sábado, 19 de agosto de 2023

Água

 "Porque os espelhos são rios os homens podem se reconhecer através das águas. Se algo os impede de chegar ao mar é porque homens já não há que os possam navegar."

(Arthur Werbeck)


A ÁGUA NA TORNEIRA


Abra a torneira e lave...

Difícil imaginar quanta história e quanto desenvolvimento técnico existe por trás desse simples comando. E quanta reação já houve à inovação. Conta-se, por exemplo, que quando o grande engenheiro Teodoro Sampaio projetou e construiu o primeiro sistema de distribuição de água na cidade de Salvador, o povo baiano, indignado, saiu às ruas com faixas contendo os dizeres: "Água de cano nós não bebe." E as instalações foram depredadas.

Ainda hoje se ouvem histórias de que as empresas de saneamento encontravam resistência à instalação da "água encanada". Muitos moradores que não contavam com o benefício relutavam e até reagiam energicamente quando intimados a fazer a ligação domiciliar no momento em que a rede de água era estendida até sua rua. Preferindo continuar usando o poço do quintal, assim como a população de Salvador preferia beber a água que comprava dos "aguadeiros" que perambulavam com burricos pela cidade.

Provavelmente a tarifa a ser paga no fim de cada mês era a principal razão da revolta. E há mesmo motivo para estranhar o valor tão elevado das tarifas. É que elas não se destinam apenas a cobrir os custos de uma pequena "correção" na qualidade natural da água do rio ou represa próximos, mas sim a tornar potável um caldo cheio de impurezas. Isso acontece pelo descaso que fazem tanto dos recursos hídricos quanto dos recursos naturais em geral.


COMO A ÁGUA CHEGA À TORNEIRA


É fácil: a água vem pelo cano. Difícil é fazer a água chegar ao cano.

Em primeiro lugar, é preciso que exista um manancial capaz de suprir toda a população da cidade a ser abastecida. E isso com folga, prevendo o crescimento natural da população. Frequentemente, para contar com a quantidade necessária de água em todas as épocas do ano, independente da ocorrência de chuvas, é indispensável construir uma barragem, que irá reservar águas das cheias para ser usada nas secas.

Em seguida, vêm as obras de captação, um sistema destinado a retirar a água do rio ou da represa criada pela barragem. O que pode ser muito simples, quando se tem sorte de encontrar um manancial localizado acima da cidade e a água pode escoar por gravidade. Caso contrário, será necessário construir um sistema elevatório, constituído de bombas de recalque no próprio local da captação - como acontece, por exemplo, no sistema que capta águas da Represa do Rio Grande, para abastecer o ABC, em São Paulo - ou distribuídas em pontos estratégicos da cidade. Muitas vezes um manancial que poderia ser captado por gravidade, situado a montante da cidade, é abandonado por estar muito poluído, em favor de outro, à grande distância e em ponto mais baixo, onerando extraordinariamente o custo da captação. Isso mostra que não é só o tratamento da água que encarece a tarifa quando não cuidamos da qualidade original dos rios.

A água captada tem de passar por tratamento, que se destina não só a remover substâncias nocivas e micro-organismos patogênicos, dando toda a segurança à saúde da população, como também garante o aspecto da água, eliminando sua turbidez, cor e cheiros eventuais. Caso contrário, a população vai preferir beber água de poço da nascente próxima, transparente e fresca, possivelmente povoada de vírus e bactérias transmissores de doenças como hepatite e febre tifoide. É evidente que esse tratamento, realizado por processos físicos como decantação e filtração, emprego de compostos químicos - como coagulantes, desinfetantes, adsorventes e outros - será mais complexo e caro, dependendo das impurezas existentes na água.

Finalmente, chega-se à fase de distribuição, realizada com auxílio de adutoras, tubulações, reservatórios de distribuição (caixas d'água dos bairros) e rede de pequenos tubos que levam a água até as casas.


É PRECISO PERSISTÊNCIA PARA A ÁGUA SAIR DO MANANCIAL, ENTRAR PELO CANO E CHEGAR ATÉ UMA TORNEIRA


O complemento necessário a tudo isso é um trabalho contínuo de conservação de equipamentos e tubulações, para que na quantidade necessária ao consumo da população e, principalmente, um serviço de vigilância, com a tomada de amostras em diversos pontos do sistema, diariamente, e análises físicas, químicas e biológicas realizadas em laboratórios altamente especializados, para garantir a qualidade sanitária da água consumida. E essa vigilância deverá ser tanto mais rigorosa - e onerosa - quanto mais impura for a água no rio ou represa de onde foi captada. Tudo isso está embutido na conta a ser paga.


QUANTA ÁGUA É NECESSÁRIA PARA O MEU CONSUMO?


Ninguém bebe muita água. No máximo, um litro por dia, talvez um pouco mais no verão. Mas uma quantidade muito maior é usada no preparo do feijão, da sopa, do macarrão. De dois a três litros por pessoa, ou dez a 15 litros por casa, por dia. Mas há o banho, que consome muito mais. E a lavagem dos pratos, das roupas, do carro, do quintal, do cachorro. E é preciso regar o gramado e os canteiros de flores ou de frutos.

O consumo é muito variável, dependendo do número de pessoas de cada casa, do tamanho do jardim, dos hábitos, da estação do ano. Há alguns anos, as autoridades britânicas estavam escandalizadas com um hábito muito tropical que alguns usuários londrinos estavam adquirindo. Diziam os especialistas: "Se a população começar a tomar banhos todos os dias, não haverá água que chegue..."

A quantidade mínima para assegurar condição sanitária com baixa probabilidade de contaminação patogênica é 50 litros por dia, por habitante. A média, entretanto, oscila entre 75 e 200 litros diários. Mas, na avaliação do suprimento de uma cidade, é necessário estimar ainda o consumo comercial - escritórios, postos de serviços etc - além dos jardins públicos, incêndios e outras necessidades. E ainda o uso industrial, que pode ser muito significativo. Tudo isso, somado e dividido pelo número de habitantes, resulta no consumo per capita da cidade, que para uma de grande porte é estimado em cerca de 500 litros por dia por habitante. E essa água deverá ter ótima qualidade sanitária, independente do uso que dela será feito. Mesmo a água usada para apagar incêndios ou regar os jardins públicos poderá ser bebida sem provocar doenças ou despertar repulsa.


Texto de Samuel Murgel Branco retirado do encarte "Água", publicado pelo Ministério Público do Estado de São Paulo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário