segunda-feira, 20 de julho de 2020

Julieta

Julieta veio pulando num pé só e perguntou: "Você já viu o Saci-Pererê?" Nós ainda não tínhamos visto e ficamos um tanto constrangidas. Só Paulina, a mentirosa, se atreveu a dizer que sim, mas nós sabíamos que não era verdade, pela sua maneira de revirar os olhos e de franzir os lábios por cima dos dentes acavalados. Paulina mentia sempre.

Julieta, porém, acreditava no Saci-Pererê, e contava a sua história com tanto realismo que ela mesma ficava com medo e olhava para as esquinas e para detrás das árvores, muito inquieta. Mas, se era um molequinho tão pequeno, de uma perna só, e pulando pelos ares, não chegávamos a achá-lo muito perigoso. Recomeçávamos a brincadeira. Pelo seguro, cantaríamos debaixo da varanda. "Não, não", - explicava Julieta - "o Saci-Pererê é muito perigoso, porque tem um cachimbo aceso! É todo preto, e leva aquela brasa na boca!"

Todas as noites, antes de dormir, esperávamos ver passar entre as árvores o cachimbo do Saci-Pererê. E brigávamos com Julieta por sua causa.

Julieta era colorista. "Vocês já viram pitanga?" Paulina dizia: "Já..." toda apressada, com a dentuça de fora. "Mentira!" - dizia Julieta. "Pitanga, por aqui, só na casa do General, que é muito longe, do lado de lá, por detrás da barreira, onde há um formigueiro enorme e umas galinhas-d'angola e muitos escorpiões!" Paulina arregalava os olhos e nós todas ficávamos olhando para a sua mentira. Só Julieta é que conhecia a tal fruta chamada pitanga. E prometia levar-nos um dia até os fundos da casa do General.

Julieta conhecia o passarinho Bico-de-lacre. Paulina também. "Mentirosa!" E cambaxirra? E pintassilgo? E araponga? Paulina quase chorava de raiva, porque ninguém acreditava nela. "Tenho até um alçapão!" - "Um alçapão!" A roda toda desatava a rir, porque ninguém ignora que uma menina - mesmo uma menina mentirosa - não brinca com alçapão nem atiradeira, que são coisas de rapaz. "Mas eu armei um alçapão e peguei um canário-da-terra!"

"Canário-da-terra!" Julieta fazia assim com a boca. "Estou falando de Bico-de-lacre, menina!"

Julieta era uma pretinha muito engraçada. Pulava num pé só, acreditava no Saci-Pererê, já tinha comido pitanga e conhecia o passarinho Bico-de-lacre. Usava colarzinho de coral, sabia muitas histórias de assombração, tocava qualquer música com um pedaço de papel de seda e um pente fino.

"Vocês já viram fazer puxa-puxa? Eu, já." Sabia de doces: de cocada preta e cor-de-rosa, de bala de ovo, de baba-de-moça, e de bolos muito finos que só se fazem para festas de casamento.

Sabia de costura, também: de cerzir e de chulear. Sabia muitas coisas de linha e de lã, que se tecem com bastidores, grampos e variadíssimas agulhas. "Eu faço muitos pontos de crochê e de tricô, e borlas com rodelas de papelão por dentro. Já bordei todo o alfabeto num talagarça!" Paulina levantava as sobrancelhas: uma vez... uma vez, tinha feito um porta-jornais todo bordado a ponto de cruz. Muito difícil! E estava começando a aprender piano com uma prima. Revirava a boca cheia de dentes, para perguntar por sua vez: "Vocês sabem o que é um sustenido?" Ah, isso ninguém sabia.

Mas Julieta já tinha falado com um "clove". Que era um "clove"? Isso ninguém sabia também. Julieta contava: era uma espécie de palhaço, mas não era um palhaço. Era muito diferente. Diferente na roupa, diferente na cartolinha... E a cara! Os "cloves" eram horríveis! Usavam máscara de meia, com uma boca muito grossa e uns olhos caídos assim para os lados... A boca também era caída. (E Julieta ia imitando um "clove".) E o nariz esborrachado. E uma carapinha cor de fogo, de duas pontas. Às vezes, de duas cores: do lado de cá, vermelha, do lado de lá, verde... Horríveis! Qualquer pessoa ficaria com medo. Mas Julieta já tinha falado com um!

A roupa dos "cloves" era uma beleza. Umas calças tão franzidas, tão franzidas que não acabavam mais... E um casaquinho todo bordado de lantejoulas, com uma beiradinha de arminho. Ao sol, o "clove" ficava lindo. (Ela queria dizer clown, mas tinha aprendido assim. E as meninas gostavam muito das palavras ditas por Julieta.)

Julieta ia levar as costuras da tia. "Quando eu voltar, fico brincando, também." Nós continuávamos a bater palmas e a dizer versos. (Porque era tempo do Giroflê...) E ela voltava, chupando balas. As balas eram de mil cores, com recheio de mosaico imitando rosas pequeninas. Não podíamos entender como se fazia aquele recheio marmoreado. Nem Paulina se atrevia a dar qualquer explicação. Aquilo pertencia ao mundo dos mistérios, onde só mais tarde penetraríamos. Julieta, com a boca cheia de açúcar, observava: "Isto é como o arco-íris..." Paulina corrigia: "Você quer dizer o arco-da-velha?" "É a mesma coisa. Mas o dr. Aristides só diz arco-íris!" As meninas pensavam: "Mas que velha seria aquela, do arco?" Devia ser outra mentira de Paulina. Menina incorrigível!

"Vocês também nunca viram mula-sem-cabeça?" - "Nunca." - "Pois existe!" E existiam uns porões cheios de almas do outro mundo, que rezavam ladainhas e arrastavam correntes, tudo por causa de uma Sinhá Velha que andou toda a vida de chicote na mão. Mas era um pouco longe. Era preciso andar umas três ruas...

"Vocês já viram nascer criança?" - "Eu nasci numa abóbora!" - afirmava Paulina. - "Numa abóbora!" - "Tenho certeza!" Julieta dizia com muita naturalidade: "Criança nasce como os gatinhos. Tal e qual. Com a diferença que é gente!"

Pois uma vez ela veio pulando num pé só, e dizia: "Estou brincando de 'Mamãe cangueira'." E soprava, ao mesmo tempo, num apito de pau, que lhe manchava a boca de roxo.

As meninas começaram a rir: "Olha a tinta que está saindo! Olha a tinta do apito! Você está com a boca toda encarnada!"

Julieta tirou o apito da boca, olhou para ele, olhou para as meninas, e ponderou: "Isto não é encarnado. Nem vermelho. Nem roxo. - Esta cor se chama solferino!"

As meninas chamavam Julieta, que ia passando, com travessinhas de pedras espetadas no cabelo duríssimo. "Tudo isso é brilhante, Julieta?" Perguntaram sinceramente. Brilhante era uma pedra muito conhecida. Até se cantava:


"Se esta rua, se esta rua fosse minha,
Eu mandava, eu mandava ladrilhar
Com pedrinhas, com pedrinhas de brilhante..."

"Não, estas são pedras-d'água. Comprei no mascate." Pedras-d'água! As meninas achavam lindíssimo que houvesse pedras-d'água, e ficavam mirando, felizes, as travessinhas de Julieta.

Depois, ela fez a Primeira Comunhão, e ficou linda, com um vestido de fazenda que devia ser muito cara, porque se chamava "nanzuque". Ele entendia muito de fazendas, pois a tia era costureira. Havia o "ponjê", o "mol-mol", a "cassa"... Mas o vestido dela era de nanzuque. Todas meninas murmuravam: "Nanzuque... Nanzuque..." Era uma palavra muito bonita.

Julieta passou a contar histórias de santos, milagres, castigos do Céu. Julieta era colorista: adorava o grande vitral da igreja, as fitas azuis e encarnadas das Filhas de Maria e das senhoras do Sagrado Coração. E descrevia as roupas dos sacerdotes, suas meias, seu anel. Ia buscar na chácara ramos de flores para os altares. Mostrava-nos as dálias, duras e orvalhadas, e perguntava: "Não parecem casas de de marimbondo? Tão bem feitinhas!" E dava-nos semprevivas, uma flor que não morre nunca. "Mas nós todos morremos" - dizia, muito sábia. - "Minha mãe já me disse que eu vou ficar pra semente..." (Era Paulina, a dos dentes acavalados.)

Julieta já tinha visto vários mortos. "Vocês também já viram? A gente estica. Fica muito fria, muito dura e amarela. Mas é só o corpo. A alma vai para o Céu, o Inferno ou o Purgatório!" E quando relampejava, nós pensávamos que o Céu se abria um pouquinho para mostrar o Inferno todo em fogo: mas logo se fechava, sem que pudéssemos ver aqueles Diabos de garfo que trabalham entre as labaredas.

Julieta já ganhava dinheiro. Fazia enxovais de tricô para recém-nascidos, e ia levar às freguesas seus embrulhos muito bem feitos, com sapatinhos, touquinhas, casaquinhos... Às vezes, parava, para mostrar seu trabalho às meninas, abrindo os papéis com muito cuidado e segurando os alfinetes nos dentes. "Tudo em ponto de arroz, com fitinha nº 1..."

Nós, porém, éramos muito pequenas. Continuávamos a brincar de roda, embaixo das árvores.

Paulina ia sempre mentindo. O Saci-Pererê não aparecia. As pessoas casavam-se. As crianças nasciam. Os velhos morriam. As almas do outro mundo cantavam ladainhas nos porões. A Virgem Maria caminhava na lua. O Diabo revolvia as brasas do Inferno...

"O Diabo tem dois chifres,
Giroflê, Giroflá..."

Nós sabíamos que tudo ia passando... Tudo era mentira e verdade. Nós também íamos passando, de mãos dadas... Era o tempo do Giroflê!

Conto de Cecília Meireles, do livro Giroflê Giroflá, da Coleção Veredas. Editora Moderna, 6ª Edição, 1992.

domingo, 19 de julho de 2020

Josefina

Encontrei-a no mais belo jardim do mundo. Jardim sem grandezas de relvado ou jorros dágua, sem estátuas nem balaustradas. Jardim arruinado, com uma arquitetura inverossímil de arames, tijolos, canos, latas, e um tanque a desmoronar-se, amolecido em limo, sob torneiras que mansamente lacrimejavam. O resto, uma profusão de bichos que escondiam seus mágicos sussurros dentro da terra, no meio das pedras, por cima das árvores...

Era, porém, o mais belo jardim do mundo, porque Josefina passava por ali, e suas saias crepitavam nas folhas secas, e seus dedos tão brancos armavam raminhos com malvas, miosótis, amores-perfeitos, - raminhos de trazer ao peito, de colocar diante dos santos, de pousar nas mãos dos mortos... E eu sempre pensei que era dele que falávamos quando íamos cantando, debaixo das laranjeiras:

"Fui passear no jardim das flores,
Giroflê, Giroflá..."

Os vestidos de Josefina eram como o seu jardim, com raminhos de junquilhos, chuva de violetas, estrelinhas de jasmins correndo por umas fazendas pensativas, umas fazendas melancólicas, roxas, cor de poente, cor de aflição. Ela era ainda menina, mas vestia-se como uma pessoa antiga: parecia uma viúva pequenina. Apenas um colarzinho iluminava esses vestidos tristes: era de contas lisas, umas contas de vidro tão roliças, tão lustrosas, que pareciam colhidas num rio, e guardavam a transparência e a fluidez das águas, e eram mais azuis do que o céu. Esse colar alegrava os vestidos, alegrava tudo: de longe se via o seu colar, antes de se avistarem os olhos de Josefina, que eram tão bonitos mas tão tristes, veludosos, quietos lilases, como os de um coelho branco.

E eu, quando via Josefina, já não queria ver mais nada, e só desejava ficar para sempre com um carretel de linha na mão, ajudando-a a fazer os seus raminhos de malva, miosótis, amor-perfeito e outras maravilhas que só se veem bem quando se olha de muito perto, quando se é criança, quando não se tem pressa, quando se está descobrindo o mundo.

E o que me espantava era não estarem ali todas as crianças da Terra, todos os bichos, mesmo todos os homens e mulheres, reis, sacerdotes, anciãos, escribas e fariseus, para verem Josefina sentada ao pé do tanque de limo, com o regaço cheio de flores, com o vestido cheio de flores, toda ela cheia de flores, amarrando flores em pequeninos ramos como nenhum artista jamais pintou ou descreveu.

Havia pombos que arrulhavam em redor de Josefina e libélulas que valsavam com seus vestidos de gaze e seus adereços de ametista. E o sol cobria o chão de medalhinhas de ouro, as aranhas estendiam umas teias enormes, como guarda-chuvas de cristal, e ficavam no meio, sonhando com o universo.

Mas, ao entardecer, Josefina dirigia seus passos, nuns sapatinhos pequenos como os de qualquer criança, dirigia seus passos muito leves, como folhas entre folhas, para dentro de casa: porque ultimamente, tossia; - e era tão pálida e tão débil! - e tão pobre que só se podia tratar com água de melissa e rebuçados...

E eu ficava tão espantada de que não viessem todas as crianças, e os bichos, e os reis e sacerdotes, e os escribas , mesmo os homens e as mulheres - já não digo da Terra, mas do bairro - com um remédio para a tosse de Josefina. A tosse que ela abafava num lencinho, com os seus dedos tão brancos e ainda úmidos de flores.

E os meus olhos ficavam tão pesados que nem queria dos seus rebuçados, e intimamente sabia que amanhã, que para o mês, que qualquer dia Josefina ia morrer.

E morreu. No silêncio de uma noite. No silêncio de sua triste alcova. Quando as flores estavam nascendo. Quando eu estava dormindo.

De rosto, de corpo, de mãos, não mudou nada. Ela fora sempre como um anjo de cera ou marfim. Seus olhos tão calmos, violáceos, prateados, seus olhos veludosos de coelho branco ficaram um pouquinho entreabertos, como as caixas de nácar que naquele tempo se usavam para as joias. Tinha nas pálpebras uma penumbras azuis, como certas campânulas.

Nunca soube quem lhe deu o vestido de cetim, a coroa de prata, para ser enterrada como as santas dos altares. Em redor de seu pescoço, onde antes se assentavam as contas lustrosas, feitas de água e de céu, corria agora um crespo enfeite de renda prateada, que brilhava muito, à luz dos círios.

Suas mãos eram tão jovens, tão tenras, que, mesmo mortas, se conservavam arredondadas, sem nenhuma dureza, sem esqueleto, com a substância de suas flores, e um desenho de pombos lunares.

De modo que a morte de Josefina foi como uma estranha festa. Não tinha pai nem mãe. (Só podia ter sido sem pai nem mãe.) E havia umas velhinhas que choravam de vez em quando, sempre que olhavam para o seu claro rosto imóvel entre os bandós do cabelo negro, sob a coroa de prata. E quem entrava também chorava um pouquinho, como se fosse formalidade. E aspergiam-na com um raminho de alecrim molhado num copo dágua, e rezavam de mãos postas, e desapareciam na sombra. E ela, em prata e cteim, brilhava como um espelho.

E eu ficava por ali, triste e despercebida, querendo brincar com suas mãos tão claras e seus negros cabelos copiosos. Querendo levá-la para o jardim, para aquele recanto de águas e pedras desmoronadas onde moravam borboletas e libélulas, para aquelas sombras cheias de aranhas e pássaros...

Vieram muitas palmas, ramos, uns enfeites de flores em forma de coração, com folhas de palmeirinha por baixo e laços azuis e brancos, de umas fitas tão leves que se via o sol através. E cheirava a horta, a rega, a jardim, aos campos imensos da madrugada, quando o sol pinta os cavalos e os bois de rosa e verde... E respingavam a morta com água alcanforada, como se o seu corpo fosse um canteiro de seda.

Tudo era acima de mim! E eu me perguntava se não viriam reis, sacerdotes, toda aquela gente poderosa, de que me falavam constantemente, ver que Josefina morrera e não poderia fazer mais seus lindos raminhos multicores; e morrera (eu o sabia! eu o sabia!) porque só tinha podido tomar água de melissa e rebuçados para a tosse. E queria perguntar-lhe se isso era possível, e se ninguém sofreria, quando eu o contasse, e queria ver se não ficariam desesperados, arrependidos, e se ninguém a ressuscitava.

Ah! não vieram... Não a ressuscitaram! A casa pobre e apertada cheirava a chácara, a cera, a luz, a café. Porque serviam café numas xicrinhas de beiço lascado, como se  fosse parte do cerimonial sorver-se um gole, enxugar-se o bigode, fazer-se tinir a colherzinha no pires. Depois, sentados em redor, esperavam. Esperavam que o tempo passasse. Rezavam, choravam e conversavam muito baixinho.

E o caixão estava cheio de dálias, rosas e flores tão açucaradas que formigas pequeninas viajavam em fila pelo cetim branco... Mas não houve raminho amarrado com a graça, com o sentimento dos que Josefina amarrou para tanta gente, naquele tempo em que todos se enfeitavam com flores, e os raminhos queriam dizer diferentes coisas, conforme estivessem colocados no cabelo, no peito, na cintura... No tempo em que cada flor tinha um significado, era uma palavras...

E não soube mais nada: não me deixavam ver o resto. Certamente para que eu não sofresse. Mas eu já tinha sofrido tudo.

Mais tarde, quando falavam nela, diziam: "Morreu como um passarinho". E indagavam uns para os outros: "Que veio fazer a este mundo?"

Então, meus olhos se enchiam de água; meus olhos ficavam como aqueles velhos tanques de limo, - e eu via de longe seu rosto, suas mãos, seu colar azul consolando o vestidinho triste, - e dentro de mim repetia também aquela pergunta.

Mas nem os reis nem sacerdotes nem os escribas e muito menos os fariseus responderiam...

Conto de Cecília Meireles, do livro Giroflê Giroflá, da Coleção Veredas. Editora Moderna, 6ª Edição, 1992.

sábado, 18 de julho de 2020

O Dia Abriu Seu Para-Sol Bordado

O dia abriu seu para-sol bordado
De nuvens e de verde ramaria.
E estava até um fumo, que sabia,
Mi-nu-ci-o-sa-men-te desenhado.

Depois surgiu, no céu azul arqueado,
A Lua - a Lua! - em pleno meio-dia.
Na rua, um menininho que seguia
Parou, ficou a olhá-la admirado...

Pus meus sapatos na janela alta,
Sobre o rebordo... Céu é que lhes falta
Pra suportarem a existência rude!

E eles sonham, imóveis, deslumbrados,
Que são dois velhos barcos, encalhados
Sobre a margem tranquila de um açude...


Poema de Mário Quintana retirado da coletânea Os Melhores Poemas, Global Editora.  3ª Edição, 1987. Seleção de Fausto Cunha.



Canção Para Uma Valsa Lenta

Minha vida não foi um romance...
Nunca tive até hoje um segredo.
Se me amas, não digas, que morro
De surpresa... de encanto... de medo...

Minha vida não foi um romance...
Minha vida passou por passar.
Se não amas, não finjais, que vivo
Esperando um amor para amar.

Minha vida não foi um romance...
Pobre vida... passou sem enredo...
Glória a ti que me enches a vida
De surpresa, de encanto, de medo!

Minha vida não foi um romance...
Ai de mim... Já se ia acabar!
Pobre vida que toda depende
De um sorriso... de um gesto... um olhar...


Poema de Mário Quintana retirado da coletânea Os Melhores Poemas, Global Editora. 3ª Edição, 1987. Seleção de Fausto Cunha.

Da Primeira Vez Que Me Assassinaram

Da vez primeira em que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha...
Depois, de cada vez que me mataram.
Foram levando qualquer coisa minha...

E hoje, dos meus cadáveres, eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada...
Arde um toco de vela, amarelada...
Como o único bem que me ficou!

Vinde, corvos, chacais, ladrões de estrada!
Ah! desta mão, avaramente adunca,
ninguém há de arrancar-me a luz sagrada!

Aves da Noite! Asas do Horror! Voejai!
Que a luz, trêmula e triste como um ai,
A luz do morto não se apaga nunca!


Poema de Mário Quintana retirado da coletânea Os Melhores Poemas, Global Editora. 3ª Edição. 1987. Seleção de Fausto Cunha.

sexta-feira, 17 de julho de 2020

O Grande Circo Místico

O médico de câmara da imperatriz Teresa - Frederico Knieps
resolveu que seu filho também fosse médico,
mas o rapaz fazendo relações com a equilibrista Agnes,
com ela se casou, fundando a dinastia do circo Knieps
de que tanto se tem ocupado a imprensa.
Charlote, filha de Frederico, se casou com o claune,
do que nasceram Marie e Oto.
E Oto se casou com Lily Braun, a grande deslocadora
que tinha no ventre um santo tatuado.
A filha de Lily Braun - a tatuada no ventre
quis entrar para um convento,
mas Oto Frederico Knieps não atendeu,
e Margarete continuou a dinastia do circo
de que tanto se tem ocupado a imprensa.
Então, Margarete tatuou o corpo
sofrendo muito por amor de Deus,
pois gravou em sua pele rósea
a Via-Sacra do Senhor dos Passos.
E nenhum tigre a ofendeu jamais;
e o leão Nero que já havia comido dois ventríloquos,
quando ela entrava nua pela jaula adentro, 
chorava como um recém-nascido.
Seu esposo - o trapezista Ludwig nunca mais a pode amar,
pois as gravuras sagradas afastavam
a pele dela e o desejo dele.
Então o boxeur Rudolf que era ateu
e era homem-fera derrubou Margarete e a violou.
Quando acabou, o ateu se converteu, morreu.
Margarete pariu duas meninas que são o prodígio do Grande Circo Knieps.
Mas o maior milagre são as suas virgindades
em que os banqueiros e os homens de monóculos têm esbarrado;
são as suas levitações que a plateia pensa ser truque;
é a sua pureza em que ninguém acredita;
são as suas mágicas em que os simples dizem que há o diabo;
mas as crianças creem nelas, são seus fiéis, seus amigos, seus devotos.
Marie e Helène se apresentam nuas,
dançam no arame e deslocam de tal forma os mebros
que parece que os membros não são delas.
A plateia bisa coxas, bisa seios, bisa sovacos.
Marie e Helène se repartem todas,
se distribuem pelos homens cínicos,
mas ninguém vê as almas que elas conservam puras.
E quando atiram os membros para a visão dos homens,
atiram as almas para a visão de Deus.
Com a verdadeira história do Grande Circo Knieps
muito pouco se tem ocupado a imprensa.

Poema de Jorge de Lima retirado da coletânea Nossos Clássicos, da Livraria Agir Editora, 3ª Edição, 1975.

O Grande Desastre Aéreo de Ontem

Vejo sangue no ar, vejo o piloto que levava uma flor para a noiva, abraçado com a hélice. E o violinista, em que a morte acentuou a palidez, despenhar-se com sua cabeleira negra e seu estradivárius. Há mãos e pernas de dançarinas arremessadas na explosão. Corpos irreconhecíveis identificados pelo Grande Reconhecedor. Vejo sangue no ar, vejo chuva de sangue caindo nas nuves batizadas pelo sangue dos poetas mártires. Vejo a nadadora belíssima, no seu último salto de banhista, mais rápida porque vem sem vida. Vejo três meninas caindo rápidas, enfunadas, como se dançassem ainda. E vejo a louca abraçada ao ramalhete de rosas que ela pensou ser o paraquedas, e a prima-dona com a longa cauda de lantejoulas riscando o céu como um cometa. E o sino que ia para uma capela do oeste, vir dobrando finados pelos pobres mortos. Presumo que a moça adormecida na cabina ainda vem dormindo, tão tranquila e cega! Ó amigos, o paralítico vem com extrema rapidez, vem como uma estrela cadente, vem com as pernas do vento. Chove sangue sobre as nuvens de Deus. E há poetas míopes que pensam que é o arrebol.

Texto de Jorge de Lima.

O Acendedor de Lampiões

Lá vem o acendedor de lampiões da rua!
Este mesmo que vem infatigavelmente,
Parodiar o sol e associar-se à lua
Quando a sombra da noite enegrece o poente!

Um, dois, três lampiões, acende e continua
Outros mais a acender imperturbavelmente,
À medida que a noite aos poucos se acentua
E a palidez da lua apenas se pressente.

Triste ironia atroz que o senso humano irrita:
Ele que doura a noite e ilumina a cidade,
Talvez não tenha luz na choupana em que habita.

Tanta gente também nos outros insinua
Crenças, religiões, amor, felicidade,
Como este acendedor de lampiões de rua!

Soneto de Jorge de Lima, retirado do livro Nossos Clássicos, Livraria Agir Editora, 3a Edição, 1975.

quinta-feira, 16 de julho de 2020

O Filho

Um homem muito rico e seu filho tinham grande paixão pela arte. Tinham de tudo em sua coleção, desde Picasso até Rafael. Muito unidos, se sentavam juntos para admirar as grandes obras de arte.

Por uma desgraça do destino, seu filho foi para a guerra. Foi muito valente e morreu na batalha, quando resgatava um soldado.

O pai recebeu a notícia e sofreu profundamente a morte de seu único filho. 

Um mês mais tarde, justo antes do Natal, alguém bateu na porta... Um jovem com uma grande tela em suas mãos disse ao pai:

- Senhor, você não me conhece, mas eu sou o soldado por quem seu filho deu a vida. Ele salvou muitas vidas nesse dia e estava me levando a um lugar seguro quando uma bala lhe atravessou o peito, morrendo assim, instantaneamente. Ele falava muito do senhor e deu seu amor pela arte.

E o rapaz estendeu os braços para entregar a tela.

- Eu sei que não é muito e eu também não sou um grande artista, mas sei também que seu filho gostaria que você recebesse isto.

O pai abriu a tela. Era o retrato de seu filho, pintado pelo jovem soldado. Ele olhou com profunda admiração a maneira como o soldado havia capturado a personalidade de seu filho na pintura. 

O pai estava tão atraído pela expressão dos olhos de seu filho que seus próprios olhos se encheram de lágrimas. Ele agradeceu ao jovem soldado e ofereceu pagar-lhe pela pintura.

- Não, senhor, eu nunca poderia pagar-lhe o que seu filho fez por mim. Essa pintura é um presente.

O pai colocou a tela a frente de suas grandes obras de arte. Cada vez que alguém visitava sua casa, ele mostrava o retrato do filho, antes de mostrar sua famosa galeria.

O homem morreu alguns meses mais tarde e se anunciou um leilão de todas as suas obras de arte. Muita gente importante e influente, com grandes expectativas de comprar verdadeiras obras de arte.

Em exposição, estava o retrato do filho.

O leiloador bateu seu martelo para dar início ao leilão.

- Começaremos o leilão com o retrato "O FILHO". Quem oferece por este quadro? Um grande silêncio...

Então, um grito do fundo da sala:

- Queremos ver as pinturas famosas!!! Esqueça-se desta!!!

O leiloador insistiu... 

- Alguém oferece algo por essa pintura? $100? $200? 

Mais uma vez outra voz:

- Não viemos por esta pintura! Viemos por Van Goghs, Picasso... Vamos às ofertas de verdade...

Mesmo assim, o leiloador continuou:

- O FILHO!!! O FILHO!!! Quem leva O FILHO?

Finalmente, uma voz:

- Eu dou $ 10 pela pintura.

Era o velho jardineiro da casa. Sendo um homem muito pobre, esse era o único dinheiro que podia oferecer.

- Temos $10! Quem dá 20$? gritou o leiloador.

As pessoas já estavam irritadas, não queriam a pintura O FILHO, queriam as que realmente eram valiosas, para completarem sua coleção.

Então, o leiloador bateu o martelo. Dou-lhe uma, dou-lhe duas... Vendida por $10!!!

- Agora vamos começar com a coleção!! gritou um.

O leiloador soltou seu martelo e disse:

- Sinto muito, damas e cavalheiros, mas o leilão chegou ao seu final.

- Mas, e as pinturas? disseram os interessados.

- Eu sinto muito, disse o leiloeiro. Quando me chamaram para fazer o leilão, havia um segredo estipulado no testamento do dono. Não seria permitido revelar esse segredo até esse exato momento. Somente a pintura O FILHO seria leiloada. Aquele que a comprasse, herdaria absolutamente todas as posses deste homem, inclusive as famosas pinturas. O homem que comprou O FILHO fica com tudo...

Autoria desconhecida. 

O Laço Azul

Uma professora decidiu homenagear seus alunos do último ano colegial, dizendo a cada um deles a sua importância.

Ela chamou todos os alunos em frente à classe, um de cada vez.

Primeiro, disse a eles como eram importantes para ela e para a classe. Então, presenteou cada um deles com um laço azul com uma frase impressa em letras douradas: EU SOU IMPORTANTE.

Depois, a professora resolveu desenvolver um trabalho com a classe para ver que tipo de impacto o reconhecimento teria sobre a comunidade.

Deu a cada aluno mais três laços e os instruiu para que saíssem e disseminassem a cerimônia de reconhecimento. Em seguida, eles deveriam acompanhar os resultados. Ver quem homenagearia quem e relatar à classe dentro de uma semana.

Um dos alunos foi até um executivo Júnior de uma empresa próxima e o condecorou por ajudá-lo no planejamento de sua carreira.

Então, deu-lhe dois outros laços e disse:

- Estamos fazendo um trabalho para a Escola sobre reconhecimento. Gostaríamos que você procurasse alguém para homenagear, que o presenteasse com um laço azul, e que lhe desse outro laço para ela homenagear uma terceira pessoa, disseminando esta cerimônia de reconhecimento. Em seguida, por favor, procure-me novamente e conte-me o que aconteceu.

Mais tarde, naquele dia, o executivo Júnior procurou seu chefe, que era tido até então, como um cara rabugento. Pediu ao chefe que se sentasse e disse-lhe que o admirava profundamente por seu gênio criativo. O chefe pareceu surpreso.

O rapaz perguntou-lhe se aceitaria o laço azul como presente e se permitia que ele o colocasse. Seu chefe, surpreso, disse que sim. O executivo Júnior pegou o laço de fita azul e colocou-o no paletó do chefe bem acima do coração. Ao dar ao chefe o último laço, disse:

- O senhor me faz um favor? Receberia este outro laço e o passaria adiante homenageando outra pessoa? O garoto que me deu o laço está fazendo um trabalho para a Escola e quer que esta cerimônia de reconhecimento prossiga, para descobrir como ela influencia as pessoas.

Naquela noite, ao chegar em casa, o chefe procurou seu filho de quatorze anos e pediu que se sentasse e disse:

- Hoje me aconteceu uma coisa incrível. Estava em meu escritório e um dos executivos Juniores entrou, disse que me admirava e me deu este laço azul por me considerar um gênio criativo. Então, ele prendeu este laço que diz "EU SOU IMPORTANTE" no meu paletó, bem sobre meu coração... Deu-me um outro laço e pediu-me que homenageasse uma outra pessoa.

Esta noite, voltando para casa, comecei a pensar a quem homenagearia com este laço e pensei em você. Quero homenagear você. Meus dias são muito tumultuados e, quando chego em casa, não lhe dou muita atenção. Algumas vezes grito com você  por não tirar boas notas na escola e por seu quarto estar uma bagunça, mas de qualquer forma, esta noite eu gostaria apenas de me sentar aqui e, bem... Dizer-lhe que você é Muito Importante para mim. Além de sua mãe, você é a pessoa mais importante em minha vida. Você é um grande filho e eu amo você.

O sobressaltado garoto começou a soluçar e não conseguia parar de chorar. Todos o seu corpo tremia.

Ele olhou para o pai e disse através de lágrimas:

- Papai, eu planejava cometer suicídio amanhã, porque achava que você não me amava. Agora não preciso mais...

Autoria desconhecida.