sábado, 21 de setembro de 2024

Baile à fantasia

 A má tradução repetida de algumas palavras pode gerar imprecisão


Num comercial bem-humorado da Hertz, um homem fantasiado pede a um policial que lhe alugue a viatura (como dizem os da polícia) para que ele, civil, vá a um baile à fantasia. Curiosa é a forma como o "elemento" se dirige ao policial. Chama-o de "oficial":

"Oficial, o senhor pode me alugar a sua viatura para ir ao baile?"

A palavra "oficial" dirigida a um policial comum de ronda é resultado das centenas de vezes em que o termo inglês officer (agente da polícia, em inglês, entre outras coisas) foi traduzido como "policial" em jornais, filmes e noticiários brasileiros. Em vez de "policial" ou do popular "seu guarda", eles dizem "oficial". E já se percebe em notícias:

"Quando os oficiais chegaram, os assaltantes já tinham fugido".

Um falso cognato, portanto, dos vários que circulam por aí. Em Português, "oficial" só se aplica a autoridade de grau de comando de nível hierárquico superior a aspirante (no Exército, na Aeronáutica e na polícia Militar) ou de guarda-marinha (na Marinha de Guerra). Fora outras acepções não relacionadas com militares, claro.

Falso cognato é aquele que parece mas não é. (Cognato é palavra que vem da mesma raiz que outra. Ou outras.) É a palavra semelhante a outra, de outra língua, mas com significado diferente. Um já incorporado ao vocabulário brasileiro é "inteligência", no sentido de "coleta de informações", já que intelligence em inglês também significa "informação". Pegou tanto que o bem "inteligenciado" governo brasileiro criou já faz tempo a "Agência Nacional de Inteligência", que nos tempos da ditadura militar tinha o castiço nome de "Agência Nacional de informações". Talvez a única virtude da agência desenvolvida para infernizar adversários. O resultado é que Aurélio e Houaiss já registram em verbetes diferentes "inteligência"(1), a nacional, e o anglicismo "inteligência"(2) com o significado de "serviço de informações". O Aulete Digital ignora o anglicismo.

Há outros casos. Houve tempo em que "suporte" era aquilo suporta ou sustenta algo, como um sólido apoio de prateleiras, além de noções figuradas paralelas. Com a informática, "suporte" ganhou o significado de "material" destinado a receber a informação. Por fim, assumiu o significado anglo-americano de "ajuda" e "assistência técnica". "Vou lhe dar um suporte", pode dizer o rapaz informatizado, com celular grudado na mão, ao sujeito que carrega uma caixa de cervejas para temperar o churrasco.

Tolice investir contra estrangeirismos, como puristas nervosos, porque as línguas se interpenetram e se enriquecem com palavras ou estruturas que suprem umas as deficiências de outras. Difíceis de justificar, no entanto, são anglicismos como "oficial" e "planta", de plant, com o sentido de "fábrica" ou "complexo industrial". "Planta" por "fábrica" parece mostrar o papagaísmo de áreas técnicas, de brasileiros distraídos e obrigados a usar a língua inglesa com frequência, sem ter fixado bem a portuguesa. Uma hipótese, claro. Pode ser pedantismo. O fato é que "planta" fica melhor como denominação genérica de avencas, samambaias e trepadeiras (as vegetais).


Texto de Josué Machado retirado da Revista Língua Portuguesa, Ano 9, número 109, Novembro de 2014, Editora Segmento, São Paulo.

domingo, 15 de setembro de 2024

Na Obra Regenerativa (37)

 "Irmãos, se algum homem chegar a ser surpreendido nalguma ofensa, vós, que sois espirituais, orientai-o com espírito de mansidão, velando por vós mesmos para que não sejais igualmente tentados." - Paulo. (GÁLATAS, 6:1.)


Se tentamos orientar o irmão perdido nos cipoais do erro, com aguilhões de cólera, nada mais fazemos que lhe despertar a ira contra nós mesmos.

Se lhe impusermos golpes, revidará com outros tantos.

Se lhe destacamos as falhas, poderá salientar os nossos gestos menos felizes.

Se opinamos para que sofra o mesmo mal com que feriu a outrem, apenas aumentamos a percentagem do mal, em derredor de nós.

Se lhe aplaudimos a conduta errônea, aprovamos o crime.

Se permanecemos indiferentes, sustentamos a perturbação.

Mas se tratarmos o erro do semelhante, como quem cogita de afastar a enfermidade de um amigo doente, estamos, na realidade, concretizando a obra regenerativa.

Nas horas difíceis, em que vemos um companheiro despenhar-se nas sombras interiores, não olvidemos que, para auxiliá-lo, é tão desaconselhável a condenação, quanto o elogio.

Se não é justo atirar petróleo às chamas, com o propósito de apagar a fogueira, ninguém cura chagas com a projeção de perfume.

Sejamos humanos, antes de tudo.

Abeiremo-nos do companheiro infeliz, com os valores da compreensão e da fraternidade.

Ninguém perderá, exercendo o respeito que devemos a todas as criaturas e a todas as coisas.

Situemo-nos na posição do acusado e reflitamos se, nas condições dele, teríamos resistido às sugestões do mal. Relacionemos as nossas vantagens e os prejuízos do próximo, com imparcialidade e boa intenção.

Toda vez que assim procedermos, o quadro se modifica nos mínimos aspectos.

De outro modo será sempre fácil zurzir e condenar, para cairmos, com certeza, nos mesmos delitos, quando formos, por nossa vez, visitados pela tentação.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

O país do provérbio pronto

 Expressões populares brasileiras traduzem bom humor em relação à vida.


A paremiologia é o estudo de parêmias, do grego paromia (parábola, provérbio), uma subdisciplina do grande campo do folclore. Quem se interessa pelo estudo de provérbios tem uma verdadeira seara, pois o assunto é interdisciplinar e envolve as áreas de semiologia, linguística, pragmática e estudos literários e a didática de ensino de idiomas.

Há provérbios de diferentes nacionalidades (francesa, italianos, árabes, indianos, chineses e luso-brasileiros, entre outros), de temas variados, alguns irônicos, outros irreverentes, e ainda outros perspicazes com respeito à nossa vivência cotidiana.

Para Walter Benjamin, o provérbio tem o poder de transformar a experiência vivida das pessoas em sabedoria prática (Walter Benjamin, "On Proverbs." In: Selected Writings, vol 2: 1927-34. Org. Michael W. Jennings et alii Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1999; 582).

Humor

O que caracteriza os provérbios brasileiros é o bom humor em relação à vida:

* Quem tem rabo de palha não senta perto do fogo.

* Bode velho quer capim novo.

* Em tempo de guerra, urubu é frango.

* Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.

* Cachorro mordido por cobra tem medo de linguiça.

* Quem tem pressa come cu.

Todos os provérbios, inclusive os luso-brasileiros, contém ensinamentos preciosos que nem sempre são lembrados pelos usuários num determinado momento:

* Seja dono de sua boca, para não ser escravo de suas palavras.

A relação de bom humor em relação à vida, por parte do brasileiro, ganha relevo ainda maior com as iniciativas de inversão de ditos proverbiais. O saudoso Millôr Fernandes, por exemplo, na informativa e divertida Bíblia do Caos (Porto Alegre: L&PM, 1994: 394) reformula o provérbio tradicional "Deus ajuda a quem cedo madruga" em: "Mais vale quem Deus ajuda do que quem cedo madruga".

Definição

O humorista definia o provérbio nestes termos: "Provérbio é uma frase tão bem feita que acaba se tornando proverbial".

Há especialistas que dizem que os provérbios são frases fixas ou "congeladas", mas os usuários, os verdadeiros donos do idioma, pensam de forma diferente.

O refrão "Gosto não se discute" tem sido alterado pelos falantes do português:

* Gosto não se discute, se lamenta.

* Gosto é igual relógio, uns têm outros não.

José Simão, uma geração de humoristas-jornalistas mais nova que a de Millôr, não perdeu a oportunidade de modificar um conhecido pronome usado no Brasil e em Portugal:

* Diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és (Portugal)

* Diz-me com quem andas e te direi quem és (Brasil)

Com a substituição do verbo "demonstrar" e do outro sujeito (em lugar do verbo na 1ª pessoa do singular "dir-te-ei, "te direi", a conhecida repetição do governo), Simão obtém um efeito humorístico:

* Demóste-me com quem andas, e a Polícia Federal te dirá quem és!" (José Simão, "Ueba! Obama é brasileiro!" Folha de São Paulo, 10 de abril de 2012).

Inversão

Simão extrai humor da inversão proverbial que conta com a memória coletiva sobre os provérbios e o conhecimento de eventos da política nacional no calor do momento, como foi o caso do envolvimento ilícito, investigado em 2011 e 2012, entre o então impoluto congressista Demóstenes Torres, da oposição, com o criminoso Carlinhos Cachoeira.

Os provérbios, os "discursos em miniatura", nos apresentam reflexões sobre o comportamento humano e nos fornecem momentos de descontração. São artefatos literários presentes nas obras de autores como Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e Machado de Assis.

São parte integral do cultivo do idioma.


Texto de John Robert Schmitz retirado da Revista Língua Portuguesa, Ano 9, número 110, Dezembro de 2014, Editora Segmento, São Paulo.

O autor é norte-americano radicado no Brasil. Professor do Departamento de Linguística Aplicada da Unicamp e autor de Dicionário de Epônimos e Topônimos da Língua Portuguesa (Editora Prismas, Curitiba).

domingo, 8 de setembro de 2024

O vocabulário da ficção científica

Uso de termos cifrados, marca no gênero, é um desafio narrativo


Realidades novas pedem palavras novas, e em nenhuma literatura isto é tão visível quanto ficção científica, em que autores constantemente propõem elementos que não têm nenhum ponto de referência no repertório do leitor. É preciso um certo cuidado para introduzir esses termos, porque há leitores que se sentem impossibilitados de avançar na leitura enquanto não encontrarem uma definição clara de cada palavra.

Meu conselho, nesses casos, é: Não entendeu? Siga em frente. Entenderá mais adiante. O autor sabe que aquele termo (muitas vezes algo que ele mesmo inventou) pode produzir um pequeno ruído na comunicação. Sabe que precisa dar uma pista ao leitor, mas nem sempre essa dica pode aparecer da palavra nova. Vale a pena avançar na leitura, porque na primeira oportunidade o autor dará essa pista - geralmente fazendo com que um dos personagens toque no assunto, e seja esclarecido por outro.

Termos recentes como cyborg, cyberespaço, realidade virtual e outros que estão sendo cada vez mais assimilados pela imprensa e pela palavra escrita em geral. Tornaram-se parte do nosso cotidiano, são conceitos que aceitamos mesmo quando temos alguma dificuldade em definir, se nos pedirem.

Um website útil para conferir termos como os citados nestas páginas é Science Fiction Citations (http://jessesword.com/sf/list/) que contém um longo glossário onde os termos são definidos e se faz uma tentativa de datar o primeiro uso conhecido da palavra numa obra do gênero.

O site mostra também um interessante gráfico sobre a época  em que foi cunhada a maior parte desses termos. As décadas de 1930 a 1950, que foram a era de ouro das revistas de pulp fiction norte-americanas, são o período em que maior número de termos foi inventado nas obras literárias. Já as décadas de 1960, 70 e 80 são as que tiveram um número maior de termos de crítica e história literária, e refletem a época de maior  reflexão teórica a respeito da literatura criada nos anos anteriores.


Teletransporte

"Teletransporte", "teletransportador" ou "teleportagem" são termos que aparecem com frequência para indicar a viagem instantânea de um ponto a outro do espaço, mediante desmaterialização do corpo no ponto A e reconstituição do seu corpo no ponto B. (O filme A Mosca, de David Cronenberg, mostra os riscos de quando esse processo não dá certo.)


Animação suspensa

Um outro processo para viagens espaciais muito longas é o que em inglês chama-se de suspended animation. Já vi esta expressão traduzida às pressas por "suspensão animada", mas o certo é o contrário: "animação suspensa". Isto significa uma tecnologia capaz de suspender todas as funções vitais de um ser humano, como que "congelando-o" vivo, e mantendo-o assim durante todo o tempo que durar a viagem da espaçonave, não importa se serão anos ou séculos. Ao chegar, o processo é revertido, e o astronauta é despertado do seu sono profundo.

A animação suspensa tornou-se tão comum em histórias de FC que frequentemente o autor não se dá o trabalho de explicar do que se trata.


Créditos

Algumas palavras se explicam intuitivamente. Já na década de 1930 autores de FC descreviam sociedades futuras em que, em vez de dólares, usavam-se "créditos" como moeda. Se um personagem mete a mão no bolso e paga trinta créditos por uma roupa, dois créditos por um drinque, e assim por diante, essas transações vão dando ao leitor uma ideia do valor relativo da moeda. Além do mais, a palavra " crédito" é mais autoexplicativa do que simplesmente uma palavra inventada qualquer.


Xenobiologia

Como grande parte da FC envolve contatos com criaturas extraterrestres, a partícula "xeno-" (= estranho, estrangeiro) aparece com frequência na construção de termos. Talvez o mais usado seja "xenobiologia", o estudo da biologia desses seres alienígenas.

A xenobiologia é uma ciência imaginária. Ainda não tem aplicação prática por lhe faltar um objeto claramente definido, pois ainda não encontramos nenhum traço de organismos vivos de origem não terrestre.

Dado o precedente, porém, não será difícil encontrarmos numa história de FC referências a xenossociologia, xenolinguística, xenobotânica e assim por diante. (Alguns escritores preferem substituir "xeno-" pelo seu equivalente "exo-": exobiologia, etc.)


Texto de Bráulio Tavares retirado da revista Língua Portuguesa, Ano 9, número 110, Dezembro de 2014, Editora Segmento, São Paulo.

sábado, 7 de setembro de 2024

Afirmação Esclarecedora (36)

 "E não quereis vir a mim para terdes vida." - Jesus. (JOÃO, 5:40)


Quantos procuram a sublimação da individualidade precisam entender o valor supremo da vontade no aprimoramento próprio.

Os templos e as escolas do Cristianismo permanecem repletos de aprendizes que vislumbram os poderes divinos de Jesus e lhe reconhecem a magnanimidade, caminhando, porém, ao sabor de vacilações cruéis.

Creem e descreem, ajudam e desajudam, organizam e perturbam, iluminam-se na fé e ensombram-se na desconfiança...

É que esperam a proteção do Senhor para desfrutarem o contentamento imediato no corpo, mas não querem ir até Ele para se apossarem da vida eterna.

Pedem o milagre das mãos do Cristo, mas não lhe aceitam as diretrizes. Solicitam-lhe a presença consoladora, entretanto, não lhe acompanham os passos. Pretendem ouvi-lo, à beira do lago sereno, em preleções de esperança e conforto, todavia, negam-se a partilhar com ele o serviço da estrada, através do sacrifício pela vitória do bem. Cortejam-no em Jerusalém, adornada de flores, mas fogem aos testemunhos de entendimento e bondade, à frente da multidão desvairada e enferma. Suplicam-lhe as bênçãos da ressurreição, no entanto, odeiam a cruz de espinhos que regenera e santifica.

Podem ir na vanguarda edificante, mas não querem.

Clamam por luz divina, entretanto, receiam abandonar as sombras.

Suspiram pela melhoria das condições em que se agitam, todavia, detestam a própria renovação.

Vemos, pois, que é fácil comer o pão multiplicado pelo infinito amor do Mestre Divino ou regozijar-se alguém com a sua influência curativa, mas, para alcançar a Vida Abundante de que ele se fez o embaixador sublime, não basta a faculdade de poder e o ato de crer, mas também a vontade perseverante de quem aprendeu a trabalhar e servir, aperfeiçoar e querer.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

O cochilo da gramática

                         Vale investigar a razão por que a análise gramatical pouco tem ajudado no aprendizado de leitura e escrita


A questão não consegue desaparecer, por mais que a hora tenha chegado. Quem imagina que alunos podem aprender a ler e a escrever fazendo exercícios de gramática deveria ter desistido da teoria e da consequente empreitada, seja por motivações teóricas, seja pelas evidências empíricas.

As razões teóricas são muitas, mas uma é essencial: saber analisar (ainda que se tratasse de fato de análise!) não tem nada a ver com saber escrever e saber ler.

Pode-se confirmar isso de muitas maneiras, mas bastaria invocar o fato de que grandes escritores escreveram antes de haver gramáticas (Aristóteles, Sófocles, Cícero, Camões...).

Os fatos empíricos deveriam ter impacto demolidor, mas a turma não se rende: quanto mais se ensina que não se deve dizer "me parece / me dá um dinheiro", mais estas construções são usadas (quem defende este tipo de ensino deveria também estudar um pouco mais, para dar-se conta de que não há erro no caso, mas simplesmente uma diferença entre o Português do Brasil e o de Portugal; além disso, por que insistir em algumas construções de lá, e não em todas, então, inclusive em sua pronúncia?).

Os defensores duros do ensino de gramática poderiam, além disso, dar-se conta de que um volume que tenha a palavra "gramática" na capa contém tópicos bem diferentes entre si.

Simplificando: uma coisa é ensinar que se deve dizer "Prefiro isto a aquilo" [e não "Prefiro (mais) isto do que aquilo"], tese que se poderia discutir à luz da mudança da língua (mas deixa pra lá); outra coisa é ensinar que "isto" é um objeto direto e "aquilo" é um indireto.


Uso Real

É bom saber isto? Claro! É tão bom como saber quanto vivem as tartarugas, quais animais estão ameaçados de extinção e por que, qual a temperatura no pico do Himalaia no inverno, quem matou César e quem fez os gols do Brasil na final da Copa de 70.

Quero dizer com isso que saber analisar funções sintáticas não interfere no uso real das construções sintáticas. Se interferisse, ninguém mais diria "Vende-se roupas usadas", porque o "se apassivador" é ensinado inutilmente todos os anos há muito tempo.

Em suma, uma gramática são duas (como Drummond disse do Português): uma é destinada a ensinar a norma (escreve-se assim, a regência é tal, a concordância é esta e não aquela, o particípio de "chegar" é "chegado", etc.) e a outra é destinada a tornar os alunos aptos a descrever estruturas da língua: sílabas, tonicidade, formação de palavras, construções sintáticas etc.

Do ponto de vista "pragmático", isto é, considerando que a escola deve formar alunos que escrevam e leiam bem diversos tipos de texto, uma das duas gramáticas é muito mais relevante do que a outra.

Ou seja, pode-se aprender, com o tempo e as práticas adequadas, que se diz / escreve assim e não assado, sem passar necessariamente pela análise (como antes de haver gramáticas, isto é, pelo método de Luís de Camões).


Chegano

Tomemos um caso simples: suponhamos que um aluno escreva estou chegano. Basta corrigir. Não é necessário dizer que se trata de um gerúndio e os gerúndios, em Português, terminam em -ndo.

Não que isto deva ser proibido, que se entenda bem. Mas não é necessário que este tema esteja no programa para que se aprenda a escrever corretamente; pior, e mais inútil, é quando as formas verbais são apenas decoradas ou sua avaliação é feita num teste do tipo "assinale a alternativa que contém (ou não contém) um gerúndio".

O princípio que vale para uma palavra ou uma letra vale para uma oração ou um parágrafo, ou para um texto: corrigir erros reais (alternativamente: tratar de textos reais, mesmo que não se trate de corrigir, mas de sofisticar, de oferecer alternativas).


Infantil

Essa metodologia pode ser apresentada simplificadamente como a do aprendizado da  língua materna.

De fato, adultos manifestam, em relação à linguagem infantil, duas atitudes básicas:

a) uma é a chamada baby talk, que consiste basicamente numa linguagem pseudoinfantil (que vai do au-au a "sotaques" que podem ser representados por axim e mamãeginha), provavelmente inócua;

b) a outra é a da correção pura: a criança diz fazi e a mãe lhe diz "fiz" - com muitos etecéteras.

Pois é esta segunda metodologia de ensino que merece toda defesa e deve ser seguida na escola.

O aluno erra, o professor corrige: simples assim.

Eventualmente, se explica, e assim se podem ir introduzindo "ao natural", conceitos de gramática explícita: é "nós vamos" não nós vai, porque o verbo concorda com o sujeito (se os alunos perguntarem o que é isso, pode-se responder que logo aprenderão; se insistirem, as noções podem ser introduzidas; o que é inócuo é que a "gramática seja uma lista de conceitos que vão sendo "explicados" sem que façam sentido).


Ditongos

Uma das maiores vantagens - se não a maior - de separar os dois tipos de gramática é que aquela dedicada à análise pode - e deve - ser invocada também para explicar os "erros".

Uma tese falsa que habita as escolas é a de que os "erros" são violações da gramática: de fato, seguem outra gramática, pelo menos na maior parte.

Considerem-se casos de erros de grafia como escrever poco, pexe, caxa: trata-se de erros que derivam de um fato gramatical observável facilmente, que consiste na eliminação de ditongos e certas circunstâncias (não se reduz o de "peito", por exemplo.

É mais produtivo explicar aos alunos de onde vem o erro deles do que fazer ditados ou, simplesmente, ensinar o que é um ditongo e exemplificar com outro...

Simples assim.


Texto de Sírio Possenti retirado da revista Língua Portuguesa, Ano 9, número 111, Janeiro de 2015, Editora Segmento, São Paulo.

sábado, 31 de agosto de 2024

Estendamos o Bem (35)

 "Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem." - Paulo. (ROMANOS, 12:21)


Repara que, em plena casa da Natureza, todos os elementos, em face do mal, oferecem o melhor que possuem para o reajustamento da harmonia e para a vitória do bem.

Quando o temporal parece haver destruído toda a paisagem, congregam-se as forças divinas da vida para a obra do refazimento.

O Sol envia sobre o lamaçal, curando as chagas do chão.

O vento acaricia o arvoredo e enxuga-lhe os ramos.

O cântico das aves substitui a voz do trovão.

A planície recebe a enxurrada, sem revoltar-se, e converte-a em adubo precioso.

O ar que suporta o peso das nuvens e o choque da faísca destruidora, torna à leveza e à suavidade.

A árvore de frondes quebradas ou feridas regenera-se, em silêncio, a fim de produzir novas flores e novos frutos.

A terra, nossa mãe comum, sofre a chuva de granizos e o banho de lodo, periodicamente, mas nem por isso deixa de engrandecer o bem cada vez mais.

Por que conservaremos, por nossa vez, o fel e o azedume do mal, na intimidade do coração?

Aprendamos a receber a visita da adversidade, educando-lhe as energias para proveito da vida.

A ignorância é apenas uma grande noite que cederá lugar ao sol da sabedoria.

Usa o tesouro de teu amor, em todas as direções, e estendamos o bem por toda parte.

A fonte, quando tocada de lama, jamais se dá por vencida. Acolhe os detritos no próprio seio e, continuando a fluir, transforma-os em bênçãos, no curso de suas águas que prosseguem correndo, com brandura e humildade, para benefício de todos.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

Do fundo das gavetas

 Escritos marginais de grandes criadores da palavra formam um subgênero próprio da sátira literária


Remexer o fundo das gavetas dos grandes criadores da palavra pode permitir pitorescas descobertas. Produzidos para criticar costumes e personalidades de uma época, para afrontar uma ideia corrente ou por mero capricho e diversão, escritos contundentes foram mantidos por muito tempo à margem das bibliografias oficiais de escritores, historiadores, cientistas e filósofos consagrados. Alguns desses textos, nascidos apócrifos, ainda ecoam em nossos dias.

Títulos escapam da mera curiosidade de rodapé para integrarem um subgênero próprio de ironia literária. Escaparam das injunções editoriais do momento, esquivaram-se dos julgamentos condenatórios e dos olhares atravessados de seus contemporâneos. Alguns foram renegados em vida por seus autores. A posteridade os tirou da gaveta.

Com essas obras, ampliamos o que sabemos - e sentimos - sobre autores que veneramos ou sobre as condições de escrita de sua época. E descobrimos facetas licenciosas ou escatológicas por muito encobertas. Em parte porque, como a amostra a seguir talvez indique, ainda vale a pena descortiná-las.


O AMOR NATURAL

Carlos Drummond de Andrade


Publicado só depois da morte do autor, o livro reúne os poemas eróticos drummondianos. O poeta publicara obras fesceninas em revistas especializadas, nos anos 70, mas a maioria do que saiu em O amor natural era inédita. "Para repousar do amor, vamos à cama", diz um de seus versos de carnal reflexão lasciva.

O próprio Drummond preferiu colocar a coletânea no fundo mais fundos das gavetas, para que, se viesse a ser publicada por seus herdeiros, o fosse somente depois de sua morte.

O resultado é surpreendente quanto mais imaginamos o autor de figura plácida e terna, de paixão contida e sentida.


A bunda, que engraçada

A bunda, que engraçada.

Está sempre sorrindo, nunca é trágica.


Não lhe importa o que vai

pela frente do corpo. A bunda basta-se.

Existe algo mais? Talvez os seios.

Ora - murmura a bunda - esses garotos

ainda lhes falta muito que estudar.


A bunda são duas luas gêmeas

em rotundo meneio. Anda por si

na cadência mimosa, no milagre 

de ser duas em uma, plenamente.


A bunda se diverte

por conta própria. E ama.

Na cama agita-se. Montanhas

avolumam-se, descem. Ondas batendo

numa praia infinita.


Lá vem sorrindo a bunda. Vai feliz

na carícia de ser e balançar.

Esferas harmoniosas sobre o caos.


A bunda é a bunda,

redunda.

(Carlos Drummond de Andrade)


Trecho da matéria Do Fundo das Gavetas; escrito por Luiz Costa Pereira Júnior, retirado da revista Língua Portuguesa, Ano 9, número 113, Março de 2015, Editora Segmento, São Paulo.

domingo, 25 de agosto de 2024

Guardemos o Cuidado (34)

 "... mas nada é puro para os contaminados e infiéis." - Paulo (TITO, 1:15.)


O homem enxerga sempre, através da visão interior.

Com as cores que usa por dentro, julga os aspectos de fora.

Pelo que sente, examina os sentimentos alheios.

Na conduta dos outros, supõe encontrar os meios e fins das ações que lhe são peculiares.

Daí, o imperativo de grande vigilância para que a nossa consciência não se contamine pelo mal.

Quando a sombra vagueia em nossa mente, não vislumbramos senão sombras em toda parte.

Junto das manifestações do amor mais puro, imaginamos alucinações carnais.

Se encontramos um companheiro trajado com louvável apuro, pensamos em vaidade.

Ante o amigo chamado à carreira pública, mentalizamos a tirania política.

Se o vizinho sabe economizar com perfeito aproveitamento da oportunidade, fixamo-lo com desconfiança e costumamos tecer longas reflexões em torno de apropriações indébitas.

Quando ouvimos um amigo na defesa justa, usando a energia que lhe compete, relegamo-lo, de imediato, à categoria dos intratáveis.

Quando a treva se estende, na intimidade de nossa vida, deploráveis alterações nos atingem os pensamentos.

Virtudes, nessas circunstâncias, jamais são vistas.

Os males, contudo, sobram sempre.

Os mais largos gestos de bênção recebem lastimáveis interpretações.

Guardemos cuidado toda vez que formos visitados pela inveja, pelo ciúme, pela suspeita ou pela maledicência.

Casos intrincados existem nos quais o silêncio é o remédio bendito e eficaz, porque, sem dúvida, cada espírito observa o caminho ou o caminheiro, segundo a visão clara ou escura de que dispõe.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

sábado, 24 de agosto de 2024

Iminência e Eminência, Piti & Moringa.

São palavras parônimas, ou seja, vocábulos quase homônimos, que se diferenciam ligeiramente na grafia e na pronúncia. O berço de "iminência", por exemplo, é o latim imminentìa, o estado de alguma coisa que está para acontecer logo, que é iminente.

Já "eminência", que também tem berço no latim eminentia, é palavra que remete a alta posição social, grande reputação, proeminência.

Iminente, portanto, é o que está prestes a acontecer. Usa-se em contextos de algum tipo de ameaça - perigo iminente, risco iminente, etc.

Eminente gerou a expressão eminência parda. É o tratamento dispensado aos cardeais. O homem forte do reinado de Luís XIII, da França, era o cardeal Richelieu, conhecido como Eminência Vermelha, pela cor de suas vestes. Seu secretário, um padre capuchinho chamado Joseph, era apelidado de Éminence Grise, pois grise significa pardo em francês, cinzento, sombrio, irônico paralelo a Richelieu, ambos trabalhando à sombra do chefe. Assim sucede geralmente em todo governo forte, cada um com sua eminência parda, que permanece anônima, não aparece mas manda um bocado.


PITI

Designação que teria sido dada por Joseph Babinski aos distúrbios secundários da histeria, rigorosamente subordinados aos primários. É o mesmo que chilique, escândalo ou barraco. Exemplos práticos: bater o pé quando não se agrada de alguma coisa; o diretor deu um piti com sua secretária porque ela esqueceu de lhe dar o recado de que um dos clientes precisava falar com ele. É o estado de nervos exibido por uma pessoa por causa de pequenos aborrecimentos que não mereceriam tal conduta. Cena comum no mundo do cinema quando determinado ator dá um piti contra os fotógrafos e atira um deles ao chão com máquina e tudo. Exemplo de piti foi o que a atriz Linda Daniel deu no Copacabana Palace nos anos 50 ao jogar pela janela os móveis de seu quarto por considerá-los, digamos, reles para sua tão decantada fama internacional.


MORINGA

Vaso de barro que pode receber água - e que, aliás, lhe dá sabor muito especial e gostoso -, com capacidade entre um e dois litros, utilizado sobretudo por habitantes do Nordeste do Brasil. è também o único gênero de plantas da família das angiospérmicas. Quando da recente ameaça de cólera no Zimbábue, pesquisadores locais usaram o pó obtido das sementes da árvore moringa para conseguir água potável e prevenir a doença. Suas folhas e flores são usadas para enriquecimento de alimentos por contar com grande quantidade de nutrientes, além de seu uso como ração animal. Numa acepção bem paulista, o vocábulo também é sinônimo de cabeça - "fica frio, não precisa esquentar a moringa" ou "fiquei de moringa quente porque não consegui pagar as contas".


Textos de Márcio Cotrim retirado da revista Língua Portuguesa, Ano 9, nº 112, Fevereiro de 2015, Editora Segmento, São Paulo.