quinta-feira, 29 de março de 2012

Travessia

                     Frei Betto

Lá vamos nós, ávidos pelos feriados que se avizinham, na busca frenética da casa de praia, do sítio, do hotel, da montanha, um lugar que nos distancie da cidade e nos faça merecer descanso, ausência de agenda de trabalho, telefonemas, dificuldades e inseguranças. Tudo cessa. A Bolsa de Valores, as intrigas políticas, o relógio que escraviza. Ainda que a estrada durma sob nossos pneus imóveis e os ônibus viajem entupidos e os aeroportos se transformem numa feira oriental, vale a ilusão de que haverá sol, as crianças se comportarão como anjos, não faltarão a mesa farta e os copos repletos. Sobretudo paz, fruto espiritual que insistimos em procurar alhures.

Nada mais profano em nossa sociedade que a Semana Santa, exceto o Carnaval. Eis a Modernidade iconoclasta, dessacralizando hábitos e calendários. Outrora, não havia janelas eletrônicas e as novelas eram transmitidas ao vivo nas ruas atulhadas de romeiros e procissões. Na igreja, a cerimônia do lava-pés sobressaindo-se à instituição da eucaristia. Na Sexta-Feira da Paixão, a música clássica das rádios compungidas, as imagens cobertas de roxo, o Senhor morto desfilando sobre os nossos pecados. Jejum e abstinência para uns, peixes e crustáceos para os mais abastados. No sábado, a espera da noite de Aleluia, que resgatava a alegria da Páscoa. Jesus ressuscitou! Domingo de missa alva e o alívio por saber que Ele venceu a morte.

Páscoa significa " passagem ", da opressão à libertação (a travessia do Mar Vermelho, no Êxodo) e da morte à vida (Jesus). Ainda que nada disso diga respeito ao nosso universo pessoal, tão centrado no próprio umbigo, orbitando na tríade família-trabalho-consumo, somos trespassados pela expectativa de uma travessia. Misteriosa espera de algo ou alguém que nos conduza da mediocridade ao meritório, do vazio à plenitude, da rotina ao sentido, do desencanto ao fascínio. O anjo selou-nos com a fome de transcendência. No mais íntimo, sabemos que do lado de fora de nosso ser nada pode aplacar essa sede de plenitude, exceto o amor e o mergulho despojado no silêncio interior, lá onde um Outro resgata a nossa verdadeira identidade.

Um dia um homem peregrinou pela Palestina revelando o que Deus gostaria de nos dizer. Muitos não fizeram caso, a própria família desconfiou de que ficara louco e o poder vigente condenou-o à morte na cruz para que não perturbasse o ordem do Império. Foi crucificado. Em seguida, apareceu vivo a seus discípulos, que nos transmitiram a fé em sua ressurreição.

José Lezama Lima, autor do belo e enigmático Paradiso , fez-se cristão por causa dessa afirmação de Tertuliano: " O filho de Deus foi crucificado: não é vergonhoso porque é infame; o filho de Deus morreu: é ainda mais digno de fé porque é incrível; e depois de morto, ressuscitou: é verdade porque é impossível ".

E, para nós, é vergonhoso crucificar ambições que nos roubam de nós mesmos, acreditar no mistério que ultrapassa a razão e renascer à vida interior e à solidariedade que instaura justiça? O caminho se faz ao caminhar, preveniu-nos Antônio Machado. Talvez renascer no decorrer da vida seja mais atemorizador do que a própria morte. É o lamento de Fernando Pessoa: " Fui o que não sou ". A Páscoa sinaliza que ainda há tempo. Contudo, é preciso não ter medo de ficar descalço, como na Quinta-Feira Santa, e de atravessar a noite escura da Sexta-Feira da Paixão. Então, conheceremos a verdade e a verdade nos libertará, assegura Aquele que é o paradigma.

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