sexta-feira, 10 de novembro de 2023

O Mundo Trans

Conheça um pouco mais a respeito das complexas classificações de gênero que não se enquadram na norma heterossexual


Travesti, transexual, transgênero e crossdressing são algumas das muitas categorias utilizadas para se remeter às pessoas que procuram transitar entre gêneros, adotando uma performance de gênero que não se enquadra na norma heterossexual. Diante dessas complexas classificações é importante lembrar a diferença classificatória apontada por Jorge Leite Jr. (2008) entre o Brasil e países estrangeiros em relação aos termos travestis e transexuais. No Brasil, tanto no vocabulário médico e jurídico quanto na cultura popular e de massas, travesti é aquela que adota o gênero feminino, sofre intervenções hormonais e cirúrgicas para feminilizar seu corpo, adota as vestimentas e nomes femininos e não deseja a cirurgia de transgenitalização. As transexuais femininas, por sua vez,  seriam aquelas que sentem um enorme desconforto e sofrimento com seu órgão sexual desejando realizar a cirurgia de transgenitalização.

Em outros países como Estados Unidos, França e Itália, no entanto, essa condição seria descrita como transexualismo secundário em termos de classificações médicas. Por fim, o travestismo transvéstico do DESM (Manual de Doenças Mentais) e o travestismo fetichista do CID (Classificação Internacional de Doenças) podem ser relacionados no contexto brasileiro com os chamados "crossdressers", sendo um grupo que independente da orientação sexual realiza uma montagem do feminino ocasionalmente.

Também podemos citar o uso da categoria guarda-chuva "transgender", categoria êmica norte-ameicana que pretende agregar e descrever a multiplicidade de expressões identitárias das pessoas que transitam entre os gêneros. David Valentine (2007) aponta que a categoria criada na década de 1990 foi apropriada pelos movimentos sociais e pelo Estado na construção de políticas públicas norte-americanas, mas que torna invisível a variabilidade de expressões classificatórias acionadas na prática das pessoas ao distinguir sexualidade de gênero.

Nas etnografias recentes, sobre a temática das diferenças entre travestis e transexuais no Brasil, vem sendo descrita que essas categorias podem assumir na prática das pessoas que as utilizam. Nesse sentido, uma pessoa apesar de não desejar a cirurgia de transgenitalização pode se descrever como transexual com a finalidade de afastar de si o estigma da categoria travesti; dentro dessa mesma lógica uma pessoas que realizou a cirurgia ou deseja realizá-la pode se autodenominar de travesti. Assim, ao analisar a bibliografia recente sobre as identidades trans, verificamos o quanto estas são contextuais e políticas, podendo os indivíduos acioná-los de modo estratégico e situacional, como indicado pelos trabalhos de David Valentine (2007) nos Estados Unidos, Jorge Leite Jr (2008) e Bruno Barbosa (2010) no Brasil.


GENEALOGIA DAS CATEGORIAS


Segundo Leite Jr (2008), as classificações dos indivíduos que não se enquadram nos padrões de gênero possuem uma história específica, conectando-se aos contextos sociais e culturais de uma dado período, o que não exclui a possibilidade de haver controvérsias e disputas discursivas em cada um desses momentos históricos. O autor ao realizar uma genealogia das categorias referentes à ambiguidade sexual identificou uma apropriação do sabe-poder médico discursivamente sobre esses corpos, na qual pelos manuais internacionais de doenças associaram determinados indivíduos às "perversões" sexuais, enquanto outros a doenças mentais que necessitam de tratamento.

Nesse sentido, como observado por Barbosa (2010), na sua etnografia sobre a diferença entre travestis e transexuais, na prática desses atores ocorre uma polarização de discursos entre as que se identificam como transexuais ou "transex", e que querem se afastar do estigma da prostituição e da marginalidade conectando-se a uma categoria médica, e uma militância travesti preocupada justamente ema acusá-las de doentes e de pouca  consciência política de sua condição comum. Essas autoidentificações assumem uma variabilidade e uma situacionalidade, que em certos contextos se referem aos vários marcadores da diferença que servem como parâmetro para o constructo de uma feminilidade verdadeira e legítima em disputa. Por exemplo, uma pessoa que se autodeclara transexual pode não ser reconhecida como tal pelas colegas, pois apresenta uma construção da feminilidade que não é legítima em termos de padrões de beleza construídos a partir de marcadores de classe social, gênero e raça.

Hoje em dia existe um debate polarizado em torno da despatologização das identidades trans, pois se de um lado é necessário reconhecer os transgêneros como sujeitos autônomos e normais, por outro lado, a via tradicional do diagnóstico médico tem facilitado o acesso a recursos financeiros que permitem a transformação corporal. (Butler, 2009). Diante da militância desse segmento que advoga pela despatologização no DSM-V, foi retirada a concepção de doença presente no diagnóstico "de transtornos de identidade de gênero", colocando a noção de "disforia de gênero", isto é, a angústia de que sofre uma pessoa que não se encontra identificada com o seu sexo masculino ou feminino.

No evento realizado no CEPROOM (Centro de Promoção da Mulher Marginalizada) no Itatinga, no dia 26 de junho de 2014, sobre as "identidades trans e o papel da defensoria", Vanessa Alves Vieira, defensora especializada em ações judiciais dentro dessa temática afirmou que a diferenciação das categorias transexuais e travestis tem sido úteis apenas para negar direitos ao invés de oferecê-los. Essa defensora afirmou em sua fala, dirigida às pessoas "trans" e aos defensores presentes no evento, que dentre as maiores problemáticas enfrentadas hoje em dia quanto à saúde desse grupo está a necessidade de um laudo psiquiátrico com o diagnóstico de transexualismo, excluindo as que se identificam como travestis do acesso a cirurgias de mudanças corporais no Sistema Único de Saúde (SUS), além do laudo ser um mecanismo de poder que autoriza os profissionais da saúde a estabelecer quem possui ou não uma identificação de gênero legítima. No sistema jurídico, por sua vez, Vanessa A. Vieira constatou que os juízes compreendem em sua maioria a necessidade de cirurgia de transgenitalização ou laudo psicológico que ateste a transexualidade para a mudança de nome, apesar de não haver nenhum marco legal que regule nesse sentido a retificação de registro.

Diante das problemáticas apresentadas acima, a dizer a noção de patologia e de desvio inerente aos termos travestis e transexuais, as categorias "cis" e "trans" atualmente têm ganhado espaço nesse universo classificatório, especialmente entre a militância do chamado transfeminismo, considerando que as categorias existentes transmitem uma noção de patologia, como a de transexual, ou são estigmatizadas como a de travesti.

É interessante apresentar a controvérsia mobilizada pelo reality show "RuPaul'sDragRace", ao se defrontar com as disputas identitárias e consequentemente políticas do movimento "transgender" nos EUA. O movimento organizado de mulheres "trans" nos Estados Unidos reagiu contra atrações do programa, que utilizavam terminologias consideradas pejorativas para descrever as pessoas que transitam entre os gêneros nesse contexto cultural como "shemale" ou "tranny", termos que segundo as porta-vozes dessa militância desumanizam as pessoas "trans". Dentre essas polêmicas podemos citar o uso do termo "shemale" em um dos jogos do programa, que tinha como objetivo fazer as participantes diferenciar mulheres "trans" de mulheres "cis". O programa retirou o quadro do ar, sendo que a controvérsia denunciou uma questão de fundo político mobilizada pelo discurso desse segmento do movimento LGBT, a de que o programa de drag queen ao mostrar homens vestindo-se de mulheres eventualmente e usando uma linguagem pejorativa poderia deslegitimar as demandas por acesso a educação, saúde, trabalho e combate à transfobia frente ao público leigo no assunto que não compreende os desafios diários de ser uma pessoa transexual.

Como conclusão desse artigo, podemos afirmar que as classificações de gênero que não se enquadram na matriz heterossexual compõem um vocabulário complexo, pois são produzidas dentro de contextos culturais específicos e possuem enquanto identidades um caráter político, sendo mobilizadas de acordo com as circunstâncias e estratégicas dos atores, seja para oferecer uma feminilidade legítima ou pela atuação de certos segmentos militantes reivindicando reconhecimento para suas demandas.


Texto de Maria Isabel Zanzotti de Oliveira retirado da Revista Sociologia, Editora Escala, São Paulo, Ano VI, Edição 58, Maio/Junho 2015.

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Gênero em Perspectiva

As reflexões sobre as noções de gênero, sexo e sexualidade tiveram início no século passado no campo das Ciências Humanas, com autores do porte de Simone de Beauvoir e Gayle Rubin


Para sintetizar as teorias que buscaram dar conta das reflexões sobre sexo, gênero e sexualidade, é necessário antes de tudo afastar possíveis confusões entre as três noções. Grosso modo, afirma-se amplamente que o sexo está para o gênero assim como a natureza para a cultura. Isso quer dizer que o sexo é visto a partir de características anatômicas, biológicas e físicas enquanto o gênero constituiria algo do plano das construções socioculturais, variando através da história e de contextos regionais. Porém, como procurarei demonstrar, essas fronteiras entre natureza e cultura foram ao longo do tempo vastamente borradas, transformando a natureza como objeto de conhecimento também em um produto de cultura e, dessa forma, passível de mudanças tanto em sua compreensão quanto como uma base moldável pelos indivíduos.

Assim, o corpo inicialmente natural adquire também a possibilidade de ser compreendido como objeto sob a ação de processos culturais, políticos e técnicos. Enquanto isso, a sexualidade - não raramente confundida com sexo e gênero - diria respeito tão somente às práticas eróticas e sexuais entre os indivíduos, classificadas em nossa sociedade por termos como heterossexuais, homossexuais, bissexuais etc. Vale salientar, contudo, que sexualidade não diz respeito necessariamente a uma orientação sexual fixa e que, dessa forma, práticas eróticas/sexuais podem envolver diferentes parceiros conforme a orientação do desejo, para além das classificações acima mencionadas. No entanto, essa compreensão infelizmente não é verificada no senso comum, sendo muito corriqueiro presenciar pessoas trans sendo ofendidas a partir de palavras impregnadas de significado, tais como "bicha", "viado", "sapatão", etc.

Um ponto inaugural nas discussões está sinalizado pela publicação de "As técnicas do corpo", do antropólogo e sociólogo francês Marcel Mauss. Mauss (2003), ainda na primeira metade da década de 1930, foi responsável por traçar a noção de técnicas corporais, tornando o corpo e os hábitos corporais de cada sociedade objetos de maior reflexão. Para ele, a maneira como nos servimos de nossos corpos não se alimentaria apenas de fatores biológicos, mas de elementos psicológicos e sociais. Nesse sentido, homens e mulheres adquiriam por "imitação prestigiosa", como a criança que imita o adulto, técnicas corporais que se diferenciariam singularmente conforme o sexo sob o qual estariam demarcados. Assim, por exemplo, crianças têm educações diferentes, assim como são estimuladas a desempenhar atividades distintas, e até hoje permanecemos censurando a menina que se senta com as pernas abertas ao passo que fazemos o mesmo com os meninos. Embora não percamos muito tempo refletindo sobre o tema, há certamente atitudes permitidas e não permitidas, naturais e não naturais, e com valores marcadamente distintos conforme o corpo que as protagoniza.


CONCEITO DE GÊNERO


Após esse primeiro flerte de Mauss com uma reflexão sobre a educação cultural dos corpos, as Ciências Sociais observaram ainda nas próximas décadas uma multiplicidade de problematizações que, se não tratavam especificamente da construção das diferenças sexuais, davam ao menos algumas pistas de que essas diferenças estariam presentes nos mais diversos contextos estudados, assim como se manifestando de maneiras variadas. Porém, foi somente com a antropóloga americana Gayle Rubin, em 1975, que vimos pela primeira vez a utilização do conceito de "gênero" na Antropologia. Rubin (1975) é também responsável pelo conceito de sistema sexo/gênero, no qual arranjos histórica e socialmente determinados criam convenções em torno do masculino e do feminino, do chamado sexo biológico, da identidade de gênero etc. Para a autora, além do tabu do incesto, sobre o qual a Antropologia se deteve longamente por anos, lidaríamos também com o tabu da homossexualidade, pois em diversas sociedades arranjos sexuais não compostos por um homem e uma mulher seriam impensáveis.

No Brasil, assim como em outros países, os estudos de gênero vão começar a se desenhar paralelamente à segunda onda do feminismo, em meados da década de 1960 na Europa e nos Estados Unidos e na década seguinte no Brasil. Esses movimentos formularam a crítica da subordinação histórica de mulheres a homens, assim como questionaram a naturalização de diferenças entre homens e mulheres e, por consequência, os papéis sociais atribuídos a cada um.

Décadas mais tarde, em 1990, o historiador Thomas Laqueur, notadamente influenciado pelo não menos digno de nota Michel Foucault, vai problematizar a construção da diferença sexual ao longo dos séculos. Assim, apresenta desde o modelo de sexo único, em que o corpo da mulher seria apenas uma versão invertida e imperfeita do corpo do homem e menos importante em uma escala hierárquica, até o modelo de dois sexos, em que o corpo da mulher seria o oposto incomensurável do corpo do homem. Para Laqueur (2001), a diferença sexual seria construída situacionalmente ao longo da história, mantendo estreitas relações com conjunturas tanto epistemológicas quanto políticas. O historiador é responsável por mostrar como as diferenças biológicas - em um primeiro momento fixas - são também determinadas pelo contexto histórico e cultural no qual o conhecimento sobre as mesmas é produzido. Nesse sentido, o sexo biológico não estaria tão distante do gênero entendido como categoria meramente cultural. A anatomia seria também fruto de perspectivas historicamente situadas, e, por consequência, passível de questionamento.

Ainda na década de 1990, é necessário a produção da filósofa Judith Butler, para a qual tanto sexo biológico quanto gênero seriam matéria para a teoria social. Isto é, estariam plenamente borradas as linhas que colocam gênero e cultura de um lado e sexo e natureza de outro. A autora nos ajuda a retomar de maneira mais precisa a questão da coerência entre sexo, gênero e desejo sexual. Embora o binarismo de gênero (masculino/feminino) não dê conta da complexidade da realidade, espera-se que na existência de um pênis o indivíduo seja, portanto, um homem, e por  consequência sinta atração por mulheres. Nesse sistema regulador, não caberiam outras práticas e tampouco outros gêneros.


OS HOMENS COMO OBJETO DE ESTUDO


Feita essa breve menção a reflexões dentro e fora dos estudos de gênero, parece necessário pontuar ainda algumas questões. O conceito de gênero não diz respeito apenas a mulheres, embora possamos dizer que o início e a maior parte das produções sobre gênero tenham focalizado temas relacionados a mulheres. A historiadora Maria Luiza Heilborn e o antropólogo Sérgio Carrara (1998) sugerem, com base na crítica feminista da década de 1970, que, embora intocados como objeto de investigação, os homens figuraram desde que podemos nos lembrar como o referente implícito dos discursos e como representantes universais da espécie humana. Talvez por isso o apelo de Nathalie Davis, citado por Joan Scott (1995), tenha sido ignorado por tanto tempo. Para Davis, homens e mulheres seriam importantes objetos de reflexão, e por isso "não deveríamos trabalhar unicamente sobre o sexo oprimido, do mesmo jeito que um historiador das classes não pode ficar seu olhar unicamente sobre os camponeses" (Scott, 1995).

Assim, homens e masculinidades permaneceram, por muito tempo, ausentes, enquanto objetos de pesquisa, tendo adquirido esses status apenas com o trabalho de sociólogos como a australiana Raewyn Connell, na época ainda conhecida como Robert W. Connell, que pelo menos desde a década de 1980 se preocupou com o tema, tendo cunhado com colaboradores o conceito de masculinidade hegemônica, além de ser autora de Masculinities, um dos principais referenciais teóricos para pensar masculindades. Além de Connell, vale mencionar A Dominação Masculina do sociólogo francês Pierre Bourdieu, do final da década de 1990, assim como Daniel Welzer-Lang, outro sociólogo francês cuja produção sobre masculinidades data do final da década de 1980. Outros nomes que não podemos deixar de citar, por exemplo, são os de Miguel Vale de Almeida, em Portugal, e Benedito Medrado, no Brasil. Há também autoras se ocupando do tema, mas em menor escala, o que aponta para uma rígida separação de temas conforme o lugar social do pesquisador, também marcado pelo gênero.

As masculinidades vão timidamente adquirindo espaço em um campo de conhecimento em que feminilidades, masculinidades e outras experiências se produzem em relação e muitas vezes a partir do contraste. Não é possível deixar de mencionar que essas relações são também penetradas por outros marcadores, tais como cor, raça, classe e geração, que sem dúvida produzem feminilidades e masculinidades particulares. Além disso, a emergência de um campo que se questiona sobre as masculinidades demonstra, parafraseando Simone de Beauvoir, que assim como não nascemos mulheres, também não nascemos homens.

Assim, finalizo convidando o leitor a analisar com mais atenção suas próprias referências e práticas antes de censurar aqueles que não se encaixam em expectativas de gênero predeterminadas. Como salienta o antropólogo Miguel Vale de Almeida (1996), masculinidades e feminilidades não são mais do que metáforas de poder e de capacidade de ação. Nesse sentido, podem ser acessadas tanto por homens quanto por mulheres, embora esse acesso seja limitado conforme o que se espera em cada sociedade. Em todo caso, as parcelas de poder e capacidade de ação estão claramente distribuídas de maneira desigual e assimétrica. Resta-nos desnaturalizar o que foi dado como certo e estimular a produção de uma sociedade menos aprisionada em convenções e discursos hierarquizantes.


Texto de Isabela Venturoza retirado da Revista Sociologia, Editora Escala, São Paulo, Ano VI, Edição 58, Maio/Junho 2015.

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Identidade Gay e os preconceitos que cerceiam a tolerância

 Para Foucault e Deleuze, a subserviência aos modelos preestabelecidos pelos próprios homossexuais são obstáculos para a pluralidade


Nesta época de luta pelos direitos dos homossexuais, em que tantas conquistas fazem-se notar, a ponto dos preconceitos serem considerados antiquados e muitos atestarem que tem ocorrido uma evolução no que tange ao olhar da sociedade em relação aos gays, cabe uma pergunta delicada: vencidos os embates externos (contra preconceituosos, homofóbicos e dogmáticos), o que dizer então dos inimigos internos? A luta dos homossexuais seria apenas contra entidades "lá fora"? Conquistaram os militantes uma assim dita "identidade gay"? Muitas opiniões sobre este assunto são possíveis. E o que nos diriam estes que são dois dos mais importantes filósofos franceses da pós-modernidade: Michel Foucault e Gilles Deleuze?

A partir das perspectivas assimiladas ao longo da obra foucaultiano-deleuziana, podemos dizer que ninguém "nasce" homem, mas sim que todos nos tornamos homens, numa busca constante. A dita virilidade masculina representa o investimento numa rede relacional: busca-se o reconhecimento da masculinidade. Esta virilidade é uma ética, uma constante inquietude de si. Ao contrário do que pregam alguns militantes gays, o sexo não nasce feito. Nem mesmo "nasce-se gay", na medida em que a singularidade homossexual, como toda e qualquer singularidade humana, demanda contínua construção, desconstrução, reconstrução. Não se trata, portanto, de lutar por uma identidade no sentido de "ser idêntico a", ou seja, "seguir um modelo pré-estabelecido". O pensamento de Foucault e Deleuze opõe-se à ideia de seguir modelos, sejam eles quais forem, o que termina conduzindo a uma dolorosa liberdade: a liberdade de um contínuo criar, de responsabilizar-se por si mesmo, fazendo de si uma obra de arte singular e única. Um total contraponto à ideia de seguir um modelo dito "idêntico".

É importante salientar que, se o sexo é definido como uma divisão entre gêneros, todo sexo e toda sexualidade é heterossexual, no sentido de que "hetero" significa "diferente", ou seja, todo relacionamento sexual entabulado com um ser diferente de mim, seja ele um homem ou uma mulher, será hetero, pois o sujeito faz-se homem na medida em que faz do outro um outro. Essa divisão, existente no imaginário masculino, está longe de ser igualitária, ao contrário, é hierarquizada. Através do ato sexual, os sujeitos são inscritos numa hierarquia, territórios são demarcados, corpos e sujeitos são heterossexualizados: eu sou o homem, você é a mulher.

A partir das descrições históricas do pensador Paul Veyne, ao relatar os hábitos sexuais dos antigos gregos, podemos afirmar que até mesmo as ditas relações "homo" da antiguidade estavam longe de serem "relações entre iguais". Elas eram heterossexuais, na medida em que o homem mais velho, o erastes, exercia sobre o efebo impúbere, ou eromenos, um poder, e uma hierarquia era estabelecida. Uma relação "homo", na antiguidade ou na modernidade, num sentido semântico do termo, envolveria dois sujeitos que fossem considerados iguais (sejam eles machos ou fêmeas), sem hierarquia de subjugador e subjugado. Seria isso possível, ou mesmo real, no chamado "mundo gay"?

A que parece, o discurso heteronormativo, também chamado de "matriz hegemônica de inteligibilidade", tem o poder de penetrar até mesmo o universo gay, atravessando todas as relações e adequando tudo o que encontra a uma lógica hegemônica. A mesma misoginia, que cria o discurso homofóbico, sobrevive nessa divisão tão solidamente estruturada por discursos culturais dentro dos guetos gays, criando até nos relacionamentos mais íntimos barreiras identitárias poderosíssimas. A intolerância, pretensamente apontada pelos militantes gays no que eles chamam de "totalitarismo heternormativo", parece ser uma pálida sombra se comparada à intolerância que subjaz ao próprio gueto homossexual sob os mais diversos aspectos que serão expostos ao longo deste artigo: o ódio aos travestis, o desprezo aos sexualmente passivos, o horror aos afeminados, como se "ser gay" significasse necessariamente seguir um modelo identitário pré-formado: ser homossexual é possível, contanto que o sujeito siga a cartilha. A cartilha dita que todos sejam másculos e comportem-se bem. Não se trata, obviamente, de uma cartilha escrita, mas fica patente no discurso presente tanto entre heterossexuais quanto homossexuais, em que se vaticina que "ser gay é possível, contanto que o cara seja macho e se dê ao respeito".

Vale questionar: existe, de fato, um exemplo de tolerância? Houve tal exemplo em algum momento da história humana que poderia ser seguido como um modelo?

É assaz comum, no que concerne aos argumentos de alguns militantes gays acerca da homossexualidade, referir-se ingenuamente, à antiga Grécia como um exemplo espectacular de civilização tolerante para com a prática homoerótica, considerando a civilização judaico-cristã como "atrasada" em relação à realidade homossexual. A partir desta comparação histórica, evoca-se a ideia de um relativismo moral e questionam-se as bases do preconceito moderno. Todavia, os militantes parecem ignorar que, no que tange à antiga Grécia, termos interdições tão claras quanto as interdições atuais. muito embora sejam interdições diferentes. Conforme discorre Foucault ao longo da sua obra, não é interessante tomarmos outra época como um modelo, pois não há um valor exemplar em um período que não seja o nosso próprio. Deleuze valida esta afirmação, ao sustentar em sua obra Conversações que Foucault detestava retornos: falamos do que vivemos. A história não diz o que somos, não estabelece a nossa identidade, diz apenas aquilo que estamos em vias de diferir. Paul Veyne emite um pensamento similar em O Último Foucault e sua Moral, ao dizer que o que se opõe ao tempo, assim como à eternidade, é a nossa atualidade.

Para fazer uma "arqueologia gay", portanto, não é necessariamente voltar-se para o passado. Deleuze aponta em Conversações para uma arqueologia do presente, em que tomamos as coisas para extrair delas as suas visibilidades. Não se trata, em absoluto, de procurar um modelo dito ideal que sirva como norma moral para os gays, mas - retomando Nietzsche - descobrir como a operação artística da vontade de potência permite a invenção de novas possibilidades de vida: um "ser gay" que se constrói, inventa-se, um "ser" enquanto verbo atuante um nosso tempo, jamais como substantivo-modelo de uma época passada.

Deste modo, respondemos desde já a pergunta explicitada nos parágrafos anteriores: segundo Foucault, Deleuze e Veyne, não se trata de seguir um modelo, muito menos um modelo grego antigo, mas de criar um modo de vida gay que admita a pluralidade, um modo que se recrie continuamente, de forma íntegra e autocrítica, buscando maneiras de sabotar qualquer espécie de normatividade. Esta é uma proposta mais revolucionária do que talvez imaginemos, quando falamos em "respeito as diferenças".

Vale ressaltar que Foucault jamais apresenta uma resposta, uma solução, nem aponta um caminho que possa ser considerado como "certo" para as problemáticas gays. Esta resposta cada um deve encontrar por si mesmo, num ativismo pessoal, numa militância do sujeito. Até mesmo porque, de acordo com o olhar foucaultiano, não existe escolha certa, e sim uma escolha entre perigos, onde devemos buscar dos males o menor. Sim, Foucault é pessimista em sua visão, mas jamais apático. Seu pessimismo deriva da consciência de que toda escolha é perigosa, e acarreta em efeitos colaterais inevitáveis. Não existe "caminho melhor" e "caminho pior", para Foucault, e sim caminhos com problemas diferentes, com perigos diferentes, em que o perigo principal deve ser identificado.

É curioso observar que as críticas de muitos homossexuais, alguns deles inclusive militantes da causa gay, acerca da afeminação de gays mostrados na TV, não é muito diferente das críticas que um homem afeminado sofreria na antiga Grécia. É extremamente comum, nos tempos modernos a afirmação "eu sou gay, mas não sou afemindado e detesto afeminados". Além disso, salienta-se o fato de que o termo pejorativo "bicha passiva" é amplamente utilizado pelos próprios homossexuais para se referir a outros com sinal de evidente desprezo. Nada disso é muito novo e quem enxerga a antiga Grécia como um paraíso da diversidade gay, equivoca-se profundamente. De acordo com Paul Veyne, em sua obra A Homossexualidade em Roma, um homófilo passivo (diatithemenos) era alvo de desprezo e rejeição, sobretudo por parte do exército. Veyne conta que, certa feita, um homossexual passivo foi poupado de ser decapitado, porque o imperador não queria que a lâmina do gládio do carrasco fosse conspurcada por tão "aviltante criatura". A afeminação masculina era vista pelos antigos greco-romanos como algo desprezível. De modo análogo, muito embora por razões diferentes, os homossexuais modernos parecem sofrer da mesma aversão à passividade sexual masculina.

Fica evidente que existe um modelo normativo entre os próprios homossexuais, modelo que se pauta em regras e em "modos de ser" que, longe de criar sujeitos criativos, cria aquilo que Foucault chama de "clones", ao referir-se aos homens de aparência similar nas paradas gays (na época de Foucault, homens com fartos bigodes e óculos Ray-ban; modernamente, homens anabolizados e preferencialmente depilados). Na entrevista "A amizade como modo de vida", concedida ao jornal Gai Pied em abril de 1981, Foucault usa o termo "clones bigodudos" para referir-se a estes homens "todos iguais". Estes "clones", ao contrário de criarem a obra de arte de suas próprias existências, compraram o modelo pré-existente, pré-fabricado, com uma identidade de plástico, uma identidade que busca o idêntico: o modelo, o molde, o "deve ser".

Os movimentos de militância gay demonstraram, por vezes diversas, uma inclinação totalitária. Ao invés de proteger os homossexuais, lutando pelos justos direitos civis, tais movimentos, algumas vezes pareceram mais empenhados e ocupados em destruir radicalmente tudo o que, na sociedade, na cultura ou em sujeitos particulares, explicite discordância. A ideologia torna-se uma arma policial delirante que tenta proibir toda divergência de opinião, toda repulsa espontânea, todo pensamento que a desagrade e até mesmo as piadas, que fazem sentido dentro do contexto de uma comédia, peça ou novela. O que não faltam são ameaças de processo contra autores que, desejando fazer comédia, criaram um personagem caricato, cômico e gay.

Ao eliminar toda diferença, o que sobra? Uma montanha intransponível de concordância e subserviência à cartilha politicamente correta (e politicamente tirânica). As próprias atitudes públicas de alguns dos ditos "representantes dos gays" evidenciam isso. Tais representantes, munidos da mais intensa disposição de perseguir qualquer opinião que contrarie a deles, dizem falar em nome dos gays, mas o que isso significa? Não podemos nos furtar a citar o que Deleuze, em Conversações (p.110) chama de "indignidade de falar pelos outros". Transportando esta fala para o presente assunto, ousamos perguntar: como é possível que uma militância que critica a existência de personagens gays afeminados em novelas e espetáculos se diga porta-voz de todos os gays? Definitivamente, isso não é possível. Estes, no máximo, falam em nome de um tipo específico de gay - especificamente o gay que não fere as suscetibilidades dos heterossexuais, comportando-se de um modo domesticado, padronizado, que permita que os homossexuais sejam vistos "como pessoas de respeito" - uma priorização à moral, mas não uma ética.

A dignidade de não falar pelos outros deveria ser parte do intelectual, para Deleuze, que denuncia em Conversações (p.110): sempre que alguém diz "ninguém pode negar", "todo mundo há de reconhecer que", eis uma mentira ou um slogan. A proposta deleuziana-foucaultiana é a de que cada um fale em seu próprio nome. Não devemos falar em termos de valores universais, mas em nome de nossa própria competência e situação. Se o grupo não é multivocal, onde está a ética? Guatarri, com quem Deleuze trabalhou por diversas vezes, enfatizaria a ideia de "transversalidade", por oposição aos grupos hierarquizados, onde temos um que fala em nome de todos os outros.

Vale salientar também a apropriação, por parte de algumas militâncias gays, de termos que são usados com o evidente intuito de exercer poder, de subjugar. "Homofobia" é um bom exemplo moderno. Este termo foi introduzido pelo psiquiatra George Weinberg, no livro Society and the Healthy Homosexual (New York, St, Martin's Press, 1972) para designar o complexo emocional que, no seu entender, seria a causa da violência criminosa contra homossexuais. Observamos, contudo, uma apropriação deste termo pelas militâncias gays, que passaram a acusar de "homofobia" uma série de fatos, atos e discursos de uma maneira exagerada que nos faz pensar: não seria, na verdade, uma forma de demonstrar poder? Uma forma clara de tentar intimidar todos aqueles que pensam diferente destes militantes? À luz do que estudamos sobre relações de poder em Foucault e Deleuze, ousamos dizer que sim.

No livro A History of Homophobia, o ensaísta Rictor Norton, um apologista da homossexualidade, é bem franco sob esse aspecto: "Com muita frequência, a palavra "homofobia" é apenas uma metáfora política usada para punir". Sob este ponto de vista, o exagero é evidenciado quando os militantes acusam de "homofobia" toda e qualquer pessoa que não pregue a cartilha da militância e repita, tal qual foi determinado pelo alto comando de algumas ONGs e instituições, o que pode e o que não pode ser expresso como opinião a respeito da vida homossexual.

Usar o mesmo termo ("homofobia") para definir um skinhead, espancador de homossexuais e uma pessoa que diz ser contra o casamento gay por motivos religiosos parece ser uma forma injusta e cruel de nivelamento, e mais que isso: uma tentativa explícita de censurar a opinião das pessoas. De onde nos permitimos pensar: a militância gay luta efetivamente pelos direitos dos homossexuais, ou não passa de uma forma de exercer poder e ditar regras? Não seria a militância gay apenas mais uma fórmula ideológica e projeto de poder? Para Veyne, por exemplo, segundo Yolanda Glória Gamboa Muñoz em Escolher a Montanha (p.41), a ideologia é um estilo nobre, porém vago, que idealiza as práticas, dissimulando os contornos das práticas reais: o que se faz e o que se diz. Conforme cita Muñoz a respeito de Veyne: "Por isso, em certo momento, ele poderá afirmar que 'a ideologia não existe'" (Escolher a Montanha, p.41, 2005).

Não obstante às declaradas intenções libertadoras da militância gay, um olhar mais apurado não deixa escapar uma ideologia normatizadora, que norteia tal militância. Um militante da causa gay certa feita comentou, em entrevista o seguinte:

"(...) que morreu de vergonha quando a família de seu namorado assistia à novela e "apareceram as bichas velhas, desmunhecando, fazendo tiranias e baixarias". "Essa é a imagem que o povo tem da gente, e lutamos para que nos vejam como somos, homens que gostam de homens e não malucas desvairadas caricatas". Acusado de 'fundamentalista', por querer processar o autor de televisão, X responde perguntando: 'Defender nossa dignidade é fundamentalismo GLBT?'"

Este discurso deixa claro, de forma deveras impressionante, que a fala militante neste caso prevê regras de conduta, modelos de comportamento e normatizações para o "ser homossexual" ("ser" enquanto verbo e não substantivo, vale salientar). Fica evidente, na fala deste dito representante da causa gay, que um sujeito pode ser homossexual, contanto que não seja uma "maluca desvairada e caricata" (leia-se: afeminado) e, ao que parece, ser "velho" é também um demérito, e não uma condição natural e inevitável da biologia. Tal discurso não dá espaço para a invenção da homossexualidade a partir de um ativismo constante e autoquestionador, conforme nos propõe Foucault. Existe, para este tipo de militante, uma forma ideal de ser homossexual, uma forma que, justamente por ser idealizada, exclui terminantemente uma realidade: efetivamente, existem homens homossexuais afeminados, quer gostem disso ou não os gays descolados, modernos e másculos. É importante salientar que a vergonha que o sujeito disse sentir está atrelada ao olhar dos heterossexuais sobre a cena: ele não sente vergonha por ver a cena, ele sente vergonha quando a família (heterossexual) a assiste, ou seja, ainda necessita da aprovação do status quo heterossexual do qual ele diz ser liberto. "Lutar para que nos vejam como somos" só faz sentido se esta luta incluir, conforme salienta Foucault, a diversidade e também a liberdade criativa para que nos inventemos continuamente, criando novas formas de relações e de "ser". Qualquer tentativa de uniformização não passa de trocar um modelo de regras por outro: no caso, troca-se o modelo normativo heterossexual por um modelo normativo homossexual completamente infectado pela misoginia e pelo machismo. E o que  significaria "nos ver como somos?", afinal de contas a pluralidade prevê incontáveis "jeitos de ser", alguns inclusive que nem foram inventados ainda. O discurso militante subentende que existe um "como somos" universalmente válido para os gays do norte, do sul, do leste e do oeste.

Em sua entrevista intitulada "De l'amitié comme mode de vie", concedida a R.de Ceccaty, J. Danet e J. le Bitoux para o jornal Gai Pied, em abril de 1981, Foucault chama a atenção para o problema da construção da identidade homossexual. O problema, segundo Foucault, não reside no questionamento "quem sou eu?" (autoconhecimento), e sim na seguinte questão: quais relações podem ser estabelecidas, inventadas, multiplicadas e moduladas através da homossexualidade? Foucault, aqui, enfatiza a importância do "cuidar de si" e sobre o mero "autoconhecimento". Que se destaque aqui a importância do termo "invenção", ponto chave para o entendimento do pensamento foucaultiano. A prioridade não está numa descoberta de "quem sou", e sim uma responsabilidade ética de inventar-se, reinventar-se, como num devir-gay. A vida como uma obra de arte.

Deleuze, no que diz respeito à concepção da vida como uma obra de arte, salienta que a constituição dos estilos de vida (podemos aqui nos referir aos estilos de vida gay) não é somente estética, é também uma ética, por oposição à moral. Deleuze detalha esta diferença em sua entrevista a Didier Eribon:

"(...) A diferença é esta: a moral se apresenta como um conjunto de regras coercitivas de um tipo especial, que consiste em julgar ações e intenções referindo-as a valores  transcendentes (é certo, é errado...); a ética é um conjunto de regras facultativas que avaliam o que fazemos, o que dizemos, em função dos modos de existência que isso implica." (Deleuze, "A vida como obra de arte", entrevista concedida ao jornal Le Nouvel Observateur, em agosto de 1986.

A partir desta diferenciação entre ética e moral, não nos passa despercebido, diante da ação e ideias dos gays, que eles - tanto quanto qualquer heterossexual - parecem estabelecer uma moral, um manual de regras de como os gays devem se e se portar, de que é certo ser um gay deste modo, mas é errado ser de outro modo (ser afeminado; ser espalhafatoso). Isso fica evidente nos preconceitos existentes dentro dos próprios guetos, e na repulsa a manifestações estéticas femininas dento dos meios e paradas gays hipermasculinizadas. O discurso militante enfatiza continuamente "que os gays devem ser vistos como pessoas de respeito". Mas o que isso significa? Qual é a "vontade" de verdade suposta por um discurso que se impõe como "verdadeiro" e que esse discurso só pode ocultar?

Podemos ir além: não seriam os guetos gays verdadeiros internatos, meios de confinamento? Os próprios homossexuais parecem "se internar", na medida em que consideram, para usar um termo coloquial, "uma queimação de filme" a demonstração de afeto homoerótico fora dos lugares que não sejam considerados "apropriados".


Texto de Alexey Dodsworth Magnavita retirado da Revista Ciência & Vida FILOSOFIA, nº 22, Ano 2008, Editora Nova Escala, São Paulo.

domingo, 5 de novembro de 2023

De macacos para homens suados

Fundamental na regulagem térmica do corpo, a transpiração ajudou na evolução


Com o planeta passando por mudanças climáticas que o tornarão mais quente, o estudo do suor voltou a ter peso. Uma das descobertas mais recentes dá conta de que a transpiração contribuiu para a própria evolução do ser humano. "Geralmente se diz que os cérebros grandes tornaram possível a nossa evolução de macaco a humano. Mas eles nunca poderiam ter se desenvolvido se não tivéssemos uma pele excepcionalmente suarenta", disse a antropóloga Nina G. Jablonski, da Universidade Estadual da Pensilvânia, em entrevista ao jornal "The New York Times".

Autora do livro "Skin: A Natural History" (Pele: Uma História Natural, sem tradução em português), Nina explica: A transpiração regula o calor. Quando os ancestrais humanos foram para as savanas africanas, passaram a correr longas distâncias em pleno sol tropical. Os músculos em grande atividade esquentam o corpo (por isso suamos tanto ao fazer exercícios, para resfriar). Um cérebro maior necessitava de um resfriamento melhor. Os indivíduos com cérebro grande e maior número de glândulas sudoríparas - e consequentemente menos pelos - estavam melhor adaptados a esse ambiente. Para possibilitar essa adequação, o corpo conta com um sistema aparentemente paradoxal que retira líquido por meio dos poros para diminuir a temperatura. Para que ele vire vapor, é preciso energia térmica, que é extraída do corpo na transpiração. Ao expulsar calor, o corpo acaba se resfriando.

Hoje um ser humano tem em média 2,6 milhões de glândulas sudoríparas, mas há quem tenha até 4 milhões. Há dois tipos delas, o que explica a diferença entre o cheiro do suor do corpo e aquele específico das axilas. As glândulas écrinas - responsáveis por secreções incolores e inodoras, compostas por 99% de água - estão em todo o corpo; já as apócrinas ficam nas axilas e nas áreas anal e genital, embora a genitália externa não tenha glândulas. O suor é constituído basicamente de água e cloreto de sódio (sal de cozinha), mas o que sai das glândulas apócrinas inclui proteínas e ácidos graxos (que, metabolizados por bactérias, causam o odor que se tenta combater com desodorantes).

E por que uns suam mais que outros? Segundo o médico Craig Crandall, especialista em termo-regulação da Universidade do Texas, idade, sexo, genética, peso e forma do corpo têm seu papel. O "termostato" do corpo é uma região do cérebro chamada hipotálamo. Para funcionar corretamente, a temperatura oscila em torno de 37°C ao longo do dia (menos pela manhã, mais à tarde). Basta passar um pouco disso para atingir o estado de febre - que costuma ser letal a partir de 43-44°C. Na menopausa, mulheres que sentem ondas de calor estão sofrendo o efeito desse "termostato" desregulado.

Por falar em ondas de calor, elas têm matado grande número de idosos, especialmente na Europa. A partir dos 60 anos, o ser humano começa a suar menos. Seus cérebros podem não estar enviando os comandos à glândulas. A dilatação dos vasos sanguíneos também ajuda a eliminar calor, mas pessoas de idade têm veias e artérias menos elásticas. Vários remédios também podem afetar a transpiração, como relaxantes musculares ou pílulas para dormir. E pessoas idosas em geral usam mais medicamentos.

A coisa piora com a umidade. Com o ar saturado de água, a evaporação do suor diminui. Uma vítima de insolação para de suar, por motivo desconhecido. Pode ser que as células nervosas superaquecidas parem de enviar sinais para o corpo suar. Ou o estresse térmico pode liberar substâncias que aumentam a temperatura - como se o corpo tentasse combater uma infecção por meio da febre.

Consumidores de cocaína também podem "desligar" o termostato cerebral. Um estudo de Crandall e colegas na revista médica. "Annals of Internal Medicine" mostrou que a droga afeta a capacidade de o corpo regular a temperatura. A pessoa que fez uso da droga não sente quando está ficando perigosamente quente. Achava-se que o problema vinha da maior agitação e atividade muscular, mas a droga de fato causa diminuição da transpiração e da dilatação dos vasos sanguíneos.

Para estudar o suor, os cientistas Robert Farrington, John e Desikan Bharathan, do Laboratório Nacional de Energia Renovável, EUA, até já construíram um aliado: Adam, o manequim capaz de suar. Eles colaboraram com Heather Paul, Grant Bue e Luis Trevino, do Centro  Espacial Johnson, da Nasa, para testar roupas de astronauta no boneco. Adam tem sensores de temperatura, poros e um reservatório de líquido. Foi projetado para testar a eficiência do ar-condicionado de automóveis, mas pode ajudar a compreender a nossa evolução.


Texto de Ricardo Bonalume Neto retirado do Revista Galileu, Outubro 2007, nº 195, Editora Globo, São Paulo.

Remédios são venenos

A humanidade vem sendo enganada há milhares de anos por feiticeiros, curandeiros e charlatães com suas poções, extratos, pílulas e outros métodos de "cura". A ideia de que algo exterior ao organismo pode curar uma "doença" revela todo o desconhecimento sobre a natureza da saúde. Os remédios usados por curandeiros e pela medicina tradicional não passam de ilusões. A razão é simples: o princípio de que os remédios "curam" é falso. Remédios não curam ninguém, só adoecem. E as doenças não deveriam ser curadas porque são a própria cura - já que a recuperação da saúde é um processo fisiológico natural que não pode ser substituído por qualquer meio externo.

Curar-se é tão natural quanto a reprodução, a digestão e o crescimento. O que se convencionou chamar de "doença", tal como a febre, a dor, a inflamação e a infecção, é, na maioria das vezes, um processo de eliminação de toxinas e de reparação realizado pelo organismo para recuperar a saúde. O processo de cura é sempre desagradável. E isso é perfeito e natural. Não podemos ser recompensados pelos nossos erros. Quando alguém respira ar poluído, come alimento impróprio, ingere álcool, remédios, fica irritado, preocupado, ou seja, ataca sua saúde, certamente adoecerá. Após semanas, meses ou anos, os resultados serão reumatismos, infecções, câncer etc. Ninguém adoece sem motivo. Se há um efeito, há uma causa. E a causa é sempre um ambiente inadequado à vida e maus hábitos. Ora, quando se procura curar por meio de um remédio se está tentando eliminar o sintoma sem eliminar a causa. É uma tentativa charlatanesca de anular a "lei da causa e efeito". Se alguém ingeriu álcool e está bêbado, somente parando de ingerir álcool poderá curar-se. Os remédios apenas suprimem o sintoma, a reação orgânica benéfica de autocura. Os remédios contém princípios ativos que, na verdade, são venenos ativos: provocam efeitos colaterais e reações adversas que são sinais de envenenamento.

Tudo o que não é alimento é veneno. Se queremos sobreviver e ter saúde, devemos somente ingerir alimentos - e não remédios. O que o organismo não pode  digerir e assimilar precisa ser eliminado. Quando algumas dessas substâncias se combinam quimicamente com as células, essas terminam morrendo. Todos os remédios, sem exceção, são venenos. A grande maioria das doenças modernas são doenças iatrogênicas, isto é, frutos da ingestão de remédios que aparecem anos após o "tratamento" com essas substâncias.

Os remédios fazem tão mal às pessoas saudáveis quanto fazem aos doentes - já que as mesmas leis válidas para uma pessoa saudável também valem para os doentes. Eles não deixam de ser venenos simplesmente porque foram receitados e sempre fazem mal, não importa a quantidade. Quando alguém diz que o remédio atua sobre o organismo não entende que, na verdade, ele não está curando ninguém. Esses efeitos são decorrentes da reação do corpo a essas substâncias. Não é o remédio que é anti-inflamatório ou anticancerígeno. Quem inflama e desinflama, quem produz um tumor e reabsorve esse tumor é o organismo. O corpo não é suicida. Ele faz o melhor para manter a vida e a saúde. Tomar remédio para eliminar um sintoma é interromper um processo natural e saudável de cura que, mais tarde, o organismo precisará retomar.

As mortes com sofrimento decorrem da prática de drogar o doente. A velha e confiável aspirina é um veneno mortal e está proibida na Inglaterra para quem tem até 16 anos - já destruiu a saúde de milhares de crianças em todo o mundo. O Interferon, que, na década de 80, era anunciado como a "cura do câncer", foi mais um fracasso; a talidomida, testada por mais de três anos, aleijou milhares. Isso para não falar dos antibióticos, que acabam com nossa imunidade e, como diz o próprio nome, são "antivida".

A maioria dos remédios que estavam em uso há 20 anos já não são usados porque são "ineficientes". Não há esperança de que a cura de alguma doença apareça dos remédios. A saúde não é fruto de remédios, vacinas ou qualquer outra substância externa ao corpo. Ela é fruto de bons hábitos de vida e de um ambiente amigável. Os remédios geram muita riqueza para seus fabricantes, mas escravizam e matam seus usuários. Nada substitui o poder curativo exclusivo do organismo. Os remédios são a herança tardia dos caldeirões dos feiticeiros e curandeiros disfarçada de prática científica.


Texto de Fernando Travi retirado da Revista Superinteressante, Janeiro 2003, Edição 184, Editora Abril, São Paulo.

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

E se... Não houvesse fronteiras?

Do espaço elas não são vistas, mas estão entre as criações humanas mais antigas e, desde sempre, foram impostas pela força e pelo poder, motivando disputas sangrentas, algumas irreversíveis. Elas reúnem e afastam povos. Mas e se, de repente, eliminássemos as fronteiras entre os países? Como seria o mundo sem estrangeiros?

A primeira ideia que vem à cabeça é um mundo de migrantes, onde os homens se deslocariam livremente em busca de melhores oportunidades e qualidade de vida. Segundo André Martins, professor de Geografia regional e política da Universidade de São Paulo (USP), o nascimento dos países se deu por causa da agricultura. A fixação do homem na terra ocorreu há cerca de 10 mil anos. Em torno dos campos férteis foram naturalmente surgindo povoados, vilas, cidades e depois países. "Abolidas as fronteiras, veríamos grandes movimentos migratórios motivados, principalmente, pela busca de emprego. Pois, se no passado a posse da terra era necessária para prover a subsistência, hoje o capital e a oferta de trabalho  assumiriam esse papel", diz. Seria comum ver latino-americanos indo para os Estados Unidos e africanos em busca de emprego na Europa. Legalmente.

"É provável que sem fronteiras, em pouco tempo, estivéssemos todos falando o mesmo idioma e andando com dólares no bolso", diz Alexandre Rochman, coordenador do curso de relações internacionais da Fundação escola de Sociologia e Política, em São Paulo. Não é uma situação tão irreal para quem mora nas grandes cidades, está acostumado às palavras em inglês e segue as oscilações da moeda americana, como se disso dependesse a felicidade.

A economia sofreria mudanças, cujas tendências já podem ser percebidas. De acordo com Rochman, a Área de Livre Comércio  das Américas e a União Europeia refletem esse espírito. "A formação de mercado comuns é uma forma de passar por cima das fronteiras econômicas", diz. Sem barreiras e taxas alfandegárias o comércio e o turismo seriam bastante beneficiados.

Se alguma integração vem ocorrendo do ponto de vista cultural e econômico, no âmbito político as coisas seriam diferentes. A ausência de fronteiras e o fim das nações exigiriam novo conceito de cidadania. "Hoje, o local de nascimento é determinante para estabelecer os direitos do homem. Seriam necessárias novas leis e organismos supranacionais para garantir os direitos e deveres desses cidadãos do mundo", afirma Rochman. A Comunidade Europeia já discute uma proposta de Constituição comum.

"Teríamos de aprender a viver em uma grande nação com religiões, etnias e culturas diferentes", diz Martins. Para ele, se o fim das nações não for um processo de integração e de acordos  internacionais, seriam mantidas as divergências que hoje motivam conflitos.

Se eliminar as fronteiras não colocaria ponto final às guerras, em alguns casos repararia uma situação artificial criada pela sanha expansionista e imperialista dos europeus, durante o século 19. É o caso da África e do Oriente Médio. "Nos dois casos, não foram levados em conta os interesses das populações locais, e por isso existem tantas guerras nessas regiões", diz Martins.

Mas há quem veja na ausência das fronteiras um avanço rumo a uma sociedade baseada menos nos poderes de governos e instituições e mais nos direitos básicos do cidadão. Nada de políticos, nada de tribunais, nada de polícia, nada de ladrão. Parece letra de música do Raul Seixas, mas não é. Este é o mundo sem países, de acordo com Edson Passetti, professor do Núcleo de Estudos de Sociedade Libertária, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. "Viveríamos o idela da vida em comum em harmonia", diz.


Texto de Fernando Neves retirado da Revista Superinteressante, Edição 184, Janeiro 2003, Editora Abril, São Paulo.

O que é a Interpol?

Com sede na cidade de Lyon, na França, a Interpol é a polícia internacional encarregada de crimes que não se restringem às fronteiras de um só país. Com 181* países filiados, é a segunda maior organização internacional, atrás apenas da ONU, com 191** países membros. Sua importância é cada vez maior com a chamada "globalização do crime" que opera por meio de redes terroristas, cartéis de tráfico de drogas e quadrilhas de contrabando de armas. 

Mas, ao contrário do que muitos filmes fazem supor, os agentes da Interpol não são "detetives universais" dotados de imunidade diplomática e com poderes de aprisionar pessoas em qualquer ponto do planeta. A organização não pode se sobrepor aos sistemas legais de cada país, nem possui um quadro próprio de policiais ao redor do mundo. No Brasil, por exemplo, seu efetivo é composto de funcionários da própria Polícia Federal. 

"A Interpol atua basicamente em três vertentes: a área da inteligência, que é a busca dos dados em si, a coordenação de operações policiais em um ou mais países e a busca de informações para uma investigação já iniciada por outra polícia", diz o chefe da Interpol no Brasil, Washington Melo***. 

Seu órgão máximo, a Assembleia Geral, reúne-se uma vez por ano para traçar estratégias de combate aos três tipos mais comuns de criminosos internacionais: aqueles que agem em mais de um país, como os contrabandistas; aqueles que não viajam, mas cujos crimes afetam mais de um país, como falsificadores de obras de arte e aqueles que cometem o crime num país e fogem para outro. Toda a sua estrutura é mantida pelas contribuições de cada país filiado, de acordo com sua capacidade financeira. 

A história da organização começa em 1923, quando o chefe da polícia de Viena, Johann Schober, inaugurou na Áustria, junto com outros 14 países, a primeira sede da Polícia Internacional. A iniciativa de Schober vinha tentar coibir a facilidade com que os criminosos da Europa, na época, escapavam da lei ao atravessarem a fronteira em direção a um país vizinho. Quando a Alemanha de Adolf Hitler anexou a Áustria, em 1938 (junto com os arquivos da Interpol), suas atividades foram suspensas. Somente em 1946 a polícia internacional foi recriada, com sede em paris, onde permaneceu até 1989, quando foi transferida para a atual sede em Lyon. Seu nome oficial é Organização Internacional de Polícia Criminal.


Pesquisa de Márcio Ferrari; Revista Superinteressante, Janeiro 2003, Edição 184, Editora Abril, São Paulo.

*195 países em setembro de 2023; **193 membros em setembro de 2023; *** atual (outubro de 2023) chefe da Interpol no Brasil, Rodrigo Carnevale; (Valdecy Urquiza - São Luís - MA. -  é vice-presidente da Interpol).

sábado, 28 de outubro de 2023

Admirável Mundo Novo

Futurismo ou ficção científica em 1931 revela a face hegemônica da sociedade atual e serve como alerta para os tempos que virão


Em seu apocalíptico romance, que dá título a essa reflexão, o escritor inglês Aldous Huxley imaginou uma sociedade distópica, formada por pessoas programadas em laboratório, adestradas para cumprir seu papel em uma sociedade de castas biologicamente definidas já no nascimento. O ano seria 2540, o grande ídolo é empreendedor norte-americano Henry Ford, e os sistemas de produção em massa criada pelo empresário louvam o avanço da técnica da linha de montagem e da produção em série. Nesse universo, a música, a pintura e a literatura servem apenas para referendar e solidificar o conformismo.

Admirável mundo novo também é nosso. Descobrimos água em Marte, nossas infovias levam informações a uma velocidade impensável por todo o planeta, nos comunicamos daqui do Brasil com alguém em Kanpur, na Índia, como se fosse nosso vizinho de porta. Aprendemos pela internet, compramos pela internet, comemos com um click na internet, amamos pela internet, aprendemos como matar e como morrer pela internet. Pequenos aparelhinhos luminosos nos dizem aonde ir, o que falar, quem odiar, como amar, quantos amigos podemos ter e como apagar uma pessoa da sua vida a um simples delete.

Sabemos tanta coisa: trocamos de coração, fígado, rins e até a face se for preciso.

Nossos livros viraram e-books e são consumidos na hora que quisermos em nossa biblioteca digital. Se a memória é pouca, deletamos aqueles de que menos gostamos ou até os que ainda não temos. Nossas playlists musicais não nos deixam em silêncio um minuto. Temos excesso de comida brotando em rincões e carros tão velozes que nunca atingiremos sua potência total. Técnicas avançadas em clareamento dental nos colocam um sorriso magnífico. E assim seguimos, dando um touch aqui e ali. Como somos sofisticados.


A distopia total


Também apoiamos a construção de muros que impeçam que indivíduos menos agraciados venham a se imiscuir em nossa cultura. E para que tudo permaneça como está, matamos aqueles que são diferentes, enquanto continuamos operando nossas máquinas para que não se rompa o sistema de produção. Evoluímos tanto que já nem precisamos nos comunicar verbalmente. Mas ainda interagimos através de mensagens. A comunicação dá-se por meio de sinais e carinhas/bonequinhos que nos representam. E, quando algo novo se prenuncia nesse nosso admirável mundo, apelamos para o retrocesso e as forças de segurança. Que nada mude de lugar. Assim caminhamos nessa nova humanidade.

Mas fiquemos espertos, porque a distopia atual não nos permite o controle. A fome domina nações inteiras, crianças são mantidas presas porque seus pais decidiram ir em busca de uma vida melhor, guerras aniquilam populações, doenças já erradicadas começam a se espalhar assustadoramente. São as potencialidades autoritárias do próprio mundo que criamos. E basta que um único homem dê ordens para que alguém aperte o temível botão.

É preciso estarmos atentos e fortes.


Texto de Maria Beatriz retirado da Revista Língua Portuguesa - Conhecimento Prático, Editora Escala, São Paulo, Ano 8, Edição 72, Agosto/Setembro 2018.

Novos meios de se comunicar

Ele veio para ficar: o letramento midiático faz parte das propostas da BNCC e tem entusiasmado professores e alunos


Em tempos em que ninguém mais desgruda do celular, é necessário discutir o letramento midiático. O pesquisador americano e professor da University of Souther California, Henry Jenkins, cunhou o conceito de letramento midiático, que, segundo ele, consiste em explicar o fato de que diversas mídias estão se utilizando da internet para manter-se vivas e atualizadas.

Mas em um país onde três em cada dez pessoas são analfabetas funcionais, falar em letramento requer cuidados, porque saber ler e escrever tem se revelado condição insuficiente para responder adequadamente às demandas contemporâneas.

Para o doutor em Linguística e apaixonado por tecnologia Alfredo Gutierrez, letramento midiático não é algo que se pode ter ou não ter. "Eu considero que é um processo já enraizado na sociedade de informação. E há uma diversidade tal impensável até há poucos anos. Porque há aqueles que vão para a internet apenas buscar entretenimento, outros para se manter informados, e há os que querem disseminar suas ideias, influenciar a opinião alheia. Entre meus alunos, há muitos youtubers, influencers mesmo. E a grande questão que se impõe é como isso se dá, o que está sendo propagado", considera, lembrando que o grande instrumento que os consumidores têm em mão é o smartphone. "Com esse aparelhinho em mão, eles detêm um poder incalculável, e as escolhas são imensas, complexas. E aí está o grande perigo, porque surgem as fake news, a persuasão sem limites", explica.

Gutierrez utiliza a prática em sala de aula: "Uma das atividades que introduzi é produzirem e interpretarem mensagens de twitters. Em 280 caracteres têm de codificá-los e decodificá-la.


CARÁTER SOCIOCULTURAL


O escritor e especialista em Educomunicação Abrahão Costa de Freitas é enfático: "De acordo com o Grupo de Nova Londres, as novas mídias e as ferramentas tecnológicas do mundo contemporâneo demandam práticas de uso da linguagem voltadas para a esfera da comunicação digital. A escola já não é a única agência de letramento de que dispomos. Por essa razão, autores como Jay Lemke - que pesquisa o ensino de ciências e novas tecnologias - e Manuel Castells - doutor em Sociologia, professor de comunicação e planejamento urbano e regional e pesquisador dos efeitos da informação sobre a economia, a cultura e a sociedade em geral - enfatizam o caráter sociocultural das práticas de letramento, insistindo que o letramento multimidiático, assim como o letramento multissemiótico, é um imperativo de uma sociedade na qual as práticas letradas são determinadas por um momento sóci-histórico no qual a polifonia e o plurilinguismo se ampliam no espaço público das tecnologias eletrônicas".

Alfredo Gutierrez faz um alerta: "É preciso que se discuta isso, urgentemente. A BNCC (Base Nacional Comum Curricular) incentiva, por exemplo, o uso do celular, do smartphone, em sala de aula. Só não ensina o pulo do gato, não diz como nos apropriarmos dessa estratégia, como trabalhamos esse letramento midiático que se impõe".


Texto retirado da Revista Língua Portuguesa e Literatura - Conhecimento Prático, da coluna Reflexão da Redação, Editora Escala, São Paulo, Ano 8, Edição 72, Agosto/Setembro 2018.

quinta-feira, 26 de outubro de 2023

Que tempos são esses?

Os dias estão sombrios. Em todo o planeta, o ódio tem mostrado sua face intransigente. E ela parece com a nossa! Isso é o que, de fato, assusta. O poder da morte e da destruição ao alcance da nossa mão. A um click, a uma nota assinada por algum  poderoso mandatário...

No centro de tudo, a Palavra.

Tenho visto brigas completamente desnecessárias no trânsito, homens e mulheres que dão espaço a uma verdadeira entidade guerreira graças a uma ultrapassagem indevida ou a uma simples buzinada. Jovens e adolescentes que se agridem pelas redes sociais. Políticos que usam o verbo para separar nações, apontar o dedo para cidadãos, enaltecer guerras.

No centro de tudo, a Palavra.

Diante dos temores da nossa época - e de todas as épocas - é a palavra que define o que somos. Na era da disseminação fácil, rápida e aleatória, notícias falsas podem produzir o andamento da história. Ou o contrário dela. Defender uma ideia, mesmo que levemente, pode determinar sua exclusão de um grupo social ou da própria família.

No centro de tudo, a Palavra.

A vida está sombria. E aquele que acha graça em uma brincadeira de criança, ou se delicia com um inocente sorvete, é visto com reservas, taxado de desvairado ou desvairada, com certeza falta-lhe um parafuso.

No centro de tudo, a Palavra.

Dos livros sagrados, da interpretação do que está escrito nessas obras, sempre em nome de Deus, se formam milícias, exércitos, alguém entra em uma mesquita e atira em uma centena de pessoas. Não sem antes deixar claro em vídeo o que vai em sua mente. Ao vivo. Ou um jovem escreve uma mensagem enigmática e assassina seus antes colegas da sua antiga escola. Pela dor que as palavras produziram em sua alma.

No centro de tudo, a Palavra.

Os corações estão sombrios. E é preciso urgentemente que se dê uma nova ordem à ordem social. Que se escancarem os risos, as canções, as histórias encantadas, as lendas... Que venham as fadas, os duendes, elfos, bruxos e bruxas nos ensinarem, novamente, a razão da vida. E que isso não seja um pecado.

No centro de tudo, a Palavra.

Mas, como disse o grande escritor e dramaturgo Bertold Brecht, que fez da indignação com as sombras sua bandeira: "Que tempos são esses, quando falar sobre flores é quase um crime?"


Texto de Jussara Saraíba retirado da revista Língua Portuguesa e Literatura - Conhecimento Prático, Ano 8 nº 76, Editora Escala, São Paulo, Abril/Maio 2019.