sábado, 7 de junho de 2025

Orixás na Umbanda (Anexo 1)

De modo geral, a Umbanda não considera os orixás que descem ao terreiro energias e/ou forças supremas desprovidas de inteligência e individualidade. Na verdade (e os africanos assim já o consideravam), os orixás são ancestrais divinizados, que incorporam conforme a ancestralidade, as afinidades e a coroa de cada médium. No Brasil, teriam sido confundidos com os chamados imolês, isto é, divindades criadoras, acima das quais aparece um único deus: Olorum (Olodumaré ou Zâmbi). Na linguagem e na concepção umbandistas, portanto, quem incorpora numa gira de umbanda não são os orixás propriamente ditos, mas seus falangeiros. Tal concepção está de acordo com o conceito de ancestral (espírito) divinizado (e/ou evoluído) vivenciado pelos africanos que para cá foram trazidos como escravos. Mesmo que essa visão não seja consensual (há quem defenda que tais ancestrais já encarnaram, enquanto outros segmentos umbandistas rejeitam esse conceito), ao menos se admite no meio umbandista que o orixá que incorpora possui um grau adequado de adaptação à energia dos encarnados, o que seria incompatível para os orixás hierarquicamente superiores.

Na pesquisa feita por Miriam de Oxalá a respeito da ancestralidade e da divinização de ancestrais, aparece, dentre outras fontes, a célebre pesquisadora Olga Guidolle Cacciatore (1997), para quem os orixás são intermediários entre Olorum, ou melhor, entre seu representante (e filho) Oxalá e os homens. Muitos deles são antigos reis, rainhas ou heróis divinizados, os quais representam as vibrações das forças elementares da natureza - raios, trovões, ventos, tempestades, água, fenômenos naturais como o arco-íris, atividades econômicas primordiais do homem primitivo - caça, agricultura - ou minerais, como o ferro que tanto serviu a essas atividades de sobrevivência, assim como às de extermínio na guerra.

Entretanto, e como o tema está sempre aberto ao diálogo, à pesquisa, ao registro de impressões, conforme observa o médium umbandista e escritor Norberto Peixoto, é possível incorporar a forma-pensamento de um orixá, a qual é plasmada e mantida pelas mentes dos encarnados. Nas palavras do médium,

Era dia de sessão de preto-velho, estávamos na abertura dos trabalhos, na hora da defumação. O congá "repentinamente" ficou vibrado com o orixá Nanã, que é considerado a mãe maior dos orixás e o seu axé (força) é um dos sustentadores da egrégora da casa desde a sua fundação, formando par com Oxóssi. Faltavam poucos dias para o amaci (ritual de lavagem da cabeça com ervas maceradas), que tem por finalidade fortalecer a ligação dos médiuns com os orixás regentes e guias espirituais. Pedi um ponto cantado de Nanã Buruquê, antes dos cânticos habituais. Fiquei envolvido com uma energia lenta, mas firme. Fui transportado mentalmente para a beira de um lago lindíssimo e o orixá Nanã me "ocupou", como se entrasse em meu corpo astral ou se interpenetrasse com ele, havendo uma incorporação total.

(...)

Vou explicar com sinceridade e sem nenhuma comparação, como tanto vemos por aí, como se a manifestação de um ou outro (dos espíritos na umbanda versus dos orixás em outros cultos) fosse mais ou menos superior, conforme o pertencimento de quem os compara a uma ou outra religião. A "entidade" parecia um "robô", um autômato sem pensamento contínuo, levado pelo som e pelos gestos. Sem dúvida, houve uma intensa movimentação de energia benfeitora, mas durante a manifestação do orixá minha cabeça ficou mentalmente vazia, como se nenhuma outra mente ocupasse o corpo energético do orixá que dançava, o que acabei sabendo depois tratar-se de uma forma-pensamento plasmada e mantida "viva" pelas mentes dos encarnados.

No cotidiano dos terreiros, por vezes o vocábulo orixá é utilizado também para guias e entidades. Nessas casas, por exemplo, é comum ouvir alguém dizer antes de uma gira de pretos-velhos: "Precisamos preparar mais banquinhos, pois hoje temos muitos médiuns e, portanto, aumentará o número de orixás em terra".


Retirado do livro Para Conhecer o Candomblé, de Ademir Barbosa Júnior, Universo dos Livros, São Paulo, 2013.

Fermento Espiritual (76)

 "Não sabeis que um pouco de fermento leveda a massa toda?" - Paulo. (I CORÍNTIOS, 5:6.)


O fermento é uma substância que excita outras substâncias, e nossa vida é sempre um fermento espiritual com que influenciamos as existências alheias.

Ninguém vive só.

Temos conosco milhares de expressões do pensamento dos outros e milhares de outras pessoas nos guardam a atuação mental, inevitavelmente.

Os raios de nossa influência entrosam-se com as emissões de quantos nos conhecem direta ou indiretamente, e pesam na balança do mundo para o bem ou para o mal.

Nossas palavras determinam palavras em quem nos ouve, e, toda vez que não formos sinceros, é provável que o interlocutor seja igualmente desleal.

Nossos modos e costumes geram modos e costumes da mesma natureza, em torno de nossos passos, mormente naqueles que se situam em posição inferior à nossa, nos círculos da experiência e do conhecimento.

Nossas atitudes e atos criam atitudes e atos do mesmo teor, em quantos nos rodeiam, porquanto aquilo que fazemos atinge o domínio da observação alheia, interferindo no centro de elaboração das forças mentais de nossos semelhantes.

O único processo, portanto, de reformar edificando é aceitar as sugestões do bem e praticá-las intensivamente, por intermédio de nossas ações.

Nas origens de nossas determinações, porém, reside a ideia.

A mente, em razão disso, é a sede de nossa atuação pessoal, onde estivermos.

Pensamento é fermentação espiritual. Em primeiro lugar estabelece atitudes, em segundo gera hábitos e, depois, governa expressões e palavras, através das quais a individualidade influencia na vida e no mundo. Regenerado, pois, o pensamento de um homem, o caminho que o conduz ao Senhor se lhe revela reto e limpo.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

A hora de partir

Mamãe Lua sabia que as pessoas não queriam morrer. Elas desejavam viver para sempre, como ela: nascendo, crescendo, minguando e reaparecendo toda-poderosa e cheia no céu. Então, em uma bela noite, mamãe Lua chamou um lagarto e pediu que ele fosse à Terra e dissesse para todos, homens, mulheres, meninos e meninas, que a partir daquele dia todos acordariam e viveriam até o final dos tempos.

- Pode deixar, mamãe Lua! Vou avisar todo mundo - disse o lagarto, deixando-a tranquila, pois sua mensagem chegaria para as pessoas rapidamente.

E o lagarto foi caminhando, todo bonito e faceiro, sempre parando para olhar alguma coisa ou conversar com alguém, em vez de se concentrar em sua missão. Quando estava no meio do caminho, encontrou uma árvore carregada de frutas bem madurinhas. Subiu na árvore e comeu, comeu, até ficar com a barriga bem cheia. "Acho que vou descansar um pouquinho antes de continuar a minha viagem", pensou o lagarto. E ali mesmo, debaixo da árvore, dormiu.

A centopeia, que cuida para que a morte chegue no tempo certo a cada um, soube da mensagem que mamãe Lua havia enviado para a Terra. Preocupada, ela chamou um mongoose, um pequeno animal de pelo curto, muito ágil e esperto, e pediu:

- Corra até a Terra e diga a todos, homens, mulheres, meninos e meninas, que quando morrerem jamais voltarão a viver. Eles devem morrer para sempre!

O mongoose chegou rapidamente à Terra e avisou todas as pessoas que elas morreriam para sempre. Tempos depois, chegou o lagarto trazendo a mensagem da mamãe Lua. Mas já era tarde demais. As pessoas estavam muito tristes.

Mamãe Lua soube da situação e ficou muito brava com o lagarto:

- Onde já se viu?

E foi ela mesma falar com as pessoas.

- Eu não posso mudar a situação - lamentou. - A mensagem da centopeia chegou primeiro. Mas digo que, mais do que nunca, vocês devem viver intensamente cada momento, com muito amor e respeito à vida que existe em cada pessoa, bicho, planta, em cada grão de terra, em todo o universo. Porque todos nós somos um. Estamos ligados pela grande força da vida.

Mamãe Lua abriu um grande sorriso e continuou:

- E quando chegar o dia de vocês partirem para a Terra dos Espíritos dos seus antepassados vocês viverão para sempre por meio das coisas que realizarem aqui, do amor que alimentarem e da vida que continuará nascendo, crescendo e morrendo neste planeta.

Uma paz imensa encheu o coração de toda a gente. E todos foram dormir porque o dia seguinte sempre será um novo dia.


Conto de Denise Carreira retirado do livro Lendas Africanas (E a força dos tambores cruzou o mar), Editora Salesiana, São Paulo, 2008.

sábado, 31 de maio de 2025

Administração (75)

 "Dá conta de tua administração." - Jesus. (LUCAS, 16:2)


Na essência, cada homem é servidor pelo trabalho que realiza na obra do Supremo Pai, e, simultaneamente, é administrador, porquanto cada criatura humana detém possibilidades enormes no plano em que moureja

Mordomo do mundo não é somente aquele que encanece os cabelos, à frente dos interesses coletivos, nas empresas públicas ou particulares, combatendo tricas mil, a fim de cumprir a missão a que se dedica.

Cada inteligência da Terra dará conta dos recursos que lhe forem confiados.

A fortuna e a autoridade não são valores únicos de que devemos dar conta hoje e amanhã.

O corpo é um templo sagrado.

A saúde física é um tesouro.

A oportunidade de trabalhar é uma bênção.

A possibilidade de servir é um obséquio divino.

O ensejo de aprender é uma porta libertadora.

O tempo é um patrimônio inestimável.

O lar é uma dádiva do Céu.

O amigo é um benfeitor.

A experiência benéfica é uma grande conquista.

A ocasião de viver em harmonia com o Senhor, com os semelhantes e com a Natureza é uma glória comum a todos.

A hora de ajudar os menos favorecidos de recursos ou entendimento é valiosa.

O chão para semear, a ignorância para se instruída e a dor para se consolada são apelos que o Céu envia sem palavras ao mundo inteiro.

Que fazes, portanto, dos talentos preciosos que repousam em teu coração, em tuas mãos e no teu caminho? Vela por tua própria tarefa no bem, diante do Eterno, porque chegará o momento em que o Poder Divino te pedirá: - "Dá conta de tua administração."


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

quarta-feira, 28 de maio de 2025

O estranho procedimento de dona Dolores

Começou na mesa do almoço. A família estava comendo - pai, mãe, filho e filha - e de repente a mãe olhou para o lado, sorriu e disse:

- Para a minha família, só serve o melhor. Por isso eu sirvo arroz Rizobon. Rende mais e é mais gostoso.

O pai virou-se rapidamente na cadeira para ver com quem a mulher estava falando. Não havia ninguém.

- O que é isso, Dolores?

- Tá doida, mãe?

Mas dona Dolores parecia não ouvir. Continuava sorrindo. Dali a pouco levantou-se da mesa e dirigiu-se para a cozinha. Pai e filhos se entreolharam.

- Acho que a mamãe pirou de vez.

- Brincadeira dela...

A mãe voltou da cozinha carregando uma bandeja com cinco taças de gelatina.

- Adivinhem o que tem de sobremesa?

Ninguém respondeu. Estavam constrangidos por aquele tom jovial de dona Dolores, que nunca fora assim.

- Acertaram! - exclamou dona Dolores, colocando a bandeja sobre a mesa. - Gelatina Quero Mais, uma festa em sua boca. Agora com os novos sabores framboesa e manga.

O pai e os filhos começaram a comer a gelatina, um pouco assustados. Sentados à mesa, dona Dolores olhou de novo para o lado e disse:

- Bote essa alegria na sua mesa todos os dias. Gelatina Quero Mais. Dá gosto comer!

Mais tarde o marido de dona Dolores entrou na cozinha e a encontrou segurando uma lata de óleo à altura do rosto e falando para uma parede.

- A saúde da minha família em primeiro lugar. Por isto, aqui em casa só uso o puro óleo Paladar.

- Dolores...

Sem olhar para o marido, dona Dolores o indicou com a cabeça.

- Eles vão gostar.

O marido achou melhor não dizer nada. Talvez fosse caso de chamar um médico. Abriu a geladeira, atrás de uma cerveja. Sentiu que dona Dolores se colocava atrás dele. Ela continuava falando para a parede.

- Todos encontram tudo o que querem na nossa Gelatec Espacial, agora com prateleiras superdimensionadas, gavetas em Vidro-Glass e muito, mas muito mais espaço. Nova Gelatec Espacial, a cabe tudo.

- Pare com isso, Dolores.

Mas dona Dolores não ouvia.

Pai e filhos fizeram uma reunião secreta, aproveitando que dona Dolores estava na frente da casa, mostrando para uma plateia invisível as vantagens de uma nova tinta de paredes.

- Ela está nervosa, é isso.

- Claro. É uma fase. Passa logo.

- É melhor nem chamar a atenção dela.

- Isso. É nervos.

Mas dona Dolores não parecia nervosa. Ao contrário, andava muito calma. E não podia passar por um membro da família sem virar-se para o lado e fazer um comentário afetuoso:

- Todos andam muito mais alegres desde que eu comecei a usar Limpol nos ralos.

Ou:

- Meu marido também passou a usar desodorante Silvester. E agora todos aqui em casa respiram aliviados.

Apesar do seu ar ausente, dona Dolores não deixava de conversar com o marido e com os filhos.

- Vocês sabiam que o laxante Vida Mansa agora tem dois ingredientes recém desenvolvidos pela ciência que o tornam duas vezes mais eficiente?

- O quê?

- Sim, os fabricantes de Vida Mansa não descansam para que você possa descansar.

- Dolores...

Mas dona Dolores estava outra vez virada para o lado, e sorrindo:

- Como esposa e mãe, eu sei que minha obrigação é manter a regularidade da família. Vida Mansa, uma mãozinha da ciência à Natureza. Experimente!

Naquela noite o filho levou um susto. Estava escovando os dentes quando a mãe entrou de surpresa no banheiro, pegou a sua pasta de dentes e começou a falar para o espelho.

- Ele tinha horror de escovar os dentes até que eu segui o conselho do dentista, que disse a palavra mágica: Zaz. Agora escovar os dentes é um prazer, não é, Jorginho?

- Mãe, eu...

- Diga você também a palavra mágica. Zaz! O único com HXO.

O marido de dona Dolores acompanhava, apreensivo, da cama, o comportamento da mulher. Ela estava sentada na frente do toucador e falando para uma câmera que só ela via, enquanto passava creme no rosto.

- Marcel de Paris não é apenas um creme hidratante. Ele devolve à sua pele o fresco que o tempo levou, e que parecia perdido para sempre. Recupere o tempo perdido com Marcel de Paris.

Dona Dolores caminhou, languidamente, para a câmera, deixando cair seu robe de chambre no caminho. Enfiou-se entre os lençóis e beijou o marido na boca. Depois, apoiando-se num cotovelo, dirigiu-se outra vez para a câmera.

- Ele não sabe, mas estes lençóis são da nova linha Passional da Santex. Bons lençóis para maus pensamentos. Passional da Santex. Agora, tudo pode acontecer...

Dona Dolores abraçou o marido. Que olhou para todos os lados antes de abraçá-la também. No dia seguinte certamente levaria a mulher a um médico. Por enquanto, pretendia aproveitar. Fazia tanto tempo. Apagou a luz, prudentemente, embora soubesse que não havia nenhuma câmera por perto. Por via das dúvidas, por via das dúvidas.


Texto de Luís Fernando Veríssimo retirado do livro A Velhinha de Taubaté, 9ª Edição, L&PM Editores, Porto Alegre, 1986.

terça-feira, 27 de maio de 2025

Quando há Luz (74)

 "O amor do Cristo nos constrange." - Paulo. (II CORÍNTIOS, 5:14.)


Quando Jesus encontra santuário no coração de um homem, modifica-se-lhe a marcha inteiramente.

Não há mais lugar dentro dele para a adoração improdutiva, para a crença sem obras, para a fé inoperante.

Algo de indefinível na terrestre linguagem transtorna-lhe o espírito.

Categoriza-o a massa comum por desajustado, entretanto, o aprendiz do Evangelho, chegando a essa condição, sabe que o Trabalhador Divino como que lhe ocupa as profundidades do ser.

Renova-se-lhe toda a conceituação da existência.

O que ontem era prazer, hoje é ídolo quebrado.

O que  representava meta a atingir, é roteiro errado que ele deixa ao abandono.

Torna-se criatura fácil de contentar, mas muito difícil de agradar.

A voz do Mestre, persuasiva e doce, exorta-o a servir sem descanso.

Converte-se-lhe a alma num estuário maravilhoso, onde os padecimentos vão ter, buscando arrimo, e por isso sofre a constante pressão das dores alheias.

A própria vida física afigura-se-lhe um madeiro, em que o Mestre se aflige. É-lhe o corpo a cruz viva em que o Senhor se agita crucificado.

O único refúgio em que repousa é o trabalho perseverante no bem geral.

Insatisfeito, embora resignado; firme na fé, não obstante angustiado; servindo a todos, mas sozinho em si mesmo, segue, estrada a fora, impelido por ocultos e indescritíveis aguilhões...

Esse é o tipo de aprendiz que o amor do Cristo constrange, na feliz expressão de Paulo. Vergasta-o a luz celeste por dentro até que abandone as zonas inferiores em definitivo.

Para o mundo, será inadaptado e louco.

Para Jesus, é o vaso das bênçãos.

A flor é uma linda promessa, onde se encontre.

O fruto maduro, porém, é alimento para Hoje.

Felizes daqueles que espalham a esperança, mas bem-aventurados sejam os seguidores do Cristo que suam e padecem, dia a dia, para que seus irmãos se reconfortem e se alimentem no Senhor!


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

segunda-feira, 26 de maio de 2025

O Recital

Uma boa maneira de começar um conto é imaginar uma situação rigidamente formal - digamos, um recital de quarteto de cordas - e depois começar a desfiá-la, como um pulôver velho. Então, vejamos. Um recital de quarteto de cordas.

O quarteto entra no palco sob educados aplausos da seleta plateia. São três homens e uma mulher. A mulher, que é jovem e bonita, toca viola. Veste um longo vestido preto. Os três homens estão de fraque. Tomam os seus lugares atrás das partituras. Da esquerda para a direita: um violino, outro violino, a viola e o violoncelo. Deixa ver se não esqueci nenhum detalhe. O violoncelista tem um grande bigode ruivo. Isto pode se revelar importante mais tarde, no conto. Ou não.

Os quatro afinam seus instrumentos. Depois, silêncio. Aquela expectativa nervosa que precede o início de qualquer concerto. As últimas tossidas da plateia. O primeiro violinista consulta seus pares com um olhar discreto. Estão todos prontos. O violinista coloca o instrumento sob o queixo e posiciona seu arco. Vai começar o recital. Nisso...

Nisso, o quê? Qual é a coisa mais insólita que pode acontecer num recital de um quarteto de cordas? Passar uma manada de zebus pelo palco, por trás deles? Não. Uma manada de zebus passa, parte da plateia pula das suas poltronas e procura as saídas em pânico, outra parte fica paralisada e perplexa, mas depois tudo volta ao normal. O quarteto, que manteve-se firme em seu lugar até o último zebu - são profissionais e, mesmo, aquilo não pode estar acontecendo - começa a tocar. Nenhuma explicação é perdida ou oferecida. Segue o Mozart.

Não. É preciso instalar-se no acontecimento, como a semente da confusão, uma pequena incongruência. Algo que crie apenas um mal-estar, de início e chegue lentamente, em etapas sucessivas, ao caos. Um morcego que pousa na cabeça do segundo violinista durante um pizzicato. Não. Melhor ainda. Entra no palco um homem carregando uma tuba.

Há um murmúrio na plateia. O que é aquilo? O homem entra, com sua tuba, dos bastidores. Posta-se ao lado do violoncelo. O primeiro violinista, retesado como um mergulhador que subitamente descobriu que não tem água na piscina, olha para a tuba entre fascinado e horrorizado. O que é aquilo? Depois de alguns instantes em que a tensão no ar é como a corda de um violino esticada ao máximo, o primeiro violinista fala:

- Por favor...

- O quê? - diz o homem da tuba, já na defensiva. - Vai dizer que eu não posso ficar aqui?

- O que o senhor quer?

- Quero tocar, ora. Podem começar que eu acompanho.

Alguns risos da plateia. Ruídos de impaciência. Ninguém nota que o violoncelista olhou para trás e quando deu com o tocador de tuba virou o rosto em seguida, como se quisesse se esconder. O primeiro violinista continua:

- Retire-se, por favor.

- Por quê? Quero tocar também.

O primeiro violinista olha nervosamente para a plateia.

Nunca em toda a sua carreira como líder do quarteto teve que enfrentar algo parecido. Um vez um mosquito entrou na sua narina durante uma passagem de Vivaldi. Mas nunca uma tuba.

- Por favor. Isto é um recital para quarteto de cordas. Vamos tocar Mozart. Não tem nenhuma parte para a tuba.

- Eu improviso alguma coisa. Vocês começam e eu faço o um-pá-pá.

Mais risos da plateia. Expressões de escândalo. De onde surgiu aquele homem com uma tuba? Ele nem está de fraque. Segundo algumas versões veste uma camiseta do Vasco. Usa chinelos de dedo. A violista sente-se mal. O violinista ameaça chamar alguém dos bastidores para retirar o tocador de tuba a força. Mas ele aproxima o bocal do seu instrumento dos lábios e ameaça:

- Se alguém se aproximar de mim eu toco pof!

A perspectiva de se ouvir um pof naquele recinto paralisa a todos.

- Está bem - diz o primeiro violinista. - Vamos conversar. Você, obviamente, entrou no lugar errado. Isto é um recital de cordas. Estamos nos preparando para tocar Mozart. Mozart não tem um-pá-pá.

-Mozart não sabe o que está perdendo - diz o tocador de tuba, rindo para a plateia e tentando conquistar a sua simpatia.

Não consegue. O ambiente é hostil. O tocador de tuba muda de tom. Torna-se ameaçador:

- Está bem, seus elitistas. Acabou. Onde é que vocês pensam que estão, no século XVIII? Já houve 17 revoluções populares depois de Mozart. Vou confiscar estas partituras em nome do povo. Vocês todos serão interrogados. Um a um, pá-pá.

Torna-se suplicante:

- Por favor, só o que eu quero é tocar um pouco também. Eu sou humilde. Não pude estudar instrumento de corda. Eu mesmo fiz esta tuba, de um Volkswagen velho. Deixa...

Num tom sedutor, para a violista:

- Eu represento os seus sonhos secretos. Sou um produto da sua imaginação lúbrica, confessa. Durante o Mozart, neste quarteto antisséptico, é em mim que você pensa. Na minha barriga e na minha tuba fálica. Você quer ser violada por mim num alegro assai, confessa...

Finalmente, desafiador, para o violoncelista:

- Esse bigode ruivo. Estou reconhecendo. É o mesmo bigode que eu usava em 1968. Devolve!

O tocador de tuba e o violoncelista atracam-se. Os outros membros do quarteto entram na briga. A plateia agora grita e pula. É o caos! Simbolizando, talvez, a falência final de todo o sistema de valores que teve início com o Iluminismo europeu ou o triunfo do instinto sobre a razão ou, ainda, uma pane mental do autor. Sobre o palco, um dos resultados da briga é que agora quem está com o bigode ruivo é a violista. Vendo-a assim, o tocador de tuba para de morder a perna do segundo violinista, abre os braços e grita: "Mamãe!"

Nisso, entra no palco uma manada de zebus.


Texto de Luís Fernando Veríssimo retirado do livro O Analista de Bagé, L&PM Editora, 55ª Edição, Porto Alegre, 1982.

sábado, 17 de maio de 2025

Estímulo Fraternal (73)

 "O meu Deus, segundo as suas riquezas, suprirá todas as vossas necessidades em glória, por Cristo Jesus." - Paulo. (FILIPENSES, 4:19)


Não te julgues sozinho na luta purificadora, porque o Senhor suprirá todas as nossas necessidades.

Ergue teus olhos para o Alto e, de quando em quando, contempla a retaguarda.

Se te encontras em posição de servir, ajuda e segue.

Recorda o irmão que se demora sem recursos, no leito da indigência.

Pensa no companheiro que ouve o soluço dos filhinhos, sem possibilidades de enxugar-lhes o pranto.

Detém-te para ver o enfermo que as circunstâncias enxotaram do lar.

Para um momento, endereçando um olhar de simpatia à criancinha sem teto.

Medita na angústia dos desequilibrados mentais, confundidos no eclipse da razão.

Reflete nos aleijados que se algemam na imobilidade dolorosa.

Pensa nos corações maternos, torturados pela escassez de pão e harmonia no santuário doméstico.

Interrompe, de vez em quando, o passo apressado, a fim de auxiliares o cego que tateia nas sombras.

É possível, então, que a tua própria dor desapareça aos teus olhos.

Se tens braços para ajudar e cabeça habilitada a refletir no bem dos semelhantes, és realmente superior a um rei que possuísse um mundo de moedas preciosas, sem coragem de amparar a ninguém.

Quando conseguires superar as tuas aflições para criares a alegria dos outros, a felicidade alheia te buscará, onde estiveres, a fim de improvisar a tua ventura.

Que enfermidade e a tristeza nunca te impeçam a jornada.

É preferível que a morte nos surpreenda em serviço, a esperarmos por ela numa poltrona de luxo.

Acende, meu irmão, nova chama de estímulo, no centro de tua alma, e segue além... Sê o anjo da fraternidade para os que te seguem dominados de aflição, ignorância e padecimento.

Quando plantares a alegria de viver nos corações que te cercam, em breve as flores e os frutos de tua sementeira te enriquecerão o caminho.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

Rio Condutor de Oferendas

Às divindades dos rios, dos lagos e das fontes foram destinadas as primeiras oblações diretas, jogadas na água, moedas, miniaturas que são possíveis ex-votos, armas, utensílios domésticos, paradas nos depósitos pré-históricos. Ainda é comum na Europa e na América Latina sacudir a moeda no rio, diante de uma capela que se ergue na margem ou suposta igreja existente no fundo das águas. Tradicional é o presente de Iemanjá - flores, perfumes, tecidos finos, joias baratas, animais vivos, cartas rogatórias -, posto ao lume da água e que submerge. No culto ao Bom Jesus da Lapa, Bahia, o rio São Francisco encarrega-se de conduzir a satisfação das promessas e encalhá-las nas ribas do penhasco onde está a imagem dominadora de toda a região. Em cabaças decoradas e típicas, contendo velas, fitas, cabelos, dinheiro, cartas, as promessas são confiadas ao rio, que as conduz lentamente, até Pirapora, seja qual for a distância e a topografia desconcertante de curvas, enseadas e barrancos. M. Cavalcanti Proença informa: "Também os caboclos que não podem ir até Bom Jesus da Lapa colocam as suas oferendas em cabaças que largam de rio abaixo e estas vão ter ao seu destino, tendo ficado célebre uma enviada por um italiano com uma carta e sete mil e seiscentos em dinheiro e que, numa violação geográfica, foi posta no rio Sapucaí, da bacia do Paraná. Pois andou de mão em mão até ser lançada no São Francisco e foi descendo, descendo, quando, ao passar em frente ao templo, derivou pelo braço que vai ao pé do santuário, sendo apanhada".  O mesmo diz Wilson Lins: "... os beiradeiros do Alto São Francisco, quando não podem, por qualquer motivo, fazer romaria, botam os seus presentes no rio e a correnteza leva diretamente para os pés do morro-santuário. Encostado ao morro passa um braço do rio e é por ele que os presentes vindos de longe vão ter ao Bom Jesus. De mais longe que venha um presente, ninguém ousa desviá-lo do seu roteiro. Esses presentes geralmente viajam dentro de cabaças enfeitadas, e são, em sua maioria, velas, tostões e cachos de cabelos". (O Médio São Francisco, Bahia, 1952.) Noraldino Lima escrevera no mesmo sentido: "Os fazendeiros urucuianos e outros, não podendo cumprir pessoalmente as promessas, fazem-no por intermédio dos afluentes do São Francisco. Para isso preparam uma caixinha, dentro da qual depositam o dinheiro prometido e uma vela. O rio leva a mensagem da fé, água abaixo, léguas e léguas, até o porto da Lapa, onde qualquer pescador, qualquer lapense, colhe a caixa e o conteúdo, levando este à gruta do Bom Jesus. Se no sertão ninguém rouba ao homem, quanto mais ao santo. A caixinha do sertanejo desce tranquilamente o rio: é vista por centenas de olhos; todos que conhecem o São Francisco e seus costumes sabem que ali vai dinheiro, e às vezes, dinheiro grosso; entretanto, ninguém toma essa caixinha senão para desembaraçá-la de algum ramo, que porventura esteja estorvando-a no seu destino, rumo da Lapa, onde há um santo que protege o sertão".


Retirado do livro Dicionário do Folclore Brasileiro (revisto, atualizado e ilustrado), de Luís da Câmara Cascudo, Global Editora, 10ª Edição, São Paulo, 2001.

sábado, 10 de maio de 2025

Incompreensão (72)

 "Fiz-me fraco para os fracos, para ganhar os fracos. Fiz-me tudo para todos pra, por todos os meios, chegar a salvar alguns." - Paulo. (I CORÍNTIOS, 9:22.)


A incompreensão, indiscutivelmente, é assim como a treva perante a luz, entretanto, se a vocação da claridade te assinala o íntimo, prossegue combatendo as sombras, nos menores recantos de teu caminho.

Não te esqueças, porém, da lei do auxílio e observa-lhe os princípios, antes da ação.

Descer para ajudar é a arte divina de quantos alcançaram conscienciosamente a vida mais alta

A luz ofuscante produz a cegueira.

Se as estrelas da sabedoria e do amor te povoam o coração, não humilhes quem passa sob o nevoeiro da ignorância e da maldade.

Gradua as manifestações de ti mesmo para que o teu socorro não te faça destrutivo.

Se a chuva alagasse indefinidamente o deserto, a pretexto de saciar-lhe a sede, e se o Sol queimasse o lago, sem medida, com a desculpa de subtrair-lhe o barro úmido, nunca teríamos clima adequado à produção de utilidades para a vida.

Não te faças demasiado superior diante dos inferiores ou excessivamente forte perante os fracos.

Das escolas não se ausentam todos os aprendizes, habilitados em massa, e sim alguns poucos cada ano.

Toda mordomia reclama noção de responsabilidade, mas exige também o senso das proporções.

Conserva a energia construtiva do exemplo respeitável, mas não olvides que a ciência de ensinar só triunfa integralmente no orientador que sabe amparar, esperar e repetir.

Não clames, pois, contra a incompreensão, usando inquietude e desencanto, vinagre e fel.

Há méritos celestiais naquele que desce ao pântano sem contaminar-se, na tarefa de salvação e reajustamento.

O bolo de matéria densa reveste-se de lodo, quando arremessado ao poço lamacento, todavia, o raio de luz visita as entranhas do abismo e dele se retira sem alterar-se.

Que seria de nós se Jesus não houvesse apagado a própria claridade, fazendo-se à semelhança de nossa fraqueza, para que lhe testemunhássemos a missão redentora? Aprendamos com ele a descer, auxiliando sem prejuízo de nós mesmos.

E, nesse sentido, não podemos esquecer a expressiva declaração de Paulo de Tarso quando afirma que, para a vitória do bem, se fez fraco para os fracos, fazendo-se tudo para todos, a fim de, por todos os meios, chegar a erguer alguns.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.