quarta-feira, 22 de julho de 2020

O Artista Inconfessável

Fazer o que seja é inútil.
Não fazer nada é inútil.
Mas entre fazer e não fazer
mais vale o inútil do fazer.
Mas não, fazer para esquecer
que é inútil: nunca o esquecer.
Mas fazer o inútil sabendo
que ele é inútil, e bem sabendo
que é inútil e que seu sentido
não será sequer pressentido,
fazer: porque ele é mais difícil
do que não fazer, e dificil-
mente se poderá dizer
com mais desdém, ou então dizer
mais direto ao leitor Ninguém
que o feito o foi para ninguém.

Poema de João Cabral de Mello Neto retirado da coletânea Os Melhores Poemas, Global Editora, 2ª Edição, 1989. Seleção de Antônio Carlos Secchin.

Catar Feijão

Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na da folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com o risco.

Poema de João Cabral de Mello Neto retirado da coletânea Os Melhores Poemas, Global Editora, 2ª Edição, 1989. Seleção de Antônio Carlos Secchin.

O Sertanejo Falando

A fala a nível do sertanejo engana:
as palavras dele vêm, como rebuçadas
(palavras confeito, pílula), na glace
de uma entonação lisa, de adocicada.
Enquanto que sob ela, dura e endurece
o caroço de pedra, a amêndoa pétrea,
dessa árvore pedrenta (o sertanejo)
incapaz de não se expressar em pedra.

Daí porque o sertanejo fala pouco:
as palavras de pedra ulceram a boca
e no idioma pedra se fala doloroso;
o natural desse idioma fala à força.
Daí também porque ele fala devagar:
tem de pegar as palavras com cuidado,
confeitá-las na língua, rebuçá-las;
pois toma tempo todo esse trabalho.

Poema de João Cabral de Mello Neto retirado da coletânea Os Melhores Poemas, Global Editora, 2ª Edição, 1989. Seleção de Antônio Carlos Secchin.

terça-feira, 21 de julho de 2020

O Vassoureiro

Em um piano distante alguém estuda uma lição lenta, em notas graves. De muito longe, de outra esquina, vem também o som de um realejo. Conheço o velho que o toca, ele anda sempre pelo meu bairro; já fez o periquito tirar para mim um papelucho em que são garantidos 93 anos de vida, muita riqueza, poder e felicidade.

Ora, não preciso de tanto. Nem de tanta vida, nem de tanta coisa mais. Dinheiro apenas para não ter as aflições da pobreza; poder somente para mandar um pouco, pelo menos, em meu nariz; e de felicidade um salário mínimo: tristezas que possa aguentar, remorsos que não doam demais, renúncias que não façam de mim um velho amargo.

Joguei uma prata da janela, e o periquito do realejo me fez um ancião poderoso, feliz e rico. De rebarba me concedeu 14 filhos, tarefa e honra que me assustam um pouco. Mas os periquitos são muito exagerados, e o costume de ouvir o dia inteiro trechos de óperas não deve lhes fazer bem à cabeça. Os papagaios são mais objetivos e prudentes, e só se animam a afirmar uma coisa depois que a ouvem repetidas vezes.

Chiquita, a pequenina jabota, passeia a casa inteira, erguendo com certa graça o casco pesado sobre as quatro patinhas tortas, e espichando e encolhendo o pescoço curioso, tímido e feio. Nunca diz nada, o que é pena, pois deve ter uma visão muito particular das coisas.

Agora não se ouve mais o realejo; o piano recomeça a tocar. Esses sons soltos, e indecisos, teimosos e tristes, de uma lição elementar qualquer, têm uma grave monotonia. Deus sabe por que acordei hoje com tendência a filosofia de bairro; mas agora me ocorre que a vida de muita gente parece um pouco essa lição de piano. Nunca chega a formar a linha de uma certa melodia. Começa a esboçar, com os pontos soltos de alguns sons, a curva de uma frase musical; mas logo se detém,e volta, e se perde numa incoerência monótona. Não tem ritmo nem cadência sensíveis. Para quem a vive, essa vida deve ser penosa e triste com o esforço dessa jovem pianista do bairro, que talvez preferisse ir à praia, mas tem de ficar no piano. Na verdade eu é que estou pensando em ir à praia, eu é que estou preso ao teclado de máquina. Espero que esta crônica, tão cansativa e enjoada para mim, possa parecer ao leitor de longe como essa lição de piano me parece no meio da manhã clara: alguma coisa monótona e sem sentido, ou às vezes meio desentoada, mas suave.

Passa o vassoureiro. É grande, grosso e tem bigodes grossos como todos os de seu ofício. Aos 50 anos darei um bom vassoureiro de bairro. De todos os pregões, o seu é o mais fácil: "Vassoura... Vassoureiro..." e convém fazer a voz um tanto cava. Ele me parece digno, levando entrecruzadas sobre os ombros, numa composição equilibrada e sábia, tantas vassouras, espanadores e cestos. Seu andar é lento, sua voz é grave, sua presença torna a rua mais solene. É um homem útil.

Não ousaria dizer o mesmo de mim mesmo; mas, enfim, já trabalhei, já cumpri o meu dever, como o velho do realejo e a mocinha do piano; vagamente acho que mereço ir à praia.

Crônica de abril de 1949. Retirada do livro 200 Crônicas Escolhidas - as melhores de Rubem Braga. Editora Record, 9ª Edição, 1993.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Julieta

Julieta veio pulando num pé só e perguntou: "Você já viu o Saci-Pererê?" Nós ainda não tínhamos visto e ficamos um tanto constrangidas. Só Paulina, a mentirosa, se atreveu a dizer que sim, mas nós sabíamos que não era verdade, pela sua maneira de revirar os olhos e de franzir os lábios por cima dos dentes acavalados. Paulina mentia sempre.

Julieta, porém, acreditava no Saci-Pererê, e contava a sua história com tanto realismo que ela mesma ficava com medo e olhava para as esquinas e para detrás das árvores, muito inquieta. Mas, se era um molequinho tão pequeno, de uma perna só, e pulando pelos ares, não chegávamos a achá-lo muito perigoso. Recomeçávamos a brincadeira. Pelo seguro, cantaríamos debaixo da varanda. "Não, não", - explicava Julieta - "o Saci-Pererê é muito perigoso, porque tem um cachimbo aceso! É todo preto, e leva aquela brasa na boca!"

Todas as noites, antes de dormir, esperávamos ver passar entre as árvores o cachimbo do Saci-Pererê. E brigávamos com Julieta por sua causa.

Julieta era colorista. "Vocês já viram pitanga?" Paulina dizia: "Já..." toda apressada, com a dentuça de fora. "Mentira!" - dizia Julieta. "Pitanga, por aqui, só na casa do General, que é muito longe, do lado de lá, por detrás da barreira, onde há um formigueiro enorme e umas galinhas-d'angola e muitos escorpiões!" Paulina arregalava os olhos e nós todas ficávamos olhando para a sua mentira. Só Julieta é que conhecia a tal fruta chamada pitanga. E prometia levar-nos um dia até os fundos da casa do General.

Julieta conhecia o passarinho Bico-de-lacre. Paulina também. "Mentirosa!" E cambaxirra? E pintassilgo? E araponga? Paulina quase chorava de raiva, porque ninguém acreditava nela. "Tenho até um alçapão!" - "Um alçapão!" A roda toda desatava a rir, porque ninguém ignora que uma menina - mesmo uma menina mentirosa - não brinca com alçapão nem atiradeira, que são coisas de rapaz. "Mas eu armei um alçapão e peguei um canário-da-terra!"

"Canário-da-terra!" Julieta fazia assim com a boca. "Estou falando de Bico-de-lacre, menina!"

Julieta era uma pretinha muito engraçada. Pulava num pé só, acreditava no Saci-Pererê, já tinha comido pitanga e conhecia o passarinho Bico-de-lacre. Usava colarzinho de coral, sabia muitas histórias de assombração, tocava qualquer música com um pedaço de papel de seda e um pente fino.

"Vocês já viram fazer puxa-puxa? Eu, já." Sabia de doces: de cocada preta e cor-de-rosa, de bala de ovo, de baba-de-moça, e de bolos muito finos que só se fazem para festas de casamento.

Sabia de costura, também: de cerzir e de chulear. Sabia muitas coisas de linha e de lã, que se tecem com bastidores, grampos e variadíssimas agulhas. "Eu faço muitos pontos de crochê e de tricô, e borlas com rodelas de papelão por dentro. Já bordei todo o alfabeto num talagarça!" Paulina levantava as sobrancelhas: uma vez... uma vez, tinha feito um porta-jornais todo bordado a ponto de cruz. Muito difícil! E estava começando a aprender piano com uma prima. Revirava a boca cheia de dentes, para perguntar por sua vez: "Vocês sabem o que é um sustenido?" Ah, isso ninguém sabia.

Mas Julieta já tinha falado com um "clove". Que era um "clove"? Isso ninguém sabia também. Julieta contava: era uma espécie de palhaço, mas não era um palhaço. Era muito diferente. Diferente na roupa, diferente na cartolinha... E a cara! Os "cloves" eram horríveis! Usavam máscara de meia, com uma boca muito grossa e uns olhos caídos assim para os lados... A boca também era caída. (E Julieta ia imitando um "clove".) E o nariz esborrachado. E uma carapinha cor de fogo, de duas pontas. Às vezes, de duas cores: do lado de cá, vermelha, do lado de lá, verde... Horríveis! Qualquer pessoa ficaria com medo. Mas Julieta já tinha falado com um!

A roupa dos "cloves" era uma beleza. Umas calças tão franzidas, tão franzidas que não acabavam mais... E um casaquinho todo bordado de lantejoulas, com uma beiradinha de arminho. Ao sol, o "clove" ficava lindo. (Ela queria dizer clown, mas tinha aprendido assim. E as meninas gostavam muito das palavras ditas por Julieta.)

Julieta ia levar as costuras da tia. "Quando eu voltar, fico brincando, também." Nós continuávamos a bater palmas e a dizer versos. (Porque era tempo do Giroflê...) E ela voltava, chupando balas. As balas eram de mil cores, com recheio de mosaico imitando rosas pequeninas. Não podíamos entender como se fazia aquele recheio marmoreado. Nem Paulina se atrevia a dar qualquer explicação. Aquilo pertencia ao mundo dos mistérios, onde só mais tarde penetraríamos. Julieta, com a boca cheia de açúcar, observava: "Isto é como o arco-íris..." Paulina corrigia: "Você quer dizer o arco-da-velha?" "É a mesma coisa. Mas o dr. Aristides só diz arco-íris!" As meninas pensavam: "Mas que velha seria aquela, do arco?" Devia ser outra mentira de Paulina. Menina incorrigível!

"Vocês também nunca viram mula-sem-cabeça?" - "Nunca." - "Pois existe!" E existiam uns porões cheios de almas do outro mundo, que rezavam ladainhas e arrastavam correntes, tudo por causa de uma Sinhá Velha que andou toda a vida de chicote na mão. Mas era um pouco longe. Era preciso andar umas três ruas...

"Vocês já viram nascer criança?" - "Eu nasci numa abóbora!" - afirmava Paulina. - "Numa abóbora!" - "Tenho certeza!" Julieta dizia com muita naturalidade: "Criança nasce como os gatinhos. Tal e qual. Com a diferença que é gente!"

Pois uma vez ela veio pulando num pé só, e dizia: "Estou brincando de 'Mamãe cangueira'." E soprava, ao mesmo tempo, num apito de pau, que lhe manchava a boca de roxo.

As meninas começaram a rir: "Olha a tinta que está saindo! Olha a tinta do apito! Você está com a boca toda encarnada!"

Julieta tirou o apito da boca, olhou para ele, olhou para as meninas, e ponderou: "Isto não é encarnado. Nem vermelho. Nem roxo. - Esta cor se chama solferino!"

As meninas chamavam Julieta, que ia passando, com travessinhas de pedras espetadas no cabelo duríssimo. "Tudo isso é brilhante, Julieta?" Perguntaram sinceramente. Brilhante era uma pedra muito conhecida. Até se cantava:


"Se esta rua, se esta rua fosse minha,
Eu mandava, eu mandava ladrilhar
Com pedrinhas, com pedrinhas de brilhante..."

"Não, estas são pedras-d'água. Comprei no mascate." Pedras-d'água! As meninas achavam lindíssimo que houvesse pedras-d'água, e ficavam mirando, felizes, as travessinhas de Julieta.

Depois, ela fez a Primeira Comunhão, e ficou linda, com um vestido de fazenda que devia ser muito cara, porque se chamava "nanzuque". Ele entendia muito de fazendas, pois a tia era costureira. Havia o "ponjê", o "mol-mol", a "cassa"... Mas o vestido dela era de nanzuque. Todas meninas murmuravam: "Nanzuque... Nanzuque..." Era uma palavra muito bonita.

Julieta passou a contar histórias de santos, milagres, castigos do Céu. Julieta era colorista: adorava o grande vitral da igreja, as fitas azuis e encarnadas das Filhas de Maria e das senhoras do Sagrado Coração. E descrevia as roupas dos sacerdotes, suas meias, seu anel. Ia buscar na chácara ramos de flores para os altares. Mostrava-nos as dálias, duras e orvalhadas, e perguntava: "Não parecem casas de de marimbondo? Tão bem feitinhas!" E dava-nos semprevivas, uma flor que não morre nunca. "Mas nós todos morremos" - dizia, muito sábia. - "Minha mãe já me disse que eu vou ficar pra semente..." (Era Paulina, a dos dentes acavalados.)

Julieta já tinha visto vários mortos. "Vocês também já viram? A gente estica. Fica muito fria, muito dura e amarela. Mas é só o corpo. A alma vai para o Céu, o Inferno ou o Purgatório!" E quando relampejava, nós pensávamos que o Céu se abria um pouquinho para mostrar o Inferno todo em fogo: mas logo se fechava, sem que pudéssemos ver aqueles Diabos de garfo que trabalham entre as labaredas.

Julieta já ganhava dinheiro. Fazia enxovais de tricô para recém-nascidos, e ia levar às freguesas seus embrulhos muito bem feitos, com sapatinhos, touquinhas, casaquinhos... Às vezes, parava, para mostrar seu trabalho às meninas, abrindo os papéis com muito cuidado e segurando os alfinetes nos dentes. "Tudo em ponto de arroz, com fitinha nº 1..."

Nós, porém, éramos muito pequenas. Continuávamos a brincar de roda, embaixo das árvores.

Paulina ia sempre mentindo. O Saci-Pererê não aparecia. As pessoas casavam-se. As crianças nasciam. Os velhos morriam. As almas do outro mundo cantavam ladainhas nos porões. A Virgem Maria caminhava na lua. O Diabo revolvia as brasas do Inferno...

"O Diabo tem dois chifres,
Giroflê, Giroflá..."

Nós sabíamos que tudo ia passando... Tudo era mentira e verdade. Nós também íamos passando, de mãos dadas... Era o tempo do Giroflê!

Conto de Cecília Meireles, do livro Giroflê Giroflá, da Coleção Veredas. Editora Moderna, 6ª Edição, 1992.

domingo, 19 de julho de 2020

Josefina

Encontrei-a no mais belo jardim do mundo. Jardim sem grandezas de relvado ou jorros dágua, sem estátuas nem balaustradas. Jardim arruinado, com uma arquitetura inverossímil de arames, tijolos, canos, latas, e um tanque a desmoronar-se, amolecido em limo, sob torneiras que mansamente lacrimejavam. O resto, uma profusão de bichos que escondiam seus mágicos sussurros dentro da terra, no meio das pedras, por cima das árvores...

Era, porém, o mais belo jardim do mundo, porque Josefina passava por ali, e suas saias crepitavam nas folhas secas, e seus dedos tão brancos armavam raminhos com malvas, miosótis, amores-perfeitos, - raminhos de trazer ao peito, de colocar diante dos santos, de pousar nas mãos dos mortos... E eu sempre pensei que era dele que falávamos quando íamos cantando, debaixo das laranjeiras:

"Fui passear no jardim das flores,
Giroflê, Giroflá..."

Os vestidos de Josefina eram como o seu jardim, com raminhos de junquilhos, chuva de violetas, estrelinhas de jasmins correndo por umas fazendas pensativas, umas fazendas melancólicas, roxas, cor de poente, cor de aflição. Ela era ainda menina, mas vestia-se como uma pessoa antiga: parecia uma viúva pequenina. Apenas um colarzinho iluminava esses vestidos tristes: era de contas lisas, umas contas de vidro tão roliças, tão lustrosas, que pareciam colhidas num rio, e guardavam a transparência e a fluidez das águas, e eram mais azuis do que o céu. Esse colar alegrava os vestidos, alegrava tudo: de longe se via o seu colar, antes de se avistarem os olhos de Josefina, que eram tão bonitos mas tão tristes, veludosos, quietos lilases, como os de um coelho branco.

E eu, quando via Josefina, já não queria ver mais nada, e só desejava ficar para sempre com um carretel de linha na mão, ajudando-a a fazer os seus raminhos de malva, miosótis, amor-perfeito e outras maravilhas que só se veem bem quando se olha de muito perto, quando se é criança, quando não se tem pressa, quando se está descobrindo o mundo.

E o que me espantava era não estarem ali todas as crianças da Terra, todos os bichos, mesmo todos os homens e mulheres, reis, sacerdotes, anciãos, escribas e fariseus, para verem Josefina sentada ao pé do tanque de limo, com o regaço cheio de flores, com o vestido cheio de flores, toda ela cheia de flores, amarrando flores em pequeninos ramos como nenhum artista jamais pintou ou descreveu.

Havia pombos que arrulhavam em redor de Josefina e libélulas que valsavam com seus vestidos de gaze e seus adereços de ametista. E o sol cobria o chão de medalhinhas de ouro, as aranhas estendiam umas teias enormes, como guarda-chuvas de cristal, e ficavam no meio, sonhando com o universo.

Mas, ao entardecer, Josefina dirigia seus passos, nuns sapatinhos pequenos como os de qualquer criança, dirigia seus passos muito leves, como folhas entre folhas, para dentro de casa: porque ultimamente, tossia; - e era tão pálida e tão débil! - e tão pobre que só se podia tratar com água de melissa e rebuçados...

E eu ficava tão espantada de que não viessem todas as crianças, e os bichos, e os reis e sacerdotes, e os escribas , mesmo os homens e as mulheres - já não digo da Terra, mas do bairro - com um remédio para a tosse de Josefina. A tosse que ela abafava num lencinho, com os seus dedos tão brancos e ainda úmidos de flores.

E os meus olhos ficavam tão pesados que nem queria dos seus rebuçados, e intimamente sabia que amanhã, que para o mês, que qualquer dia Josefina ia morrer.

E morreu. No silêncio de uma noite. No silêncio de sua triste alcova. Quando as flores estavam nascendo. Quando eu estava dormindo.

De rosto, de corpo, de mãos, não mudou nada. Ela fora sempre como um anjo de cera ou marfim. Seus olhos tão calmos, violáceos, prateados, seus olhos veludosos de coelho branco ficaram um pouquinho entreabertos, como as caixas de nácar que naquele tempo se usavam para as joias. Tinha nas pálpebras uma penumbras azuis, como certas campânulas.

Nunca soube quem lhe deu o vestido de cetim, a coroa de prata, para ser enterrada como as santas dos altares. Em redor de seu pescoço, onde antes se assentavam as contas lustrosas, feitas de água e de céu, corria agora um crespo enfeite de renda prateada, que brilhava muito, à luz dos círios.

Suas mãos eram tão jovens, tão tenras, que, mesmo mortas, se conservavam arredondadas, sem nenhuma dureza, sem esqueleto, com a substância de suas flores, e um desenho de pombos lunares.

De modo que a morte de Josefina foi como uma estranha festa. Não tinha pai nem mãe. (Só podia ter sido sem pai nem mãe.) E havia umas velhinhas que choravam de vez em quando, sempre que olhavam para o seu claro rosto imóvel entre os bandós do cabelo negro, sob a coroa de prata. E quem entrava também chorava um pouquinho, como se fosse formalidade. E aspergiam-na com um raminho de alecrim molhado num copo dágua, e rezavam de mãos postas, e desapareciam na sombra. E ela, em prata e cteim, brilhava como um espelho.

E eu ficava por ali, triste e despercebida, querendo brincar com suas mãos tão claras e seus negros cabelos copiosos. Querendo levá-la para o jardim, para aquele recanto de águas e pedras desmoronadas onde moravam borboletas e libélulas, para aquelas sombras cheias de aranhas e pássaros...

Vieram muitas palmas, ramos, uns enfeites de flores em forma de coração, com folhas de palmeirinha por baixo e laços azuis e brancos, de umas fitas tão leves que se via o sol através. E cheirava a horta, a rega, a jardim, aos campos imensos da madrugada, quando o sol pinta os cavalos e os bois de rosa e verde... E respingavam a morta com água alcanforada, como se o seu corpo fosse um canteiro de seda.

Tudo era acima de mim! E eu me perguntava se não viriam reis, sacerdotes, toda aquela gente poderosa, de que me falavam constantemente, ver que Josefina morrera e não poderia fazer mais seus lindos raminhos multicores; e morrera (eu o sabia! eu o sabia!) porque só tinha podido tomar água de melissa e rebuçados para a tosse. E queria perguntar-lhe se isso era possível, e se ninguém sofreria, quando eu o contasse, e queria ver se não ficariam desesperados, arrependidos, e se ninguém a ressuscitava.

Ah! não vieram... Não a ressuscitaram! A casa pobre e apertada cheirava a chácara, a cera, a luz, a café. Porque serviam café numas xicrinhas de beiço lascado, como se  fosse parte do cerimonial sorver-se um gole, enxugar-se o bigode, fazer-se tinir a colherzinha no pires. Depois, sentados em redor, esperavam. Esperavam que o tempo passasse. Rezavam, choravam e conversavam muito baixinho.

E o caixão estava cheio de dálias, rosas e flores tão açucaradas que formigas pequeninas viajavam em fila pelo cetim branco... Mas não houve raminho amarrado com a graça, com o sentimento dos que Josefina amarrou para tanta gente, naquele tempo em que todos se enfeitavam com flores, e os raminhos queriam dizer diferentes coisas, conforme estivessem colocados no cabelo, no peito, na cintura... No tempo em que cada flor tinha um significado, era uma palavras...

E não soube mais nada: não me deixavam ver o resto. Certamente para que eu não sofresse. Mas eu já tinha sofrido tudo.

Mais tarde, quando falavam nela, diziam: "Morreu como um passarinho". E indagavam uns para os outros: "Que veio fazer a este mundo?"

Então, meus olhos se enchiam de água; meus olhos ficavam como aqueles velhos tanques de limo, - e eu via de longe seu rosto, suas mãos, seu colar azul consolando o vestidinho triste, - e dentro de mim repetia também aquela pergunta.

Mas nem os reis nem sacerdotes nem os escribas e muito menos os fariseus responderiam...

Conto de Cecília Meireles, do livro Giroflê Giroflá, da Coleção Veredas. Editora Moderna, 6ª Edição, 1992.

sábado, 18 de julho de 2020

O Dia Abriu Seu Para-Sol Bordado

O dia abriu seu para-sol bordado
De nuvens e de verde ramaria.
E estava até um fumo, que sabia,
Mi-nu-ci-o-sa-men-te desenhado.

Depois surgiu, no céu azul arqueado,
A Lua - a Lua! - em pleno meio-dia.
Na rua, um menininho que seguia
Parou, ficou a olhá-la admirado...

Pus meus sapatos na janela alta,
Sobre o rebordo... Céu é que lhes falta
Pra suportarem a existência rude!

E eles sonham, imóveis, deslumbrados,
Que são dois velhos barcos, encalhados
Sobre a margem tranquila de um açude...


Poema de Mário Quintana retirado da coletânea Os Melhores Poemas, Global Editora.  3ª Edição, 1987. Seleção de Fausto Cunha.



Canção Para Uma Valsa Lenta

Minha vida não foi um romance...
Nunca tive até hoje um segredo.
Se me amas, não digas, que morro
De surpresa... de encanto... de medo...

Minha vida não foi um romance...
Minha vida passou por passar.
Se não amas, não finjais, que vivo
Esperando um amor para amar.

Minha vida não foi um romance...
Pobre vida... passou sem enredo...
Glória a ti que me enches a vida
De surpresa, de encanto, de medo!

Minha vida não foi um romance...
Ai de mim... Já se ia acabar!
Pobre vida que toda depende
De um sorriso... de um gesto... um olhar...


Poema de Mário Quintana retirado da coletânea Os Melhores Poemas, Global Editora. 3ª Edição, 1987. Seleção de Fausto Cunha.

Da Primeira Vez Que Me Assassinaram

Da vez primeira em que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha...
Depois, de cada vez que me mataram.
Foram levando qualquer coisa minha...

E hoje, dos meus cadáveres, eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada...
Arde um toco de vela, amarelada...
Como o único bem que me ficou!

Vinde, corvos, chacais, ladrões de estrada!
Ah! desta mão, avaramente adunca,
ninguém há de arrancar-me a luz sagrada!

Aves da Noite! Asas do Horror! Voejai!
Que a luz, trêmula e triste como um ai,
A luz do morto não se apaga nunca!


Poema de Mário Quintana retirado da coletânea Os Melhores Poemas, Global Editora. 3ª Edição. 1987. Seleção de Fausto Cunha.

sexta-feira, 17 de julho de 2020

O Grande Circo Místico

O médico de câmara da imperatriz Teresa - Frederico Knieps
resolveu que seu filho também fosse médico,
mas o rapaz fazendo relações com a equilibrista Agnes,
com ela se casou, fundando a dinastia do circo Knieps
de que tanto se tem ocupado a imprensa.
Charlote, filha de Frederico, se casou com o claune,
do que nasceram Marie e Oto.
E Oto se casou com Lily Braun, a grande deslocadora
que tinha no ventre um santo tatuado.
A filha de Lily Braun - a tatuada no ventre
quis entrar para um convento,
mas Oto Frederico Knieps não atendeu,
e Margarete continuou a dinastia do circo
de que tanto se tem ocupado a imprensa.
Então, Margarete tatuou o corpo
sofrendo muito por amor de Deus,
pois gravou em sua pele rósea
a Via-Sacra do Senhor dos Passos.
E nenhum tigre a ofendeu jamais;
e o leão Nero que já havia comido dois ventríloquos,
quando ela entrava nua pela jaula adentro, 
chorava como um recém-nascido.
Seu esposo - o trapezista Ludwig nunca mais a pode amar,
pois as gravuras sagradas afastavam
a pele dela e o desejo dele.
Então o boxeur Rudolf que era ateu
e era homem-fera derrubou Margarete e a violou.
Quando acabou, o ateu se converteu, morreu.
Margarete pariu duas meninas que são o prodígio do Grande Circo Knieps.
Mas o maior milagre são as suas virgindades
em que os banqueiros e os homens de monóculos têm esbarrado;
são as suas levitações que a plateia pensa ser truque;
é a sua pureza em que ninguém acredita;
são as suas mágicas em que os simples dizem que há o diabo;
mas as crianças creem nelas, são seus fiéis, seus amigos, seus devotos.
Marie e Helène se apresentam nuas,
dançam no arame e deslocam de tal forma os mebros
que parece que os membros não são delas.
A plateia bisa coxas, bisa seios, bisa sovacos.
Marie e Helène se repartem todas,
se distribuem pelos homens cínicos,
mas ninguém vê as almas que elas conservam puras.
E quando atiram os membros para a visão dos homens,
atiram as almas para a visão de Deus.
Com a verdadeira história do Grande Circo Knieps
muito pouco se tem ocupado a imprensa.

Poema de Jorge de Lima retirado da coletânea Nossos Clássicos, da Livraria Agir Editora, 3ª Edição, 1975.