quarta-feira, 23 de agosto de 2023

O homem e a água no ambiente rural

 O AMBIENTE RURAL E A SECA


Certamente o homem que vive no campo está muito mais sujeito aos caprichos da natureza que o habitante das cidades. Sendo as populações do campo mais rarefeitas que as populações urbanas, fica mais difícil e oneroso construir redes de abastecimento de água, devido às distâncias entre as moradias. O mesmo ocorre em relação à remoção dos esgotos e águas servidas em geral. Ambos os benefícios têm de ser providenciados individualmente, cada moradia deve ter o seu próprio poço e sistema de esgoto. Frequentemente vemos um sítio, distante de qualquer cidade, com luz elétrica, mas sem água tratada: é que a condução da corrente elétrica por fios metálicos é muito mais fácil e barata que a distribuição de água por tubos.

Mas, se por um lado as necessidades de água para uso doméstico no meio rural são bem menores que no meio urbano, por outro lado a lavoura e, indiretamente, a pecuária exigem disponibilidade muito maiores. Quando as chuvas não ocorrem com regularidade, é preciso instalar sistemas de irrigação para as plantações e pastagens, das quais depende o gado. A água para irrigação não é submetida a um processo de tratamento e desinfecção e, muitas vezes, corre por canais abertos (quando não há necessidade de elevação de nível por bombeamento), o que a torna mais barata. Porém, as quantidades necessárias são muito maiores - por área abastecida - do que no saneamento das cidades. E as áreas de plantio são, geralmente, gigantescas. Por causa das quantidades necessárias, há riscos ambientais graves, relacionados com os sistemas de irrigação.


OS RISCOS DE IRRIGAÇÃO


No Cazaquistão, em plena Ásia Central, e na Califórnia, na Costa Oeste dos Estados Unidos, dois exemplos podem ser citados para caracterizar o risco que se corre em não considerar o papel relevante que desempenham as águas do ponto de vista puramente ambiental.

O primeiro é representado pelo imenso Lago de Aral, que já foi considerado o maior lado do mundo depois do Mar Cáspio e, no entanto, está morrendo. Não só pelo recuo de suas águas (dos 80 mil km2 que possuía já perdeu 25 mil), como pelo aumento de sua salinidade, que já atinge 26g por litro, três vezes maior que antes. Antes do quê? Antes que se iniciasse um gigantesco programa de irrigação das terras da Ásia Central, que transformou um imenso deserto nos maiores campos de algodão, cereais e vinhas do mundo: uma área de 68 mil km2 de terras férteis! Mas a irrigação foi feita com a construção de canais que desviaram os rios Amudaria e Sirdaria, que contribuíam com mais de 50 milhões de m3 de água por ano para o Lago. A retirada dessa água vem causando não só o desaparecimento da pesca como da flora e fauna típicas do lago e até mesmo de terras vizinhas - e ainda severas alterações no clima local. A gazela do deserto e muitas outras aves também desapareceram. E não é só: a irrigação intensiva provoca o fenômeno da laterização, isto é, subida de sais para a superfície do solo, por evaporação excessiva, que aumenta a  salinidade e reduz a fertilidade. Fenômeno, aliás, muito comum nas terras do Nordeste brasileiro.


O CASO DO MONO LAKE


O Mono Lake, situado no interior da Califórnia, atrás das montanhas de Sierra Nevada, aproximadamente na mesma latitude de San Francisco, é um lago bem mais modesto, com apenas 170 km2, mas que há 50 anos já teve 220 km2. É que, dos seus tributários principais, quatro foram desviados desde 1941, para abastecimento e irrigação de áreas distantes, como San Francisco e Los Angeles. Esse lago já era salgado, em consequência dos altos índices de evaporação naquela região árida, com salinidade duas vezes e meia maior que o próprio Oceano Pacífico. Mesmo assim, possui uma flora e fauna típicas, perfeitamente equilibradas, que permitem a alimentação de um imenso número de aves migratórias e residentes durante o ano todo. O aumento de salinidade já ocorrido estava em vias de produzir drásticas reduções na produção de algas, o que levaria à eliminação progressiva de insetos, crustáceos e peixes, com consequente perda das aves. Os estudos realizados levaram o Departamento de Águas e Energia do Estado a reconhecer, em 1988, que o lago constitui um "recurso ambiental único, de valor significativo". Em 1991 e nos anos subsequentes, uma Corte da Califórnia estabeleceu que o lago deve ter a sua profundidade estabilizada, cassou as licenças até então concedidas para uso das águas da bacia e determinou o restabelecimento do regime de escoamento antes existentes nos quatro rios que haviam sido desviados.


POSSIBILIDADES NO BRASIL


No Brasil, como se sabe, existem enormes áreas em que, embora não ocorra um regime desértico verdadeiro, as chuvas mal distribuídas sugerem a utilização de sistemas de irrigação. No Nordeste são construídos açudes com essa finalidade, que retêm as águas dos períodos chuvosos para distribuição na seca. Muitos desses açudes se transformaram em lagos salgados, por falta de manejo adequado. A irrigação de áreas a partir do Rio São Francisco vem dando excelentes resultados, criando terrenos férteis, de grande produtividade, onde antes só se via caatinga. Os pôlders para plantio de arroz na bacia do Rio Paraíba do Sul têm sido bem-sucedidos, o que torna atraente investir nesse tipo de empreendimento. Mas tais iniciativas devem ser precedidas de estudos detalhados de solo e condições ecológicas, para que não se repitam aqui as situações desastrosas que ocorreram na Ásia e nos Estados Unidos.


Texto de Samuel Murgel Branco retirado do encarte "Água", publicado pelo Ministério Público do Estado de São Paulo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário