Lá vamos nós, ávidos pelos feriados que se avizinham, na busca frenética da casa de praia, do sítio, do hotel, da montanha, um lugar que nos distancie da cidade e nos faça merecer descanso, ausência de agenda de trabalho, telefonemas, dificuldades e inseguranças. Tudo cessa. A Bolsa de Valores, as intrigas políticas, o relógio que escraviza. Ainda que a estrada durma sob nossos pneus imóveis e os ônibus viajem entupidos e os aeroportos se transformem numa feira oriental, vale a ilusão de que haverá sol, as crianças se comportarão como anjos, não faltarão a mesa farta e os copos repletos. Sobretudo paz, fruto espiritual que insistimos em procurar alhures.
Nada mais profano em nossa sociedade que a Semana Santa, exceto o Carnaval. Eis a Modernidade iconoclasta, dessacralizando hábitos e calendários. Outrora, não havia janelas eletrônicas e as novelas eram transmitidas ao vivo nas ruas atulhadas de romeiros e procissões. Na igreja, a cerimônia do lava-pés sobressaindo-se à instituição da eucaristia. Na Sexta-Feira da Paixão, a música clássica das rádios compungidas, as imagens cobertas de roxo, o Senhor morto desfilando sobre os nossos pecados. Jejum e abstinência para uns, peixes e crustáceos para os mais abastados. No sábado, a espera da noite de Aleluia, que resgatava a alegria da Páscoa. Jesus ressuscitou! Domingo de missa alva e o alívio por saber que Ele venceu a morte.
Páscoa significa " passagem ", da opressão à libertação (a travessia do Mar Vermelho, no Êxodo) e da morte à vida (Jesus). Ainda que nada disso diga respeito ao nosso universo pessoal, tão centrado no próprio umbigo, orbitando na tríade família-trabalho-consumo, somos trespassados pela expectativa de uma travessia. Misteriosa espera de algo ou alguém que nos conduza da mediocridade ao meritório, do vazio à plenitude, da rotina ao sentido, do desencanto ao fascínio. O anjo selou-nos com a fome de transcendência. No mais íntimo, sabemos que do lado de fora de nosso ser nada pode aplacar essa sede de plenitude, exceto o amor e o mergulho despojado no silêncio interior, lá onde um Outro resgata a nossa verdadeira identidade.
Um dia um homem peregrinou pela Palestina revelando o que Deus gostaria de nos dizer. Muitos não fizeram caso, a própria família desconfiou de que ficara louco e o poder vigente condenou-o à morte na cruz para que não perturbasse o ordem do Império. Foi crucificado. Em seguida, apareceu vivo a seus discípulos, que nos transmitiram a fé em sua ressurreição.
José Lezama Lima, autor do belo e enigmático Paradiso , fez-se cristão por causa dessa afirmação de Tertuliano: " O filho de Deus foi crucificado: não é vergonhoso porque é infame; o filho de Deus morreu: é ainda mais digno de fé porque é incrível; e depois de morto, ressuscitou: é verdade porque é impossível ".
E, para nós, é vergonhoso crucificar ambições que nos roubam de nós mesmos, acreditar no mistério que ultrapassa a razão e renascer à vida interior e à solidariedade que instaura justiça? O caminho se faz ao caminhar, preveniu-nos Antônio Machado. Talvez renascer no decorrer da vida seja mais atemorizador do que a própria morte. É o lamento de Fernando Pessoa: " Fui o que não sou ". A Páscoa sinaliza que ainda há tempo. Contudo, é preciso não ter medo de ficar descalço, como na Quinta-Feira Santa, e de atravessar a noite escura da Sexta-Feira da Paixão. Então, conheceremos a verdade e a verdade nos libertará, assegura Aquele que é o paradigma.
Nenhum comentário:
Postar um comentário