho e às mulheres, vaguei de corpo em corpo, em busca de minha Eva e, enfim, quando a encontrei, tinha um bom emprego e me casei. Vieram os filhos. Eu e João quase não nos víamos. Nem precisava: meu sangue repousava em seu cálice, seu rosto de menino reinava em minha memória. Sobreveio um período de silêncio, nossos encontros se espaçaram, até que entre eles não cabiam dias, mas longos anos.

Meu pai morreu, os bens que deixou motivaram uma disputa feroz entre meus irmãos, com os quais rompi relações. De repente, o progresso que eu fazia no mundo profissional cessou e me vi desempregado. No início não me preocupei, acostumara-me a pouco, mesmo nos tempos de abundância. Mas, com o passar dos meses, percebi que não tinha a quem recorrer. Eu estava acuado, como João na tarde em que a luz acabou, a mão estendida em busca de ajuda. Então vi nos classificados do jornal que uma importadora de azeite necessitava de um gerente e meu perfil atendia às exigências. No dia da entrevista, quando a porta se abriu, dei inesperadamente com ele, como que saindo da sombra das mangueiras para me salvar. Foi um momento divino para mim. Mas não para ele, como notei depois. João parecia estar há muito à minha espera, como naquela manhã no quintal da vizinha, as pedras na mão para derrubar a minha e a sua manga. Abraçamo-nos, longamente, e logo ele me contou a sua via-crúcis, as jornadas que enfrentara para construir o seu tão almejado mundo, até o último lance, quando o sogro, doente, intimara-o a dirigir os negócios da família. A roda da fortuna girava finalmente para ele. Falamos o que é comum nesses reencontros e, a uma pergunta sua, contei o que se passava comigo. Entreguei em suas mãos o meu espírito, convicto de que ele se reconhecia em mim. Mas, após relembrar vários episódios de nossa vida, como se recapitulando os atos de minha paixão, ele disse que meu currículo chegara quando já se encerrara o processo de seleção e não podia interferir a meu favor. Senti a boca seca, a garganta esbraseada e levantei para me despedi. Então o telefone tocou e ele atendeu. Alguém o chamava urgentemente. Esperei algum tempo, ouvindo-o gritar feito um demônio e a negociar numa língua que não era a nossa, de meninos. E, como João parecia não ter pressa, fiz-lhe um sinal e saí, sem que me estendesse a mão.


Conto de João Anzanello Carrascoza retirado da coletânea Olhar de Descoberta, Volume 2 Crônica e Conto, Série Literatura em minha casa, Editora Melhoramentos, São Paulo, 2003.

domingo, 11 de outubro de 2020

A Descoberta

- Bom dia. Eu sou o pai do Buscapé.

- Do Buscapé?

- Do Otávio.

- Ah, do Otávio. Pois não.

- Ele é um demônio.

- Eu sei. Quer dizer, não. Ele é um menino, vamos dizer, hiperativo.

- "Hiper" é pouco.

- Eu não acho que...

- Por favor. Não precisa se constranger. Eu sou o pai e sei. Ele é um demônio.

- É.

- E é sobre isso que eu queria lhe falar.

- Ele contou que eu gritei com ele na aula...

- Não, não. Isso ele nem nota. Está acostumado. É que a mãe dele está preocupada.

- Eu não me preocuparia. Todas as crianças são hiperativas nessa fase. O Buscapé... O Otávio só é um pouco mais do que as outras. A sua senhora não deve...

- Mas ela está preocupada com outra coisa.

- O quê?

- O Busca não para de ler.

- Não para de ler? Mas isso é ótimo.

- Desde que começou a ler, anda sempre com um livro debaixo do braço. Quando a gente estranha o silêncio dentro de casa, vai ver é ele não fazendo barulho. Está atirado no chão, soletrando um livro, muito compenetrado.

- Mas eu não vejo qual o problema.

- É a mãe dele que... Bom, ela sente falta.

- Do quê?

- Da agitação do Busca. Ela não está acostumada, entende? A ter um intelectual em casa. Outro dia até brigou com ele.

- Por quê?

- Ele estava quieto demais. Ela gritou: "Eu não aguento mais. Quebra alguma coisa!"

- Mas eu não entendo o que eu posso...

- Bom, se a senhora pudesse, sei lá. Não digo desencorajar o Busca. Só dizer que ele não precisa exagerar.

- Mas ele está descobrindo o mundo maravilhoso dos livros. Isso é formidável.

- É, só que a gente fica, não é?, com um certo ciúme. 


Conto de Luis Fernando Veríssimo retirado do livro O Santinho, Coleção Literatura em minha casa, Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2001.

sábado, 10 de outubro de 2020

A Religião e o Indivíduo

 O conceito de Freud quanto à religião, afirmando que ela é, por si, uma neurose compulsiva, exprime uma reação dogmática negativa, absurda.

A religião oferece métodos de integração da consciência individual e coletiva na Realidade Cósmica, como opção realizadora para o homem mediante a conquista de objetivos mais elevados.

Tivesse razão o nobre psicanalista vienense e se poderia afirmar também que a ausência dela, por si mesma, seria igualmente, o resultado de uma compulsão neurótica.

Não é a religião que impõe freio, dependência, fuga à liberdade e à capacidade de o homem ser responsável. Porém, os esquemas propostos por alguns religiosos, que elaboram doutrinas castradoras, que proíbem, impõem, cassam os direitos dos seus fiéis, aprisionando-os na urdidura dos seus limites.

Da mesma forma que o homem busca a fé religiosa como processo de certeza, de segurança, o faz em relação à ciência, nela procurando refúgio, apoio à sua fragilidade, proteção ao seu estado infantil.

A religião propicia amadurecimento psicológico, graças às propostas desafiadoras com que se apresenta.

O crente que se conscientiza dos postulados religiosos que abraça, entrega-se a uma dinâmica de maturidade e realização que o propele a conquistas novas: ampliação das aptidões, capacidade de amar, força de trabalho, alegria na luta, compensação emocional diante da dor, espírito de combatividade, calma nas atitudes...

A ansiedade cede-lhe passo à harmonia interior, e, sem transferir responsabilidades para Deus, confia no futuro e no seu poder de triunfo.

Há indivíduos que se entregam à vontade de Deus, porque resolvem acomodar-se, fugindo à responsabilidade dos acontecimentos que lhes cumpre conduzir. Este é, sem dúvida, um estado de alienação neurótica.

Sucessos e fracassos, mais insucessos certamente, lhes ocorrem porque, dizem, Deus assim o quer, quando tudo os convida à realização dinâmica e produtiva do bem com saldos favoráveis para a sua realização.

Outros existem, que permanecem aguardando milagres capazes de lhes alterar o destino, sem a contribuição do seu esforço.

Diversos, portadores de sentimentos de culpa, buscam a fuga religiosa como processo escapista para o enfrentamento com a consciência.

Não falta, da mesma forma, quem procure transferir suas responsabilidades para Deus, utilizando-se do processo infantil de ser cuidado por alguém...

Esses crentes são portadores de conflitos, sem dúvida, mas a culpa não é da religião que abraçam, e sim deles próprios.

A religião deve possuir recursos terapêuticos de otimismo, de afirmação para o indivíduo e de identificação pessoal com a vida.

Não se impondo a ninguém, ajuda a discernir quais as melhores metas existenciais e como consegui-las.

Apoiando-se no raciocínio, liberta o homem do totens e tabus atávicos, facilmente aplicando-lhe as regras éticas de conduta que o tornam seguro e calmo no processo de crescimento íntimo.

Abandonando a ideia de um Deus-homem ou um homem-Deus, o crente assimila o conteúdo da definição do Dr. Paul Tillich, célebre religioso contemporâneo: "É tão ateu afirmar a existência de Deus, como negá-lo. Deus é o próprio ser, não um ser."

A crença em Deus é, também, uma forma de dar sentido, dar significado à vida. Desse modo, a atitude religiosa é uma maneira de o homem encontrar motivos superiores para viver, para dignificar a vida e até mesmo para dar a existência por eles, qual ocorre em outras áreas do comportamento humano.

A religião é também responsável por inúmeros impulsos criativos e realizadores, o que a torna essencial à vida.


Texto retirado do livro Momentos de Iluminação, Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 4ª edição, 2015.

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

A Periferia e o Centro

 O berço da Modernidade talvez resida, não no Renascimento italiano ou na Reforma protestante, e sim, na aventura marítima de Cristóvão Colombo, desembarcando no Novo Mundo em 12 de outubro de 1492. A chegada das caravelas espanholas ao nosso continente alterou profundamente a vida e a história dos povos que aqui viviam; astecas, maias, quechuas e aymaras. Contudo, assim como o corruptor faz o corrupto e a mentira instaura o mentiroso, o efeito da conquista mudou radicalmente o perfil do conquistador.

Até 1492 as histórias dos povos eram regionais. Nenhum povo trazia a experiência da mundialidade da História. Quando muito, conhecia expansões mediterrâneas e asiáticas, que, no entanto, não tornava gregos, romanos ou mongóis centro de um orbe inculturado pelo dominador. Ao quebrar, no século 15, as barreiras que lhe haviam sido impostas pelo domínio muçulmano desde 711, a Península Ibérica impregna a Europa da consciência de ser o centro do espaço mundial. Os portugueses lançam a ponte entre o continente europeu e a Ásia oriental, enquanto os espanhóis estendem o arco que se abre da América às Filipinas.

A centralidade europeia, instaurada em 1492, induz o conquistador a confundir sua particularidade com a universalidade. Já não se admitem fenômenos como o deslocamento do polo cultural da dominação grega, que se transfere do centro para a periferia - da Academia de Atenas para a Biblioteca de Alexandria - ou a pluralidade religiosa do império romano, tolerante com as crenças judaicas. Agora, o conquistador se julga modelo e modelador. "Europeu" torna-se sinônimo de humano e civilizado, enquanto os habitantes da periferia, por não residirem no centro, são tidos como seres inferiores, cuja salvação depende da submissão. Suprime-se, assim, a diversidade planetária. A partir de então, colonialismo e neocolonialismo fortalecem vínculos de dependência que nos fazem habitantes de um mundo que se define Terceiro em relação ao Primeiro...

Passados 500 anos, os povos da "periferia" americana tomam consciência de seu atávico mimetismo, ao mesmo tempo que empreendem a luta pelo resgate de sua identidade. Indígenas e negros descobrem-se, agora,  com os próprios olhos, talvez estranhando esses brancos que afagam gatos e cães e pensam que têm um corpo que lhes oprime a alma, sem consciência de que são um corpo pleno de espírito. E, do outro lado do oceano, o "centro" se dá conta de que não é homogêneo. A liberdade traz à tona a diversidade de raças e etnias, religiões e nações, que exigem espaço e reconhecimento próprios. À porta de sua integração a Europa se desmembra e seus países se desintegram. E se pergunta se foi mesmo um genovês instruído em Portugal e financiado pela Espanha quem "descobriu" a América, convencido de que chegara às costas da Ásia...


Texto de Frei Betto retirado do livro Cotidiano & Mistério, Editora Olho D'água, 2ª Edição, São Paulo, 2003.

terça-feira, 6 de outubro de 2020

Ícaro

Que nem um Ícaro
Aquele herói que se iludiu
Com o sol e a quem o sol sorriu
E então caiu no mar

Pois foi dos píncaros
Que aquele anjo do céu surgiu
Aquele anjo, aquele ardil
Que eu não quis evitar

Vertical, direto, certo e reto
Na minha direção
Seta absoluta que caiu do céu
No meu coração

Música de Fred Martins e Marcelo Diniz gravada por Carlos Navas em seu CD Tanto Silêncio - Acústico, lançado em 2003.

Si mis manos pudieran deshojar

Yo pronuncio tu nombre
en las noches oscuras,
cuando vienen los astros
a beber en la luna
y duermen los ramajes
de las frondas ocultas.
Y yo me siento hueco
de pasión y de música.
Loco reloj que canta
muertas horas antiguas.

Yo pronuncio tu nombre,
en esta noche oscura,
y tu nombre me suena
más lejano que nunca.
Más lejano que todas las estrellas
y más doliente que la mansa lluvia.

?Te querré como entonces
alguna vez? ?Qué culpa
tiene mi corazon?
Si la niebla se esfuma,
?qué otra pasión me espera?
?Será tranquila y pura?
!!Si mis dedos pudieran
deshojar a la luna!!

Poema de Garcia Lorca retirado do livro Obra Poética Completa, Editora Martins Fontes/Editora Universidade de Brasília, 1989.

domingo, 4 de outubro de 2020

O Juiz

 Foi em pleno julgamento do filho do Prefeito que o Juiz teve um ataque cardíaco e virou presunto.

Com o julgamento adiado, o Prefeito não se conteve:

- Justo agora o desgraçado teve que empacotar! Gastei uma dinheirama para garantir a inocência do meu filho e o sujeito desmonta daquele jeito!

E a pequena cidade estava em véspera de festa. A comemoração da emancipação era no fim-de-semana. Até mesmo um futebolzinho estava programado para o domingo. Era contra a cidade vizinha, um verdadeiro clássico! Mas agora o Prefeito estava preocupado, seu filho teria que ser libertado antes da comemoração, uma questão política. Um novo Juiz chegaria nos próximos dias e o Prefeito teria que usar do mesmo procedimento.

- Será que vai ser fácil comprar o homem? falou o Prefeito, passando a mão pelo farto bigode.

Dois dias antes da festa o Juiz apareceu. O Prefeito na estação rodoviária foi recebê-lo:

- O senhor é o Juiz?

- Sou sim, senhor. Estou um pouco cansado da viagem, mas estarei pronto para atuar.

- Ótimo, seu Juiz, ótimo!

No caminho até o hotel, o Prefeito explicou a situação ao Juiz e de cara foi logo oferecendo o dinheiro. O Juiz ficou sem entender, quis explicar, tentou dizer algo, mas o Prefeito não permitiu:

- O dobro, seu Juiz, o dobro!

Era muito dinheiro, o Juiz não resistiu:

- Pagamento imediato?

O Prefeito limpou os cofres da Prefeitura e conseguiu o dinheiro. O Juiz ainda teve a petulância de conferir:

- Está certo, seu Prefeito! Então está combinado. Pode ficar tranquilo.

Na manhã seguinte, o Juiz acordou cedinho. Tomou o primeiro ônibus e desapareceu do mapa.

Naquele mesmo dia chegava à cidade o Juiz de Direito. Na Prefeitura, encontrou-se com o Prefeito.

- Senhor Prefeito? Sou o Juiz.

- Como vai o senhor? Não o esperava tão cedo. O jogo de futebol é só no domingo!

- Futebol? Que futebol?

- Uai, o senhor não veio apitar o clássico de domingo?!


Crônica de Alexandre Azevedo retirado do livro Que Azar, Godofredo!, Atual Editora, Série Transas e Tramas, São Paulo, 13ª Edição, 1989.

sábado, 3 de outubro de 2020

Recorre à Meditação

 O homem que busca a realização pessoal, inevitavelmente é impelido à interiorização.

Seu pensamento deve manter firmeza no ideal que o fascina, e a fé, de que logrará o êxito, impulsiona-o a não se intimidar diante dos impedimentos que o assaltam na execução do programa ao qual se propõe.

A meditação torna-se-lhe o meio eficaz para disciplinar a vontade, exercitando a paciência com que vencerá cada dia as tendências inferiores nas quais se agrilhoa.

Meditar é uma necessidade imperiosa que se impõe antes de qualquer realização.

Com essa atitude, acalma-se a emoção e aclara-se o discernimento, harmonizando-se os sentimentos.

Não se torna indispensável que haja uma alienação, em fuga dos compromissos que lhe cumpre atender, em face das responsabilidades humanas e sociais. Mas, que reserve alguns espaços mentais e de tempo, a fim de lograr o cometimento.

Começa o teu treinamento, meditando diariamente num pensamento do Cristo, fixando-o pela repetição e aplicando-o na conduta através da ação.

Aumenta, a pouco e pouco, o tempo que lhe dediques, treinando o inquieto corcel mental e aquietando o corpo desacostumado.

Sensações e continuadas comichões que surgem, atende-as com calma, a mente ligada à ideia central, até conseguires superá-las.

A meditação deve ser atenta, mas não tensa, rígida.

Concentra-te, assentado comodamente, não porém, o suficiente para amolentar-te e  conduzir-te ao sono.

Envida esforços para vencer os desejos inferiores e as más inclinações.

Escolhe um lugar asseado, agradável, se possível, que se te faça habitual, enriquecendo-lhe a psicosfera com a qualidade superior dos teus anelos.

Reserva-te uma hora calma, em que estejas repousado.

Invade o desconhecido país da tua mente, a princípio reflexionando sem censurar, nem julgar, qual observador equilibrado diante de acontecimentos que não pode evitar.

Respira, calmamente, sentindo o ar que te abençoa a vida.

Procura a companhia de pessoas moralmente sadias e sábias, que te harmonizem.

Dias haverá mais difíceis para o exercício. O treinamento, entretanto, se responsabilizará pelos resultados eficazes.

Não lutes contra os pensamentos. Conquista-os com paciência.

Tão natural se te tornará a realização que diante de qualquer desafio ou problema, serás conduzido à ideia predominante em ti, portanto, a de tranquilidade, de discernimento.

Gandhi jejuava em paz, por vários dias, sem sofrer distúrbios mentais, porque se habituara à meditação, à qual se entregava nessas oportunidades.

E Jesus, durante os quarenta dias de jejum, manteve-se em ligação com o Pai, prenunciando o testemunho no Getsêmani, quando entregue, em meditação profunda, na qual orava, deixou-se arrastar pelas mãos da injustiça para o grande testemunho que viera oferecer à Humanidade.


Texto retirado do livro Momentos de Meditação; Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 3ª Edição, 2014.