sábado, 3 de fevereiro de 2024

Consegues Ir? (5)

 "Vinde a mim..." - Jesus. (MATEUS, 11:28)


O crente escuta o apelo do Mestre, anotando abençoadas consolações. O doutrinador repete-o para comunicar vibrações de conforto espiritual aos ouvintes.

Todos ouvem as palavras do Cristo, as quais insistem para que a mente inquieta e o coração atormentado lhe procurem o regaço refrigerante...

Contudo, se é fácil ouvir e repetir o "vinde a mim" do Senhor, quão difícil é "ir para Ele"!

Aqui, as palavras do Mestre se derramam por vitalizante bálsamo, entretanto, os laços da conveniência imediatista são demasiado fortes; além, assinala-se o convite divino, entre promessas de renovação para a jornada redentora, todavia, o cárcere do desânimo isola o espírito, através de grades resistentes; acolá, o chamamento do Alto ameniza as penas da alma desiludida, mas é quase impraticável a libertação dos impedimentos constituídos por pessoas e coisas, situações e interesses individuais, aparentemente inadiáveis.

Jesus, o nosso Salvador, estende-nos os braços amoráveis e compassivos. Com ele, a vida enriquecer-se-á de valores imperecíveis e à sombra dos seus ensinamentos celestes seguiremos, pelo trabalho santificante, na direção da Pátria Universal...

Todos os crentes registram-lhe o apelo consolador, mas raros se revelam suficientemente valorosos na fé para lhe buscarem a companhia.

Em suma, é muito doce escutar o "vinde a mim"...

Entretanto, para falar com verdade, já consegues ir?


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

O filólogo que virou sinônimo de dicionário

 Um dos maiores eruditos brasileiros do século XX, Antônio Houaiss defendia o nacionalismo, a democracia e uma política linguística para o Português


No início de 1985, o Brasil vivia os primeiros tempos do retorno da democracia. A enciclopédia Retratos do Brasil lançou, então, um volume com 86 depoimentos sobre o significado dos anos da ditadura e o que se poderia esperar para o futuro. Em sua maioria, os convidados eram políticos, como  Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso. Mas, entre eles, figurava um estudioso de questões linguísticas, um filólogo de discurso afiado. Sem eufemismos, Antônio Houaiss afirmava que "o balanço dos 21 anos de autoritarismo militar" era "não apenas melancólico, senão que também catastrófico".

Para o futuro, ele sugeria "mudanças imediatas na estrutura da posse da terra, na estrutura da produção agrícola e na estrutura da nossa dívida externa e interna". Em particular, salientava que "do ponto de vista da educação, sem uma transformação das bases do primeiro ciclo, fazendo-o universal, gratuito e compulsório, por um mínimo de sete anos, acompanhado de atendimento alimentar, de vestuário e de habitação, tudo o que se quiser realizar, em termos de formação de gerações futuras, será tão elitista quanto tem sido a nosso História".

Nesses poucos enunciados, aparecem sintetizados alguns aspectos essenciais do pensamento e da ação pública de um dos mais eruditos brasileiros do século XX: o nacionalismo e a busca do desenvolvimento social, que Antônio Houaiss manteve atuantes quando tratou de temas relativos à Língua Portuguesa.


Múltiplos saberes e ofícios

A erudição de Houaiss era impressionante. Por vezes, desconcertante. Sem nenhum favor, podemos dizer que foi professor, linguista e filólogo, teórico da literatura e crítico literário, tradutor, bibliógrafo (e bibliófilo), incansável organizador de enciclopédias e dicionários, diplomata, homem político comprometido com o socialismo, conhecedor de culinária - enfim, um humanista na acepção clássica do termo.

E não foi um homem apenas de saberes, mas também de práticas. Como diplomata, ocupou cargos na República Dominicana e na Grécia, bem como junto à Organização das Nações Unidas, a ONU, tanto em Genebra quanto em New York. Como político, ajudou a fundar o Partido Socialista Brasileiro, do qual é presidente de honra, chegando a ministro da Cultura, em 1993, durante o governo de Itamar Franco. Suas ideias políticas valeram-lhe, inclusive, a aposentadoria compulsória do Itamarati e a cassação de seus direitos políticos após o golpe de 1964.

Como estudioso da linguagem, publicou inúmeras obras filológicas e de crítica literária. Além disso, traduziu a obra Ulisses, do escritor irlandês James Joyce, um dos marcos da literatura modernista do século XX. A tradução envolve imenso conhecimento das línguas inglesa e portuguesa, dada a necessidade de verter os incontáveis jogos de linguagem do original.

Foi também enciclopedista, tendo coordenado a Delta Larousse, a Mirador e a Barsa, além de ser um dos coautores da enciclopédia Koogan-Houaiss. Em 1973, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, instituição que viria a presidir em 1995.

Seu maior projeto, talvez seu maior sonho, foi a criação do mais completo dicionário da Língua Portuguesa, que leva o seu nome e o qual, infelizmente, não viu publicado. Com mais de 228 mil verbetes, o dicionário Houaiss saiu em 2001, mas seu idealizador havia falecido em 1999, na mesma Rio de Janeiro que o vira nascer em 1915.


TODAS AS LÍNGUAS PODEM TUDO

Embora amplos e variados, podemos pensar que os escritos linguísticos de Antônio Houaiss tiveram motivações, sobretudo, políticas. Não no sentido partidário ou propriamente ideológico. Falamos, aqui, da política linguística.

Houaiss defendia a ideia de que, do ponto de vista estrutural, todas as línguas se equivalem. Ele dizia: "As tentativas de estudar as línguas dos homens sob a luz de uma especificidade funcional (...) revelam, na verdade, apenas certo tipo de dependência dessas línguas para com o momento cultural do povo que a fala ou a escreve". Assim, não é correto dizer que haja línguas estruturalmente mais aptas para a expressão, por exemplo, da filosofia ou das ciências ou da política ou de qualquer outro universo de conteúdo.

Potencialmente, portanto, todas as línguas podem expressar todos os conteúdos. Entretanto, esse potencial pode ou não ser historicamente realizado. Por exemplo, idiomas como o japonês, o árabe, o chinês e o hindi, até o século XIX, não eram suporte para o pensamento científico moderno. O desenvolvimento do Japão, dos países árabes, da China e da Índia fez com que esse pensamento passasse a ser expresso nesses idiomas, eventualmente até como pensamento de ponta.

Mas esse fenômeno, é claro, pode não ocorrer - provavelmente não ocorrerá - para todas as línguas do mundo. Para Houaiss, "há, assim, um milagre linguageiro humano positivo: a isonomia sistêmica de todas as línguas; e há, em contrapartida, um milagre linguageiro negativo: só algumas foram eleitas".

É com essa abordagem - talvez excessivamente direta, mas nem por isso menos realista - que Houaiss pensou políticas linguísticas para a Língua Portuguesa, a principal delas, a unificação ortográfica dos países de Língua Portuguesa, que ele defendeu como um dos instrumentos imprescindíveis para o fortalecimento mundial do português.


Texto sem autoria identificada retirado da revista Discutindo Língua Portuguesa, Ano 1, número 2, Escala Educacional, São Paulo.

quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Os embalos de uma dança muito brasileira

 Por volta de 1910, começaram a aparecer discos na Europa com a palavra 'mattschiche' acompanhando os títulos das músicas, para definir seu ritmo.


A palavra, cuja grafia costumava variar um pouco (mattcheche, mattchichi, etc), tentava traduzir foneticamente o som de maxixe, que batizava um determinado tipo de música e dança que começou a existir aqui pelo menos desde 1880.

Como gênero musical, o maxixe nasceu quando músicos populares passaram a tocar polca, que era de origem europeia e sempre executada no piano (e restrita aos salões imperiais da alta sociedade carioca), com outros instrumentos, como o violão, a viola e a flauta. Aquela nova forma de tocar polca logo se misturou a outros gêneros, como o lundu e o chorinho, a  habanera cubana e o tango argentino, presentes no repertório de grupos que animavam bailes - e tal tipo de mistura viria a ser dançada com requebrados, movimentos exagerados e sensuais, semelhantes aos do batuque, do cateretê e da embolada, que chegaram com os escravos e eram consideradas "danças pecaminosas" pelos europeus porque "envolviam o contato de umbigos".

A origem do nome (na época, grafado com 'ch') é obscura: talvez tenha sido batizado machiche porque essa palavra designava coisas de baixo valor, atestando sua gênese entre as pessoas pobres daquele quase fim de século; já Heitor Villa-Lobos (1887-1959) divulgou uma versão segundo a qual a dança foi inventada na sociedade Estudantes de Heidelberg por alguém assim apelidado. Em seu livro Maxixe - A Dança Excomungada, de 1974, Jota Efegê desmente essa versão. Segundo esse autor, a primeira vez que o nome apareceu escrito com 'x' foi numa quadrinha, em fevereiro de 1883, no Jornal do Comércio, numa publicidade do Club dos Democráticos, anunciando um baile de carnaval:

Cessa tudo quanto a musa antiga canta

Que do castelo este brado se alevanta

Caia tudo no maxixe, na folgança

Que com isso dareis gosto a Sancho Pança


O MAXIXE NO TEATRO DE REVISTA

Até então, o maxixe era somente uma dança que rapidamente se tornou sensação, imitada nos salões de baile com seus passos de nomes nada sofisticados: carrapeta, balão, parafuso, corta-capim, saca-rolha. A criação da música além da dança se deu seguindo "a forma malandra e exagerada de dançar a polca-tango que acabaria por fazer surgir o maxixe como gênero musical autônomo", nas palavras do crítico e historiador José Ramos Tinhorão, que cita o maestro César Guerra-Peixe (1914-1993) e seu artigo 'Variações Sobre o Maxixe' para descrever como aconteceu o processo: "a melodia contrapontada pela baixaria (a exageração dos baixos mesmo nos instrumentos de tessitura grave das bandas), passagens melódicas à guisa de contraponto ou variações e, em alguns casos, baixaria tomando importância capital".

Somente depois de a dança ter se caracterizado plenamente é que começou o registro de músicas com o nome maxixe - as primeiras partituras com tal designação surgiram em 1902/1903. Vale lembrar que o grande compositor e pianista Ernesto Nazareth (1863-1934) recusava o termo para designar suas obras, preferindo o nome 'tango brasileiro' (ou 'tanguinho') - quem sabe para não vincular sua música a uma origem marginal.

O teatro musicado logo se apropriou da nova mania, e as peças passaram a apresentar, quase todas, quadros em que o maxixe era tocado e dançado, como na revista República, de Arthur Azevedo (1885-1908), que popularizou 'As Laranjas da Sabina', o primeiro sucesso do maxixe; 'Maxixe Aristocrático', de 1904, de José Nunes, ficou famoso apresentado pela dupla Papa Delgado e Marzullo na revista Cá e Lá. A primeira composição gravada como maxixe foi 'Sempre Contigo' lançada pela Banda da Casa Edson, sem data (talvez 1902) e de autor desconhecido.


PARA EXPORTAÇÃO

Em 1909, o dançarino e compositor Antônio Lopes de Amorim, de nome artístico Duque, viajou para a Europa e se fixou em Paris. Pouco depois, o tango argentino, como dança, tornou-se a maior sensação nos salões da Europa, e Amorim, já conhecido como Monsieur Duque, resolveu mostrar le tango brésilien, o maxixe, em1912. Alguns editores começaram a promover o maxixe como uma forma renovada de tango; orquestras e bandas passaram a gravar maxixe para os fonógrafos - assim, de repente, o gênero se tornou uma febre. Da Europa, o maxixe seguiu para os EUA, onde foi muito bem acolhido. Em 1914, o dançarino americano Maurice Movet (1888-1927) escreveu: "O maxixe brasileiro pode ser dançado com qualquer acompanhamento musical de passo duplo, enquanto que o tango somente pode ser dançado com sua própria música. O maxixe é peculiarmente adaptado ao temperamento americano".

Os passos do maxixe a partir de sua exportação foram estilizados e coreografados. Os manuais de dança, que ensinavam as danças sociais, passaram a incluir o estilo. Vernon e Irene Castle, o casal de dançarinos mais famosos da época, adotou o maxixe, como atesta um filme mudo de 1915, que mostra os Castle exibindo a dança - o mesmo ocorre na cinebiografia The Story of Vernon and Irene Castle, de 1939, com Fred Astaire e Ginger Rogers representando o casal dançando 'Dengozo', de Ernesto Nazareth.

Passada a mania do maxixe, o gênero ainda foi dançado nos EUA e na Europa até o começo dos anos 1920. Houve várias tentativas frustradas de "substituir" o maxixe pelo samba, inclusive pelo próprio Monsieur Duque. Mas o samba é o único dos gêneros musicais hegemônicos das Américas que jamais ultrapassou fronteiras, nem como dança.

No Brasil, o maxixe resistiu com sucesso até o final dos anos 1920, tendo entre seus cultores principais os compositores Irineu de Almeida, Sebastião Cyrino, Sinhô, Romeu Silva, Pixinguinha, Pedro de Sá Pereira e J. Bicudo. A partir de então, estava destinado a reaparecer somente em filmes e telenovelas 'de época'.


Texto de René Ferri retirado da revista Conhecimento Prático Língua Portuguesa, número 16 Escala Educacional, São Paulo, 2010.

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

O Irresistível Baião

 Uma música lançada em 1946 possuía um ritmo binário, buliçoso, contagiante, quase impossível de resistir - no título, o nome do ritmo "baião", e a letra, muito simples, prometia ensinar a dançar 'quem quiser aprender'.


O baião realmente revolucionou - foi a primeira grande sacudida que a música brasileira urbana tomou da música regional. O lançamento do baião foi cuidadosamente urdido pelo compositor e radialista Humberto Cavalcanti Teixeira (1915-1979), um advogado cearense que se dedicou inteiramente à música, mesmo no seu mandato político posterior, quando foi eleito deputado federal. São de Teixeira as leis originais brasileiras de proteção ao direito autoral na música - e é dele também a autoria da chamada 'Lei Humberto Teixeira', que financiou excursões de artistas brasileiros ao redor do mundo em missões de divulgação de nossa cultura.


LUIZ GONZAGA

Modesto, Teixeira creditou o sucesso do lançamento do baião ao seu parceiro Luiz Gonzaga (1912-1989), então um cantor/acordeonista anônimo, pernambucano de Exu, que já vivia no Rio de Janeiro há alguns anos, tocando em shows de rádio e em casas noturnas. Num lampejo, Gonzaga decidiu incluir no seu repertório variado de polcas, serestas, valsas, sambas e foxes algumas "coisinhas" da música sertaneja nordestina. O encontro de Teixeira e Gonzaga, no Rio de Janeiro, resultou numa das parcerias mais profícuas da história da música popular brasileira.

O sucesso do baião foi imediato e avassalador. A fórmula simplificada de tocá-lo, com três instrumentos - acordeão (sanfona), zabumba e triângulo - isto, sim, uma invenção de Luiz Gonzaga, favoreceu o aparecimento de centenas de 'trios nordestinos' em todo o País, grupos musicais que tocavam baião e similares, como coco, embolada, xote, toada. A lembrar que, na época, a cultura do Nordeste e a sua música, inclusive, eram completamente desconhecidas no eixo Rio-São Paulo, o que reforçava a aceitação do baião pelo viés "exótico". Desconhecíamos completamente o baião, que o folclorista Luis Câmara Cascudo (1898-1986) associa aos termos 'baiano' e 'rojão' - sendo 'baiano', no caso, uma dança popular nordestina (derivada do verbo 'baiar', forma popular de bailar) e o segundo o pequeno trecho musical executado pelas violas no intervalo dos desafios da cantoria. O baião, que todo o resto do Brasil começaria a conhecer apenas em 1946, já existia no Nordeste desde o século anterior.


COQUELUCHE NACIONAL

Ninguém ficou indiferente ao baião, pois os artistas de São Paulo e do Rio de renome aderiram em massa à "coqueluche nacional", conforme foi chamado pela influente revista carioca Radar, em 1949. Entre os mais célebres, Carmen Miranda, Isaura Garcia, Marlene, Emilinha Borba, Dircinha Batista, Ademilde Fonseca, Stelinha Egg, Ivon Curi e Dalva de Oliveira gravaram baião. A partir de 1950, Carmélia Alves foi aclamada 'Rainha do Baião'; a revelação Claudete Soares passou a se apresentar como 'A Princesinha do Baião'. A verdade é que, até pelos menos 1957, a música brasileira e tudo mais que se referia a ela giraram principalmente em torno do baião: os sucesso radiofônicos, as edições em partitura, a produção industrial de discos, o rendimento das editoras e das gravadoras de discos.

O sopro de modernidade da bossa nova e da 'Era Juscelino' colocaram o baião, seus intérpretes e compositores num ostracismo tal que o próprio Luiz Gonzaga, cujo epíteto era 'O Rei do Baião', desapareceu por completo, só vindo ressurgir em meados dos anos 1970, alçado por uma nova geração de músicos e compositores que o veneravam como mestre.


RECONHECIMENTO

Graças a cantores como Gal Costa, Gilberto Gil e Alceu Valença, Luiz Gonzaga ganhou um merecido reconhecimento do público brasileiro nascido após o baião mergulhar no esquecimento. Todos passamos a ligar o nome de Gonzaga ao clássico 'Asa Branca', mas o parceiro Humberto Teixeira teria de esperar mais um bom tempo pelo reconhecimento. Ele morreria antes de sua memória começar a ser recuperada, em 2006 com os livros 'O Cancioneiro Humberto Teixeira', em 2008 com o cine-documentário 'O Homem Que Engarrafava Nuvens' - projetos com efetiva participação de Denise Dumont, a atriz, filha única de Teixeira, nas pesquisas e na produção.


BAIÃO INTERNACIONAL

Já no começo dos anos 1950, o baião se internacionalizou. 'Delicado', de Waldir Azevedo, recebeu diversas regravações nos EUA e Europa; não faltaram imitações: no filme italiano 'Arroz Amargo' (1951), Silvana Mangano imita Carmélia Alves em 'O Baião de Ana'; na verdade uma conga cubana, com um "baião" no título, para aproveitar a onda.

Em New York, por volta de 1956, Ahmeth Ertegun queria revitalizar sua gravadora Atlantic, especializada em jazz, existente desde 1948; chamou seu irmão Neshui, que transformou a Atlantic na Meca da moderna música black urbana - segundo uma história boa demais para não ser verdade, os Ertegun se reuniram com seu staff de produtores e lhes deram uma pilha de discos brasileiros de baião, pedindo que tirassem de lá algo que desse personalidade ao som da nova Atlantic. E, então, começaram a ser editados os discos de Ruth Brown, LaVern Baker, Drifters, Coasters, Ray Charles, Ben E. King, etc, produzidos por Ahmet Ertegun, Jerry Leiber & Mike Stoller, Phil Spector, Jerry Wexler, com o inequívoco apelo do ritmo do baião bem misturado ao rhythm & blues. Em Los Angeles, um compositor que se tornaria um dos mais importantes da história, Burt Bacharach, temperava de baião seu som pop, uma fórmula que ele iria seguir, com enorme sucesso, nas décadas seguintes. O som da Atlantic e de Bacharach seria uma influência decisiva em tod rock e pop produzido no mundo do princípio dos anos 1960 em diante.

Lamentavelmente, os mestres do baião não souberam aproveitar a viagem do ritmo pelo mundo. Sequer tiveram ânimo para reclamar a autoria - erros que os mentores e feitores da bossa nova não quiseram repetir.


Texto de René Ferri retirado da revista Conhecimento Prático Língua Portuguesa, número 17, Escala Educacional, São Paulo, 2008.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

A origem dos nomes dos meses e do ano bissexto

 As mudanças nos calendários ao longo da história


No calendário de Rômulo, o primeiro rei de Roma e seu fundador, o ano começava em março e tinha dez meses, cujos nomes primitivos eram Martius (em homenagem ao deus da guerra, Marte), Aprilis (nome relacionado a Apros ou Afros, designativo de Afrodite, nome grego da deusa Vênus, a quem abril* era dedicado); Majus (em homenagem à deusa Maia, uma das Atlântidas, amada de Júpiter e mãe de Mercúrio), Junius (em homenagem à deusa Juno, equivalente à deusa Hera dos gregos), Quintilis, Sextilis, September, October, November e December. A relação de aprilis com aperire (abrir) surgiu posteriormente, na vigência do calendário de Numa Pompílio, por ser abril o mês da primavera, em que "todas as coisas se abrem".

Numa Pompílio (circa 715-circa 672 a.C.), sucessor de Rômulo, querendo igualar a contagem do tempo romano à dos gregos e fenícios, reformou o calendário de Rômulo, instituindo os meses Januarius (em homenagem ao deus Janus, protetor dos lares) e Februarius, do latim februus, adjetivo de primeira classe que significa "o que purifica, purificador". No mês de fevereiro, realizavam-se cerimônias de purificação, como sacrifícios expiatórios e os ritos de purificação chamados "lupercálias"**. As lupercálias eram festas em homenagem a Pã, realizadas no dia 15 de fevereiro, em que jovens saíam nus da gruta Lupercália flagelando os transeuntes com um cinto de pele de cabra chamado também lupercal***, considerado capaz de eliminar a esterilidade e provocar partos felizes.


HOMENAGENS

Os meses Quintilis e Sextilis foram rebatizados com os nome de julho e agosto, em homenagem aos dois primeiros dos doze césares: Julius (Júlio César) e Augustus. Para que julho e agosto tivessem o mesmo número de dias, subtraíram-se dois dias do mês de fevereiro. Repare que as festas de junho são juninas (de Juno), mas as festas de julho são julianas (de Júlio), e não "julhinas" ou "julinas", nomes que não existem.

O calendário romano tinha três datas com nome próprio: Kalendae ou Calendas (o primeiro dia de cada mês), Nonae ou Nonas (o dia 5 de todos os meses, exceto março, maio julho e outubro, em que Nonae designava o dia 7) e Idus ou Idos (o dia 15 para aqueles quatro meses e o dia 13 para os outros meses). Os outros dias de cada mês eram citados a partir daqueles três nome****.

Em outras palavras, em lugar de numerar os dias em sequência crescente, como fazemos, os romanos preferiam numerar os dias usando as palavras Calendas, Nonas e Idos como pontos de referência. Para se ter uma ideia, a expressão "desde 3 de junho até 31 de agosto" se dizia em latim como "terceiro dia antes das nonas de junho até o primeiro das calendas de setembro" ("ante diem III Nonas Junias usque ad pridie Kalendas Septembres").

O dia 24 de fevereiro era chamado "o sexto das calendas de março". No nosso calendário, o gregoriano, no ano bissexto, temos um dia a mais, acrescentado ao último dia do mês de fevereiro. Mas, no calendário juliano, o dia a mais era acrescentado ao dia 24. Ou melhor: havia dois dias de número 24. Portanto, havia duas vezes o sextus dies (bis sextus) antes das calendas de março. Desses dois sextos é que se originou a expressão "ano bissexto".

Nas modificações efetuadas por Numa Pompílio no calendário de Rômulo, o ano civil tinha um erro de dez dias em relação ao ano solar. Ele tentou corrigir o erro acrescentando um mês de dez dias entre 23 e 24 de fevereiro. Mas essa solução trouxe tantos problemas que, em 44 a.C., Júlio César resolveu modificar novamente o calendário, dando ao ano a duração de 12 meses, ou 365 dias, de acordo com o calendário egípcio. Foi um astrônomo de Alexandria, chamado Sosígenes, que descobriu que o ano civil tinha seis horas a menos que o ano solar. Assim, Roma instituiu que a cada quatro anos seria acrescentado um dia em fevereiro. Como vimos, o dia 24 de fevereiro era chamado "sexto das calendas". Com o dia adicional (acrescentado após o dia 24, com a mesma numeração), houve dois sextos (=bissexto) das calendas.


Texto de José Augusto Carvalho retirado da revista Conhecimento Prático Língua Portuguesa, número 17, Escala Educacional, São Paulo, 2008.


* abril - Abril vem de aprilis, nome de um dos espíritos que seguiam o carro de Marte, deus da guerra, que deu nome ao mês de março. Assim, aprilis não se relaciona com abrir (latim: aperire), mas com o grego Apros ou Afros, designativo de Afrodite, nome grego da deusa Vênus, a quem abril era dedicado, ou em sânscrito áparah, que significa "posterior" (aparentado com o gótico afar ou aftra, que significa "depois"), pois abril era o segundo mês do ano, no calendário civil de Rômulo (daí os nomes setembro, outubro, novembro e dezembro para os meses sete, oito, nove e dez, respectivamente.

** lupercálias -  O nome "Luperca" designa a loba que amamentou os gêmeos Rômulo e Remo na gruta chamada Lupercal. Na realidade, "lupus", lobo, em latim, primitivamente, não tinha feminina. A loba-animal era "lupus femina". "Lupa" designava a cortesã, daí o nome "lupanar" para designar o prostíbulo. A "lupa" que amamentou os gêmeos era, na verdade, uma cortesã chamada Aca Laurentia ou Laurentina. Os sacerdotes romanos é que "purificaram" o origem de Roma, atribuindo à loba-animal a amamentação dos gêmeos que fundaram a cidade.

*** Lupercal - Lupercus se teria originado da justaposição de lupus (lobo) com hircus (bode), mas como era outro nome de Pã, deus dos pastores e dos rebanhos, presume-se que lupercus signifique também "o que afasta o lobo".

**** a partir daqueles três nomes - Por exemplo: o dia 3 de abril era chamado "o terceiro dia antes das nonas de abril" ("ante diem tertium nonas Apriles"); o dia 9 é o "quinto antes dos idos de abril" (os idos de abril caem no dia 13); o dia 26 de abril era o "sexto dia das calendas de maio".


O MÊS DA MENTIRA

A reforma que Carlos IX empreendeu na França em 1564 apenas obrigava os franceses a seguir o calendário juliano (com o ano começando a primeiro de janeiro). Até então, e desde Carlos Magno, era o calendário de Rômulo (com o ano começando a primeiro de março) que vigorava na França. O papa Gregório XIII, em 1582, realizou uma nova reforma, ao verificar que o calendário juliano havia incorrido num erro anual de 11 minutos e 8 segundos. Desde o ano 44 A.C. até 1582, por causa desse erro, havia uma diferença de dez dias. Para compensar esses 10 dias e regularizar a contagem do tempo, o papa determinou que, ao dia 5 de outubro de 1582, deveria seguir-se o dia 15 de outubro, e não o dia 6. A reforma gregoriana causou confusão com as datas e as comemorações tradicionais - além de bagunçar a astrologia. O dia 21 de março corresponderia ao fim do signo de peixes. A confusão de 10 dias fez crer que o dia primeiro de abril era ainda de peixes, isto é, o signo pularia dez dias para terminar no dia primeiro de abril. Em francês, a expressão poissons d'avril, isto é, peixes de abril passou a designar as mentiras de primeiro de abril, porque até o nome abril, por engano, teria passado a ser considerado como o primeiro dia do ano, a abrir o ano. Da França, o dia dos enganos se estendeu ao resto do Ocidente.

domingo, 28 de janeiro de 2024

A gramática e o ensino de Língua Portuguesa

 ENSINAR LÍNGUA MATERNA NÃO DEVE 

SER SINÔNIMO PERFEITO DE ENSINAR GRAMÁTICA


A gramática é um instrumento eficaz para o ensino da Língua Portuguesa? Essa é uma pergunta que existe desde o surgimento dos primeiros materiais didáticos produzidos para a disciplina e que depois inspirou as reflexões arrebatadoras da Linguística. O termo gramática remete a uma palavra grega adaptada pelo latim que significa, inicialmente, a arte de escrever. Tal denominação parece ter se incorporado de tal maneira que até hoje temos um manual que prioriza a linguagem escrita. Sua função principal é servir ao registro e ao estudo de uma Língua, representados, principalmente, pelas vertentes das Gramáticas Descritiva e Normativa.


OS TIPOS DE GRAMÁTICA

A Gramática Descritiva se presta a registrar uma Língua em sua totalidade, considerando as variáveis recorrentes que fazem a regularidade da estrutura linguística. Tem como função, também, evitar o desconhecimento, por falta de documentação, de Línguas antigas, como no caso da gramática escrita por Panini para o Sânscrito, considerada a primeira gramática produzida pela civilização. É relativamente fácil registrar um idioma que já não é mais utilizado, pois este não sofre mais alterações. Mas documentar uma Língua que ainda é utilizada por pessoas que estão sujeitas às diferenças sociais, geográficas e econômicas é uma tarefa delicada.

A gramática utilizada nas escolas é denominada Normativa, ou seja, estabelece, como o próprio nome já diz, regras, leis para uma comunicação aceitável naquela Língua. Menos científico e mais pedagógico, esse tipo de manual se restringe a prescrever como se deve falar e escrever em nosso idioma. Encerrar em um manual todas as possibilidades comunicativas dos falantes de uma Língua é uma tarefa bastante complicada. Só o fato de registrar regras já se opõe a uma característica peculiar das Línguas: a mudança. Não há Língua imutável, ela é de domínio de seus falantes, de seu contexto social.


AS REFLEXÕES DA LINGUÍSTICA

A Linguística trouxe reflexões mais aprofundadas sobre o estudo das Línguas. Contrariando a crença gramatical da imutabilidade linguística, referenciou a importância do estudo diacrônico, ou seja, da evolução da linguagem verbal no decorrer do tempo. Contribuições ainda mais inovadoras foram apresentadas pela Sociolinguística, pela linguística textual, pelo funcionalismo, entre outros que, de certa forma, humanizaram e ampliaram os estudos dos fatos da Língua.

A tradição dita que as escolas devem ensinar obrigatoriamente a norma culta, a Língua padrão. Fugir a isso poderia prejudicar a imagem da instituição e, consequentemente, afastar seus clientes. O aluno chega à escola já dotado de um conhecimento linguístico, fruto de sua exposição às realizações linguísticas concretas de falantes de sua Língua materna. A escola, entretanto, descarta esse conhecimento prévio e tenta, de certa forma, reparar a Língua do aluno ingressante.

O ensino de Língua Portuguesa (e o de qualquer outra Língua) deve transpor as limitações fincadas pelo tradicionalismo, e o professor deve mediar a aprendizagem explorando o imensurável campo da comunicação verbal.


LÍNGUA X GRAMÁTICA

Ensinar Língua materna não deve ser sinônimo perfeito de ensinar gramática, há um campo muito vasto a ser explorado em nosso vernáculo. A Gramática Normativa tem o seu valor positivo, contanto que não seja tomada como verdade absoluta e incontestável. Por apresentar registros amplos sobre a Língua, pode servir de base para estudar fenômenos não citados oficialmente, mas que estão em pleno uso. É o caso do hipertexto, atualmente tão presente na sociedade, principalmente depois do advento globalizante da internet e que permite um uso não-linear e multissemiótico da linguagem.

O professor deve estimular uma necessidade natural de investigação linguística, lecionando com entusiasmo e discernimento para aceitar e respeitar as diversidades linguísticas de seus alunos, que se tornarão sujeitos mais conscientes de sua Língua materna e de maior competência para absorver mais plenamente o que é expresso em nosso vernáculo.


Texto de Cláudio Cavalcanti retirado da revista Conhecimento Prático Língua Portuguesa, número 18, Escala Educacional, São Paulo, 2010.

sábado, 27 de janeiro de 2024

Cada Qual (4)

 "Ora, há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo." - Paulo. (I  CORÍNTIOS, 12:4)


Em todos os lugares e posições, cada qual pode revelar qualidades divinas para a edificação de quantos com ele convivem.

Aprender e ensinar constituem tarefas de cada hora, para que colaboremos no engrandecimento do tesouro comum de sabedoria e de amor.

Quem administra, mais frequentemente pode expressar a justiça e a magnanimidade.

Quem obedece, dispõe de recursos mais amplos para demonstrar o dever bem cumprido.

O rico, mais que os outros, pode multiplicar o trabalho e dividir as bênçãos.

O pobre, com mais largueza, pode amealhar a fortuna da esperança e da dignidade.

O forte, mais facilmente, pode ser generoso, a todo instante.

O fraco, sem maiores embaraços, pode mostrar-se humilde, em quaisquer ocasiões.

O sábio, com dilatados cabedais, pode ajudar a todos, renovando o pensamento geral para o bem.

O aprendiz, com oportunidades multiplicadas, pode distribuir sempre a riqueza da boa-vontade.

O são, comumente, pode projetar a caridade em todas as direções.

O doente, com mais segurança, pode plasmar as lições da paciência no ânimo geral.

Os dons diferem, a inteligência se caracteriza por diversos graus, o merecimento apresenta valores múltiplos, a capacidade é fruto do esforço de cada um, mas o Espírito Divino que sustenta as criaturas é substancialmente o mesmo.

Todos somos suscetíveis de realizar muito, na esfera de trabalho em que nos encontramos.

Repara a posição em que te situas e atende aos imperativos do Infinito Bem. Coloca a Vontade Divina acima de teus desejos, e a Vontade Divina te aproveitará.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

A linguagem jurídica como escudo

 Os exageros do mundo do Direito são exemplos de quando a linguagem é usada para prejudicar o entendimento.


É notório tanto que o uso do jargão é uma necessidade insuperável dos profissionais de certas áreas quanto que toda a profissão tem seus próprios termos técnicos. Quem atua em determinado campo do conhecimento lida com um tipo de linguagem a ele pertinente e que pretende "encurtar caminho", dizer e esclarecer com um termo aquilo para o qual, sem o termo técnico, necessitaríamos de uma frase inteira, v.g. (v.g. é a abreviatura do latim verbi gratia, que significa "por exemplo".)

Contudo, há excessos, sempre. No caso do ramo jurídico, em particular, o abuso é evidente. Não raro os chamados "operadores do Direito" (advogados, juízes, procuradores) fazem uso de uma terminologia que, embora não seja técnica - virtualmente, muitos desses termos poderiam ser aplicados a qualquer ramo do conhecimento - é muito singular, muito própria e muito estranha para quem não é "do ramo". Não se cuida do uso do jargão; trata-se de uma utilização que seria "normal" do idioma pátrio, porém, realizada de forma singular, muito particular, distanciada da linguagem usual. A questão é agravada quando se considera que poucas profissões precisam tanto da palavra escrita como aquelas ligadas ao Direito. Talvez por isso, a busca pela "originalidade", de parte, sobretudo, dos subscritores das petições, bem como o gosto pelos neologismos e por em desuso ainda encontrem lugar em nossos foros.


ALGUNS EXEMPLOS

Segundo exemplos retirados de petições diversas, constatamos, por exemplo, que o advogado disse que o seu adversário X, na ação de usucapião, não foi "negligente"; foi "indiligente". Ainda que o significado do termo seja de fácil compreensão, ele não é de uso regular - e sequer consta do dicionário Aurélio. Verificamos, noutro caso, que a sentença do juiz não foi "impugnada" pela parte; em vez disso, foi pedida a "modificação da sentença objurgada". Mais uma vez, o meio mais difícil para se expressar foi eleito: vale notar que objurgado é palavra de raríssimo uso e, mais uma vez, não consta do dicionário Aurélio.

Do mesmo modo, constou de outra petição a descrição de um advogado inconformado a respeito do comportamento de determinada pessoa: "como sói acontecer, Y não atendeu aos termos do decisório vergastado". Traduzindo: como de hábito, Y não cumpriu a decisão judicial. A vergasta (vara fina, de açoitar) deve ter sido bem utilizada...

É certo que nosso idioma oferta incontáveis variantes terminológicas. A riqueza e a variedade de sinônimos são grandes e podem ser usadas seja como um fator de estipulação de um estilo pessoal - como marca própria, subjetiva - seja para evitar repetições aborrecidas - Z alegou..., alegou ainda que..., alegou, também. De outro lado, uma faceta dessa variedade é o uso para dificultar o acesso, deliberadamente, do que poderia ou haveria de ser fácil, talvez pelo sentimento geral de que a informação dificilmente compreendida é erudita ou valiosa. É o uso da palavra como escudo, como barreira, ao oposto do seu fito primeiro, que é exatamente derrubar barreiras interpessoais e promover a comunicação.


USO CONSCIENTE

Há mais. A insistência no uso do latim ainda remanesce, nas petições. Ainda que isso advenha do costume, também parece uma forma de alienar o leitor dito 'comum'. E isso ocorre mesmo que se considere que o Código de Processo Civil diz, em seu artigo 156, que "em todos os atos e termos do processo é obrigatório o uso do vernáculo".

Que o jargão se use quando necessário, parece-me perfeito, quando feito de modo oportuno. Mas o exagero ao lançar mão, de forma desnecessária, de termos incomuns, estranhos ou mesmo inexistentes caracteriza mais do que um estilo pessoal: oculta a intenção de alienar o outro, sobretudo o leitor "comum", menos acostumado com tais termos. Caracteriza o uso da palavra como barreira, detrás da qual se colocam os profissionais pelos mais diversos motivos. Não é um objetivo nobre, certamente. Utilizar-se da linguagem, no processo judicial, como escudo apenas contribui para disseminar uma noção popular segundo a qual, de regra, "não dá para entender nada" do que está numa petição jurídica. Se um processo judicial não é, por natureza, leitura popular, nem por isso deve-se contribuir para que seja antipopular.



Texto de Rogério Feijó (assessor do tribunal de justiça do Rio Grande do Sul) retirado da revista Conhecimento Prático Língua Portuguesa, número 19, Escala Educacional, São Paulo, 2009.

segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Uma reflexão sobre ser professor

A língua é um bem comum a todos e constitui-se uma atividade essencialmente social. Participamos em nosso dia a dia de diversas situações comunicativas, nas mais variadas práticas sociais: uma aula, uma conversa ao telefone, um bilhete ou um e-mail que escrevemos, um artigo que lemos no jornal e assim por diante. A linguagem está presente em quase tudo o que fazemos. A criança desde cedo já observa, antecipa, interpreta, interage com o mundo, dando significado aos seres, objetos e situações que a cercam. O professor deve, portanto,  considerar essa experiência do aluno e desenvolver atividades que contribuam para o aperfeiçoamento de sua forma de dar sentido às coisas do mundo. Um dos modos de enriquecer esse processo é utilizar textos dos mais variados gêneros, que divirtam, emocionem, envolvam o aluno.

Uma tarefa que cabe às escolas de Ensino Fundamental é a formação de leitores e escritores autônomos, ou seja, que consigam lidar com as exigências do texto escrito de maneira voluntária, consciente e intencional, seguindo definição dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs): "um projeto educacional comprometido com a democratização social e cultural atribui à escola a função e a responsabilidade de garantir a todos os seus alunos o acesso a saberes linguísticos necessários para o exercício da cidadania".

A leitura é um processo de construção de sentido; não é apenas decifrar palavras escritas, mas também ter competência para decifrar a realidade. O leitor competente é aquele que compreende o que lê, identifica elementos implícitos, relaciona o texto que lê a outros textos já lidos, sabe que vários sentidos podem ser atribuídos a um texto, justifica e valida a sua leitura a partir da localização de elementos discursivos. Este amadurecimento só pode constituir-se mediante uma prática constante de leitura de textos diversos.

A leitura sempre será um tema de preocupação para os educadores. Devemos sempre procurar novas formas de incentivo, principalmente no Ensino Fundamental, pois é nessa etapa da vida que os alunos desenvolverão a criatividade e o senso crítico. A função do professor é avaliar os procedimentos de busca de sentido que os alunos já utilizam e incorporá-los à prática de leitura em sala de aula, contribuindo para ampliar a competência deles nessa área.

A leitura está intimamente relacionada com a escrita. Por meio de diferentes atividades de leitura, o aluno vai adquirir o hábito de observar como os textos são construídos e isso influenciará na forma com que eles produzirão seus próprios textos. Assim como o ato de ler, escrever é um processo de construção e reconstrução de sentidos em relação ao que se vê, ao que se ouve, sente e pensa. Por isso, é muito difícil para o aluno escrever sobre um assunto sobre o qual ele não faz nenhuma leitura. Quanto mais experiências de leitura ele tiver, mais fácil será o processo de criação textual. Além disso, escrevemos um texto pensando no leitor. Marcos Bagno afirma no livro "Pesquisa na Escola - o que é, como se faz" que "saber que seu texto não será lido apenas pelo professor ou por um grupo de colegas certamente levará o aluno a querer preparar um texto bem elaborado, bem escrito, agradável de ler, coerente e interessante".

Tenho visto que algumas instituições insistem em separar as aulas de "Português" e "Produção Textual", o que leva na maioria das vezes ao ensino puro de gramática na primeira e a produção descontextualizada da outra. O entendimento dessa relação leitura/escrita mostra que a escola deve diversificar as leituras e práticas de produção textual, oferecendo situações que estejam relacionadas às necessidades de uso da linguagem, assim como acontece na vida cotidiana, além de promover a reflexão sobre os diversos gêneros e o uso da língua. O aluno deve encontrar na escola espaço aberto para expor suas ideias, opiniões, experiências vividas. Aprender a escrever, no sentido de construção do discurso, requer uma prática constante que somente é aperfeiçoada com o tempo e por meio de muitas leituras. As aulas de Língua Portuguesa, portanto, podem e devem fomentar inúmeras propostas de trabalho que possibilitem a leitura, a produção de textos em consequentemente, a produção de sentidos. Assim, a escola estará contribuindo para a formação de sujeitos autônomos, capazes de agir sobre a sociedade em que vivem.


Texto de Glayci Kelli Reis da Silva Xavier retirado da revista Conhecimento Prático Língua Portuguesa, número 20, Escala Educacional, São Paulo.

sábado, 20 de janeiro de 2024

Na Grande Romagem (3)

"Pela fé, Abraão, sendo chamado, obedeceu, indo para um lugar que havia de receber por herança; e saiu, sem saber para onde ia." - Paulo. (Hebreus, 11:8)


Pela fé, o aprendiz do Evangelho é chamado, como Abraão, à sublime herança que lhe é destinada.

A conscrição atinge a todos.

O grande patriarca hebreu saiu sem saber para onde ia...

E nós, por nossa vez, devemos erguer o coração e partir igualmente.

Ignoramos aas estações de contacto na romagem enorme, mas estamos informados de que o nosso objetivo é Cristo Jesus.

Quantas vezes seremos constrangidos a pisar sobre espinheiros da calúnia? Quantas vezes transitaremos pelo trilho escabroso da incompreensão? Quantos aguaceiros de lágrimas nos alcançarão o espírito? Quantas nuvens estarão interpostas, entre o nosso pensamento e o Céu, em largos trechos da senda?

Insolúvel a resposta.

Importa, contudo, marchar sempre, no caminho interior da própria redenção, sem esmorecimento.

Hoje, é o suor intensivo; amanhã, é a  responsabilidade; depois, é o sofrimento e, em seguida, é a solidão...

Ainda assim, é indispensável seguir sem desânimo.

Quando não seja possível avançar dois passos por dia, desloquemo-nos para diante, pelo menos, alguns milímetros...

Abre-se a vanguarda em horizontes novos de entendimento e bondade, iluminação espiritual e progresso na virtude.

Subamos, sem repouso, pela montanha escarpada:

Vencendo desertos...

Superando dificuldades...

Varando nevoeiros...

Eliminado obstáculos...

Abraão obedeceu, sem saber para onde ia, e encontrou a realização da sua felicidade.

Obedeçamos, por nossa vez, conscientes de nossa destinação e convictos de que o Senhor nos espera, além da nossa cruz, nos cimos  resplandecentes da eterna ressurreição.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.