domingo, 20 de março de 2022

O Cigano e o Lote do Diabo

    Depois de muito procurar, um pobre cigano conseguiu comprar, por apenas duas moedas, um pequeno lote de terra que ninguém queria, porque tinha uma pedreira com uma caverna cheia de morcegos. Nem bem ele começou a cavar as fundações da sua futura casinha, eis que surgiu na sua frente um homem esquisito, envolto numa capa vermelha, que o interpelou rispidamente, dizendo que ele não podia cavoucar ali. "Este terreno é meu, eu sou um diabo, e neste caverna nossa confraria se reúne todas as semana para o satânico sabá com as bruxas, nossas amigas.!"
    Mesmo tremendo de medo, o cigano protestou, dizendo que estava no seu direito, pois comprara o lote do alcaide, com o seu pouco e suado dinheirinho, e não abriria mão dele.
    Os diabos respeitam os tratos. Esse diabo então propôs ao cigano recomprar-lhe o lote pelo dobro do que ele pagara. "Assim, com quatro moedas, poderás comprar outro terreno, melhor do que este". O cigano animou-se e tratou de regatear. "Quatro moedas é pouco, quero o meu boné cheio de moedas de ouro, senão não arredo o pé daqui." O diabo resmungou, mas acabou concordando e saiu para buscar o dinheiro.
    O cigano, assim que se viu só, cavou mais que depressa um buraco fundo no chão e o cobriu com o seu boné - previamente furado - de boca para cima. Quando o diabo voltou com um saco de moedas e começou a despejá-las no boné, não conseguiu enchê-lo, porque elas caíam pelo furo do boné no buraco do chão. O boné só ficou cheio quando o saco do diabo ficou vazio. Coçando a cabeça, perplexo, o diabo sumiu de vista, largando do chão o saco, que o cigano imediatamente encheu com as moedas do buraco e saiu assobiando, rico e feliz da vida.
    Ele então construiu uma bela casa, casou com uma linda cigana e viveu à tripa forra durante um bom tempo. Mas dinheiro que vem fácil se vai fácil e, um belo dia, o cigano se viu pobre de novo. Sua mulher lhe azucrinava tanto a paciência por causa de falta de dinheiro que um dia, aborrecido, ele saiu de casa para a estrada. Andou que andou até que, de repente, sem perceber, se viu naquele lote de terra onde encontrara o diabo, anos antes. "Bem que eu poderia arrancar mais algum daquele diabo bobão", pensou ele. No mesmo instante, surgiu na sua frente o mesmo homem de capa vermelha, que rosnou para ele, enfezado: "O que estás fazendo aqui? Já me basta a bronca que levei do meu chefão Belzebu por causa daquela história do boné sem fundo. Vai embora, senão eu te dou uma surra. Vê só como sou forte!" E o diabo apanhou uma pedra e a esmagou na mão até ela virar pó.
    O cigano, apesar do medo, não se deu por achado. "Sou mais forte do que tu", disse, e disfarçadamente tirou do bolso um pedaço de queijo, fingindo que apanhara uma pedra no chão: "Olha o que eu faço com a tua pedra!" E esmagou o queijo na mão até pingar suco de queijo do seu punho fechado. O diabo arregalou os olhos, espantado, e o cigano disse: "Ou tu me trazes mais um saco de dinheiro, do teu tamanho, ou eu destruo a tua caverna com as minhas mãos fortes!"
    O diabo, alarmado, disparou para dentro da caverna e voltou curvado debaixo de um enorme saco de moedas, que colocou no chão. E já ia sumir quando o cigano disse: "Não estou disposto a carregar peso. Quero que leves este saco para minha casa, senão destruo a tua caverna!" O diabo, amedrontado, obedeceu e carregou o saco de moedas para a casa do cigano, que ainda lhe agradeceu, zombeteiro: "Grato pelo tua gentileza, amigo diabo. Podes voltar para a caverna e contar aos teus coleguinhas que desta vez escapaste de boa!"
    O diabo chispou embora e o cigano voltou-se para sua atônita mulher: "Estamos ricos de novo, me respeita agora, não me azucrines mais a paciência! E daqui em diante sê mais econômica, por que não quero ter um terceiro encontro com o diabo: bastam os dois sustos que já levei. Se este dinheiro do inferno acabar, prefiro voltar a trabalhar e ganhar  vida com suor do meu rosto".

História do folclore cigano recontada por Tatiana Belinky. Retirado da Revista Nova Escola. Fundação Victor Civita. Editora Abril. Abril de 1996.

sábado, 19 de março de 2022

No Exato Momento

Como é impossível ao corpo manter-se sem o sangue, também a alma não viverá em paz sem o combustível da fé.

A fé constitui o elemento basilar para a sustentação da vida digna e realizadora.

Da mesma forma que o corpo não pode subsistir sem o alimento, o espírito não consegue manter-se em equilíbrio sem a força da oração.

O alimento é secundário ao organismo, que o prescinde, momentaneamente, a de reequilibrar-se e manter a saúde, enquanto que, sem a prece, o ser espiritual se aturde e entorpece.

O homem está predestinado a dominar os instintos, vencendo as paixões que agrilhoam à infelicidade, colocando-se a serviço do bem que lhe corresponde. Para consegui-lo, faz-se-lhe indispensável a coragem da fé, porquanto a covardia que o impede de tomar as decisões enobrecedoras é mais perigosa e violenta do que outras imperfeições que o assinalam, de certo modo, consequências dela.

A oração constitui a força mais eficaz para vencer tal impedimento - o medo - e atirar-se com valor na conquista dos objetivos para os quais se encontra no mundo.

Os grandes homens atingiram as metas a que se propunham, impulsionados pela fé que resultava da sua identificação com o bem. E a comunhão pela prece sempre foi o alimento para sustentá-los nos momentos mais graves e cruciais da existência.

Certamente outros tantos se arremeteram nas batalhas do crime e da destruição, guindados pelo egoísmo e pelo medo às situações de agressividade e loucura em que se exauriram.

Atormentados, odiaram e foram odiados; perseguiram e terminaram vencidos.

Os homens não impuseram sofrimentos a ninguém; amaram e deixaram rastros luminosos, clareando o roteiro daqueles que também amam e lhes seguem os exemplos e os passos.

É inadiável se eleja, entre o bem e o mal, o que é de melhor para a vida: mais profícuo, salutar, aprazível e pacificador.

Por meio da oração, será fácil discernir, escolher e adotar qual o caminho mais seguro e feliz.

A prece autêntica, aquela que brota do coração buscando Deus, a Ele se entregando, torna-se um escudo de segurança, de defesa, uma proteção contra os elementos perniciosos que vigem interiormente no homem ou que vêm de fora tentando agredi-lo.

Só aparentemente se pode vencer um homem de fé, um homem que ora. Nunca, porém, se conseguirá dominá-lo. Ele é livre e está sempre em paz. Nada o perturba, porque não teme nada, nada ambiciona, somente anelando por alcançar a perfeição.

A prece é a salvação da vida. Sem ela, o homem enlouquece.

Quando estejas cercado de dificuldades e agressões, não vendo possibilidade alguma de chegar-te o socorro a tempo, ora, entregando-te a Deus, e a salvação te alcançará de Cima, no momento exato.


Retirado do livro Momentos de Coragem; Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 8ª Edição, 2014.

sexta-feira, 18 de março de 2022

O Samurai e a Cerejeira

    No distrito de Iyo, no Japão, existe uma árvore antiquíssima. É chamada de "cerejeira do 16º dia" porque, nesse dia do primeiro mês do ano lunar, ela se cobre de flores - e somente nesse dia. As cerejeiras costumam florir na primavera, mas essa árvore é diferente: floresce no inverno, porque dentro dela habita o espírito de um ser humano.

    Sobre ela conta-se curiosa história. Havia muitos e muitos séculos, a cerejeira crescia no jardim de um samurai (guerreiro), que a amava muito. Durante muitos anos, ele se deliciou com a formosa e perfumada florada no 16º dia do primeiro mês de cada ano.

    O samurai teve vida longa. Viveu tanto tempo que viu morrer toda a sua família: pais, irmãos, filhos, netos e até bisnetos. Ficou muito velho e muito só, sem ninguém a quem dedicar afeto e carinho. Vira a cerejeira crescer e florescer desde criança. Os pais e os avós dele já haviam brincado à sombra da árvore.

    Na sua solidão de ancião, todo o amor do samurai se voltou para aquela cerejeira já bem velha, mas que ficava viçosa e florida sempre no mesmo dia, todos os anos, para alegria e consolo de seu coração solitário.

    Os anos foram passando. Até que, num certo 16º dia do primeiro mês de certo ano, a cerejeira amanheceu nua e seca. O velho caiu em profunda tristeza. Não deixou que arrancassem a árvore morta, na esperança de que no ano seguinte ela revivesse. Mas a pobre cerejeira ficava cada vez mais seca.

    O samurai ficou tão abatido que os vizinhos se condoeram e lhe deram de presente uma cerejeira nova, a mais bonita que puderam encontrar. O velhinho agradeceu, fingindo ficar satisfeito com o presente, mas no fundo da alma continuava roído de tristeza. Sentia saudade da florada de inverno da árvore amada.

    Dia e noite ele pensava na cerejeira, inconsolável. Mas, no ano seguinte, quando chegou o 16º dia do primeiro mês, teve de repente uma ideia que lhe pareceu feliz: lembrou-se de uma coisa na qual todos, naquela região, acreditavam. Era que, quando alguém o desejava muito, e os deuses o permitiam, a pessoa podia fazer uma permuta: trocar a sua própria vida pela de uma planta, de um animal ou mesmo de um inseto!

    Então, o velho samurai saiu para o jardim e, ajoelhado junto à cerejeira seca e morta, falou com ela, suplicando:

    - Por favor, minha cerejeira amada. Eu te imploro. Tem pena de mim e atende ao meu humilda pedido: floresce só mais uma vez, para que eu possa morrer em teu lugar!

    Depois da súplica, voltou para casa e lá pegou os seus mais alvos lençóis e seus mais ricos tapetes, que estendeu ao pé da árvore seca. Então, solenemente, sentou-se no tapete e, sem hesitar, fez o haraquiri, rasgando o próprio ventre com a sua espada, conforme a tradição dos samurais. E morreu feliz, com um sorriso nos lábios.

    No mesmo instante, o espírito do velho saiu de seu corpo e entrou na árvore seca. A cerejeira morta reviveu. Fresca e viçosa como antes, cobriu-se de flores lindas e perfumadas.

    Desde então, com a neve ainda atapetando o chão, a antiquíssima cerejeira continua florescendo a cada 16º dia do primeiro mês de cada ano novo, vestindo-se de flores e enchendo o jardim de perfume e beleza.

    E de todas as partes, dos povoados mais distantes, sai gente nesse dia para ver a cerejeira florir milagrosamente - e fazer toda sorte de pedidos ao espírito do velho samurai que nela se abriga.


Lenda do folclore japonês recontada por Tatiana Belinky. Retirado da Revista Nova Escola. Fundação Victor Civita. Editora Abril. Março de 1996.

quinta-feira, 17 de março de 2022

A Barrica Curandeira

    Um rapaz trabalhou durante muito tempo numa cervejaria e, quando se despediu do patrão, recebeu em recompensa pelos bons serviços uma barrica de cerveja. O moço a pôs nos ombros e partiu, alegre. Mas quanto mais caminhava mais pesada ficava a barrica. O moço ia ficando cansado de carregá-la, quando cruzou no caminho com um velho de longas barbas brancas.

    - Aceitas beber um pouco desta cerveja comigo? - perguntou o rapaz. - A barrica me pesa tanto que gostaria de aliviá-la.

    - Chega na hora certa - disse o velho. - Estou com uma sede brava.

    - E quem és tu, vovozinho?

    - Sou o Destino.

    - Então não quero beber contigo, porque és injusto com os homens: a uns dás alegrias e riquezas; outros deixas passar fome.

    E o moço retomou o seu caminho, com a pesada barrica nos ombros. Pouco mais adiante, encontrou um sujeito de aspecto estranho.

    - Queres beber um pouco de cerveja comigo? - convidou o moço.

    - Com muito gosto, tanto mais que estou cansado e sedento - retrucou o sujeito.

    - E quem és tu?

    - Sou o Diabo.

    - Sinto muito, mas não posso beber contigo. És aquele que atormenta os homens e os faz cair em tentação!

    E o moço retomou o caminho, com a barrica nas costas, cada vez mais pesada. Mas logo depois cruzou com uma velha tão esquálida que mais parecia um esqueleto.

    - Aceitas beber um pouco de cerveja comigo? - ofereceu o rapaz.

    - De bom grado - respondeu a velhota.

    - E quem és tu, vovozinha?

    - Sou a Morte.

    - Contigo beberei, sim. És honesta e justa com os homens, tratas ricos e pobres como iguais.

    E, com isso, o moço pôs a barrica no chão e fez jorrar dela a espumante e fresca cerveja, que a velha sorveu com grande prazer.

    Nunca antes eu bebi uma cerveja tão saborosa! - exclamou a Morte, após algumas canecas. - Parece até que rejuvenesci uns dez mil anos. Para mostrar minha gratidão, vou dar-te um presentinho. A tua cerveja, de hoje em diante, curará todas as doenças e não se acabará nunca. Mas toma cuidado: quando fores atender a um doente, antes de ministrar-lhe este singular remédio, olha bem em volta - se me vires aos pés da cama, faz o doente beber a cerveja; mas, se me vires à cabeceira, nem tentes servi-la ao enfermo, pois não adiantará nada e ainda poderás te ver em maus lençóis.

    A Morte sumiu e o moço seguiu o seu caminho, com a barrica cheia, mas agora leve, nos ombros. Logo ele se pôs a bancar o médico e em pouco tempo ficou famoso e rico.

    Aconteceu, porém, que um dia a filha do rei caiu gravemente enferma e, o rei prometeu metade do reino em recompensa a quem conseguisse curá-la. O dono da barrica foi chamado. Mas, ao entrar no quarto da doente, ele viu, num sobressalto, a Morte sentada numa cadeira, cochilando à cabeceira da doente. O moço não gostou da perspectiva de perder metade do reino por não poder curar a princesa e então teve uma ideia.

    Como a Morte continuava cochilando, sem se aperceber de presença do seu protegido, este mandou, em voz baixa, que os criados virassem silenciosamente a cama da moribunda, de maneira que a cadeira com a Morte ficasse aos pés da doente. Em seguida, fez a princesa beber a cerveja, curando-a no ato..

    - Tu me enganaste! exclamou a Morte, ao ver frustrada a sua intenção. - Assim, eu não te devo mais nada. Estamos quites!

    - Mas eu ganhei metade do reino - regozijou-se o moço.

    - De nada te valerá tal reino - rosnou a Morte. - Agora tu me pertences, és meu!

    A Morte tocou-o com a mão ossuda e gelada e o curandeiro da cerveja miraculosa tombou ao chão, morto.


História do folclore da Escandinávia recontada pela escritora Tatiana Belinky. Retirado da Revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril, Dezembro de 1995.

quarta-feira, 16 de março de 2022

A Princesa e o Saltimbanco

    Havia, muitos e muitos anos atrás, num reino muito distante daqui, uma princesa muito linda. Ela adorava dança, música e todas as artes que no mundo existiam. Por isso, artistas de todas as partes faziam fila para poder se apresentar naquele pequeno reino, pois o prêmio maior pelos espetáculos era o sorriso da bela princesa.

    Num dia em que o sol se confundia com as nuvens claras e nem parecia inverno ou verão, apareceu no reino um grupo de saltimbancos, trazendo um espetáculo muito interessante. Os mensageiros do reino logo correram para avistar a princesa, que, encantada com a novidade, aceitou o convite para ver o espetáculo bem na primeira fila.

    Curiosa em saber o que trazia a nova companhia, a princesa chegou bem antes do início da peça para ver os preparativos da montagem. Foi aí que, no meio daquele movimento todo, ela o viu.

    Ela enxergou um rapaz enorme, alto, forte, tão forte que carregava metade de um cenário inteiro sorrindo, como quem carrega flores. O moço, por sua vez, ao perceber que a princesa olhava para ele,  baixou os olhos, tímido. "Imagine, a mais bela de todas as princesas olhando para mim", pensou. Ela também falou a mesma coisa para os seus botões. Mas, mesmo pensando coisas tão mal pensadas, os dois não conseguiram parar de se olhar.

    O cenário ficou pronto, a peça começou e o moço escondeu-se atrás do palco. E a linda princesa ficou inquieta, pensando num jeito de se encontrar com aquele que mexera com seu coração. Mas como?

    Do outro lado, o moço também a observava, achando estranho que a princesa, famosa por apreciar os espetáculos com muito interesse e alegria, estivesse distraída e com um ar preocupado. E suspirou, olhando para ela.

    A princesa também suspirou, impaciente. Mas, de repente, chamou sua aia e lhe disse:

    - Quero que vá atrás do palco, aia. Leve este novelo de fita até o rapaz maior que houver lá dentro. Ele é enorme, forte, mas tem o olhar mais meigo que você já deve ter visto. Amarre a ponta do novelo em seu pulso e traga a outra para mim. Não se preocupe, ele não perguntará nada e nem a impedirá de fazer isso. Vá logo, por favor!

    E assim a aia fez.

    O moço, a princípio, ficou um pouco assustado. Mas, feliz, reconheceu a fita que amarrava seu braço com a mesma que enfeitava os cabelos da princesa. E se soube preso. E nunca em sua vida imaginou tão doce prisão. Grades de fitas coloridas, música, dança e sorriso da princesa mais encantadora do mundo. Então, amarrou o laço mais forte em seu pulso.

    A princesa não sabia, mas ele iria levá-la em seu cavalo para o seu reino. Ela não sabia, mas ele também era um príncipe. Um príncipe viking, acostumado a vencer muitas guerras, mas completamente fascinado pela arte dos saltimbancos. A princesa não sabia, mas estava condenada a ser feliz para sempre ao lado do príncipe viking. Ou será que sabia?


Conto de Januária Cristina retirado da Revista Nova Escola. Fundação Victor Civita, Editora Abril. Novembro de 1995.

terça-feira, 15 de março de 2022

Dois Amigos e a Liberdade

    Zezinho achou um passarinho com uma asa quebrada. Ele parecia estar chorando de dor e tremia inteirinho.

    Devagar, com muito cuidado, Zezinho foi tratar da asa do passarinho. Passou remédio, enfaixou a asa e deu comida para ele. E todos os dias ia lá no cantinho do quintal para ver como estava seu mais novo companheiro.

    O tempo foi passando e o passarinho  melhorando. Zezinho botou-lhe o nome de Leco e vivia conversando com ele. Chegava da escola e logo corria para contar-lhe as novidades do dia.

    Fazia os deveres dividindo com Leco as dificuldades da Matemática, as poesias bonitas que a professora de Português mandava recitar em voz alta e as novidades das Ciências.

    O bichinho ouvia tudo com os olhos bem abertos. De vez em quando até piava, o que significava para Zezinho que Leco estava opinando sobre alguma coisa.

    O menino percebia que agora o passarinho não tinha mais cara de choro. Estava ficando bom, mas não tinha vontade de sair dali. Os dois se entendiam tão bem que Leco chegou a pensar que Zezinho fosse um pássaro maior. Nunca tinha visto um menino que não quisesse acertá-lo com um estilingue ou prendê-lo numa gaiola.

    Zezinho não via a hora de chegar em casa para poder ficar com o Leco, conversando, brincando, vendo-o voar. Sentia-se tão bem em sua companhia que era como se ele fosse um irmão muito querido.

    Quando Leco ficou forte, voando bem alto, convidou o garoto para voar com ele. Ir para bem longe, conhecer outras terras. Mas Zezinho não tinha asas e, além disso, havia sua família, seus outros colegas, a escola, as peladas de futebol.

    O passarinho não podia ficar? - quis saber o menino. Não. Ser pássaro só tinha graça se vivesse voando por aí.

    Os dois se separaram então. Mas a amizade não acabou. Zezinho passou a amar todos os pássaros e Leco, todos os meninos. Eles espalharam esta história pelo mundo e houve muita gente que começou a ver meninos cantando como pássaros e pássaros conversando como meninos.


Texto de Januária Cristina retirado da Revista Nova Escola. Fundação Victor Civita, Editora Abril, Setembro de 1995.

segunda-feira, 14 de março de 2022

Uma Pedra no Caminho

    Perto de uma aldeia erguia-se o palácio de um duque, diferente de muitos nobres do seu tempo, pois era bondoso, generoso e costumava ajudar os habitantes daquele povoado. Sempre que algum deles tinha problemas ou estava em dificuldades, fosse consertar um telhado arrancado pela ventania, fosse enviar alimentos quando havia falta, ou fosse o que fosse, o duque acudia logo.

    Acontece que, com o tempo, os aldeões começaram a ficar mal-acostumados. Se tornaram acomodados e preguiçosos e, o que é pior, egoístas e mal-agradecidos. Até que um dia o duque se deu conta disso e resolveu testar aqueles aldeões, para ver se entre eles ainda havia pelo menos alguns dispostos a fazer um gesto em favor da comunidade.

    E imaginou um plano. Certa manhã, bem cedo, ele saiu do palácio, despercebido, e foi sozinho até a única estrada da região, bem na metade do caminho. Lá, ele procurou e encontrou uma pedra, tão grande e pesada que mal conseguiu levantá-la. Carregou-a, com grande esforço, até bem no meio do estreito caminho, que só dava para um carro, fechando, assim, a única passagem. Mas, antes, colocou embaixo daquela pedra uma grande bolsa cheia de moedas de ouro. Feito isso, o duque escondeu-se atrás de uma moita na beira da estrada e ficou observando o que ia acontecer.

    Pouco depois, chegou um aldeão, tangendo umas ovelhas que ia levar ao mercado, e parou diante da pedra, espantado. Resmungou em voz alta: "Como é que o duque permite uma coisa destas? Eu é que não vou remover esta pedra. O duque que cuide disso!" E contornou a pedra, sempre reclamando.

    Logo apareceram duas mulheres, carregando cestas de ovos e conversando. Quando deram com a pedra, sentaram-se nela, continuando a tagarelar e a criticar o duque, que permitia que deixasse o caminho atravancado e não mandava seus criados retirar o obstáculo. E acabaram também contornando a pedra, sempre resmungando e culpando o duque.

    As horas iam correndo, e muita gente passava e parava na frente da pedra, todos sempre reclamando e culpando o duque. Eram camponeses e soldados, padres e mercadores, jovens e velhos - pessoas de todas as classes -, mas ninguém se dispunha a tirar a pedra do caminho.

    O duque estava quase desanimando quando, já ao entardecer, aproximou-se cantarolando um rapazinho, filho do moleiro, carregando um saco de farinha nas costas. Ele parou na frente da pedra e disse: "Ora essa, uma pedra no meio do caminho, atrapalhando a passagem de pessoas e carros! Que perigo!" Sem hesitar, pôs o saco de farinha no chão e, com menos esforço que o velho duque, levantou a pedra e a  depositou na beira da estrada. Só quando voltou para apanhar o saco de farinha é que ele viu a bolsa de moedas que estivera embaixo, e leu espantado e incrédulo o que nela estava escrito: "Para aquele que remover esta pedra". Olhou em volta. Nisto, o duque saiu do esconderijo e disse:

    - Meu filho, tu me devolveste a fé na humanidade! Ainda há gente boa nesta aldeia! O dinheiro é teu mesmo, faças bom uso dele!.


Conto do folclore alemão recontado pela escritora Tatiana Belinky. Retirado na Revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril, Agosto de 1995.

domingo, 13 de março de 2022

Vrishadarbha e a Pomba

    Certo dia, há muito tempo atrás, uma pomba ferida caiu do céu aos pés de Vrishadarbha, o rei de Benares, famoso por sua bondade e compaixão pelos necessitados. Ofegante, a avezinha implorou ao rei que a protegesse de um gavião que a perseguia e já a machucara.

    - Fica tranquilo, pombinha, não tenhas medo - disse o rei. - Eu te protegerei, tens a minha palavra. Para te proteger, sou capaz de dar o meu reino e até a minha vida. Mal nenhum te advirá, prometo.

    Mas o cruel gavião, que ouvira essas palavras, pousou na frente do rei e o interpelou:

    - Este pássaro, a pomba, é a minha comida, ó rei. Ela me é destinada pelos deuses. Tu não deverias negar-me a minha presa legal, ganha com árduo esforço! Tu és o soberano, podes intervir entre os seres humanos teus súditos. Mas não tens poder legal sobre os pássaros que voam pelos céus! Que direito tu tens de me forçar a morrer de fome?

    O rei, um homem justo, retrucou:

    - Não te deixarei morrer de fome. Ordenarei que preparem um javali ou um veado. Poderás te fartar à vontade. Mas não comerás esta pomba.

    Ao que o gavião lhe respondeu, maldoso:

    - Eu não como carne de javali, nem de veado. O alimento que me foi destinado é a pomba. Mas, ó monarca compadecido, se te importas tanto com ela, façamos um trato: tu me darás o equivalente ao peso desta pomba em carne do teu próprio corpo. Com isso ficarei satisfeito.

    E o rei retrucou:

    - A tua sugestão é justa, gavião. Farei o que tu propões.

    Imediatamente, mandando trazer uma balança, o rei começou a cortar pedaços do seu próprio corpo e a colocá-los num dos pratos, enquanto no outro punha a pomba ferida.

    Os cortesãos, as princesas, os ministros e os servos acorreram aflitos e, horrorizados, levantaram um alarido de protestos tão fortes que chegou aos céus como um grande trovão. E a própria terra tremeu, ao ver que o rei de Benares não só prometia como fazia o que os seus guerreiros mais valentes não seriam capazes de fazer, nem pelos seus próprios filhos.

    O rei continuava a cortar pedaços das suas pernas, coxas, músculos e braços, mas, quanto mais da sua carne ele punha na balança, mais pesada ficava a pomba, no prato oposto.

    O rei já estava quase reduzido ao esqueleto descarnado e então, vendo que não conseguia igualar o peso da pomba, ele decidiu dar o seu corpo inteiro para cumprir a palavra. Subiu na balança, ele mesmo. E equilibrou o peso.

    Naquele momento, apareceram os deuses. Ouviu-se uma música celestial e uma chuva de néctar caiu sobre o rei, e o seu corpo lhe foi milagrosamente devolvido. Flores maravilhosas caíram do céu e as ninfas celestes cantaram e dançaram. Surgiu uma carruagem faiscante de pedrarias, e os deuses arrebataram o rei, puseram-no na carruagem e o levaram com eles para o céu.


Lenda indiana recontada pela escritora Tatiana Belinky. Retirado da Revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril, Junho de 1995.

sábado, 12 de março de 2022

O Diabo e o Granjeiro

    Um pobre lavrador precisava construir a casa da sua pequena granja, mas não conseguia realizar esse sonho, pois o que ganhava mal dava para alimentá-lo, junto com sua mulher. Por mais economia que fizesse, não conseguia juntar o necessário para começar a construção.

    Uma dia, estando a caminhar pelo seu pedaço de chão, mergulhado em tristes pensamentos, deu com um velho esquisito, que lhe disse com voz desagradável:

    - Para de preocupar-te, homem. Eu posso resolver o teu problema antes do primeiro canto do galo, amanhã cedo.

    - Como assim? - espantou-se o lavrador.

    - Tu precisas construir a casa da granja, certo? Pois eu me encarrego de construir e entregar-te essa obra, antes do canto do galo, em troca de uma pequena promessa tua.

    - Que promessa? Não tenho nada para te oferecer em troca de tal serviço.

    - Não importa: o que quero que me prometas é um bem que tens mas ainda não sabes. É topar ou largar.

    O pobre granjeiro pensou com seus botões "o que é que eu tenho a perder?" e, sem hesitar mais, respondeu ao velho que aceitava o trato, e fez uma promessa.

    - Só que quero ver a casa da granja construída, amanhã, antes do canto do galo - observou ele, ainda meio incrédulo.

    E voltou correndo para casa, para comunicar à esposa o bom negócio que acabara de fechar. A pobre mulher ficou horrorizada:

    - Tu és louco, marido! Acabas de prometer àquele velho, que só pode ser o próprio diabo, o nosso primeiro filho, que vai nascer daqui a alguns meses!

    O homem, que não sabia da gravidez, pôs as mãos na cabeça, mas não havia mais nada a fazer: o pacto estava selado. Porém, a mulher, que não estava disposta a aceitá-lo, ficou pensando num jeito de frustrar o plano do diabo. E naquela noite, sem conseguir dormir, ficou o tempo todo escutando apavorada o barulho que o demônio e seus auxiliares infernais faziam, ao construírem a tal obra, com espantosa rapidez.

    A noite ia passando, aproximava-se a madrugada. Mas, pouco antes de o céu clarear, quando faltavam só umas poucas telhas para a conclusão da obra, a atenta mulher do granjeiro pulou da cama e, rápida e ágil, correu até o galinheiro, onde o galo ainda não despertara. Tomando fôlego, imitou o canto do galo, com tal perfeição que todos os galos da vizinhança, junto com o seu próprio, lhe responderam com um coro sonoro de cocoricós matinais, momentos antes do romper da aurora.

    Como um trato como o diabo tem de ser estritamente observado, tanto pela vítima como por ele mesmo, a obra em final de construção teve de ser parada naquele mesmo instante, por quebra de contrato "antes do primeiro canto do galo".

    E o diabo, espumando de raiva por se ver assim ludibriado e espoliado, se mandou de volta para o inferno, junto com os seus acólitos, para nunca mais voltar àquele lugar.

    Mas a casa da granja permaneceu construída, para alegria do granjeiro, faltando apenas aquelas poucas telhas, que jamais puderam ser colocadas.


Lenda alemã recontada por Tatiana Belinky e retirada da Revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril, Maio de 1995.

Permanece em Serenidade

    A Terra é, sem dúvida, um hospital-escola de provas e expiações.

    Os seus alunos ainda tateiam nas experiências do primarismo, rentando com as paixões fortes que remanescem como heranças dos seus instintos agressivos.

    Por isso, manifestam-se os abusos e descalabros, gerando desordens que retardam a marcha do progresso.

    Distraído ou agitado, o homem insiste na preservação da estrutura material em detrimento da sua realidade espiritual, dos seus valores éticos, da autoconsciência responsável.

    Frágil na constituição orgânica, cuja existência pode diluir-se após uma picada insignificante que lhe infecte a maquinaria, usa-a qual se a mesma pudesse manter-se indefinidamente.

    Constituído por células que se renovam e equipamentos de duração efêmera, não se dá conta da transitoriedade nele latente e ensoberbece-se, brutaliza-se, tornando-se prepotente e dominador, pisoteando física e moralmente todos quantos lhe tombam sob as injunções cruéis.

    Tudo nele, é convite à reflexão, à tolerância, ao amor. Não obstante, o seu comportamento envilece-o, retendo-o nas amarras do primitivismo, enquanto são desprezados os apelos para o crescimento, a ascensão.

    Apesar disso, na condição de aprendiz da vida, a dor o faz, a prazo necessário, descortinar as metas que deve alcançar, atraindo-o para os altos cimos da liberdade e da paz.

    Mantém-te sereno ante as vicissitudes, por mais rudes se te apresentem. Elas te fortalecerão as fibras morais para empreendimentos mais dignificadores.

    Retribui com o bem, sem qualquer ressentimento, todo o mal que te façam. Quem age corretamente, desfruta de paz íntima.

    Desconecta a mente das angústias e cultiva o otimismo dinâmico. O bem é a única diretriz para a saúde integral.

    Avança com serenidade, considerando que estás em trânsito no mundo corporal. Quem vive em vigilância nunca padece surpresas desagradáveis.

    Executa as tarefas que te dizem respeito com  equilíbrio, com fidelidade ao dever. O tempo preenchido com ações úteis se transforma em agente de felicidade.

    Verás, na convivência humana, pessoas que parecem ditosas, despreocupadas, plenas. No entanto, não o são; apenas parecem. Desconhece-lhes o calvário interior e quanto dariam para trocar a sua pela tua vida.

    Destacam-se, ao teu lado, as criaturas odientas, perversas, que galgam os degraus da fama e do poder utilizando-se de recursos ignóbeis. Magoas-te com a sua irreverência. Desconheces, porém, a loucura que as domina, assim como a desdita em que se asfixiam, assumindo essas atitudes como mecanismos de demência escapista.

    As almas estão na Terra em processo de reparação.

    Cuida-te e cresce para Deus com a consciência transparente.

    Jesus, a Vítima sem culpa, aceitou a injunção arbitrária para ensinar paciência, resignação e confiança irrestrita em Deus, em extraordinária demonstração de certeza da Imortalidade, que confirmou ao retornar da sepultura em esplendorosa ressurreição.


Texto retirado do livro Momentos de Alegria; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 4ª Edição, 2014.