segunda-feira, 12 de março de 2012

Trecho de Rubem Alves

As coisas do mundo humano apresentam uma curiosa propriedade. Já sabemos que elas são diferentes daquelas que constituem a natureza. A existência da água e do ar, a alternância entre o dia e a noite, a composição do ácido sulfúrico e o ponto de congelamento da água em nada dependem da vontade do homem. Ainda que ele nunca tivesse existido, a natureza estaria aí, passando muito bem, talvez melhor... Com a cultura, as coisas são diferentes. A transmissão da herança, os direitos sexuais dos homens e das mulheres, atos que constituem crimes e castigos que são aplicados, os adornos, o dinheiro, a propriedade, a linguagem, a arte culinária, tudo isto surgiu da atividade dos homens. Quando os homens desaparecerem, estas coisas desaparecerão também.

Aqui está a curiosa propriedade a que nos referimos: nós nos esquecemos de que as coisas culturais foram inventadas e que, por esta razão, elas aparecem aos nossos olhos como se fossem naturais. Na gíria filosófica-sociológica este processo recebe o nome de reificação. Seria mais fácil se falássemos em coisificação, pois é isto mesmo que a palavra quer dizer, já que ela deriva do latim res, rei, que quer dizer " coisa ". Isto acontece, em parte, porque as crianças, ao nascerem, já encontram um mundo social pronto, tão pronto e tão sólido quanto a natureza. Elas não viram este mundo saindo das mãos dos seus criadores, como se fosse cerâmica recém moldada nas mãos do oleiro. Além disto, as gerações mais velhas, interessadas em preservar o mundo frágil por elas construído com tanto cuidado, tratam de esconder dos mais novos, inconscientemente, a qualidade artificial (e precária) das coisas que estão aí. Porque, caso contrário, os jovens poderiam começar a ter ideias perigosas... De fato, se tudo o que constitui o mundo humano é artificial e convencional, então este mundo pode ser abolido e refeito de outra forma. Mas quem se atreveria a pensar pensamentos como este em relação a um mundo que tivesse a solidez das coisas naturais?

Isto se aplica de maneira peculiar aos símbolos. De tanto serem repetidos e compartilhados, de tanto serem usados, com sucesso, à guisa de receitas, nós os reificamos, passamos a a tratá-los como se fossem coisas. Todos os símbolos que são usados com sucesso experimentam esta metamorfose. Deixam de ser hipóteses da imaginação e passam a ser tratados como manifestações da realidade. Certos símbolos derivam o seu sucesso do seu poder para congregar os homens, que os usam para definir sua situação e articular um projeto comum de vida. Tal é o caso das religiões, das ideologias, das utopias. Outros se impõem como vitoriosos pelo seu poder para resolver problemas práticos, como é o caso da magia e da ciência. Os símbolos vitoriosos, e exatamente por serem vitoriosos, recebem o nome de verdade, enquanto que os símbolos derrotados são ridicularizados como superstições ou perseguidos como heresias.

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