sábado, 25 de fevereiro de 2023

Sexo e Força

Ante o sexo, defrontas a vida.

Fonte geradora de energias, é aparelho pelo qual se expressam os estalos de primitivismo e de elevação característicos de cada Espírito.

A conduta com que o utilizes, tornar-se-á motivo de encarceramento ou de libertação para ti mesmo.

Fator de estímulos e de forças, pode converter-se em central de desgaste orgânico quanto de alucinação. Controlado, é dínamo fomentador de vitalidade e saúde. Em desequilíbrio, infelicita e compromete por largo período.

Governado pela mente, que o deve conduzir com respeito e dignificação, às vezes se expressa violento com o potencial do instinto de que se reveste.

Impulso que surge inesperado, sob disciplina mantém-se em calma, proporcionando bem-estar e alegria.

O mau uso de que tem sido objeto é responsável por verdadeiras calamidades para o indivíduo, tanto quanto para o organismo social.

Responderás, ante a própria consciência, pelas induções e seduções sexuais que estimules.

O parceiro, a quem atrais e encorajas, estabelecerá contigo uma ligação psíquica e emocional que não romperás com facilidade, não obstante quando, saturado dele, interrompas a comunhão física... O que lhe suceda, a partir daí, terás a ver, na área da responsabilidade espiritual.

Cada criatura é, psicologicamente, o que remanesce do seu passado espiritual.

No que tange ao sexo, a pessoa reflete, no presente, o comportamento que se permitiu no passado. Por essa razão, as necessidades se exteriorizam de forma variada, esperando educação e vigilância

Desse modo, tem cuidado antes de te comprometeres, evitando enovelares-te nas teias complicadas das paixões brutalizadoras.

Da mesma forma, não imponhas as tuas necessidades a outrem, no que diz respeito às funções sexuais, liberando-te de futuros remorsos que te consumirão interiormente.

O ardor arrebatado sempre cede lugar ao cansaço, à indiferença, ao extenuamento...

Dirige as tuas forças genésicas como quem produz um veículo com freios inseguros: sempre vigilante, canalizando-as para a sustentação dos ideais de enobrecimento e das lutas de elevação moral.

De forma alguma iludidas a quem desejes, promovendo armadilhas e situações que se transformarão em problemas para ti mesmo.

Enriquece o teu sexo com o estímulo do amor, a fim de que este o controle com sabedoria e nobreza.

Respeita os companheiros que se te apresentem atormentados ou que se situam em posições diferentes da tua.

Não os censures, nem os explores.

Todos estão realizando experiências: uns se edificam; outros retificam; diversos se complicam...

Cada qual sabe quanto lhe custa a situação em que se encontra.

Sê bondoso para com todos, sem te manteres conivente com ninguém.

Se alguém te acusa de desvio de conduta ou de qualquer outra razão, recorda-te de que o fazendo com autoridade, a si mesmo se complica, pois que em tal experiência ambos os cômpares se encontram na mesma faixa vibratória e posição moral.

Segue adiante, enfrentando a tua luta libertadora, e não odeies ou te deixes desesperar ante as imposições do sexo.

Exercita equilíbrio, corrige a onda mental e vence o tempo.

Confiando em deus e fazendo o melhor ao teu alcance, lograrás utilizar-te corretamente desta abençoada usina de forças, que é o sexo a serviço da vida.


Retirado do livro Momentos de Coragem; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 8ª Edição, 2014.

sábado, 18 de fevereiro de 2023

Enfermidades

Consideremos as enfermidades sob três aspectos: do corpo, da mente e do Espírito.

As do corpo são resultado de infecções, traumatismos físicos, acidentes, degeneração celular.

As da mente englobam os fenômenos psicológicos, expressando-se em forma de conflitos, insatisfação, desajustes, alienações.

As do Espírito, com maior profundidade, relacionam-se com o próprio comportamento na atual ou em existências passadas, das quais procede no seu programa evolutivo.

As pessoas preocupam-se em demasia por solucionar os males que as afligem, sem uma preocupação mais consciente a respeito das causas que os desencadeiam, realizando uma terapia preventiva, pela morigeração dos hábitos e desregramentos dos abusos de toda natureza, tendo-se em vista que os fenômenos pungentes e dolorosos remontam às matrizes morais enraizadas no Espírito.

Instalada a enfermidade, faz-se inevitável o tratamento específico, recorrendo-se às terapias próprias, compatíveis com as circunstâncias.

Não obstante, para a saúde espiritual, e, portanto, para as doenças que do Espírito derivam, tornam-se imprescindível uma reprogramação dos valores da vida, alterando-se o comportamento em profundidade.

Entre as doenças mais graves da área do Espírito, destaquemos a indiferença, a soberba, o ódio, o ciúme, a falta de finalidade aplicada à existência, o esquecimento e desrespeito às divinas e às humanas leis.

Em todo processo de enfermidades, e mesmo nas que decorrem do fatores morais e circunstanciais - acidentes, choques - há uma forte causalidade no ser espiritual.

A reparação das peças orgânicas e equipamentos psicológicos, sem uma correspondente alteração de conduta íntima, resulta inócua e de efêmero resultado.

Não removido o elemento causador do distúrbio, este muda de forma ou lugar, permanecendo inalterado.

Reforma o quadro das tuas aspirações humanas, considerando a tua realidade eterna, eliminando do teu mapa de comportamento o egoísmo, a ansiedade, a ira, o medo, o ódio, a luxúria.

Esses raios destrutivos, que deles emanam, produzem a degenerescência das células, em face do bombardeio mental que padecem.

A cegueira sistemática a respeito da finalidade transcendental da vida é também responsável por males incontáveis no corpo, na mente, na alma.

Indispensável combater essa virose insidiosa que destrói as defesas da existência, possuindo o poder de mutações constantes, que a apresentam com variadas e insuspeitáveis características.

O conhecimento e consequente respeito aos mecanismos de funcionamento da vida alterarão por completo a tua maneira de ser, brindando-te saúde real, partindo da emoção para o corpo com excelente harmonia interior.

Sobrepondo o Espírito ao corpo, Jesus jamais enfermou, demonstrando a grandeza da saúde verdadeira e conclamando-nos à vitória sobre os atavismos negativos e paixões inferiores.


Retirado do livro Momentos de Alegria; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 4ª Edição, 2014.

domingo, 12 de fevereiro de 2023

Necessidades Reais

Onde situes os teus interesses, em torno deles circularão as tuas necessidades.

Onde tenhas o pensamento, ali porás a emoção.

Indispensável repensar as aspirações de maneira a fixar apenas aquelas que trabalham para a tua realização profunda.

A ambição conduz ao tresvario.

A avareza leva à mesquinharia.

A sensualidade brutaliza.

A indolência entorpece os sentimentos.

A gula desajusta a máquina orgânica.

O egoísmo encarcera o ser.

O orgulho envenena o homem.

O vício destrambelha os equipamentos do corpo e da alma.

O ódio enlouquece a criatura.

O ciúme deforma a visão da realidade.

O que mais anelas e pensas, corporifica-se e passa a dominar-te interiormente.

Tens um compromisso com a vida, assim como esta dispõe de uma tarefa para ti.

Ausculta as tuas necessidades reais e olha em derredor.

Possuis mais do que precisas, enquanto muitos carecem mais do que dispõem.

Não apenas em recursos materiais, mas, também, em conhecimentos, educação, discernimento, capacidade de serviço, razão...

Há no mundo mais escassez de paz do que de pão.

Há mais solidão do que companheirismo.

Faltam mais os valores morais do que os bens materiais.

Estes últimos são os defeitos infelizes dos primeiros.

[...] E porque são escassas a equanimidade e a justiça, abundam a miséria e a ignorância.

Não postergues indefinidamente o teu momento de entrega, de pôr-te em relação com o melhor tesouro, pois onde o depositares, aí estará o teu coração, conforme acentuou Jesus, facultando-te ou não felicidade.


Retirado do livro Momentos de Meditação; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 3ª Edição, 2014.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

A língua do santo

A oralidade nas religiões afrobrasileiras é um inportante veículo de transmissão dos conhecimentos, sendo seu uso um dos principais mecanismos reguladores das relações de poder e reciprocidade estabelecidas pelos adeptos entre si e destes com suas divindades: orixás, caboclos, pretos-velhos e outros guias.

A palavra é considerada fonte imanente de axé, força vital, mas é a sua pronúncia no ato da fala que movimenta as forças sagradas. Isso porque a palavra dita não se separa do sujeito que a pronuncia, seja alguém imbuído de legitimidade religiosa outorgada pelo grupo, seja a própria divindade incorporada em seu filho ou médium.

A fala comunica, movimenta e localiza os indivíduos na ordem  social e cosmológica, fornecendo os princípios de identidade daqueles que falam a mesma "língua do santo". E como toda língua compartilhada é potencialmente capaz de gerar comunidades ou nações, também a língua do santo está relacionada a uma comunidade, chamada de "povo de santo", com as suas diversas "nações" internas identificadas por meio dos modelos de ritos adotados pelos terreiros: queto, jeje, angola, etc.


Nos Terreiros


A língua-do-santo originou-se de um conjunto amplo de expressões e fragmentos de línguas étnicas africanas e possui valores semânticos próprios, muitas vezes diferentes daqueles de sua origem africana. Elaborada originalmente no interior dos terreiros, com o passar do tempo espalhou-se para além das comunidades religiosas e muitos dos seus termos tornaram-se parte da língua cotidiana falada pelo povo.

A música popular brasileira e as instituições a ela relacionadas foram importantes divulgadoras dessas expressões, tais como os nomes dos orixás (Exu, Ogum, Iemanjá, Xangô, Iansã), termos associados às oferendas (despacho, ebó), aos ritos iniciáticos (fazer a cabeça), aos instrumentos musicais e seus estilos e ritmos (agogô, atabaque, afoxé), às comidas rituais (acarajé, amalá), às saudações (saravá, mojubá), aos qualificativos de beleza ou força (odara, axé) e de confusão ou coisas ruins (quizila, encosto, demanda, carrego).

Diferentemente da escrita, a fala (seja para coletar as folhas dos orixás, proferir rezas ou oriquis, consagrar a iniciação religiosa por meio das invicações ou anunciar a presença divina) não se perpetua no tempo a não ser pela sua repetição, que deve estar associada a momentos e espaços próprios (religiosos). Considerando que ela é produziada a partir do sopro (emi), visto como um dos elementos sagrados que compõem a pessoa no candomblé, o falar é um ato ritual que denota o princípio vital que anima o corpo. Por isso, nas religiões afro-brasileiras raramente se reza em silêncio.


Sons do Corpo


Da mesma forma, outros sons produzidos pelo corpo, como o paó (palmas cadenciadas usadas para saudar orixás e os mais velhos), ou a própria música cantada e percurtida nos atabaques para chamar os orixás à terra, expressam o valor que o ato de falar, rezar, cantar e tocar adquire como forma de contato com o sagrado.

No candomblé, por isso, deve-se aprender ouvindo e vendo o que os mais velhos dizem e fazem, sendo a curiosidade malvista pela comunidade.

O símbolo da importância da fala é assinalada na iniciação quando o iaô (iniciado) é apresentado numa festa pública com a cabeça raspada e uma pena vermelha de papagaio amarrada à testa. Essa pena denota, entre outras coisas, a importância da fala (associada ao papagaio) como forma de sacralização. É nesse momento que o orixá diz seu nome sagrado em público pela primeira vez.

Nessa visão, o conhecimento, ainda que possa ser particularizado, é percebido por interconexões cujo aprendizado e manipulação dependem da visão de conjunto que se obtém ao longo da experiência total de inserção do iniciado no cotidiano da vida do terreiro. Essas interconexões, contudo, ao caracterizarem o patrimônio cultural dos grupos em forma de uma memória social  coletiva e pessoal, não devem ser entendidas como formas acabadas e irreversíveis. As "novas interpretações" do conhecimento ritual tradicional podem assumir (e frequentemente assumem) grande importância no fornecimento de acréscimos, inteligibilidade e dinamismo às tradições.

Por esses aspectos, avalia-se a dificuldade de sistematização dessas tradições de forma não conflitante com a ordem de transmissão oral dos conhecimentos religiosos e com a manutenção do axé apoiado na fala e no segredo ritual; principalmente quando se considera que a oralidade, ao menos como forma de aquisição e retenção de conhecimento, vem se tornando cada vez menos legítima diante do valor do saber escrito instituído nos processos de educação formal de massa.


Escrita e Fé


No contexto dos terreiros, escrita e religião tenderiam a se opor, porque a força da palavra está em sua pronunciação, no contexto da experiência vivida. Entretanto, sistematizações (ou codificações escritas) existem e pelas formas assumidas denunciam transformações significativas no modo como essas religiões têm sido pensadas e particadas seja no interior dos terreiros, seja na confluência destes com o mundo exterior.

Uma das formas de sistematização do conhecimento, por exemplo, é a utilização, pelo povo de santo, dos chamados "cadernos de fundamentos", escritos por eles mesmos para reter de maneira segura os conhecimentos que são adquiridos com o passar do tempo e que são utilizados cotidianamente nas inúmeras e minuciosas tarefas religiosas, que devem ser executadas numa ordem necessária e com elementos definidos

Os "cadernos de fundamentos", em geral, contêm anotações como os procedimentos de iniciação dos orixás, rezas, fórmulas de oferendas, receitas, utilização de folhas sagradas e os nomes dos odus e seus significados no jogo de búzios.


Etnografias


Ao lado dos "cadernos de fundamentos", de uso pessoal e restrito, outra forma de sistematização escrita da religião, de acesso público, tem sido as etnografias realizadas nos terreiros brasileiros desde fins do século XIX. Essas etnografias, sobretudo quando publicadas em livro, possibilitam que parcelas do conhecimento oral do povo de santo seja registrado, podendo ser acessado de forma ampla. Livros de autores como Roger Bastide (O Candomblé da Bahia) e Pierre Verger (Orixás), entre outros, passam a ser cada vez mais procurados e lidos pelos religiosos, que os tomam frequentemente como modelos de culto justificando aspectos cotidianos do rito que praticam.

Assim, o texto acadêmico sobre essas religiões de tradição oral tende a registrar um processo que ele próprio, paradoxalmente, ao descrever, tem ajudado tanto a consolidar como a transformar, seja porque permite ao leitor religioso, que é muitas vezes o próprio produtor daquele conhecimento, refletir sobre suas práticas a partir do ponto de vista proposto pelo texto, ou porque generaliza o que é a visão particular de certos grupos que podem se utilizar dos livros que os descrevem como meio de legitimar e valorizar sua visão de mundo diante das demais.

Sendo os terreiros grupos religiosos altamente hierarquizados internamente, com posições internas estabelecidas segundo a idade de iniciação dos seus membros, a qual regula o acesso ao conhecimento ritual, o livro atua, ainda, de modo a facilitar o acesso dos iniciados ao acervo cultural da religião, atenuando num certo grau as dificuldades decorrentes da regra do segredo na transmissão oral do conhecimento religioso.

As etnografias vão constituindo, assim, o "corpus inscriptionum" da religião - seu corpo codificado. Sob este aspecto, as religiões afrobrasileiras encurtam também sua distância em relação àquelas religiões que podem exibir suas tradições codificadas (traduzidas, impressas e universalizadas) em livros sagrados, como o cristianismo e a Bíblia, o judaísmo e o Talmude ou a Torá, o islamismo e o Alcorão.


Ciência e Religião


O discurso científico (principalmente o antropológico), enfatizando suas afirmações como resultado de uma pesquisa baseada na obsevação participante e, portanto, numa perspectiva "desde dentro", busca assegurar a confiabilidade das informações perante os seus leitores ( entre os quais estão os religiosos). Mesmo porque muitos pesquisadores acabam participando também como religiosos da vida dos terreiros pesquisados e usando essa proximidade como forma de legitimar suas conclusões.

Ao lado da etonografia religiosa afro-brasileira de cunho científico, existe, ainda, outro tipo de literatura religiosa de divulgação crescente, principalmente nos grandes centros urbanos, cujos autores são em sua maioria autoridades religiosas (pais e mães de santo) que escrevem para um público não necessariamente acadêmico, mas sem dúvida já acostumado com esse tipo de veiculação da informação religiosa.

Para o grupo religioso, ter sua história registrada num livro representa sinal de valorização positiva de suas práticas e, para o pai de santo, publicar ou divulgar textos (muitas vezes, em congressos de religiosos e encontros científicos) pode significar sinal de legitimidade também no nível do saber escrito, além de uma inserção importante do religioso no "mundo dos parágrafos" que influem consideravelmente na dinâmica das tradições.

Por outro lado, muitos textos dessa literatura religiosa não tomam como modelo os trabalhos acadêmicos, seja na sua forma: não são exatamente etnografias de terreiros, seja nos seus objetivos: trata-se de textos que procuram fornecer uma série de informações religiosas básicas para orientar os leitores em práticas mágicas do tipo: como jogar búzios, fazer ebós ou despachos etc. Em muitos casos, essa literatura religiosa afro-brasileira impõe-se numa faixa do mercado editorial caracterizada por livros como o de São Cipriano, Cruz de Caravaca etc.


Dificuldades


O candomblé, ao transitar pelo mundo da escrita (que cada vez mais se transforma sob o impacto da tecnologia digital e da internet em que proliferam sites disponíveis sobre todas as religiões),  enfrenta, ainda, outras dificuldades.

Diferentemente da umbanda, que desde a origem e sob a influência do kardecismo tem procurado se codificar por meio dos livros e organizações burocráticas (chegando a ter hoje uma Faculdade de Teologia Umbandista em São Paulo), o candomblé tem procurado se legitimar baseando-se no carisma individual de suas lideranças e na ênfase das tradições orais tidas como originárias da África em épocas antigas e "conservadas" até hoje por meio da manutenção dos segredos rituais.

Dialeticamente, sendo uma religião gestada sobretudo no Brasil, o candomblé afirma-se por meio de sua origem africana e, estando  baseado na oralidade, cada vez mais a escrita e outros registros visuais desempenham papéis fundamentais na reprodução e divulgação nacional e internacional dos seus valores. Basta dizer que dois de seus maiores divulgadores, Pierre Verger e Carybé, foram atraídos para o candomblé após lerem romances de Jorde Amado, o mais divulgado escritor brasileiro, que escolheu o povo da Bahia e o candomblé como personagens de suas novelas.

Enfim, esses são alguns aspectos das relações contemporâneas entre oralidade e escrita nas religiões afro-brasileiras sobre as quais a ação dos sacerdotes, antropólogos, artistas, cantores, adeptos, orixás, editoras, jornais e revistas vem trazendo novas dinâmicas e alternando a funções da palavra na produção dos valores religiosos.

No candomblé se diz "Kosi ewe, Kosi orixá" ("sem folhas não há prixás"). Trata-se de referência à importância da natureza para a reprodução da religião. Mas não podemos deixar de notar que a palavra "folha" também pode designar o suporte da palavra escrita nos livros. Seria isso uma premonição?


A linguagem dos terreiros

Um glossário com as expressões usadas pelas religiões afro-brasileiras


* ABIÃ: Frequentador ou simpatizante do terreiro que ainda não foi iniciado.

* AMACI: Banho de ervas sagradas usado para purificação.

* AMALÁ: Comida à base de quiabo dedicada a Xangô, orixá masculino do raio e do trovão.

* AGÔ: Licença, permissão, perdão. "Agô, meu pai": dê-me licença, meu pai (pai-de-santo ou orixá).

* ASSENTAMENTO (OU IBÁ): Conjunto de objetos (pratos, ferro, búzios, pedra, etc.) que representa o orixá. "Assentar o santo" ou "Fazer a cabeça": submeter-se à iniciação.

* AXÉ: Energia vital. Força espiritual da natureza (em objetos inanimados, como pedras, ou animais e plantas), designa o poder de realização e a dinãmica das entidades.

* AXEXÊ: Cerimônia fúnebre do candomblé de rito nagô.

* BABA: "Pai", no candomblé, ou "mãe", na umbanda.

* BABALAÔ: Adivinho; praticante do jogos divinatórios.

* BABALORIXÁ: Sacerdote, pai-de-santo.

* BORI: Ritos para o fortalecimento espiritual da cabeça (ori) de uma pessoa, por meio de oferecimento de alimentos. "Dar comida ao ori".

* CAMBONO: Auxiliar do sacerdote ou dos médiuns incorporados na umbanda.

* CANDOMBLÉ: Culto ou invocação. Termo de origem banto, designa tanto as cerimônias públicas (festas e toques) como o local (templo) em que são realizadas.

* CONGÁ: Altar nos terreiros de umbanda. "Bater a cabeça no congá": saudar as entidades de seus altares tocando o chão com a cabeça.

* CORPO FECHADO: Proteção contra inimigos e má sorte obtida por meio dos rituais como a abertura de pequenas incisões na pele em que pós mágicos são inseridos.

* DECÁ: "Receber o decá" é submeter-se ao ritual do sétimo ano de iniciação, que confere ao adepto autorização para iniciar outros adeptos e tornar-se pai-de-santo.

* DEMANDA: Briga, desentendimento entre pessoas, terreiros ou orixás cuja explicação remete a questões espirituais.

* DESCARREGO: Ritos (banhos, passes, oferendas, etc.) para afastar as energias negativas e abrir os caminhos de uma pessoa.

* DESCER (OU BAIXAR): Receber em transe uma entidade espiritual.

* DESPACHO (OU EBÓ): Oferenda alimentar e/ou sacrifício de animal em homenagem à divindades para obter sua ajuda e proteção na solução de problemas. "Pisar num despacho": atrair má sorte.

* DIJINA (OU ORUNCÓ): Nome religioso, iniciático, com que são conhecidas e tratadas as pessoas no candomblé. Geralmente é composto por palavras de origem banto ou iorubá.

* EBOMI: Status do iniciado após a realização da cerimônia do decá.

* EGUM: Espírito dos mortos cultuado em terreiro dedicado ao culto de antepassados chamados de Egungun.

* ENCOSTO: Perturbações atribuídas aos maus espíritos ou às energias negativas.

* EQUEDE: Cargo do candomblé reservado às mulheres que não entram em transe. Uma de suas funções é auxiliar os membros do terreiro quando incorporados.

* FAZER OU RASPAR O SANTO: Iniciação no candomblé que consiste em diversos rituais privados (como raspagem do cabelo, sacralização do assentamento do orixá por sacrifício de animais, etc) e que termina com a apresentação do iniciado numa festa pública, a Saída-de-iaô.

* FILHO-DE-SANTO: Iniciado no candomblé que passa a pertencer a uma família-de-santo (com pai-de-santo, irmão-de-santo, tio-de-santo, primo-de-santo, etc).

* FUNDAMENTO: Conhecimento profundo e secreto sobre a religião que dá legitimidade ao ritual realizado.

* GIRA: Sessão de trabalho espiritual na umbanda. Viagem espiritual que o guia faz para buscar a causa de um problema (também conhecida como "girar o mundo").

* GUIA: Entidade protetora. Colar feito de fios de contas consagrado às entidades. "Girar com o guia": dançar ou trabalhar incorporado com uma entidade espiritual.

* HUNTÓ: Tocador de tambor no rito jeje de procedência Fon-Ewe.

* IAÔ: Iniciado do candomblé até o 7º ano de iniciação.

*INQUICE: Nome genérico das divindades nos terreiros de rito angola.

* IYALORIXÁ: Sacerdotisa. O mesmo que mãe-de-santo.

* JOGO DE BÚZIOS: Processo de adivinhação por meio de 16 búzios (conchas chamadas de cauris).

* LINHA: "Faixa de vibração espiritual" que agrupa as divindades e as identifica por cânticos, doutrinas ou rituais próprios.

* MOJUBÁ: Saudação, homenagem, tributo.

* NAGÔ: Proveniente da tradição iorubá.

* NOCHÊ: Mãe, no rito jeje.

* OBRIGAÇÃO: Cerimônias ou oferendas rituais feitas periodicamente.

* OBSESSÃO: Perturbação de origem espiritual.

* ODARA: Bonito, saudável, equilibrado, ereto, duro, grande.

* ODU: Destino, sorte, previsão. Nome genérico de cada uma das 16 possibilidades de arranjos obtidos no jogo de búzios, os odus principais. A cada odu está relacionado um conjunto de poemas (lendas) que descreve a vida e as atribuições dos orixás e de seus filhos. A identificação dos odus no jogo de búzios e o conhecimento de suas lendas permitem ao adivinho associá-las aos problemas ou ao destino do consulente.

* OGÃ: Homem que não entra em transe e ocupa cargos honoríficos.

* OGÃ E ALABÊ: Tocador de atabaques no candomblé.

* ORIXÁ: Nome genérico das divindades usado no terreiro de rito nagô ou queto.

* ORIQUI: Reza, saudação ou poema que relata a história dos orixás.

* OTÁ (OU OCUTÁ): Pedra sagrada que compõe o assentamento dos orixás.

* PAI OU MÃE-DE-SANTO: Pessoa que ocupa o mais alto grau da hierarquia religiosa.

* PAI-PEQUENO OU MÃE-PEQUENA: Auxiliar do pai ou da mãe de santo. A 2ª pessoa na hierarquia religiosa do terreiro.

* PASSE: Limpeza espiritual feita por entidade incorporada que se utiliza de imposição das mãos, fumaça de charuto, aspersão de líquidos, etc.

* PEJÍ: Lugar ou altar onde são colocados e cultuados os objetos sagrados das divindades do candomblé. Nos terreiros jejes é chamado de comé, valdencomi ou valdencó.

* PEMBA: Pó sagrado usado na purificação de ambientes.

* PONTO RISCADO: Desenho ou diagrama feito pela entidade espiritual no chão do terreiro contendo símbolos que a identificam.

* QUELÊ: Colar de contas usado rente aos pescoço por algumas semanas pelo iaô como símbolo da recente iniciação. "Estar de quelê" e "cumprir o quelê" designam a fase em que o iaô está sujeito às interdições rituais que ele deverá cumprir.

* QUETO: Proveniente da tradição iorubá.

* QUIZILA: Tabu ritual, temporário ou permanente, imposto ao iniciado. Desentendimento, briga, aversão.

* RONCÓ: Quarto ou lugar onde são realizados os rituais privados da iniciação.

* SUBIR: Despachar o santo, interromper o transe. "Cantar pra subir": cantar as cantigas de despedida (chamadas também de aunló) para que a entidade se despeça.

* TERREIRO: Templo onde são cultuadas as divindades. Conhecido como ilê, abassá, casa de santo, roça, centro, tenda ou cabana.

* TOI: Sacerdote ou pai de santo, no rito jeje.

* TOQUE OU TOQUE DE SANTO: Festa pública em homenagem às divindades ou à divindade homenageada ("Toque de Ogum"). Diz-se "Fazer ou dar um toque".

* VODUN: Nome genérico das divindades no terreiro de rito jeje.

* VODUNSI: Filha ou filho de santo no rito jeje


Texto de Vagner Gonçalves da Silva; professor de Antropologia da USP. Retirado da Revista Língua Portuguesa, Edição Especial Religião e Linguagem, Editora Segmento, São Paulo.

domingo, 5 de fevereiro de 2023

Encontro com o amor

Na sociedade contemporânea, conforme sucedeu na passada, o amor é um fenômeno emocional, que só raramente se expressa. Pelo menos, o amor na sua profunda significação.

Há variadas colocações para o amor que não passam de sentimentos confusos e buscas atormentadas, não significando ser a real conquista da evolução do indivíduo.

A palavra tem sido utilizada para mascarar estados íntimos desequilibrados e, não poucas vezes, para ocultar objetivos escusos.

Certamente existe o amor dos pais pelos filhos e destes por aqueles; o amor dos cônjuges e da família; da participação nas atividades solidárias; à ciência, à arte, ao desporto, à fé... No entanto, na maioria das vezes, o fenômeno do amor é atormentado, esvaziado, assinalado por altibaixos, sem a profundidade necessária para resistir aos vendavais dos acontecimentos humanos.

Ocorre que, num contexto de pessoas solitárias, conformistas ou rebeldes, há um receio injustificado de amar, a fim de cada uma poupar-se aos problemas do envolvimento afetivo que sempre se apresenta nesses relacionamentos.

Com a predominância do egoísmo, todos pretendem ser amados, não, porém, dispondo-se a amar, apesar das queixas em torno da questão.

Diversos sentimentos e interesses se apresentam na química moderna do amor, que se expressa sem os conteúdos reais da sua manifestação.

Normalmente, o amor é confundido com os impulsos sexuais, raramente amadurecidos e quase nunca portadores de objetivos construtivos. Torna-se uma mistura de interesses vulgares, com predomínio da busca das sensações a prejuízo das emoções enobrecidas.

Imprescindível, portanto, não confundir estas manifestações, dando-lhes as denominações correspondentes, que nada têm a ver com o amor.

O amor é um sentimento que brota espontâneo e deve ser cultivado, a fim de que se desenvolva, realizando o mister a que se destina.

Floresce através de ações benéficas, capazes de gerar alegria, bem-estar e progresso.

É altruísta sem alardear suas metas, impregnando todos aos quais se dirige.

Se não se deriva dos sentimentos profundos da alma, gera hostilidade, irritando-se facilmente e malogrando nas suas manifestações.

Quando o amor se exterioriza do coração, produz um encantamento em relação à pessoa querida, com altas doses de empatia responsável pelos sentimentos de doação, de sacrifício, de beleza.

É autoperceptivo, afirmando as suas mais belas possibilidades.

Libera o ser amado, que se movimenta sob estímulos enobrecedores, não exigindo servidão, antes impulsionando o outro ao crescimento emocional, moral e espiritual.

Não permite a dependência, que se torna um mecanismo de apoio, jamais uma forma de realização plenificadora.

A Humanidade registra a abnegação de homens e mulheres notáveis, cujas vidas, iluminadas pelo amor, tornaram-se exemplos edificantes, inolvidáveis.

Assim, aprende, também, a amar.

Deixa que o sentimento da amizade se irise de ternura e cresça em forma de amor. Com ele, tranquiliza-te, permitindo que a alegria do encontro te constitua emulação para o prosseguimento.

Quem experimenta o amor, nunca mais é o mesmo.

Constatarás que o amor é a meta que deves alcançar, entregando-te à sua realização, cada vez mais fácil e atraente, felicitando-te e á Humanidade em cujo contexto te encontras.


Texto retirado do livro Momentos de Iluminação; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 4ª Edição, 2015.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Traídos pelo ouvido

O predomínio do som sobre o significado criou uma espécie de tradição "virundum" de letras cantadas propositalmente erradas.


Atire o primeiro vinil quem nunca cometeu um virundum. O termo é esdrúxulo, mas serve para designar as mudanças na letra original de uma música. Geralmente induzidas por audições desatentas, as letras ficam registradas de memória mais pela sonoridade do que pelo sentido, e desse jeito são entoadas.

A versão recorrente da origem do termo é de que foi cunhado a partir do primeiro verso do Hino Nacional. "Ouviram do Ipiranga, as margens plácidas" virou "o virundum (Ipiranga, as margens plácidas)", e hoje o tema motiva inúmeras trocas de relatos sobre a prática, sobretudo no mundo virtual de sites e blogs.

O mais conhecido desses sites especializados no gênero é não por acaso chamado de Virundum (www.virundum.com). No estrangeiro, o mesmo é feito pelo site americano Kiss this guy (www.kissthisguy.com), com as músicas em inglês, é claro.


EXEMPLOS


No universo virundum, o homem de Mesmo que seja eu, aquele que a musa de Erasmo Carlos deve chamar de seu, acaba batizado: passa a ser "uma homem para chamar Dirceu".

Outro clássico do virundum é Noite do Prazer de Cláudio Zoli gravada pelo grupo Brylho nos anos 80. A letra descreve o ambiente de uma festa: "Na madrugada a vitrola/ rolando um blues/ tocando B.B. King sem parar". Mas o virundum faz a cena ficar mais nonsense ou apimentada, já que tem gente "tocando de  biquíni sem parar".

Em Seduzir, de Djavan, o efeito virundum confere aromas aos versos existenciais, uma vez que o vazio de "Nem que eu bebesse o mar/ encheria o que eu tenho de fundo", passa a ser "o cheirinho que eu tenho de fumo".

Defumada também fica a letra de Como Nossos Pais. O autor Belchior escreveu "mas é você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem". Na versão virundum, a pessoa a quem o compositor se dirigia fica um tanto quanto fora do ponto: "Mas é você que é mal passado e que não vê".

A música Alagados, do Paralamas do Sucesso, talvez seja uma das que concentre mais virunduns por versos rimados. No trecho "Alagados/ Trenchtown/ Favela da Maré", a localidade jamaicana de Trenchtouwn assume várias formas: "Cristal", "Tristão", "Trens estão", "Frestão", entre outras. E é comum a favela carioca a que se refere a letra ficar tingida: "Favela Amarela". Em seguida, "A arte de viver da fé/ Só não se sabe fé em quê" ganha um tom mais otimista: "A arte de viver dá pé/ Só não se sabe pé de quê?". Tudo faz sentido no universo paralelo do virundum.


TRADIÇÃO "VIRUNDUM"


Exemplos de canções que foram "alteradas" pela criatividade popular:


TRECHO ORIGINAL: 

Eu perguntava do you wanna dance? E te abraçava do you wanna dance?

(Whisky a Go Go, Roupa Nova)

TRECHO ALTERADO:

Eu perguntava tudo em holandês e te abraçava tudo em holandês...


TRECHO ORIGINAL:

Depende de nós quem já foi ou ainda é criança...

(Depende de Nós, Ivan Lins)

TRECHO ALTERADO:

Depende de nós quem já foi uma linda criança...


TRECHO ORIGINAL:

Tira essa escada daí, essa escada é pra ficar aqui fora...

(W/Brasil - Chama o Síndico, de Jorge Benjor)

TRECHO ALTERADO:

Tira as sete cabras daí, as sete cabras é pra ficar aqui fora...


TRECHO ORIGINAL:

Mas se ergues da justiça a clava forte...

(Hino Nacional)

TRECHO ALTERADO:

Mas segues a justiça o cabra forte...


TRECHO ORIGINAL:

Ê, ôôô, vida de gado... Povo marcado ê, povo feliz

(Admirável Gado Novo, de Zé Ramalho)

TRECHO ALTERADO:

Ê, ôôô, briga de galo, porco, macaco ê, porco e perdiz


TRECHO ORIGINAL:

Tocando B.B. King sem parar...

(Noite do Prazer, Cláudio Zoli)

TRECHO ALTERADO:

Tocando de biquíni sem parar...


Texto de Paulo Jebaili retirado do Revista Língua, Edição Especial Música & Linguagem 2010, Editora Segmento, São Paulo.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Erros que dão charme às canções

MPB coleciona sucessos com erros de gramáticas que, se consertados, comprometeriam a obra.


O cancioneiro popular está repleto de casos em que o padrão da Língua foi subvertido. Muitos assaltaram a gramática, como entoam Lulu Santos e Herbert Vianna, de propósito. Outros buscam aproximar-se do coloquial, e com isso privilegiam variantes outras que não a escrita culta. Há, porém, um repertório de canções brasileiras em que o tropeço de Português, involuntário ou deliberado, é tão integrado à lógica interna da composição que, se corrigido, a música sofreria algum tipo de perda.

O compositor Luiz Tatit, que é professor titular do Departamento de Linguística da USP, observa que a intenção das letras nas canções é retratar falas e não gramáticas normativas, e as exigências da composição tomam o primeiro plano.

Há fatores do próprio processo de criação que não raro "pedem" desvios da norma culta, como a tentativa de encontrar uma rima. É a hipótese plausível, por exemplo, para a clássica marchinha Aurora (1941), de Mário Lago e Roberto Riberti, em que o apelo sonoro fala mais alto que a conjugação verbal tida como correta.

"Se você fosse sincera/ Ô ô ô, Aurora/ Veja só que bom que era/ Ô ô ô, Aurora."

Seria difícil imaginar, num salão de Carnaval, alguém cantando:

"Se você fosse sincera/ Ô ô ô, Aurora/ Veja só que bom seria".

Paulinho da Viola contou ter ficado atordoado quando chamaram sua atenção para um erro de concordância em seu samba Comprimido, sobre um homem que após brigar com a mulher tenta o suicídio.

"Noite de samba/ Noite comum de novela/ Ele chegou/ Pedindo um copo d'água/ Pra tomar um comprimido/ Depois cambaleando/ Foi pro quarto/ E se deitou/ Era tarde demais/ Quando ela percebeu/ Que ele se envenenou".

- Então me deram o toque: não era "envenenou", mas "envenenara".

Paulinho tentou mudar.

- Nada encaixava. Um desespero. Aí decidi deixar assim, com erro mesmo. Nunca reclamaram.


CONJUGAÇÃO DE CARTOLA


Em seus shows, Paulinho costuma lembrar um episódio similar de erro involuntário ocorrido com seu mestre, Cartola. Foi na gravação do disco "História das Escolas de Samba" em 1974, que um produtor notou que o samba Fiz por você o que pude continha uma conjugação verbal equivocada.

O verbo "premiar" foi conjugado "premeia" e não "premia", nos versos:

"Sonhava desde menino/ tinha o desejo felino/ de contar toda a tua história/ este sonho realizei/ um dia a lira empunhei/ e cantei todas tuas glórias/ perdoa-me a comparação/ mas fiz uma transfusão/ eis que Jesus me premeia/ surge outro compositor/ jovem de grande valor/ com o mesmo sangue na veia".

O samba é uma homenagem à escola de samba Mangueira. Cartola fora resgatado do ostracismo pelo jornalista Sérgio Porto (o Stanislaw Ponte Preta), que o encontrou lavando carros em Ipanema. Nos estúdios, alertado do equívoco, Cartola teria ficado visivelmente abalado e quis mudar a letra. Mas um produtor o convenceu de que isso alteraria o sentido da composição.

Um dos desafios de um compositor é passar sua mensagem nos limites da métrica, fazer com que as palavras caibam na melodia (grosso modo, a sucessão de notas que formam a parte cantada da música). Isso, por vezes, induz o autor a dilatar, de forma deliberada, os recursos da Língua, sob o salvo-conduto da licença poética.

- Licença poética era um recurso do letrista para que coubesse na melodia o que ele queria. Mudava-se um pouco a acentuação da palavra ou a palavra aparecia até sem a concordância devida. Esses recursos são habituais, mas hoje em dia se faz menos - diz Luiz Tatit, da USP.

Em muitas obras, o que aparentemente seria um erro de Português é, na realidade, um recurso poético ou um registro narrativo de um determinado linguajar.

- A questão é se de fato se diz aquilo na entoação do dia a dia. Quando não se diz, fica artificial. A menos que seja uma brincadeira. Do contrário, dá a impressão de que, se o letrista tivesse pensado um pouco mais, teria encontrado uma solução melhor - diz Tatit.


O ERRO É A IDEIA


Por vezes, a supressão da norma é o que fortalece a ideia a ser comunicada. O rock A Gente Somos Inútil, sucesso do Ultraje a Rigor na década de 80, é um bom exemplo. Ao mandar a regência e a concordância às favas, o autor Roger Moreira encontrou uma maneira debochada de enfatizar a ideia de um país acostumado a conviver com a precariedade.

"A gente não sabemos escolher presidente/ A gente não sabemos tomar conta da gente/ A gente não sabemos nem escovar os dente/ Tem gringo pensando que nós é indigente/ Inútil/ A gente somos inútil".

- Na música do Ultraje, assim como em Beija Eu, do Arnaldo Antunes, há apropriações do coloquialismo para criar uma forma na canção, um recurso linguisticamente lúdico para criar um estilo - analisa Heron Coelho, diretor e roteirista teatral, com graduação e mestrado em Letras pela USP.

Segundo Heron, tudo é possível quando se trata de poesia e, consequentemente, da canção popular.

- A canção é a conjuminância entre a letra e a música. A partir do momento em que se obtém um bom resultado, dentro dessa instância chamada canção, não interessam mais os formalismos. Beija Eu, por exemplo sugere uma criança cantando - comenta Heron. 

Mas nem toda subversão normativa resulta de uma busca por estilo ou por alargar os limites estéticos. Muitas vezes, trata-se da expressão de um dado linguajar, de uma tradição oral, de um tipo de falante. Ou, como diz Heron, da circunstância em que o autor está inserido:

- É preciso levar em conta a circunstância: a de Luiz Gonzaga, que canta "Assum Preto veve sorto, mas não pode avuá", a de Adoniram Barbosa, com "nós fumo e não encontremo ninguém". Há uma circunstância que leva esse coloquialismo para o discurso da canção popular. São segmentos da sociedade que encontram no discurso musical um lugar para a expressão.

O que, do ponto de vista da linguística, não acarreta qualquer prejuízo, na visão do professor titular de Língua Portuguesa da PUC-SP, Dino Preti, que considera a obra de Adoniran excelente por retratar uma variante linguística de São Paulo.

- Não há sentido nenhum em tentar olhar para as músicas pela variante culta. A Língua tem muitas variantes, não é uma questão de erro, mas de variantes linguísticas, algumas têm mais prestígio linguístico e outras têm menos.

De acordo com Preti, os registros de falas de segmentos sociais mais fechados, de gírias e da linguagem característica são elementos que conferem à música um sabor local, como o dos imigrantes italianos, retratados por Adoniran, que imprimiram suas marcas na capital paulista.


ESPONTANEIDADE


Preti considera que seria uma atividade pedagógica interessante levar os textos de Adoniran Barbosa às salas de aula:

- O indivíduo deve aprender na escola que há diversas variantes e essas variantes são adequadas a certas situações. O importante é saber quando usar essas variantes, em que condições, em que situações de comunicação se usa uma variante ou outra. Ao falar com uma criança, não se vai dizer: "Se você vir sua mãe, dê-lhe o recado".

Visão semelhante tem Tatit.

- Normalmente, uma canção convence mais quando as suas estruturas ditas, cantadas, parecem espontâneas, ditas no cotidiano. E tem gente que leva isso aos extremos. Não é nem que Adoniran, por exemplo, falasse daquele jeito. Ele percebia essas construções no ambiente dele e gostava de trazer para as canções.

Para Preti, o importante da linguagem é comunicar.

- Não adianta falar na língua culta e não comunicar as suas ideias - enfatiza.

Tatit segue o mesmo tom:

- A Língua é completamente livre para se usar como se quiser e a canção é uma das formas. A Língua tem de estar sempre solta.

O universo da canção popular parece pedir um tipo de apreciador que seja também bom entendedor. Assim, o que valeria mesmo é passar a mensagem. E talvez o território livre da música soubesse disso muito antes da linguística.


Texto de Paulo Jebaili e Luiz Costa Pereira Júnior retirado do Edição Especial da Revista Língua - Música & Linguagem 2010, Editora Segmento, São Paulo.

sábado, 28 de janeiro de 2023

Ressentimento e Amargura

Vírus, aninha-se voraz nas células dos sentimentos e debilita o organismo emocional das criaturas, levando-as a estados degenerativos graves.

Espinho cravado nas carnes da alma, propicia infecções lamentáveis com perigos iminentes de destruição.

Morbo pestilento, exala contágio, gerando epidemias que se alastram através da maledicência e do ódio queixoso, como válvula de escape da vingança.

Enfermidade de perigoso porte, consome aquele no qual se instala, e tenta contaminar o outro, de quem conserva mágoa, ameaçando a organização social, sempre susceptível de desequilíbrio.

O ressentimento é inimigo que deve ser vencido a golpes de amor e compreensão, antes que, semelhante a câncer constritor se irradie em metástase irreversível, vencendo os organismos físico e mental das vítimas que o aceitam.

Muitos males seriam evitados se o ressentimento fosse descartado do relacionamento humano e social.

Sem fundamento nem justificativa, ele é remanescente dos instintos agressivos e primários do ser, no seu processo de evolução.

Libertando-se dos atavismos animais, cabe ao homem transformar a agressividade em tolerância, eliminando, por definitivo, o orgulho, do seu mapa de comportamento.

Sentindo-se ferido, sem um exame mais cuidadoso da situação, esse outro algoz estimula o ressentimento como forma de desforço futuro, que aguarda qual se fora uma fera acuada.

Há muito ressentimento no mundo, que necessita do oxigênio do amor fraternal para diluir-se.

Considere-se o inimigo na condição de um enfermo que se desconhece, embora a presunção com que se apresente, e não haverá razão para ficar-se ressentido com ele.

Tenha-se em mente que a inveja é sempre responsável por calúnias e acusações indébitas, e não se perderá tempo com pelejas inglórias na emoção, através do ressentimento.

Pense-se na situação do traidor, quando venha a despertar e reconhecer a culpa, e não haverá lugar para qualquer reação ressentida.

Note-se que a outra pessoas, aquela que gera problemas, encontra-se em faixa evolutiva mais grosseira, e o ressentimento desaparecerá, substituído pelo desejo de ajudar.

Quando alguém fica ressentido, nivela-se com o adversário ou o seu contendor.

O ressentimento responde por maior número de enfermidades no homem, do que se supõe.

Age sempre conforme gostarias que os outros o fizessem em relação a ti.

Coloca-te na situação infeliz e perceberás quanto bem te faria a gentileza daquele a quem combatesses.

Todo incêndio cessa quando acaba o combustível que o sustenta.

O ressentimento é labareda mantida pelos sentimentos inferiores.

Se te elevas moralmente pela prece, pela ação do bem, cessa o calor da mágoa e sucumbe o incêndio infeliz.

Liberta-te do ressentimento, e a paz te aninhará no coração.


Texto retirado do livro Momentos de Harmonia; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 3ª Edição, 2014.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Os animais na linguagem dos homens

Desde muito cedo acostumou-se o homem a conviver com os animais ditos "inferiores" e a deles se aprovietar para garantir e preservar sua existência nesse planeta a que o Dr. Pangloss, nascido da veia satírica de Voltaire, chamou o melhor dos mundos, e a que pensadores menos cândidos chamam vale de lágrimas. Desse milenar contato aprendeu o homem a surpreender nos seus primos pobres propriedades, qualidades e defeitos, que se incorporavam, através dos séculos, ao saber que tem das coisas e dos seres com que lida no dia a dia de sua existência. Esse saber chegou até nós por meio de uma transmissão oral e escrita, refletindo na fraseologia, nos provérbios, nas fábulas e em outros gêneros de produção do espírito humano.

Recordar um pouco esse saber, especialmente sobre o que o homem aprendeu a observar acerca dos animais, saber que reflete na língua, é propósito destes comentários.

Um dos animais que o homem tem mais perto de si e, por isso, tem observado com mais cuidado, é o cão. A ele o homem associa qualidades e defeitos. Entre as qualidades está a obediência cega, de um servilismo que degrada. É frase conhecida: o cão é o melhor amigo do homem. Vem daí o atribuir-lhe o dom de trabalhador: trabalha como um cão. O servilismo está patente em expressões do tipo segue-me como um cãozinho ou batem nele e ele volta como um cachorrinho; tem vergonha de cão (isto é, não a tem). Há os que metem medo: chegou com uma cara de cão. Não é à toa que serve eufemisticamente para aludir-se ao diabo: É o Cão. Ao fato de existir o cão vira-lata, que, sem dono, vagueia pelas ruas sem proteção, como uma pessoa miserável, associam-se expressões como vida de cão, como um cão (sem dono). Daí também a alusão à magreza: magro que nem um cão. Também ao cão se atribui sua pouca simpatia ao gato: são como cão e gato, bem como sua esperteza e agilidade: é rápido como um cão, qualidade que condivide com o gato; com mão de gato. A forte e desagradável tosse que às vezes advém de estado doentio chama a atenção do homem: ela tem uma tosse de cachorro. Nem sempre agrada pela beleza, e daí pode ser um dos símbolos da feiura: o vizinho tem uma cara de cão. As pernas desengonçadas e finas levam à comparação do tipo tem pernas de cão, características que também são atribuídas a cegonhas, avestruzes, aranhas, pernilongos e lagartixas.

Nos tempos modernos, o gato é tão próximo do homem como o cão; todavia não era assim no passado, pois a antiguidade não conhecia o gato doméstico, mas tão somente o montês, que os latinos chamavam feles/felis. Gattus, donde o nosso gato, suplantou o termno feles, que se conservou em denomiações eruditas da nomenclatura técnica: felino, por exemplo, Cattus produziu maior ninhada lexical em todas as línguas românticas, quer nessa forma, quer na sua variante gattus. A convivência junto ao homem fez que este enxergasse no animal doméstico qualidades e defeitos muitos. Entre as qualidades está a agilidade e a esperteza, ágil como um gato, esgueira-se como um gato, pula que nem um gato, além do já citado tira algo com mão de gato. Na agilidade e esperteza em tirar e tomar as coisas vê-se-lhe também a tendência ao roubo, domínio em que patenteia extraodinária riqueza vocabular; gato "indivíduo esperto", "ligeiro", gatuno, gatunar e variante gatunhar, gatunagem. Esta atividade o gato reparte com o rato, fonte da palavra ratoeiro. Domesticado pelo homem, serve-lhe para apanhar ratos, e vem a figurar como designativo de "desavença", "briga", em expressões do tipo viver como gato e rato. A facilidade e presteza com que pega as coisas utilizando suas unhas levou o homem a criar o termo gaturar, variante gaturrar, que suponho antes derivado de gato nessa aplicação metafórica do que preso a capturar, como ensina Aurélio. Também creio que gadunhar nada tem que ver com gato, do mesmo modo que agadanhar "lançar no gadanho", "agarra com as mãos, unhas ou garras", que admite a variante agatanhar, por visível influxo da palavra gato, mas não desta derivada, conforme pensava João Ribeiro nas Curiosidades verbais (p.15).

Pelos seus trejeitos e requebros, o gato é também associado à lisonja, característica que a sabedoria do povo atribui ainda ao peru e à cobra. Talvez relacionado a esses requebros do gato o homem lhe tenha ligado o ato de gestos ridículos com as mãos, o que explicaria palavras como gatimonho (s), gatimônia (s), gatimonha (s), usados em textos literários. Vê o homem esperteza, além do gato, conforme vimos, na raposa (uma esperteza astuciosa, como personagem de fábulas), na águia (ele é um águia), no macaco (que não põe a mão em cumbuca; macaco velho "pessoa astuta", experiente).

É interessante uma série de empregos metafóricos ligados ao gato: gato ou gatilho "recurso utilizado para substituir uma peça original ou uma emenda": gato "erro", "falha", "deixar escapar algo num texto ou numa conta". 

O gato também é visto como um belo animal, e isto explica a metáfora do termo aplicado a um homem bonito ou de boa aparência, ou do feminino gata aplicado a jovem bonita ou de belo porte.

A fecundidade da gata passa também a designar gata a mulher de muitos filhos. Aqui também o homem atribui essa particularidade à coelha, que pode aplicar-se outrossim à mulher parideira. 

Ocupa lugar de destaque na linguagem metafórica o cavalo, companheiro do homem nas atividades de transporte, no arroteamento do terreno inculto, na diversão da batalha. O homem de cavalo distinguia-se pela nobreza do modesto homem de pé na constituição das antigas ordens militares, e o cavaleiro era sinal de distinção social e nobreza ou enobrecimento, o fidalgo, enfim. Com as mudanças por que passou a organização das classes militares modernas, com a chegada de novas armas e apetrechos bélicos, a cavalaria sofreu um rebaixamento no seu antigo prestígio de atuação guerreira, de modo que o português dos nossos dias teve necessidade de distinguir o cavaleiro e o cavalheiro, este empréstimo ao espanhol caballero, para indicar o homem de bom trato e de maneiras sociais apuradas. Nem por isso o esporte e a própria corrida de cavalos perderam seu toque aristocrático originário. Como remendo linguístico, o esporte aproveitou para sua designação o termo equitação (prova de equitação), derivado do antigo equus, desbancado já no latim pelo termo não latino caballus, antes aplicado apenas ao cavalo castrado ou cavalo utilizado no transporte de carga. Em socorro nobilitador também veio um empréstimo com ares de Hélade grega, hipismo de hippos, "cavalo" (prova de hipismo, sociedade hípica, etc). Se o masculino equus teve seu destino truncado, tal não aconteceu com o feminino equa, vivo no português égua e em mais línguas românticas.

Vê o homem no cavalo e demais bestas de carga o símbolo do trabalhador contumaz, obstinado, qualidade que condivide com o burro. Talvez dessa ideia de excessivo trabalho se origine a aplicação de pra burro (variantes mais modernas pra cachorro, pra chuchu) para designar grande quantidade ou excesso: chove pra burro, há corrupções pra cachorro. Como se trata de animal de montaria, é associado à ideia de sobreposição (estar a cavalo ou a cavaleiro para dizer ou fazer algo, estar em posição altaneira), passando daí a aplicar-se a outro animal pulador ou voador, como aconteceu com a denominação do peixe cavala, designação primitiva da cavala voadora (exocoetus volitans), pela sua semelhança com a cavala, que salta por cima d'água, conforme ensina Corominas no seu Dicionário.

De se lhe atribuir ao animal o trabalho excessivo deve ser tratado com rédea curta, como no provérbio Ata curto, pensa largo, ferra baixo, terás cavalo. O cavalo divide a fama de trabalhador com o boi, camelo, estes principalmente em referência ao trabalho braçal, com a formiga e a abelha.

Os equinos levam ainda a fama de teimosos: cavalo (égua, burro, mula) quando empaca... Do mulo ou mu veio amuado "sujeito intratável, que está emburrado ou embezerrado", segundo a boa lição de João Ribeiro, no livro já citado. Pelo exemplo, vê-se que partilha da fama de animal teimoso, o bezerro. O mesmo erudito brasileiro agrega ao rol a cabra, e a linguagem dos animais disso dá testemunho: cabra da rede rasgada diz-se do indivíduo desabusado, atrevido, insolente, como lembra o nosso Aurélio. Talvez daí venha o chamar-se cabra ao sujeito de maus costumes, perigoso, jagunço, cangaceiro. Desta área aos dizeres cabra da peste, cabra safado foi muito pequena a caminhada. Só não podemos concordar com João Ribeiro (loc cit) quando supõe, acompanhando alguns etimologistas, que cabra, na referência à teimosia, tenha sido responsável pelo termo capricho. Naturalmente, porque veria na palavra o latim capra "cabra", que aparece, por exemplo, em capricórnio do mesmo nome próprio que era, na lenda grega, filho do deus Egipã (aigós em grego é "cabra"), outro nome do deus Pã, que se apresentava com forma de cabra. Capricho é um italianismo, talvez ligado a capo, "cabeça".


BURRICE E INTELIGÊNCIA


Já o homem distingue, pela inteligência, o cavalo do burro, e considera este último como símbolo da estupidez, da burrice, vocabulário que bem traduz o conceito que dele tem o chamado animal superior. Desta opinião divergem muitos hábeis homens do campo, com larga experiência no trato dos dois animais; a verdade, porém, é que tradicionalmente os burros ostentam essa triste fama, e a linguagem humana assim o registra na aplicação direta ao animal, quer na metafórica, para se referir ao perdedor em algumas espécies de jogos de carta. Se burrus se aplicava em latim à cor ruça, asinus era o designativo do "asno", que partilha com o burro a triste sina de animal estúpido; Você é um asno; Que ideia asnática!; que asnice ou asneira! O possuidor de orelhas grandes fez que orelhudo fosse um insulto menos ultrajante do que burro ou asno.

Além desses animais, a ignorância ou burrice - infelizmente a eles não circunscrita - também é reconhecida na toupeira, que o homem da cidade conhece mais como indivíduos sobre a terra do que como "animal mamífero insetívoro que vive sob a terra, minando-a". Que topeira!

O homem associa a ideia de força física, ao leão, ao tigre, ao touro, ao boi, ao elefante, isto é, aos animais de grande porte, que ele conhece pessoalmente ou por leitura, ou pelo cinema: tem força de leão, ponha um tigre no seu carro, o menino é um touro, parece um boi ou parece um elefante. A baleia entra em comparação quando se trata de gordura excessiva (ela está uma baleia), enquanto a girafa é lembrada na referência à altura demasiada, um varapau (ele é uma girafa).

A essa noção associa-se a de coragem, valentia, de que desfruta o leão (coragem leonina), entre outros animais. Ao briguento se liga o galo (é um galo de briga), enquanto a covardia é atribuída aos animais sem sangue, como a barata: reajo, porque não tenho sangue de barata. A barata entra ainda em outros conceitos: barata tonta "pessoa que não faz as coisas a jeito", entregue às baratas, barata descascada, etc. A ideia de barata tonta se filia ao mosca morta.


MAGRA COMO LAGARTIXA


Já para a magreza, a que se alia também o conceito de baixa estatura, fraqueza, referimo-nos ao cão e à lagartixa, conforme vimos, mas ainda aos vermes, insetos e peixes na alusão a pessoas insignificantes ou desprezíveis.

Por falar em peixe, o homem associa a ele a noção de mudez (é mudo como um peixe), embora na pregação de Santo Antônio, a cuja história se refere o Padre Antônio Vieira, no sermão deste Santo aos peixes, como bons e atentos ouvintes. Quando se quer que uma notícia ou boato não se espalhe, pede-se boca de siri, expressão da gíria familiar. O falador já é fama de papagaio, e se a voz é estridente apela-se para a arara: Fala que nem um papagaio. Quando fala parece uma arara. Ao papagaio se atribui a felicidade da imitação, já que imita repetindo a voz humana. 

Temos também o macaco na qualidade de bom imitador; que essa característica também é observada por outros povos prova-se o fato de alguns vizinhos nossos acharem que os brasileiros macaqueamos a tudo e a todos.

Têm fama de comilão o lobo, o porco, o avestruz e a jiboia: fome de lobo; é um avestruz, pois come de tudo; come que nem jiboia. Já os pássaros têm a fama de comer pouco, petisqueiros: Parece passarinho, em vez de comer, só belisca.

As pessoas que não param, que nunca estão em ledo sossego, inquietas lembram a galinha (galinha choca), o bicho carpinteiro, a borboleta, a mosca e o tavão. Ligado a este último está estavanado, com sua variante estabanado. Os inoportunos e incomodados, que grudam nas pessoas, dizemos que são piolho, mosca, chato. Este último, pela obviedade, já considerado termo chulo, mas hoje corre empregado entre os diferentes sexos e idades sem qualquer reprimenda, salvo nas situações de cerimônia ou pouca intimidade.

Conhecemos também as pessoas caladas, esquivas e às vezes misantropas; acerca de algumas, isto nos entristece, porque, quando entramos na sua intimidade, descobrimos serem inteligentes, com excelentes cultura, dotadas de muito agudo espírito. Tais pessoas esquivas são conhecidas por bicho do mato, bicho da toca, bicho do buraco, mocho ou coruja: ele é um encorujado; ela mais parece um bicho do mato.

As que gostam de vaguear à noite, as noctívagas, são assemelhadas às aves noturnas; assim no Nordeste corre o termo indígena bacurau, designação de ave noturna. No nosso tempo de criança havia no Recife um mercado que só funcionava depois de altas horas da noite até de manhãzinha, denominado bacurau. O termo erudito noctívolo, o que voa de noite, sofreu mudança de sílaba tônica e, através da variante noitivóo registrada por A.G. Cunha no século XIV, passou a noitibó, "pessoa pouco sociável ou que só aparece de noite". Em algumas regiões de língua portuguesa tais noctívagos se dizem também morcego, como usou José de Alencar e está documentado no novo Dicionário de Morais.

As mulheres pretensiosas e muito saracoteadoras são conhecidas também por sirigaitas, termo de origem controvertida. Há pássaro semelhante à carriça ou garriça (cambaxirra), pássaro  dentirrostro, que leva esse nome. Por aí, observando-se os costumes do pássaro, talvez os homens aproveitassem a denominação para atribuí-las às mulheres com as características apontadas. Mas é questão não resolvida. O nosso mestre Nascentes, no Dicionário etimológico resumido, supõe ser "vocábulo de criação expressiva"; de qualquer maneira é termo que só se aplica a mulheres.

As prostitutas se dizem vacas, galinhas, enquanto ao homossexual se aplicam as denominações de veado, frango e mais alguns. Hoje os animais foram redimidos para essa acepção, desbancados pelo anglicismo gay. De vaca se formou avacalhado, termo chulo para referir-se as pessoas ou coisas desleixadas ou mal executadas.

As pessoas de bom caráter, mansas ou cordiais são conhecidas por cordeiro, pomba (sem fel), rola. Está última se aplica a pessoas tristes, melancólicas, ao lado de jururu, ave que também recebe o nome de joão-barbudo. As enamoradas associam-se a rolas e pombas (os pombinhos casam-se amanhã). Os arrulhos de gemido e canto podem ser interpretados como manifestações de desavenças e brigas; daí empombar e empombado serem aplicados à má parte para referir-se à zanga e à irritação.

Dos faltos de juízos, aos mentecaptos e alienados, se diz que têm macaquinhos no sótão, minhocas ou grilos na cabeça. 

O assunto é vasto, e muitos investigadores, dentro e fora da língua portuguesa, se têm dedicado à matéria, como, por exemplo, só para ficarmos em nosso idioma, os excelentes trabalhos de Delmira Maçãs, que nos serviram de fonte para estes despretensiosos comentários.


Texto de Evanildo Bechara retirado da Revista Para saber e conhecer nossa língua; Duetto Editorial, São Paulo, Edição 29, Outubro de 2011.

domingo, 22 de janeiro de 2023

Os sexos do anjo

Falar na "busca das origens" há muito tornou-se lugar-comum para caracterizar uma das fixações do pensamento romântico. Mais produtivo, cremos, seria desdobrar esse filão e questioná-lo em última consequência: chegaríamos à constatação de que a busca seduz mais do que o encontro, vale dizer, ela carrega embutida um desejo de frustração para, através do fracasso, realimentar seu ímpeto de continuar procurando. Quando a origem não é visível, urge inventá-la, a partir de imagens que acenem para uma unidade ideal e perdida, ou ideal porque perdida: assim é em Alencar, Iracema, ao erguer o mito da fundação brasileira por meio do consórcio entre o europeu e invasor, e a virgindade bárbara da terra americana.

Ao passarmos do plano mítico-social para o território mais pedestremente lírico-afetivo do romantismo brasileiro, a questão se reveste de matizes interessantes. De um lado, a configuração do consórcio - no caso, a do par amoroso - já é faltosa na origem: sobra mãe e falta pai na lírica romântica, a ponto de podermos classificá-la, num certo sentido, como uma escrita órfã. É o que se lerá na poesia de Casimiro de Abreu, cujas Primaveras, de 1859, representam um padrão correto de nosso romantismo: na melodia mediana de sua lira, os acordes se fazem ouvir com mais nitidez.

De início, destacas-se a caracterização feminizada do corpo do próprio poeta. Feminização propiciada por um conjunto de traços culturalmente atribuíveis à construção da personagem-mulher: languidez, devaneio, passividade, fragilidade física, exacerbação sentimental em detrimento do pensamento analítico - o mundo, em suma, sob a égide do "não suporto mais" e do subsequente desmaio. A marcação de um sujeito lírico por meio de signos que corroboram o esgarçamento do masculino reflete-se em dois outros níveis, além deste primeiro, o da autocaracterização corpórea.

O segundo é de grande evidência e reporta-se ao par primordial (pai/mãe) a que aludimos, e que, conforme foi dito, vigora amputado de um de seus termos. Na sua infância querida, que os anos não trazem mais, o pai só se presentifica na experessão "casa paterna". O Pai divino é figura muito mais constante do que o terreno, embora ambos pareçam partilhar o atributo da impalpabilidade. Num texto em prosa - "A virgem loura" - Casimiro de Abreu afirma: "Não gostaria de voltar à casa - julgaria ouvir o eco de vozes já extintas."

Adiante, o poeta esclarece que se trata do canto da mãe embalando a irmã. No prefácio às Primaveras, registra: "Pareceu-me ouvir o eco das risadas da mana." Em "Meus oito anos", revela "De minha mãe as carícias/ E beijos de minha irmã"; em "No lar": "Oh! primavera! oh! minha mãe querida!/ Oh! Mana anjinho que eu amei com ânsia". Essa profusão de mãe e irmã oscila entre a fronteira da ternura e do tesão, numa fantasmagoria incestuosa a custo disfarçada. Para mascarar a força do desejo, o poeta procura confiná-lo a simples "figura de linguagem". Num poema sintomaticamente intitulado "Sempre sonhos", Casimiro, pelo álibi da metáfora, chega a unir as pontas dos fios materno e fraterno, ao figurar-se como mãe da amante, que, por seu turno, seria a própria irmã: "Eu velara, Senhor, pelos seus dias/ Como a mãe vela o filho"; "A pudibunda virgem do meu sonho/ Seria minha irmã". Aqui o elo sanguíneo fornece uma imagem lateral, metonímica, de Narciso, que se traveste de Édipo para, pelo artifício, amar-se através do amor declarado a um outro que contenha um pedaço de si - mãe, irmã.

O derradeiro nível de desfiguração do masculino ocorre justamente no espaço, em teoria, menos propício a sua eclosão: nos torneios amorosos, sempre (ou quase) dirigidos a um alvo explicitamente feminino - o poeta, anjo sexuado, cobiçando o sexo de outro anjo, a virgem. Nesse quadro idílico, já de início um obstáculo se antepara. Desejar a virgem é desejar o impossível, uma vez que a perda dessa condição implicaria a inexistência do atributo básico que levou o poeta à declaração do seu desejo. Há, implícito, o desejo de que ela não ceda ao desejo dele, para só assim poder permanecer desejada. Toda uma série de circunlóquios, meneios, brejeirices que aparentemente aproximam pouco a pouco o poeta e a amada atuam antes como rituais de afastamento entre ambos, numa espécie de comprazimento ou erotização não do contato, mas do descarte. Ele se aproxima, ela desfalece; ela se aproxima, ele tem medo; ele suplica, e ela lhe concede a dádiva do não. Assédios e acenos, recuos e recusas são compartilhados pelos parceiros, sem que se possa afirmar com clareza quem é o quê nesse jogo. Outras vezes, como em "Pepita", há uma nítida permuta dos papéis masculino e feminino. O poeta diz-se "flor pendida", pede para ser dominado e atribui a Pepita o falo fecundador:

Minh'alma é como a rocha toda estéril

Nos planos do Sará.

/.../

Vem tu, fada do amor, dar-lhe co'a vara...

Qual do penedo que Moisés tocara

O jorro saltará,


- e crê tanto nisso que não

chama a amada de rainha, mas de rei.


Vimos, assim, que o trânsito para a assunção de uma sexualidade feminina não implica forçosamente a configuração de uma prática homossexual, na medida em que o papel masculino é desempenhado pela própria mulher. O que em Casimiro se procura relevar é antes uma indistinção de papéis, em que os anjos - masculinos ou femininos - possam ocupar as posições de ambos os sexos. Confrontemos quatro registros, emparelhados dois a dois. Em "Suspiros": "Lá verás a minha bela/ Sentada no seu jardim/ Na mão encostada a face"; em "Minha mãe": "[Eu] Sentado sozinho co'a face na mão". Em "No lar": "eu chorava e a [a mãe] beijava rindo", e quero "um rosto virgem que ria e chore". Pelos exemplos, indistinguem-se os papéis, porque, a rigor, "ela" sou "eu", ou seja: a mulher será o travesti do poeta, seu duplo feminizado, objeto de desejo narcísico: amar-se através de uma duplicação que contenha ambiguamente a diferença (e o respaldo) de ser outro sexo e a  identidade de ser ele próprio, travestido. Ao criar a amada à sua semelhança, o anjo romântico parece resolver a velha querela teológica: qual o sexo dos anjos? Pelas nossas contas, os anjos não têm sexo: têm quatro - dois anatômicos, o do poeta e o da virgem, e dois sobressalentes, com marcações invertidas; tanto é lícito afirmar que le se feminiza na projeção narcísica sobre a mulher, quanto dizer que ela se masculiniza nessa mesma operação, ao ostentar as marcas identificadoras do poeta homem.

À guisa de conclusão, citemos o poema "Horas tristes", centrado nas lamúrias do poeta solitário e no suposto afã de encontro com uma virgem que lhe restituísse o ânimo de viver. O acesso à felicidade não passa, como se poderia supor, pelo aparecimento da amada, mas por um mecanismo de vampirização, que vitaliza o poeta à proporção em que ele arranca essa força do corpo feminino. Para o poeta sentir-se remoçado, é necessário que a virgem morra em languidez. Para apegar-se à vida, deve aspirar o perfume da mulher. Sem qualquer perspectiva de reciprocidade, o corpo do poeta é um sorvedouro abastecido a partir de sucessivas pilhagens, via metáfora, de tudo aquilo que, no outro, é manancial para recompor suas próprias fissuras imaginárias. À virgem, o poeta só promete amá-la quando for possível, isto é, nunca - ou, quem sabe, numa esfera mais celeste: amar a si mesmo já toma muito tempo, e é amor que exige carinho e dedicação. Em sua trama erótica, o poeta se abeira e contorna o abismo do outro, mas evita o salto arriscado na direção da diferença. Afinal, interessa-lhe mais enunciar o que deseja do que desejar o que enuncia.


Ensaio de Antônio Carlos Secchin retirado da Revista Para saber e conhecer nossa língua, Duetto Editorial, São Paulo, Julho de 2011.