terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Uma carícia verde no verde

Tudo brilhava, doía a vista, perfumava e dava muita paz. A mata muito verde e fresquinha, os bichos se escondiam nela. E, vez ou outra, punham o focinho pra fora ou ousavam ir pra estrada. Os passarinhos cantavam numa variedade bonita de sons. O menino não fazia qualquer barulho. Queria escutar e descobrir que tipo de passarinho piava. E ficava imaginando, além do som, a plumagem. Jabuticaba do mato e outras frutinhas miúdas vinham depois das chuvas. Numa ou noutra árvore, o menino apanhava orquídeas ou parasitas pra mãe pôr no orquidário.

Uma tardinha, alguém ateou fogo no pasto. E o fogo foi comendo tudo, foi entrando pra mata. E o fogo comeu árvores, flores e frutos. Comeu o verde, o amarelo, o vermelho, o roxo, o rosa e tantas cores mais. E o fogo espantou os bichos. Destruiu ninhos, ovos, filhotes e vida. E lambeu todo o pasto, matando o alimento do gado, dos cavalos e das cabras.

O pai, o menino, todos os homens da fazenda e os vizinhos tentavam destruir o fogo. Só muito tempo depois, já de madrugada, é que conseguiram.

Amanhecia. O menino não conseguia dormir. Foi pro alpendre da casa da fazenda. E viu que o pai estava lá, encolhido no banco. E sentiu que o pai chorava por dentro. Chorava seco e calado. E o menino, que só sabia chorar gritando, pela primeira vez chorou seco e calado. Passou as mãos nos cabelos do pai e sentou perto. Depois, segurou aquelas mãos fortes, grandes e calosas. Mãos que suavam frio. E o menino sentiu um arrepio, mesmo não sendo mais inverno.

Dois meses depois, vieram as chuvas, as muitas chuvas de dezembro. O pai e o menino saíram, gostando de sentir os pingos no rosto, no corpo, agradecidos como a terra. Dias depois, ainda juntos, viram o capim renascer na pastaria. E um olhou pro outro e se abraçaram, chorando diferente. Pai e filho se agacharam e ficaram acariciando o verde que brotava. Ficaram muito tempo descobrindo novos brotos explodindo em vários tons de verde aqui e ali. E só então olharam um pro outro, certos de que já dividiam tudo. Antes, a dor e o choro seco. Agora, o riso solto, a gargalhada e as lágrimas da alegria.


Conto de Elias José retirado do livro O Furta-Sonos e outras histórias, Série Era Outra Vez, Atual Editora, 4ª Edição, São Paulo, 1989.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

O Marido do Dr. Pompeu

Ninguém estranhou quando, depois de vinte e cinco anos de casamento, filhos criados, a mulher do dr. Pompeu pediu o divórcio. As razões dela eram normais para a época: não queria mais ser apenas uma dona de casa. Queria viver sua própria vida, estudar Psicologia, ter sua própria carreira. Tudo bem. O escândalo, para mostrar como ainda existem preconceitos, foi quando souberam que o dr. Pompeu, em vez de outra mulher, arranjara um marido.

- Quem diria, hein? O Pompeu.

A própria mulher foi pedir satisfações.

- Pompeu, você enlouqueceu?

- Por quê?

- Todos estes anos, eu nunca desconfiei que vocês fosse... desses.

- Desses o quê?

- Você sabe muito bem. Um...

A mulher se calou porque nesse exato momento chegou em casa o marido do dr. Pompeu. Um homem apenas um pouco mais velho do que ele, grisalho, ar respeitável. Um empresário de muito conceito.

- Alô... - disse o marido do dr. Pompeu, um pouco constrangido.

- Oi! - disse o dr. Pompeu, alegremente.

- Boa-tarde - disse a mulher, seca.

O marido do dr. Pompeu foi tomar seu banho, ouvindo a promessa do dr. Pompeu que o jantar estaria na mesa num instantinho. Quando a mulher ia recomeçar a falar, o dr. Pompeu a deteve com um gesto.

- Não é nada do que você está pensando - disse.

- Que eu estou pensando, não, Pompeu. Que todo mundo está pensando.

- Nós temos um acordo. Eu cuido da casa para ele,  supervisiono o trabalho das empregadas, faço compras, faço tudo para que ele tenha uma vida doméstica organizada e feliz. Em troca, ele me sustenta. Não temos nenhum contato sexual porque nenhum de nós é, como você disse com tanta eloquência, desses...

- Mas Pompeu...

- Eu não tenho do que me queixar. Meu padrão de vida melhorou. Ele me dá dinheiro para tudo que eu preciso. Inclusive, aliás, para pagar a sua pensão. E hoje eu posso fazer o que sempre sonhei. Não trabalho, não me preocupo com as contas, com a segurança da família, com todas essas coisas de homem. E o melhor: quando tenho que descrever minha profissão, posso botar "Do Lar".

- Mas Pompeu!

- E agora me dá licença que preciso tratar do nosso jantar. Depois do jantar ele vê o Jornal Nacional e eu fico esperando a hora da minha novela. Passe bem.


Crônica de Luís Fernando Veríssimo retirado do livro Comédias da Vida Privada - 101 Crônicas escolhidas, 14ª Edição, L&PM Editores, Porto Alegre, 1995.

domingo, 25 de fevereiro de 2024

Apoiando-se no espaço vazio

Durante mais de 20 anos partilhou a cama com sua esposa chinesa. E embora Ching-Ping-Mei não lhe tivesse dado filhos, sabia o quanto ela os desejara. Várias vezes, ao longo daquele tempo, dissera-lhe ter estado grávida, perdendo a criança em lamentáveis acidentes. E ele piedosamente fingira acreditar, para não ferir sua delicada sensibilidade oriental.

Gentilmente, amavam-se. Recato, escuridão, jogos de leques. Assim se procuravam desde sempre na pesada penumbra do quarto. Corpos nunca revelados, névoa de incenso, o amor envolto em véus e cortinados, conservando o mistério dos primeiros dias.

Porém, adoecendo Ching-Ping-Mei, exigiu o médico que se abrissem janelas e se fizesse luz, tornando possível o exame. E embora ele se mantivesse do lado de fora da porta, em discreta espera, não lhe foi permitido escapar à revelação trazida junto com o diagnóstico.

A paciente logo sararia, comunicou-lhe o médico, porém ele considerava seu dever comunicar-lhe que à luz da medicina, e não obstante a graça e a doçura inegáveis, sua esposa Ching-Ping-Mei era, na verdade, um homem.

Atordoado, cambaleou sentindo esboroar-se o cerne do amor, estendeu as mãos à frente. Mas em que apoiar-se, se ele próprio, apesar da barba e dos bigodes, e sem que sua amada jamais desconfiasse, era, e tinha sido ao longo daqueles anos todos, mulher?


Conto de Marina Colasanti retirado do livro Contos de Amor Rasgados, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1986.

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Obreiros Atentos (8)

 "Aquele, porém, que atenta bem para a lei perfeita da liberdade e nisso persevera, não sendo ouvinte esquecido, mas fazedor da obra, esse tal será bem-aventurado em seus feitos."  -  (TIAGO, 1:25)


O discípulo da Boa Nova, que realmente comunga com o Mestre, antes de tudo compreende as obrigações que lhe estão afetas e rende sincero culto à lei de liberdade, ciente de que ele mesmo recolherá nas leiras do mundo o que houver semeado. Sabe que o juiz dará conta do tribunal, que o administrador responderá pela mordomia e que o servo se fará responsabilizado pelo trabalho que lhe foi conferido. E, respeitando cada tarefeiro do progresso e da ordem, da luz e do bem, no lugar que lhe é próprio, persevera no aproveitamento das possibilidades que recebeu da Providência Divina, atencioso para com as lições da verdade e aplicado às boas obras de que se sente encarregado pelos Poderes Superiores da Terra.

Caracterizando-se por semelhante atitude, o colaborador do Cristo, seja estadista ou varredor, está integrado com o dever que lhe cabe, na posição de agir e servir, tão naturalmente quanto comunga com o oxigênio no ato de respirar.

Se dirige, não espera que outros lhe recordem os empreendimentos que lhe competem. Se obedece, não reclama instruções reiteradas, quanto às atribuições que lhe são deferidas na disposição regimental dos trabalhos de qualquer natureza. Não exige que o governo do seu distrito lhe mande adubar a horta, nem aguarda decretos para instruir-se ou melhorar-se.

Fortalecendo a sua própria liberdade de aprender, aprimorar-se e ajudar a todos, através da inteira consagração aos nobres deveres que o mundo lhe confere, faz-se bem-aventurado em todas as suas ações, que passam a produzir vantagens substanciais na prosperidade e elevação da vida comum.

Semelhante seguidor do Evangelho, de aprendiz do Mestre passa à categoria dos obreiros atentos, penetrando em glorioso silêncio nas reservas sublimes do Celeste Apostolado.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

domingo, 18 de fevereiro de 2024

O Buraco

Nós andávamos juntos. Sempre. Era pra todo lado nós dois. Essas coisas de amigo do peito, melhor amigo, por aí. A gente nunca sabe por que o melhor amigo é o melhor entre os amigos. É, simplesmente. Uma vez me perguntaram por que o Serginho era o meu melhor amigo. Ele é legal... Legal, pô! Foi o que eu consegui responder.

Ela morava no prado, eu, na serra. A gente se encontrava no centro da cidade, praça Sete, por ali, e tomávamos refrigerante ou vitamina de aveia numa birosca ao lado do Café Pérola, fumávamos um Continental sem filtro e decidíamos o que fazer. Na maioria das vezes andávamos. Só andávamos. Pela cidade. Costumávamos ir até a Pampulha, a pé. Voltávamos também a pé. Era longe, mas a gente ia conversando, papo furado, falando mal dos outros, emitindo opiniões sobre o mundo, sobre a humanidade e sobre a bundinha das meninas.

Esses passeios serviam para que ele, o Serginho, conhecesse melhor a cidade, Belo Horizonte, pra ele, era grande pacas. Mudara-se para a cidade há pouco tempo. Nascera e se criara no interior de Minas. Bem, além desse caráter turístico-exploratório, nossas andanças tinham um motivo de força maior: éramos durangos. Preferíamos guardar o dinheiro para sabores mais significativos que os ônibus metropolitanos. Quando contávamos às pessoas nossas idas e vindas, perguntavam: "Por que não andam de ônibus?" Motivo de força maior, respondíamos. Achávamos essa expressão muito séria, troço meio radiofônico, meio Hora do Brasil - a cara da época. Gostávamos também de "Aviso aos Navegantes". Certo dia, numa roda de amigos, Serginho levantou-se solene e disse: "Aviso aos navegantes: peidei!... E fedeu". Cobriram ele de porrada, evidentemente. Ele realmente era um cara legal.

Pois então. Como eu dizia, o Serginho era do interior de Minas. A família dele tinha uma fazenda por lá. Sempre que podíamos (o que era muito frequente, porque a gente não fazia nada na vida a não ser estudar - e não éramos muito devotos dessa igreja; só dava pro gasto) nos mandávamos pra tal fazenda. O que atrapalhava um pouco era a burocracia da época. Éramos menores de idade, pra viajar precisávamos de um "papelim" do Juizado de Menores e coisa e tal. Assinatura do responsáveis (nossos pais), certidão de nascimento, "Nada Consta", declaração de renda, o diabo a quatro. Mesmo assim o "papelim" não era válido para Cuba. (Uma piadinha da época. O Brasil vivia sob a ditadura militar, e até andar com camisa vermelha era suspeito.)

Vencida a encheção de saco dos "tempos do milagre", entrávamos no ônibus e passávamos a viagem inteira comendo porcarias fantásticas, como pururuca (pele de porco frita), e bafejando a fumaça do Continental sem filtro ou do Capri na cara dos infelizes passageiros. Que por sua vez faziam a mesma coisa com a gente. Ambiente insalubre, aquele. Conhecíamos todos os milímetros (tirando o exagero...) da estrada. Tínhamos nossos pontos de parada preferidos. Que geralmente não coincidiam com os pontos de parada preferidos do meleca do motorista do ônibus.

Descíamos da "carroça" num trevo, a cerca de quatro quilômetros e meio da fazenda. E pé na estrada. Gostávamos de chegar à noite, porque dava um medão danado atravessar aquela distância no mais absoluto "breu" e uma sensação absoluta de macheza, quando a coisa terminava. Mas também havia as noites de lua, de lua cheia, em junho-julho, e era frio, e ventava, e à vezes parávamos no topo de um morro, de onde avistávamos toda a estradinha e a fazenda no vale, lá embaixo. A plantação de tomates crescendo com o rio. Água e cultura desaparecendo lá pras bandas da fazenda São Miguel, a fazenda vizinha, onde havia uma olaria de uns caras legais, gente nossa. Vez por outra íamos até lá, caçar tatu ou simplesmente conversar olhando a pilha de tijolos na queima. Lindo.

A meio do caminho da fazenda havia uma mata de eucaliptos. Era o momento mais terrível e o mais esperado. Primeiro, porque era um cagaço só, passar por lá à noite ou mesmo durante o dia. Um lugar assombrado. Diziam que um fulano, colono velho, morrera ali, de emboscada. Segundo, porque nessa mata (bom, a gente chamava aquilo de mata) as cigarras trocavam a pele - pele? A casca, sei lá! Sei que elas saíam da pele-casca velha por uma abertura logo acima da cabeça, e a pele-casca velha ficava grudadinha, inteirinha, no tronco do eucalipto. Pois catávamos essas peles- cascas que eram iguaizinhas a uma cigarra; uma cigarra anêmica, é verdade, mas nem por isso menos útil aos nossos fins. Nossos fins eram sacanagens, é claro. Não havia ninguém, menino ou menina (professora, então, nem se fala), que não borrasse de medo daquelas coisas. Sensacional. Presenciamos muitos escândalos e neurastenias deslumbrantes.

Ficávamos vários dias na fazenda. Ajudávamos no trabalho, pela manhã. Carregávamos cestos de capim para o gado, cortávamos cana-de-açúcar, levávamos os bezerros pro "pastim", limpávamos o estábulo, milho pras galinhas e etc., etc., etc. À tarde, saíamos, a cavalo ou a pé inventando o que fazer. Visitas, pescarias, explorações. Explorações: eram sem dúvida a melhor parte.

Um dia, descendo um morro (como tem na nossa terra, benzadeus!), deparamos com um buraco caprichado. Grande por demais. Paramos. Estudamos o trem (o buraco). Era serviço de erosão. Anos, talvez décadas de erosão. Monumental. Uma fenda na terra que começava estreitinha e abria-se, morro abaixo, chegando a ter uns dois metros de largura por três de fundura. Depois, afinava-se novamente. Olhei pro Serginho.. Ele estava pensando o mesmo que eu. Começamos a descer, sem precisar de muita conversa. Tentação de mais.

Descíamos. De repente, apareceu uma espécie de cascatinha. A água caía, de onde estávamos a quase dois metros, até lá embaixo. Estávamos chegando à parte mais larga do buraco. Serginho foi o primeiro. Pulou. Atolou a perna esquerda quase até o joelho na lama, mas tudo bem. Dava pra pular numa boa. Pulei também. Tive menos sorte: escorreguei e fui de bunda na lama. Um horror. Ele riu. "Tá rindo de que, pau-de-bosta?", disse eu.

Fomos em frente. O lá fora cada vez mais lá fora. Mais fundo que a gente imaginou. E aí o buraco começou a ficar estreito, outra vez. E foi ficando... ficando... fim da linha. Assim, de repente. Acabava num quase-paredão impossível de escalar. Começamos a voltar. E voltávamos cabreiros.

- Será que dá pra subir a cascatinha? - perguntou o Serginho.

- Sei lá... - respondi, olhando pro chão.

Acendi um cigarro e tinha certeza de que não dava pra subir a droga da cascatinha lamacenta. Mas não dava mesmo. "Não vou me preocupar antes da hora", disse pro meu medo. E continuamos andando. O passo apressava-se, sem que sentíssemos: cheirava a problema, a situação.

Chegamos. Observamos, andamos daqui-prali, e olha, olha, quem sabe, hummm, pode ser. Resolvemos tentar, apoiando nas saliências que havia, do lado direito da parede do buraco. Fui primeiro. Era o mais pesado, e, se as saliências me aguentassem, aguentariam também o Serginho. Qual o quê: desmancharam-se sob minhas mãos e lá fui outra vez pra lama. O bunda-mole do Serginho rindo. Acho que ria mais de medo, desta vez.

Fiquei tentando me limpar, inutilmente. E o buraco enchendo-se de silêncio. Serginho, de pé, olhava as paredes do buraco, mãos na cintura, feito um engenheiro fiscalizando a obra. Achei um cantinho razoavelmente confortável e desabei lá, sujo, puto da vida e bastante pessimista, confesso.

Pensava no meu enterro. Estava lá eu, magrinho no caixão. Comoção geral, muito choro, muita flor, comentários: "Pobres rapazes, morrer assim, de fome e sede, no fundo de um buraco... Eram meio malucos, talvez um pouco maldosos demais, é verdade, mas eram bons rapazes. Quem sabe viriam a ser famosos engenheiros, ou médicos (todo mundo achava, naquela época, que só existiam três profissões: médico, engenheiro e advogado), presidentes da República..." E mais choro. As meninas fazendo cena, arrancando os cabelos, rasgando as roupas, querendo pegar uma florzinha que fosse do caixão, ou uma mecha de cabelo. Todo mundo lá: minha mãe, meu pai, os pais do Serginho, o disciplinário do colégio, o padre-reitor, nossos amigos.

Nossos amigos. Ah, como eu sentiria falta dos caras! E eles de mim. O Diocrésio, por exemplo, sentiria falta de quem o protegesse das canalhices dos colegas. Nós o chamávamos Didi. Mas não era por causa do nome, propriamente; era por causa da gagueira. O Didi era gago. Quando lhe perguntavam o nome, ele tremelicava todo e mandava: "Di... di... diocrrrrrrrésio". Era Didi, portanto. Adorava poesia. Vez em quando, ele ficava muito nervoso com a própria gagueira e levantava-se, vermelho feito um peru, desgraçava a recitar poemas, um atrás do outro, mas não gaguejava nem uma vírgula. O pessoal adorava. Provocavam o infeliz até o desespero e ele largava a enxurrada de versos, parando somente coma exaustão. Eu achava meio mórbido a coisa e retirava o Didi da roda antes que fosse tarde.

E o "Cês Quatro". Um cara gordo, mas gordo mesmo. E alto. Mandava fazer os sapatos: 47, o número dele. Ocupava tanto espaço que recebeu este apelido: "Cês Quatro". Valia por quatro. Tinha veleidades de ator. Vivia enfiado nos grupos de teatro amador do colégio. E o "Mancada", que recebeu esse apelido por razões óbvias. E o "Meleca" (o mesmo caso), e o Nelson "Batata", e um monte de outros tubérculos, raízes, legumes, frutas, utensílios domésticos, objetos dos mais variados e órgãos sexuais que habitavam os corredores ginasianos do nosso cotidiano. Imaginei-os comentando alguma besteira, a meia voz, e rindo sufocado - risinho  safado, durante o enterro. Pegaram o boi com chifre e tudo: por causa do meu enterro (meu e do Serginho) o colégio não funcionara. "Luto porr éstes chofens e promissorres alunas da nosso educandárrio", discursava o padre-reitor, em seu sotaque tedesco.

Percebi alguma coisa se mexendo, logo à minha frente. Era um bicho muito do esquisito. Parecia um grilo. Mas eu nunca tinha visto um grilo como aquele. Um grilo dos buracos, pensei. Era grande e cinzento. "O que será que esse bicho come aqui nesse buraco?", pensei. Terra não era. Grama, só a alguns metros acima. Outros insetos? Era possível. Mas também pensei que eu e o Serginho bem que poderíamos servir de refeição pro bicho, dali a alguns dias.

Foi demais. Morrer de fome e sede, vá lá: não havia outro jeito. Até soava meio heroico, meio martírio. Dava status morrer de fome e sede. Mas servir de comida praquele bicharoco estranho não ia ser possível. Desmoralização total. Comida de grilo, nem pensar! Olhei pro Serginho. Estava na mesma posição exploratória. Levantei-me, andei pelo buraco. Vi, pouco mais abaixo, um ponto em que o buraco estreitava-se por causa de uma enorme pedra, com uma das pontas à mostra, como se a parede estivesse pondo a língua pra gente. Chamei o Serginho.

- Se a gente conseguir alcançar aquela ponta de pedra, acho que dá pra chegar até em cima - disse eu.

Agachei-me e o Serginho subiu em meus ombros. Conseguiu alcançar a pedra. De lá, deitado, estendeu-me a mão e, com alguma dificuldade, derrapando nas paredes pedras-sabão do buraco, eu também alcancei a "língua da pedra". De onde estávamos até o topo, subimos apoiando as costas numa parede e os pés na outra, uma vez que a distância entre elas era menor, naquele ponto.

Livres, enfim. Deitamos de papo pro ar, ofegantes. Eu ouvia a respiração do Serginho, o córrego chuá-chuá ao pé do morro, o mugido distante do gado. E azul e branco, nuvens e céu, sol no rosto. Ficamos assim por um bom tempo: quietos, respirando a amplitude. Depois, olhei pro Serginho e ele olhou pra mim. Desatamos a rir. E rimos, e rimos, e rimos. A gente se torcia de rir abraçados ao sem-fim da paisagem à nossa volta.

Começamos a descer o morro, em direção à sede da fazendo. Ele na frente. Calados os dois. Eu olhava meu amigo: todo sujo, cansado, mas feliz.

Pensei que buraco nenhum do mundo poderia nos segurar. Pensei que nós dois, assim, juntos, éramos imbatíveis. Mais espertos que qualquer encrenca que aparecesse. Nenhum grilo haveria de nos devorar. Ah, isso é que não!

Que enterro, que choradeira, que luto, que nada: éramos imortais.

- Amanhã a gente volta - disse eu ao meu amigo.

- Com uma corda e umas ferramentas - completou Serginho.

E rimos, outra vez. Muito bem, buraco, muito bem, mundo velho: agora vocês sabem quem é que manda por aqui. E fim de papo!


Conto de Murilo Cisalpino retirado do livro Amigos, Coleção Vínculos, Editora Atual, 2ª Edição, São Paulo, 1992.

sábado, 17 de fevereiro de 2024

Pelos Frutos (7)

 "Por seus frutos os conhecereis." - Jesus. (MATEUS, 7:16)


Nem pelo tamanho.

Nem pela configuração.

Nem pelas ramagens.

Nem pela imponência da copa.

Nem pelos rebentos verdes.

Nem pelas pontas ressequidas.

Nem pelo aspecto brilhante.

Nem pela apresentação desagradável.

Nem pela vetustez do tronco.

Nem pela fragilidade das folhas.

Nem pela casca rústica ou delicada.

Nem pelas flores perfumadas ou inodoras.

Nem pelo aroma atraente.

Nem pelas emanações repulsivas.

Árvore alguma será conhecida ou amada pelas aparências exteriores, mas sim pelos frutos, pela utilidade, pela produção.

Assim também nosso espírito em plena jornada...

Ninguém que se consagre realmente à verdade dará testemunho de nós pelo que parecemos, pela superficialidade de nossa vida, pela epiderme de nossas atitudes ou expressões individuais percebidas ou apreciadas de passagem, mas sim pela substância de nossa colaboração no progresso comum, pela importância de nosso concurso no bem geral.

- "Pelos frutos os conhecereis" - disse o Mestre.

- "Pelas nossas ações seremos conhecidos" - repetiremos nós.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

O homem ao lado

O homem ao lado estava chorando!

Sentado, no ônibus, eu era o único passageiro que viajava consciente das suas lágrimas. Ninguém notara o homem que chorava. Iam todos distraídos, em demanda dos seus destinos, uns olhando a paisagem, outros absortos nos seus jornais; num banco adiante, dois senhores graves conversavam em voz baixa.

Ninguém sabia de nada, ninguém suspeitava, porque o seu choro não era choro nervoso dos que soluçam, nem o choro lamuriento dos que choramingam. As lágrimas caíam devagar, descendo pelo sulco que outras lágrimas fizeram - brilhante - no seu rosto. De vez em quando, fechava os olhos, apertando as pálpebras. Depois, como que tentando reagir ao sofrimento, abria-os novamente, para revelar um olhar ausente, de quem tem o pensamento longe.

O carro seguia o seu caminho, célere, correndo macio sobre o asfalto da praia de Botafogo. O homem olhou o mar, a claridade feriu-lhe a vista. Desviou-a. Acendeu um cigarro e deixou-o esquecido no canto dos lábios, de raro em raro puxando uma tragada.

Ajudar o homem que chorava, perguntar-lhe por quê, distraí-lo. Pensei em puxar conversa e senti-me um intruso. Demonstrando saber que ele chorava, talvez o fizesse parar. Mas como agir, se ele parecia ignorar a todos, não ver ninguém?

Ajudar era difícil, distraí-lo também. Quanto a perguntar-lhe por que chorava, não me pareceu justo. Ou, pelo menos, não me pareceu honesto. Um homem como aquele, que mantinha tanta dignidade, mesmo chorando, devia ser um homem duro, cujas lágrimas são guardadas para o inevitável, para a saturação do sofrimento, como um derradeiro esforço para amenizar a amargura.

Lembrei-me da pergunta que uma pessoa curiosa fez há muito tempo. Queria saber se eu já havia chorado alguma vez. Respondi que sim, que todo mundo chora, e ela quis saber por quê. Tentando satisfazer a sua curiosidade, descobri que é mais fácil a gente explicar por que chora quando não está chorando.

- Um homem que não chora tem mil razões para chorar - respondi.

O amigo perdido para nunca mais; o que poderia ter sido e não foi; saudades; mulher, quando merece e, às vezes, até sem merecer; há quem chore por solidariedade.

O homem ao meu lado acende outro cigarro, dá uma longa tragada e joga-o pela janela. Passa a mão no queixo, ajeita os cabelos. Já não chora mais, embora seu rosto másculo revele ainda um sentimento de dor.

Em frente à casa de flores, faz sinal para o ônibus parar. É também o lugar onde devo desembarcar e - mais por curiosidade do que por coincidência - seguimos os dois quase lado a lado. Na calçada, faz meia volta, caminha uma quadra para trás e entra na mesma casa de flores por onde passamos há pouco.

Disfarçadamente entro também e finjo-me interessado num buquê de crisântemos que está na vitrina. Sem dar pela minha presença, dirige-se ao florista e pede qualquer coisa que não consegui perceber o que era. O florista aponta-lhe um grande vaso cheio de rosas e ele, ao vê-las, quase sorri. Depois escreve umas palavras num cartão, entrega-o ao florista, quando este lhe pergunta se não estará lá para ver a coroa. O homem balança a cabeça devagar e, antes de sair, diz:

- Eu já chorei bastante...

E acrescenta:

- ... felizmente!


Texto de Stanislaw Ponte Preta retirado do livro Dois amigos e um chato, Editora Moderna, São Paulo, Coleção Veredas, 26ª Edição, 1997.

Exagero

Confesso-me um urbano convicto. Tenho, como todo mundo, visões idílicas de uma vida suburbana, árvores no quintal e amigos passarinhos, mas isto não deve ser confundido com qualquer tipo de nostalgia do mato. Suburbano significa nos arredores do urbano, com água corrente e cinema perto. Sou a favor da civilização, com todos os seus descontentamentos. As pessoas que defendem o pastoral e a volta ao primitivo nunca se lembram, nas suas rapsódias a vida rústica, dos insetos. Sempre que ouço alguém descrever, extasiado, as delícias de um acampamento - ah, dormir no chão, fazer fogo com gravetos e ir ao banheiro atrás do arbusto - me espanto um pouco mais com a variedade humana. Somos todos da mesma espécie, mas o que horroriza alguns encanta outros. Pois sou dos horrorizados com a privação deliberada. Muitas gerações contribuíram com seu sacrifício e seu engenho para que eu não precisasse fazer mais nada atrás do arbusto. Me sentiria um ingrato fazendo. E a verdade é que, mesmo para quem não tem os meus preconceitos, as delícias do primitivo nunca são exatamente como as que descrevem. Aquela legendária casa à beira de uma praia escondida onde a civilização ainda não chegou e tudo, portanto, é puro e bom, não existe! Ou se existe, não é bem assim.

Você precisa ver. Um paraíso. Não há nem um armazém por perto.

Quer dizer, não há acesso à aspirina, fósforos ou qualquer tipo de leitura. Salvo, talvez, a metade de uma revista Cigarra de 1948. A pior metade.

- A gente dorme ouvindo o barulho do mar...

E do vento entrando pelas frestas. E de animais terrestres e anfíbios tentando entrar na casa para pegar o seu pé. E, se pegar, você morre. O antibiótico mais próximo fica a cem quilômetros...

Não. Fico na cidade. A máxima concessão que faço ao natural são as bermudas. E assim mesmo, longas. Muito curtas e já é um começo de volta à selva.

Mas é claro que há o exagero no outro sentido.

A humanidade, ou pelo menos aquela parcela privilegiada da humanidade que se beneficia dos avanços da técnica e dos confortos que ela proporciona, se acostuma muito rapidamente com o que tem. Imagino que não demorou muito depois de descobrirem como fazer fogo para que alguém exclamasse: "Não entendo como alguém podia viver sem o fogo!"

Era inconcebível que, durante algumas gerações, nossos antepassados tivessem vivido sem calor e sem carne assada. A mesma coisa com a roda. Como é que nós vivíamos sem a roda, meu Deus? E o vapor? E a luz elétrica? E o telefone? É possível imaginar o mundo sem telefone? Como é que as pessoas, enfim, se telefonavam, quando não existia o telefone? E radinho de pilha? Acredite ou não, houve um tempo em que as pessoas iam ao futebol sem rádios. Mesmo quando já existiam rádios, eram grandes e pesados e precisavam ficar ligados na tomada. Para levar ao futebol, só com um fio muito comprido. E como sabiam se estavam gostando ou não do jogo, sem ouvir os comentaristas?

A televisão tem o quê? Cinquenta anos de idade. E já tem gente que se refere à época antes da televisão como a pré-história, um tempo tão remoto e difícil de visualizar quanto o tempo das cavernas. O que é que todos faziam antes de ter televisão em casa? Conversavam? Liam? Ou faziam alguma outra coisa esquisita?

Mas, outro dia, ouvi uma frase que me revoltou, dita por alguém atirado numa poltrona na frente da TV.

- Como é que as pessoas podiam viver sem o controle remoto?

Este merecia ser jogado no mato, nu e com um tacape, para ver o que era bom e começar tudo de novo. Se não fosse meu filho, eu jogava.


Texto de Luís Fernando Veríssimo retirado do livro Atividades de Comunicação - Leitura & Gramática, 7ª Série, Hermínio Sargentim, IBEP, São Paulo.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

A carta do espantalho

Espantalho Cícero é muito bom de prosa. Tão bom que os passarinhos que vêm bicar o milho acabam pousando no seu ombro.

Ficam todos empoleirados, no maior bate-papo ou bate-bico, que até se esquecem de que vieram ali pra comer..

Só que, de uns tempos pra cá, Cícero percebeu que não aparecia mais nenhum passarinho. E, se passava um, olhava... Abanava a asa e seguia reto.

- Acho que meu papo está ficando chato! queixou-se para a sua amiga Graúna.

- Pois eu acho que precisa é chover... respondeu Graúna. O milharal está seco, a terra rachou, o ribeirão esturricou. Passarinho nenhum vem mais aqui.

- O que fazer pra cair uma chuvinha? quis saber o espantalho.

Graúna, que adorava dar conselho, mas não receber, aconselhou:

- Peça chuva a São Pedro.

- De que jeito? Cícero espantalhou-se.

- Não sou pombo-correio, mas sirvo para levar uma carta suas às nuvens, que levarão a mensagem para São Pedro..

Cícero achou meio espantalhisito... mas aceitou a sugestão.

Arrumaram uma palha de milho. Cícero ditava enquanto Graúna bicava... quer dizer, escrevia com o bico.

A carta ficou assim:


Milharal, num dia de sol, num ano sem chuva

São Pedro,

Meu nome é Cícero. Sou espantalho encarregado de tomar conta do milharal do Sítio Donizete.

Faz muito calor aqui embaixo. Os pés de milho estão secos, o ribeirão esturricou, a terra está rachada e as aves já nem aparecem por aqui.

Por favor, será que o Senhor pode mandar chuva?

Muito obrigado

Cícero - quem ditou

Graúna - quem escreveu

Depois de terminar o ditado, Cícero agradeceu do fundo do coração de palha a ajuda da amiga Graúna.

A ave dobrou a carta e, colocando-a no bico, despediu-se do amigo.


Texto de Telma Guimarães Castro Andrade, do livro Chove Sim, Chove Não! Edições Paulinas, São Paulo, 1989, publicado no livro Vamos escrever? - Atividades de Redação 3, autoras: Cândida Zuiani Menezes, Marlene Karabolad de Matos Paulo, Elsa Bahdur El Laham, Editora FTD, São Paulo, 1992.

domingo, 11 de fevereiro de 2024

A História de Keesh

Keesh viveu, há muito tempo, à beira do oceano polar, foi líder de sua aldeia por vários e prósperos anos e morreu coberto de honras, com seu nome na boca dos homens. Ele viveu há tanto tempo que somente os velhos se recordam de seu nome, de seu nome e de sua história, que aprenderam dos velhos antes deles e que os futuros velhos repetirão, contando o que ouviram aos seus filhos e aos filhos de seus filhos, até o final dos tempos. E a escuridão do inverno, quando a tempestade do Norte varre com mais força a superfície do gelo, e o ar é preenchido com flocos de neve flutuantes, esse é o tempo escolhido para contar como Keesh, vindo do iglu mais pobre da aldeia, alcançou poder e um lugar acima de todos.

Ele era um rapaz brilhante, assim a história conta, saudável e forte, e havia visto treze sóis, segundo o jeito de contar o tempo adotado pela tribo. Pois a cada inverno o sol deixa a terra na escuridão e no próximo ano um novo sol retorna, aquecendo novamente os corpos dos habitantes do lugar e fazendo com que eles possam olhar o companheiro no rosto. O pai de Keesh havia sido um homem corajoso, que encontrara a própria morte em um tempo de fome, quando procurava salvar a vida de sua gente tirando a vida de um enorme urso polar. Em sua impetuosidade, lutou com o animal de frente e acabou com os ossos triturados; mas o urso tinha muita carne e o povo foi salvo. Keesh, o único filho desse homem, viveu sozinho com a mãe depois disso. Mas as pessoas costumam esquecer, e elas se esqueceram do que o pai de Keesh havia feito; e ele, sendo apenas um menino, e sua mãe, apenas uma mulher, foram rapidamente esquecidos, e logo começaram a viver no mais miserável dos iglus.

Foi em um conselho da tribo, uma noite, no grande iglu de Klosh Kwan, o chefe, que Keesh mostrou o sangue que corria em suas veias e a virilidade que lhe fortalecia a coluna vertebral. Com a dignidade de um homem velho, ele se levantou e aguardou o momento em que as vozes, confusas, silenciassem.

- É verdade que a carne tem sido dividida em partes iguais, para mim e para quem vive comigo - disse. - Mas, muitas vezes, é velha e dura essa carne, que, além disso, tem uma porção de ossos.

Os caçadores, grisalhos e maduros, robustos e jovens, ficaram horrorizados. Aquilo nunca havia acontecido antes. Uma criança que falava como adulto e dizia coisas rudes na cara deles!

Entretanto, imperturbável e sério, Keesh prosseguiu:

- Digo essas palavras porque sei que meu pai, Bok, era um grande caçador. Dizem que Bok trazia para casa mais carne que quaisquer dos dois melhores caçadores, que ele, com suas próprias mãos, dividia as porções e, com seus próprios olhos vigiava para que a velha mais pobre e o homem mais idoso recebessem partes justas.

- Não, não! - os homens gritaram.

- Tirem essa criança daqui!

- Ponham o menino na cama!

- Ele ainda não é um adulto para falar com homens e velhos de barba branca!

Keesh esperou calmamente a gritaria terminar.

- Você tem uma mulher, Ugh-Gluk - disse. - E fala por ela. E você, Massuk, tem mãe também, e fala por ela. Minha mãe não tem ninguém, exceto a mim; é por esse motivo que falo. Como eu digo, apesar de Bok ter sido morto por caçar com imprudência, eu, que sou seu filho, e Ikeega, que é minha mãe e foi sua mulher, devem receber carne em abundância enquanto houver carne em abundância na tibo. Eu, Keesh, filho de Bok, falei.

Ele se sentou, os ouvidos bem atentos ao burburinho que suas palavras criaram.

- Um menino falando no conselho! - resmungou Ugh-Gluk.

- Devem os bebês de colo dizer a nós, homens, as coisas que devemos fazer? - reclamou Massuk, erguendo a voz. - Sou por acaso um homem que possa virar motivo de zombaria para qualquer criança que pede carne?

A fúria ao máximo. Os velho ordenaram que ele fosse dormir, ameaçaram-no de não mais receber carne e lhe prometeram uma bela surra pela presunção. Os olhos de Keesh começaram a faiscar e o sangue, a pulsar sombriamente sob sua pele. Em meio ao insulto, ele ficou de pé.

-Ouçam-me vocês, homens! - ele gritou. - Nunca mais vou falar no conselho novamente, nunca mais, até que os homens venham a mim e digam: "Está bem, Keesh, você pode falar, está bem e é nosso desejo que seja assim". Esta é minha palavra final. Bok, meu pai, foi um grande caçador. Eu, também, seu filho, vou caçar a carne para comer. E fiquem sabendo, agora, que a divisão daquilo que eu matar será justa. Nenhuma viúva, nenhum fraco, chorará à noite porque não há carne, enquanto homens fortes se queixam de grandes dores por terem comido demais. Eu, Keesh, disse isso!

Vaias e risos debochados o acompanharam à saída do iglu, mas seus maxilares estavam cerrados e ele se pôs a caminho, sem olhar para os lados.

No dia seguinte, foi à beira da praia, onde o gelo e a terra se encontram. Aqueles que o viram, notaram que ele carregava seu arco com um bom suprimento de flechas de osso farpado e que, atrás de seu ombro, levava a grande lança de caça que pertencera a seu pai. E então houve risos, e muito falatório, por conta desse fato. Esse era um acontecimento sem precedentes. Nunca antes garotos naquela tenra idade tinham-se aventurado a caçar, muito menos sozinhos. Houve também muita gente balançando a cabeça e murmurando profecias, e as mulheres olhavam penalizadas para Ikeega, que mantinha a expressão grave e triste.

- Ele vai voltar logo - elas disseram, para consolá-la.

- Deixe-o ir; ele vai levar uma lição - os caçadores sentenciaram. - E vai voltar, humilde e com a fala mansa, nos próximos dias.

Mas um dia se passou, e dois, e no terceiro um vento forte soprou, e nada de Keesh. Ikeega arrancou os cabelos e pôs na cara fuligem de óleo de foca, em sinal de dor; e as mulheres criticaram os homens com palavras amargas, por ele terem destratado o garoto e o enviado à morte; e os homens não ensaiaram respostas, preparando-se, em lugar disso, para sair à procura do corpo, quando a tempestade diminuísse.

Na manhã seguinte, entretanto, Keesh entrou a passos largos na aldeia. Mas não vinha humilhado. Em seus ombros, trazia um fardo com carne fresca, recém caçada. E havia dignidade em seu caminhar e arrogância na sua fala.

- Vão vocês, homens, com os cães e os trenós, sigam minha trilha como a melhor parte de um dia de viagem - ele disse. - Há muita carne no gelo: - uma ursa e dois filhos quase crescidos.

Ikeega estava felicíssima, mas ele reagiu à manifestação dela como um adulto, dizendo:

- Vamos, Ikeega, vamos comer. E depois disso vou dormir, porque estou exausto.

Ele entrou no iglu da família, comeu até se fartar e, depois, dormiu por vinte horas seguidas.

Houve muita dúvida inicialmente, muita dúvida e discussão. Matar um urso é perigoso, mas é três vezes mais perigoso matar uma ursa com seus filhotes. Os homens não podiam crer que o menino Keesh, sem qualquer ajuda, tivesse realizado aquela maravilha tão grande.

Mas as mulheres comentavam a carne fresca que ele havia trazido nas costas e isso era um argumento incontestável contra a descrença dos homens. Então eles finalmente desistiram, resmungando o tempo todo que, com toda a certeza, se era assim, ele havia se esquecido de cortar as carcaças. No Norte, é imprescindível que isso seja feito tão logo o animal morra. Senão a carne se congela tão firmemente que pode entortar a ponta da faca mais afiada, e um urso de 136 quilos, com o cadáver congelado, não é coisa fácil de se colocar sobre o trenó e de se arrastar pela neve áspera. Mas, chegando ao lugar, eles encontraram não somente a caça morta - fato do qual haviam duvidado -, mas também puderam ver que o garoto Keesh havia esquartejado as feras como um verdadeiro caçador, e removido as entranhas dos animais.

Foi aí que o mistério de Keesh começou, mistério que era maior e maior com o passar dos dias. Em sua viagem seguinte, ele matou um urso jovem, quase crescido, e na viagem posterior, um enorme urso e sua fêmea. Geralmente se ausentava por três ou quatro dias, embora não fosse raro permanecer fora uma semana, no campo de gelo. Sempre dispensava companhia nessas expedições e as pessoas ficavam maravilhadas.

- Como ele faz isso? - perguntavam-se, umas às outras.

- Nunca leva cães com ele, e os cães são de grande ajuda.

- Por que você só caça ursos? - Klosh-Kwan arriscou perguntar a ele, uma vez. Keesh deu uma resposta conveniente:

- Todos sabem que os ursos têm mais carne.

Mas na aldeia falava-se em feitiçaria.

- Ele caça com os espíritos maus - algumas pessoas diziam -, razão pela qual sua caçada é recompensada. Que mais pode ser, senão que ele caça com os maus espíritos?

- Talvez não sejam maus, mas bons, esses espíritos - outros diziam. - Todos sabem que o pai dele era um caçador corajoso. Não poderia o pai estar caçando com o filho, transmitindo a ele sua superioridade, sua paciência e seu conhecimento? Quem sabe?

Apesar disso, o sucesso de Keesh continuou, e os caçadores menos hábeis frequentemente encarregados de arrastar a carne que ele trazia. E na divisão da caça, ele era justo. Como seu pai fizera antes, vigiava para que a velha mais humilde e o homem mais idoso recebessem uma porção legítima, reservando para si próprio nada mais do que aquilo que suas necessidades reclamassem. E por causa disso, e por seu mérito como caçador, ele era olhado com respeito e até com temor; já se falava em fazê-lo chefe depois do velho Klosh-Kwan. Em razão das coisas que havia feito, eles o procuravam para participar novamente do conselho, mas ele nunca ia, e todos se envergonhavam de insistir.

- Estou com vontade de construir um iglu para mim - disse um dia a Klosh-Kwan e a um bando de caçadores. - Deverá ser um iglu grande, onde Ikeega e eu possamos viver confortavelmente.

- Sim - acenaram gravemente com a cabeça.

- Mas eu não tenho tempo. Meu negócio é caçar e isso leva todo o meu dia. Por isso, é justo que os homens e mulheres da aldeia que comem a carne que trago construam o iglu para mim.

E o iglu foi construído adequadamente, numa escala generosa, que excedeu até a moradia de Klosh-Kwan. Keesh e sua mãe mudaram-se para a nova casa, e essa foi a primeira regalia da qual ela desfrutou desde a morte de Bok. Não somente a prosperidade material pertencia a ela - devido a seu maravilhoso filho e à posição que lhe foi dada por ele, Ikeega passou a ser olhada como a primeira mulher da aldeia; e as mulheres iam visitá-la, pedir conselhos, e notar sua sabedoria quando, entre elas ou entre os homens, surgiam discussões.

Mas era o mistério das maravilhosas caçadas de Keesh o que ocupava as mentes em primeiro lugar. E um dia, Ugh-Gluk o acusou de praticar feitiçaria.

- Sobre você pesa a acusação - disse Ugh-Gluk, nefastamente - de lidar com maus espíritos, o que traria recompensa à sua caçada.

- Mas a carne não é boa? - foi a resposta de Keesh. - Alguém na aldeia já caiu doente porque a comeu? Como sabe se há feitiçaria nisso? Ou por acaso você supõe essas coisas na escuridão, meramente por causa da inveja que o consome?

E Ugh-Gluk retirou-se, derrotado, as mulheres rindo enquanto ele se afastava. Mas no conselho, uma noite, após longa deliberação, ficou determinado que espiões seriam postos na trilha de Keesh quando ele saísse para caçar, para que seus métodos pudessem ser estudados. Dessa forma, na viagem seguinte, Bim e Bawn, dois rapazes, dos mais espertos entre os caçadores, o seguiram, tomando o cuidado de não serem vistos. Depois de cinco dias eles retornaram, seus olhos esbugalhados e suas línguas, trêmulas, para contar o que haviam visto. O conselho foi chamado às pressas na casa de Klosh-Kwan e Bim tomou a palavra.

- Irmãos! Conforme nos foi ordenado, viajamos na trilha de Keesh, e com habilidade nós caminhamos, para que ele não desconfiasse. E na metade do caminho, no primeiro dia, ele arrumou um grande urso macho. Era um urso enorme.

- Nenhum é maior - Bawn confirmou, e prosseguiu contando. - Mas o urso não estava interessado em lutar, por isso voltou e fugiu devagarzinho pelo gelo. Isso a gente viu dos rochedos da praia, e o urso veio em nossa direção, e em seguida Keesh, sem medo algum. Vinha gritando palavras horríveis na direção do urso, agitando os braços e fazendo um barulhão. Então o urso ficou furioso, levantou-se nas patas traseiras e grunhiu. Mas Keesh caminhou diretamente para ele.

- Sim - continuou Bim. - Keesh andou bem na direção do urso. E o urso correu atrás dele, e ele fugiu. Mas, ao correr, Keesh deixou cair uma pequena bola de gelo. O urso parou e a cheirou, e então a engoliu. E Keesh continuou fugindo e despejando bolinhas, e o urso continuou devorando todas elas.

Exclamações e gritos saíram da boca dos homens, incrédulos, e Ugh-Gluk expressou total desconfiança.

- Vimos tudo com nossos próprios olhos  - afirmou Bim.

E Bawn:

- Sim, com nossos próprios olhos. E isso continuou até que o urso, de repente, parou ereto e começou a uivar de dor, batendo as patas dianteiras furiosamente. E Keesh continuou a fugir pelo gelo, até alcançar uma distância segura. Mas o urso não lhe deu atenção, preocupado que estava com a desventura que as bolinhas haviam produzido dentro dele.

- Sim, nas entranhas dele - interrompeu Bim. - Ele rolava na neve como um cachorrinho brincalhão; não fosse a maneira que rosnava e guinchava, e ninguém diria que estivesse sofrendo, mas, pelo contrário, divertindo-se muito. Nunca vi coisa parecida!

- Nunca, nunca vi uma coisa assim - disse Bawn, aumentando a tensão. - E, além disso, era um urso enorme.

- Feitiçaria - insinuou Ugh-Gluk.

- Sei não - replicou Bawn. - Eu só digo o que os meus olhos viram. E depois de um tempo o urso cresceu em fraqueza e cansaço, pois era muito pesado e tinha pulado com extrema violência, e saiu pela praia gelada, balançando a cabeça levemente, de um lado para o outro, e se sentando de vez em quando para gemer e chorar. E Keesh seguiu o urso, e nós seguimos Keesh, e naquele dia e nos três seguintes. O urso ficava cada vez mais fraco e não parava de gritar sua dor.

- Foi um feitiço! - exclamou Ugh- Gluk. - É claro que foi um feitiço!

- Talvez tenha sido.

E Bim tomou a palavra de Bawn.

- O urso andou a esmo, de um lado a outro, dobrando-se para trás ou para diante, atravessando sua trilha em círculos, de forma que, no final, ele praticamente voltara ao lugar onde Keesh primeiro o havia encontrado. Nessa hora, ele estava bastante doente, o urso, e não pôde mais rastejar, então Keesh chegou perto e atravessou a lança no corpo do bicho, até que ele morresse.

- E depois? - inquiriu Klosh-Kwan.

- Depois deixamos Keesh esfolando o urso e viemos correndo para que a notícia da matança pudesse se contada.

E na tarde daquele dia as mulheres arrastaram para a aldeia a carne do urso, enquanto os homens se reuniam na assembleia do conselho. Quando Keesh chegou, enviaram-lhe um mensageiro, chamando-o à reunião. Mas ele mandou uma resposta na qual dizia estar faminto e cansado; mas também lembrava que seu iglu era grande e confortável, e podia abrigar vários homens.

A curiosidade de todos era tão grande que o conselho inteiro, com Klosh-Kwan à frente, levantou-se e dirigiu-se ao iglu de Keesh. Ele estava comendo, mas os recebeu respeitosamente,  e os fez sentar, cada um de acordo com sua posição. Ikeega sentia-se orgulhosa e embaraçada, alternadamente, mas Keesh estava totalmente tranquilo.

Klosh-Kwan repetiu a informação trazida por Bim e Bawn e, ao final, disse, com uma voz firme:

- Portanto, queremos uma explicação, ó Keesh, sobre sua maneira de caçar. Há feitiçaria nisso?

Keesh levantou os olhos e sorriu.

- Não, ó Klosh-Kwan, as coisas das feiticeiras não são para um garoto, e de feitiçaria não entendo nada. Eu apenas descobri um jeito de matar o urso polar com facilidade, é só. Isso é a arte da inteligência, não a arte da feitiçaria.

- E qualquer homem pode fazer isso?

- Qualquer um.

Fez-se um grande silêncio. Os homens olharam-se, um no rosto do outro, e Keesh continuou comendo.

- E... E... Você vai contar para nós, ó Keesh? - perguntou Klosh-Kwan finalmente, com uma voz trêmula.

- Sim, vou contar a vocês. - Keesh terminou de chupar um osso cheio de tutano e levantou-se. É muito simples. Vejam!

Apanhou uma tira fina de osso de baleia e mostrou a eles. As extremidades eram afiadas como pontas de agulha. Ele enrolou a tira cuidadosamente, até que desaparecesse em sua mão. Então, de repente, soltou-a, e ela ficou novamente estirada. Ele apanhou um pedaço de gordura de baleia.

- É assim - ele disse. - Pega-se um pedaço pequeno e grosso da gordura da baleia e cava-se um buraco nela. Dentro do buraco vai o osso, apertado bem firme, e outro pedaço de gordura é colocado sobre o osso. Depois, esse pedaço é posto para fora, onde congela em forma de uma pequena bola. O urso engole a bolinha, a gordura se dissolve, o osso da baleia com suas pontas agudas se endireita, o urso fica doente, e quando o bicho estiver muito doente, bem... A gente mata com uma lança. É muito simples.

E Ugh-Gluk disse:

- Oh!

E Klosh-Kwan disse:

- Ah!

Cada um disse algo à sua maneira e todos entenderam.

E essa é a história de Keesh, que viveu há muito tempo à beira do oceano polar. Porque exercitou a arte da inteligência, subiu do mais miserável iglu à liderança de sua aldeia; e por todos os anos em que viveu, contam, sua tribo foi próspera, e nenhuma viúva e nenhum fraco chorou alto de noite porque havia carne.


Texto de Jack London, tradução de Rosane Barguil Pavam, retirado do livro Para Gostar de Ler, Volume 11 - Contos Universais, Editora Ática, São Paulo, 3ª Edição, 1991.