sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Ausência do Sino

Artrítica, a visão cada vez mais encurtando, Arminda foi deixando de subir as ladeiras da cidadezinha para diariamente assistir à missa das 18 horas.

Inconformada, todas as tardes depois que o sol punha em chamas o horizonte mais distante, fazendo reverberar o canavial por sobre os morros e o sino agitava-se conclamando os fiéis, com dificuldade ela descia os degraus de sua casa e encaminhava-se à esquina de onde avistava por entre o casario a torre da igreja afunilando-se para o céu.

Retirava o terço do bolso da saia, os olhos fixos na torre, a cruz no alto iluminada, atraindo seus olhos amiudados por trás dos óculos de lentes espessas.

Começava a debulhar as Ave Marias e os Padre Nossos, as mãos trêmulas perdendo-se no desfiar das contas, fazendo-a reiniciar as orações para em seguida balbuciar algumas jaculatórias acompanhadas de vasto peditório.

Os operários da usina que largavam do trabalho, no apito das 6 horas, no início passavam por ela surpreendidos, recebendo um leve curvar de cabeça quando a cumprimentavam.

Porém, logo foram-se acostumando àquela cena no crepúsculo da cidade e até deixaram de saudá-la a fim de não interromper o seu recolhimento. Um ou outro indagava em comentários entre si, se a Dona Arminda não estava mergulhando num labirinto que lhe tirava a lucidez.

Quantos anos teria? Oitenta? Oitenta e cinco? Os cabelos brancos presos a um coque enroscado na nuca, os sapatos amarrados aos tornozelos, a saia e o blusão compridos, largos, envolvendo o seu corpo magro, não a faziam mais velha?

- Mãe diz que era pequena e ela já era moça feita - dizia Olegário, o sapateiro da esquina, confirmando que sua mãe já beirava os setenta anos.

Sabia-se que, quando enviuvara, se desfizera da casa do engenho Pasto Verde, nos arredores da cidade, para morar naquela rua com um filho - proprietário de uma loja de miudezas. Tinha-se conhecimento também de que possuía outros 6 filhos, que cedo haviam partido para a capital.

Certa vez, desaparecera alguns dias, sequer era vista à janela nas manhãs olhando a passagem dos estudantes em direção aos colégios. Estava doente. A esquina desprovida de sua presença, o sino parecendo tanger inutilmente causaram um impacto nos passantes e nos operários que se detinham à porta de Olegário em busca de notícias.

O sapateiro sentindo-se importante, conhecedor dos achaques de Dona Arminda informava cheio de detalhes:

- Já fui hoje à casa dela bem cedinho. Está melhorzinha. Há dois dias não tem febre. O médico diz que logo volta a andar.

- O que ela tem?

Olegário, o olhar alcançando a massa verde do canavial espalhado pelos morros titubeava:

- É... Bem... Coisas da idade.

Não queria demonstrar que pouco recolhia das informações fornecidas pela mocinha que trabalhava na casa de Dona Arminda.

Uma tarde, quando o retinir do sino desceu pelas ladeiras, Arminda ressurgiu no portão, abatida, as bochechas sugadas, os passos mais lentos que o costumeiro e galgou o trecho que a separava da esquina. Com naturalidade retirou o terço do bolso, fez o Sinal da Cruz e voltou a sussurrar as suas preces.

Naquele dia foi interrompida, não apenas pelos lapsos de seus dedos artríticos, mas também pelos cumprimentos dos operários e transeuntes que a saudavam satisfeitos. O seu retorno à esquina parecia devolver o equilíbrio à paisagem dos fins de tarde da rua.

- A saúde, está boa, Dona Arminda? Olegário aproximou-se.

Sem desviar os olhos da cruz, no alto da torre, ela respirou arfante.

- Menino, soube de sua preocupação com a minha saúde. Hoje rezo esse terço em sua intenção.

Olegário sorriu afastando-se e entrou na sapataria com uma estranha leveza ampliando-se no seu peito.

- Um terço em minha intenção - Pensava. E se valesse para ganhar na loto?

Alongou o olhar até a casa lotérica no outro lado da rua, fazendo das mãos figas e batendo três vezes no salto de madeira de um tamanco.

Arminda, sem nada perceber da cena, continuou murmurando suas preces, a saia de leve ondulando, mais parecendo um brinquedo da brisa da noitinha.

Numa madrugada, uma chuva desabou por sobre toda a cidade. Os ventos rodopiaram rudes arrancando os telhados de algumas casas, do Grupo Escolar Municipal e de algumas lojas no pátio do comércio.

Arminda acordou ouvindo o escorrer de duas ou três goteiras na sala contígua ao seu quarto, marcando o ritmo do tempo noite afora, mas logo adormeceu.

Pela manhã escutou a voz meio exaltada do filho comentando com a esposa:

- O estrago foi grande. Fiz uma ronda por aí.

A voz da nora chegou-lhe temerosa:

- Credo! Nunca ouvi falar numa calamidade dessa por aqui.

Ela sentou-se na cama expectante, as mãos ansiosas procurando o terço debaixo do travesseiro. Mas o filho dando continuidade ao comentário tranquilizou a sua aflição:

- Ainda bem que a nossa loja não sofreu danos.

Durante todo o dia uma chuva intermitente, fininha descia do alto sem nenhum vestígio de azul no céu, um mormaço asfixiando os moradores. À tardinha veio uma estiada, embora nuvens se arrastassem densas para o oeste.

Indiferente a isso, Arminda desceu os degraus de sua casa e encaminhou-se para a esquina, sentindo ser cada vez mais difícil vencer o percurso. Até parecia que a rua alongara-se de tão penoso que vinha sendo perfazer o trajeto.

Na esquina amiudou os olhos e buscou a torre com a sua cruz. Um relâmpago pisca-piscou longe e mais distante um trovão sinalizou a vinda de novas chuvas pesadas. Arminda, inquieta, apenas conseguiu divisar as molduras irregulares do casario.

Transcorreram alguns minutos e outro relâmpago riscou uma fita de luz das nuvens para o canavial.

Logo vieram outros relâmpagos e trovões começaram a abalroar-se rachando o espaço. A cada clarão ela aguçava a visão na esperança de divisar a cruz, mantendo-se ali extática, angustiada, o terço imóvel numa das mãos, os lábios contraídos.

A rua estava quase deserta, as casas contidas num recolhimento de portas e janelas fechadas. Alguns operários passavam apressados sem atentar para a sua presença.

A chuva começou a despencar. Ela, desperta pelo vento que arrastava folhas arrebatadas das árvores e pelo aguaceiro que lhe molhava o corpo, decidiu regressar. Num esforço, aproveitando o facho de mais um relâmpago, procurou a torre. Os óculos embaciados sequer lhe permitiram vislumbrar o casario.

Apoiando-se nas muretas e portões das casas, o vento e a chuva empurrando-lhe os passos, a saia e o blusão entranhando-se na alma, conseguiu voltar.

Ao chegar ao portão deparou-se com o filho vindo aflito a sua procura.

- A senhora não devia ter saído. Não sente a chuva? O vento? O médico disse que a pneumonia que teve...

Arminda não escutou. Atirou-se aos seus braços sussurrando trêmula:

- Piorei da visão. Não vi a torre da igreja.

O filho amparando-a na subida dos degraus, estreitando o abraço explicou:

- Não ouviu que o sino não badalou chamando os fiéis, mãe? Não tive coragem de lhe dizer. Esta madrugada durante o temporal a torre desabou.

Conto de Bartyra Soares retirado do livro Silêncio das Velas Vivas, Editora Novo Horizonte, Recife, 2008.

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

A menina, as formigas e o boi

Sempre gostei de olhar carreirinha de formiga. Seus movimentos. Suas constâncias. Acho que aprendia muito com elas, que formiga muito ensina. Aquele vaivém continuado, aquele poder. Suas cargas pesadas, todas coletivas, intencionadas. Carregos de coisas misteriosas, fanicos, indistintos. Elas sábias, instruídas, sagazes.

De menina, debruçava na terra, olhava. Acompanhava. Criava estorvos. Interditava. Cacos cheios d'água, depois dava ponte. Derrubava, elas nadando, emboladas. Salvava. Repunha. Malvadezas de criança. Vezes outras trazia agrados. Punhados de farinha grossa. Espalhava no carreirinho delas. Recolhiam grã-a-grã. Vassouravam, levavam tudo para sua casa subterra. Eu inventava coisas. Entrava com elas casa a dentro. Belezas. Jardim, mesas, cadeirinhas, redinhas. Crianças formigas balançando. Brincando de roda, cantando "Senhora dona Sancha". Eu com elas.

Em casa misturava essas coisas. Contava. Afirmava. Tinha entrado na casinha delas. Os vistos. Recontava. Jurava. Minhas irmãs gritavam: Mãiee... Aninha já évem com a inzonas dela... Vem vê ela... Mãe vinha altaneira. Ralhava forte. Me fazia calar. Tinha seus medos. Fosse tara. Um ramo de loucura, eu sendo filha de velho, doente. Meu Pai mortal quando nasci.

Eu era menina boba. Tinha medo da morte, ficar piticega, doente, feridenta, sendo filha de velho. Corria para minha bisavó. Ela era boa. Consolava. Todos viam me mim a velhice e doença de pai. Morreu quando eu nasci.

Eu era assim sardenta, diziam: cara de ovo de Tico-Tico... Chorava. Perna mole - caía à toa. Inzoneira... Não sabia o ser da palavra. Doía só eu. Minhas irmãs não, nenhuma era inzoneira, só eu.

Acreditava no capeta, tinha medo que entrasse no meu corpo. Acreditava - boneca de noite vira gente pequenina. Dão bailes, fazem suas festas, comidinhas, arrumavam suas casinhas. Levantava sutil, ia ver. Depois contava. Tinha visto coisas... Aí Dindinha teve dó de mim. Ralhou forte. Arrazoou - deixassem dessa conversa - filha de velho doente, me faziam parva...

Esse e outros temas de gente grande eu ouvia e fui guardando, fazendo segredo das bonecas, da minha ida constante à casa delas, da intimidade com as formigas. Situei um porãozinho dentro de mim escondido, maliciado.

Não falava mais. Escondia meus achados. Tia Joana veio um dia, me agradou, me deu um vintém, disse - coitadinha - órfã de Pai. Guardei a palavra. Eu era órfã de Pai... Tive dó de mim. Chorei escondido.

Nesse tempo descobri um ninho de fogo-pagou no galho da laranjeira. Morei tempo nele. No oculto. Batizei os filhotes. Dei nomes. Eu era madrinha. Meus compadres. Calada, disfarçada. Ia aprendendo as astúcias.

O quintal era grande. Meu mundo. Via o meu Anjo da guarda, ele me dava consolo, falava do céu, me protegia do capeta. Aprendi a rezar.

E foi que tinha ido as descobertas. Passei no carreirinho delas, reparei. Atravancado, dificultado. Perguntei: tinham achado um boi morto, só que faltava uma perna traseira. Deram conselhos... Mandantes. Escoteiras fossem a ré, procurar, trazer a perna. Estaria de certo lá...

O carreirinho varridinho de suas passagens constantes, baldeando coisas, cargas. Tropeiras, todas. Armocreves - gramática de minha bisavó, ela falava no antigo. Armocreves... guardei.

Agora então, dessa feita, era um boi. Elas todas azafamadas. Aquele povinho escuro, miúdo, incansável, se virando, arrastando, puxando, removendo. Empurra-empurra. Mutirão.

O achado. A caminho, de todo jeito. De arrasto. Carregado. Vai-que-vai... ia. Na ilharga as culatreiras. Vinha. Vinham prazenteiras, ligeiras, na rabadilha. Encontrada a perna.

O grosso estava na frente. Porção delas, festivas. A despensa abarrotada. Suas abastanças. Apareceram demais ajudantes. Avulsas, alvissareiras, esforçadas coletivas.

Mesmo força de formiguinha vale. Vontade decidida exemplar.

Aquele povinho inocente, esperto. Diligente, formigueiro. As estafetas, escoteiras na retaguarda. O achado... vinham vindo de vista, até cantavam seus alegres. Todas apressadas. Tivessem medo. Viessem os donos do boi, armassem briga, contenda, dessem guerra, desnutrição.

Na frente o magote trocando lugares, os pontos. A culatra. A perna separada do boi. Eu atento me exemplava. Aquilo. Aquela correição interessada de todas.

Foi indo e foi dando. Deu. Perdi o prazo das horas. Pensei ajudar. Botar na entrada. Desisti. Deixar tudo por conta de suas diligências. Ficar ali de fiscal curiosa no que se ia dar.

Mãe chamou lá em casa. Surdei. Mãe não tornou a chamar. De certo chegou visita.

O boi, a perna apartada do boi. Aquela província sortida, armazenada, afarturada, mesa cheia garantindo tempo bom.

E foi que chegaram à porta estreita, funil, engenharia, arquitetura delas. Aí, pensei, como vão entrar o boi... Parou o cortejo. Deram chamada. Vieram umas grandonas - modo de dizer - cabeçudas, arruivadas. Dentes, serras, serrotes, ferrão, mandíbulas. Sei... Deram de recortar. Mediram tamanho certo. Perna traseira, perna dianteira, a cabeça repicaram... Arredondaram a barriga. As menorzinhas influídas, puxando para dentro. Sumiam na fura suas cargas, partes recortadas. Armazenavam, entulhavam. Suas barriguinhas cheias, arrotando de certo.

Introduziram tudo. Deram jeito, astutas, diligentes formiguinhas. De comprido lá se foram as pernas. A culatra ovante.

Eu olhando, boba. Aprendendo, que formiga muito ensina. Mestras. Um boi para elas, povinho miúdo de Deus, diligente, influído, achado no carreador, particular delas.

Para mim, menina parva e obtusa, eu via - era um grilo.

Texto de Cora Coralina retirado do livro O Tesouro da Casa Velha, Global Editora, Seleção de Dalila Teles Veras, 1989.

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

As Formiguinhas

Marcinho perdeu aula na primeira semana. Estava no primeiro ano e a professora tinha dado avisos importantes. Um deles é que, às terças-feiras, a classe teria que levar as formiguinhas. E explicou que a formiguinha era um saquinho com alguns legumes, ovos ou verdura. Alguma coisa, para reforçar a merenda. As formigas trabalham juntas. Juntos, todos melhorariam a merenda escolar.

Terminada a aula da segunda-feira, na segunda semana, a professora avisou:

- Não vão se esquecer das formiguinhas! Amanhã é dia das formiguinhas da 1ª série C. Ouviram bem?

Marcinho levantou cedo no outro dia. Fez os exercícios, como a professora mandou. Depois, lembrou-se da formiguinha. Foi uma sorte o pai estar de férias. Tanto pediu que lá foram os dois com um vidro de remédio lavadinho, para procurar formiguinhas na horta. Quase desanimado, o pai tentava convencer o menino:

- Marcinho, leva formigas grandes mesmo. Vai ser difícil catar formiguinhas...

Marcinho teve uma ideia e foram para a cozinha colocá-la em prática. Despejaram mel na pia e deu resultado. Em poucos minutos, havia uma fila de formiguinhas, muito pequenas e espertas. O duro era apanhar as formiguinhas sem amassá-las. O pai queria que o menino levasse as formigas e o mel juntos. Poria mel no vidro e elas entrariam. Ele não quis. A professora não ia aceitar assim. Com muito jeito, o pai catou pedaços de algodão e foi apanhando as formiguinhas. Marcinho não queria algodão no vidro e foi um drama aceitar. O pai tentava convencê-lo:

- Deve ser pra estudar ciências. Todo cientista pega bichos com algodão, com medo de apanhar doenças...

- Mas isso só acontece com bicho que tem doença. Formiguinha é limpa. Só pode ter um pouco de doce...

- Então põe você. Eu não consigo.

Vendo que não conseguia pôr as formiguinhas vivas no vidro, Marcinho cedeu.

À tarde, Marcinho voltou da escola. O pai quis saber se as formiguinhas chegaram bem. Ele começou a chorar e não respondia. Demorou a dar explicação para tanto choro:

- Não quero ir mais pra aquela escola! Lá, a professora não fala as palavras direito. Formiguinha lá é coisa de comer.

Os pais não entenderam. E o menino explicou o que a diretora lhe disse, quando a professora mandou que ele conversasse com ela no gabinete. Ela explicou tudo. Depois começou a dar pito. A mãe quis saber o porquê, pois só aconteceu um engano à-toa.

Mas o pior foi o que ele falou, recomeçando o berreiro:

- Fizeram tanta gozação e a professora não fez nada. Só se eu tivesse sangue de barata pra não reagir... Quebrei o pau, gritei, xinguei, mas só estou chorando agora!...

- Tá certo, filho. Só se tivesse sangue de barata ou de formiguinha!

E rindo os três se abraçaram. Só que nunca mais se esqueceriam da luta que foi caçar as formiguinhas. E seria tão fácil abrir a geladeira e apanhar os legumes...

Conto de Elias José retirado do livro O Furta-Sonos e Outras Histórias, Atual Editora, 4ª Edição, 1991, Coleção Era Uma Vez.

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Exércitos e guerreiros: O espelho quebrado

Já se viu como há uma contradição aguda na própria base da hegemonia masculina falocrática. O fato de perseguir tão ansiosamente a virilidade leva os machos humanos a se juntarem de modo exclusivo e segregado, o que implica um movimento incontrolável em direção ao que mais os repugna: a submissão fálica. Dentro do simplismo da lógica falocrática, tal exclusividade de machos obriga a existência de alguns dominados por outros, quer dizer, alguns falos teriam que ser subjugados - arcando, portanto, com o ônus da passividade. Segundo esse raciocínio dicotômico, não há nada pior do que um homem subjugado, fronteiriço à situação humilhante da mulher, com prejuízo à sua dignidade viril. Em resumo, no próprio exercício de sua supremacia, o macho está embutindo o perigo de abalá-la pela invasão do perigo feminino, quer dizer, a submissão e, por extensão, a submissão sexual, velada ou não. Qual código de honra seria maleável o suficiente para equacionar essas duas situações opostas? Vejamos o caso dos exércitos. Organizados com base na disciplina hierárquica, supõem necessariamente uma submissão geral e escalonada. Nesse contexto paradoxal, é fácil perceber o clima instaurado de panela de pressão. Daí, pode-se facilmente compreender como os exércitos têm sido, historicamente, fulcros de máxima virilidade mas, ao mesmo tempo, redutos de homossexualidade sublimada no mais alto grau e às vezes até ideologizada. O uso de armas, por exemplo, conduz diretamente a inferências sadomasoquistas. E relações explosivas de poder são tão comuns quanto capim, dentro das tropas. Basta ver o tratamento dado pelos oficiais aos seus recrutas, em milhares de casos conhecidos que ultrapassam fronteiras nacionais - como já vimos no início deste trabalho. É claro que, frequentemente, nem os civis escapam, como ficou comprovado através das recentes filmagens feitas clandestinamente no Brasil, com registro visual de PMs humilhando, torturando e matando cidadãos comuns.

Existem inúmeros estudos analisando a existência e importância das relações homossexuais dentro dos exércitos, em muitas partes do mundo e em diferentes períodos da história. É preciso lembrar, antes de tudo, a clássica reflexão de Freud, que escreveu genericamente sobre a "estrutura libidinosa" do Exército, onde reina a ilusão de um chefe, figura do pai que ama a todos os seus soldados e de cujo amor emana a camaradagem que os congrega. Tal estrutura se repete dentro de cada companhia e unidade, com o capitão e os suboficiais representando o pai dos seus subordinados. O militarismo de tipo prussiano, segundo Freud, seria antipsicológico justamente por negar esse amor através da extrema dureza de tratamento a que são submetidos os soldados. Para ele, a negligência desse fator libidinal, dentro dos exércitos, constitui um perigo prático que leva às derrotas. A ruptura dos laços afetivo-libidinais aumenta a sensação de perigo, criando neuroses e estados de pânico entre os soldados, que se sentem anônimos e abandonados dentro da multidão guerreira.

Para além desse raciocínio freudiano abrangente e lógico, há exemplos históricos mais diretos. O amor masculino entre guerreiros e heróis existente em mitos e povos antigos repete-se demasiadamente para ser mera circunstância. Uma das razões para essa duplicidade masculina é a pressão psicológica das guerras, que aproxima intimamente o medo ao erotismo, gerando um amálgama de amor, desejo e extrema lealdade. Nas culturas de Esparta e Creta, a pederastia chegou a ser incentivada como "virtude militar", dentro da lógica de que pares de guerreiros amantes lutariam como heróis, para defender um ao outro. O famoso herói grego Epaminondas amou quase todo o batalhão sagrado de Tebas. Consta que, após o combate de Mantinea onde foi morto, dois belos soldados seus amantes suicidaram-se sobre o seu cadáver. Há uma explicação mítico-religiosa para isso. Na Grécia antiga, onde a relação homossexual era um costume militar, desenvolveu-se entre os guerreiros um culto especial a Eros, deus do amor. Em suas representações iconográficas, os dois deuses crianças Eros e Anteros (o Direito e o Reverso) apareciam envolvidos em lutas e abraços. Através dessa conexão mítica entre Eros (o Amor) e seu oposto (a Guerra), as campanhas militares vertiam-se como batalhas de amor. Não por acaso, a guerra implicava muito frequentemente o defloramento dos vencidos - praticado, por exemplo, entre os longobardos que invadiram o império romano. Esse erotismo de guerra adquiriu fixação mítica, transformando-se em cantos religiosos, insistentemente repetidos tanto nas barracas militares quanto nas prisões.

Entre os antigos celtas, organizados numa aristocrática sociedade guerreira, praticava-se amplamente o amor entre homens, sem manifestar qualquer menosprezo pela passividade masculina no ato sexual. Os guerreiros profissionais celtas, chamados gestates, lutavam nus por motivos metafísico-religiosos: acreditavam que assim seus corpos absorviam melhor as energias da natureza. O historiador Políbio narra o pânico que despertou entre os romanos a visão daquele exército inimigo de jovens alourados e de físico esplêndido, vestidos apenas por seus colares e braceletes de ouro. Nas sagas irlandesas ainda hoje encontram-se resquícios da afeição que ligava esses guerreiros entre si. Na Roma antiga, como já vimos, a prática normal da homossexualidade encontrava algumas restrições, inclusive contra os exoleti, ou seja, casais de homens de idade igual, vistos com maus olhos no contexto da vida social do período, que só permitia o amor masculino entre senhores e adolescentes. Consta que os exoleti eram muito comuns entre os soldados, mas as autoridades imperiais nunca tomaram medidas legais contra eles, já que o Exército romano era um mundo fechado. Na verdade, os imperadores se encontravam numa posição muito delicada, pois o conjunto do Exército praticava a religião oriental de Mitra, de tendência fortemente homoerótica. Reprimi-la iria significar, portanto, um confronto com aqueles mesmos homens capazes de fazer e desfazer imperadores. Tal situação perdurou em Roma mesmo depois que os cristãos tomaram o poder. Mas não por muito tempo, pois afinal o cristianismo herdara boa parte do ideário puritano do judaísmo. Entre os hebreus do Velho Testamento, praticantes de uma religião totalmente controladora, a vida sexual se resumia à estrita cópula homem-mulher, com fins procriativos, dentro do casamento. Para se ter uma ideia, era proibido ao homem até mesmo segurar seu próprio pênis enquanto urinava, provavelmente na tentativa de evitar tentações masturbatórias. O livro do Deuteronômio estipulava quantas vezes e quando os homens de diferentes profissões e castas deviam ter relações sexuais. Detalhe pitoresco: enquanto os condutores de camelo só podiam manter relações sexuais uma vez por mês, aos marinheiros só era permitido copular uma vez a cada seis meses - talvez por causa das viagens prolongadas que os afastavam das esposas. Submetidos a um regime de abstinência tão rigoroso, é de se perguntar se os marinheiros hebreus não encontravam nessa prescrição um forte pretexto para resolver entre si as premências sexuais - de modo que as relações homossexuais se consagravam a fortiori. Aliás, provavelmente por motivos semelhantes, as autoridades de Veneza, em 1420, reclamavam da proliferação de relações homossexuais nos seus navios e, temerosos da punição divina, ofereciam recompensa de 500 liras para quem denunciasse os marinheiros sodomitas.

Apesar do rigoroso controle cristão, conhecem-se muitos exemplos de homossexualidade nos exércitos, durante a Idade Média. A partir do século XI, as disputas dentro da aristocracia francesa e inglesa criaram grupos de jovens deserdados, que iam juntar-se em pequenos exércitos turbulentos, sem rumo, sequiosos de glória e novas conquistas. Alijados das normas morais familiares, eles eram, em geral, liderados por guerreiros mais velhos e experimentados, integrando-se em grupos ligados por amizade e lealdade. Vivia-se aí um prolongado período de iniciação, na busca de "prazer e aventura muitas vezes fora dos caminhos cristãos". Alguns desses bandos tornaram-se famosos, como a "família" de Hugh de Chester, em que se incluíam jovens cavaleiros, clérigos e cortesãos, que apreciavam "o sexo, os jogos, a equitação e outros vícios" - e muitas vezes foram instados por pregadores a "escapar da destruição de Sodoma". Sucessora desses pequenos exércitos, a famosa Ordem dos Templários, cavaleiros monásticos que participaram das cruzadas, foi perseguida e dizimada em toda a Europa, no século XIV, numa ação conjunta entre o poder secular e eclesiástico, sob acusação de heresia e prática generalizada da sodomia entre seus membros, inclusive durante rituais secretos de iniciação. O próprio emblema da Ordem, que representava dois templários montados no mesmo cavalo, chegou a ser visto como símbolo de suas práticas sodomíticas. Na França do século XVIII, a aristocracia estava repleta de efeminados que desfilavam ostensivamente com seus amantes, como era o caso de Felipe de Orleans, irmão de Luís XIV. Os gostos homossexuais eram partilhados por altas patentes do Exército. Assim, o general Louis Vendôme, considerado um dos grandes estrategistas do período, nunca escondeu suas inclinações sexuais por criados e oficiais subalternos, durante toda sua carreira. Era igualmente famoso o caso do marechal Huxelles, senhor da Alsácia, que absolutamente não desdenhava as orgias gregas promovidas por alguns membros do seu estado-maior e de seu séquito.

No mesmo período, fora do Ocidente, há o caso célebre dos exércitos de samurais, onde se estimulava igualmente a relação de casais como emulação fraterna, considerando que "o amor entre homens combina muito bem com o Caminho do Guerreiro", segundo afirmava o Hagakure, livro de ensinamentos éticos, escritos entre os séculos XVII e XVIII. A prática, que lembrava o modelo grego, chamava-se shudo, uma abreviação de wakashu-do ou "caminho do jovem", significando o aprendizado do rapaz para ser forte, corajoso e independente. Para tanto, o jovem samurai era amado por um guerreiro mais velho, até completar sua maioridade, podendo depois arranjar ele próprio um wakashu e também casar-se para constituir família. O jovem acompanhava seu mestre lado a lado, nas batalhas, para aprender com ele as técnicas de luta e os códigos de honra. Também é curioso como os samurais prezavam muito sua aparência. O livro de etiquetas aconselhava que usasse ruge, quando se sentissem muito pálidos. Na era do sengoku (guerras interprovinciais nos séculos XV e XVI), eles costumavam perfumar os cabelos com incenso e se maquiar, antes de ir para a batalha: um verdadeiro guerreiro não devia ter má aparência mesmo na morte.

Na Europa da virada do século XX, causaram sensação os "casos" amorosos envolvendo altas patentes do Exército alemão e o próprio imperador Guilherme II, motivo de inúmeras piadas maldosas nos jornais. Isso para não falar do rumoroso assassinato, em 1934, do general nazista Ernst Röhm e outros membros do estado-maior das SA, na chamada Noite das Facas Longas. Suas práticas homossexuais, nada discretas, eram bastante conhecidas por Hitler, mas só foram publicamente denunciadas quando interessou ao seu poder centralizador, ameaçado pelas interferências de Röhm. A partir daí, aliás, o famoso Parágrafo 175 do Código Penal, que criminalizava atos homossexuais, transformou-se em "lei de proteção ao sangue e à honra alemães" e passou a ser severamente utilizado. A Gestapo criou então uma subdivisão especial para prender os "degenerados sexuais", que acabavam enviados para campos de concentração de nível 3 (sem retorno), aí sendo identificados com um triângulo rosa nas roupas. Em 1942, o regime nazista imputou formalmente a pena de morte ao crime de homossexualidade, com especial rigor dentro das forças armadas, onde se recomendava a morte imediata dos faltosos. Com certeza, o nazismo tentava exorcizar cada vez mais a sua sombra: Hitler pessoalmente achava que a verdadeira causa da decadência da Grécia antiga tinha sido a homossexualidade. Enquanto isso, as atitudes na própria União Soviética revolucionária passaram da tolerância ao expurgo, à medida que o país se militarizava. Em 1934, Stalin impôs uma nova lei, que punia com até oito anos de prisão os atos homossexuais, por "crime social". Num artigo sobre o humanismo proletário, Máximo Gorki escrevia: "Nos países fascistas, a homossexualidade arruína a juventude e floresce sem punição. Suprima-se o homossexual e o fascismo desaparecerá." Estava inaugurado, então, um raciocínio que a esquerda mais reacionária passaria a repetir com insistência, daí por diante: a homossexualidade era "sintoma de decadência burguesa". Em várias cidades da União Soviética, seguiram-se prisões em massa de homossexuais, que foram enviados para a Sibéria. Consta que o clima de pânico atingiu sobremaneira o Exército Vermelho, onde reportou-se a ocorrência de numerosos suicídios.

A Marinha inglesa, por sua vez, sempre respondeu com muita severidade aos casos de pederastia, especialmente nos períodos de guerra, acreditando que tais práticas destruiriam o espírito agressivo das tropas. Assim, pesquisas mostram que entre 1756-1806 houve 19 execuções de marinheiros, por praticar o chamado "pecado inominável", tendo subido para 21 o número de executados entre 1810-1816. O espírito de animosidade parece ter continuado, a considerar as recentes declarações públicas de um alto comandante da Aeronáutica inglesa de que sentia aversão por seus colegas bichas. De fato, entre 1991 e 1994, as forças armadas britânicas expulsaram 260 pessoas, de todas as patentes, envolvidas em casos homossexuais - só no Exército, havia quatro majores, dois capitães e 113 tenentes. Reação semelhante sempre ocorreu nas forças armadas americanas, que puniam severamente o sexo entre homens, considerando os homossexuais como "psicopatas sexuais". Em 1919, ocorreu um caso peculiar e de resultados muito significativos: na Base Naval de Treinamento, em Rhode Island, foi criado um pelotão para perseguir militares suspeitos de "perversão sexual". O curioso é que o pelotão chamariz foi escolhido a dedo, entre os jovens alistados, para fazer sexo com os suspeitos e apresentar provas concretas diante dos superiores. Para surpresa de todos, os relatórios dos chamarizes indicaram uma vasta rede de encontros clandestinos, que incriminava militares insuspeitos e até casados, em lugares tão inocentes como a Associação Cristã de Moços (A.C.M.) da cidade de Newport, centro de verdadeiras orgias, envolvendo também civis, mas comandadas por marinheiros travestidos. Quando a Marinha tentou indiciar os culpados, não conseguiu distinguir quem era homossexual e quem era "normal" - mesmo porque um dos relatórios indicava um "normal" como tendo feito sexo oral com quase todos os 20 recrutas, numa só noite. Para complicar ainda mais, o tribunal militar comprovou, com surpresa, que os rapazes do pelotão chamariz tinham participado intensamente em todos os tipos de atos sexuais com homens, comprovando nos interrogatórios que eles tinham sentido prazer e até solicitado sexo espontaneamente com colegas. Quando um padre foi preso na rede e levado a julgamento, a Igreja Católica ameaçou fazer escândalo e acusou a Marinha de estar usando métodos imorais, por ensinar o vício a jovens inocentes. No ano seguinte, os militares foram obrigados a libertar os "culpados" e suspenderam os inquéritos, acuados ante um fenômeno sem solução. Ainda assim, em 1921 a Marinha condenou, num caso isolado, um recruta homossexual a 15 anos de trabalhos forçados, além de pagamento de multa e expulsão desonrosa. Nas décadas de 20 e 30, tanto o Exército quanto a Marinha dos EUA mandaram inúmeros homossexuais para a prisão. Na Prisão Naval de Portsmouth, em New Hampshire, mais de 40% dos presos eram condenados por sodomia ou felação. Como a segregação não resolvia o problema, a paranoia cresceu tanto que no forte Leavenworth, em Kansas, introduziu-se o costume de punir os acusados de homossexualismo, obrigando-os a usar um enorme D amarelo das costas - significando "degenerado". O  embate de forças desejantes parece ter continuado. Em 1944, dois militares (amantes) pegaram um ano de prisão em corte marcial, por publicarem um jornal gay chamado Myrtle Beach Bitch. O trocadilho implicado no nome revela o sentido claro de provocação - A puta da Praia Mytle. Era para não deixar nenhuma dúvida. As recentes polêmicas sobre a participação de homossexuais nas forças armadas americanas mostram que o problema continua candente, emudecendo as promessas políticas de abertura feitas nas campanhas do então candidato presidencial Bill Clinton.

Mas há mudanças ocorrendo em outros países. Nas forças armadas holandesas, os arquivos da justiça militar (pesquisados pelo antropólogo Gert Hekma) mostram que, entre 1830 e 1899, dos 104 processos movidos por crimes sexuais, 72 indicavam transgressão homossexual, com punições que variavam de três meses a seis anos de prisão, sem falar do rebaixamento hierárquico (a pena de morte tinha sido abolida desde 1811). Claro que os dados estatísticos apontados fornecem uma pálida ideia da prática homossexual, já que se conhece apenas o que foi descoberto e julgado. Além do mais, tendia-se a notificar sobretudo aqueles faltosos reincidentes que tinham manchado sua virilidade ao ocupar a "posição de mulher", ao passo que o papel ativo na relação homossexual não era considerado transgressor pelos militares holandeses. Mais ainda: devia-se evitar até mesmo nomear a sodomia (por isso chamada "crime inominável"), muitas vezes indicada apenas como "lascívia" ou "postura asquerosa". Isso dificultava ainda mais qualquer indiciamento judicial. Com todas as repressões impostas, pode-se inferir que grande parte da prática homossexual entre os soldados e marinheiros efetuava-se como contatos efêmeros e ocultos, ainda que repetidos, tendendo portanto a passar despercebidos pelos superiores. Na verdade, era mais cômodo para todos que ninguém desse maior importância a essa transgressão desde que não fosse muito aberta nem subvertesse o "padrão de gênero" viril. Dentro da Marinha, conhecem-se casos de julgamentos ocorridos na Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, entre 1705-1792, período em que foram julgados 200 casos de sodomia, diante da corte de justiça da Cidade do Cabo. Um oficial marinheiro, desligado por suspeita de prática homossexual, no final do século XIX, teve a história de sua vida publicada numa das primeiras revistas psiquiátricas do período, na Holanda. Aí ele se classifica como "uraniano", termo médico então comumente usado como sinônimo de homossexual. Ele conta que, em dois anos e meio na Indonésia, tinha feito sexo com 51 nativos e, durante um ano dentro de um navio, relacionara-se sexualmente com 30 marinheiros europeus, muitos deles repetidamente; nos três meses seguintes, serviu numa base naval perto de Roterdã, onde mantivera relações sexuais com outros seis marinheiros. Só esse relato já dá uma ideia de como a prática homossexual estava difundida na Marinha. Isso parecia, aliás, sobejamente conhecido pela medicina: em discussões ocorridas no período, sobre a legalização da prostituição feminina na Holanda, um médico que servira a bordo de navios militares alertava que a presença dessas mulheres evitaria o exemplo de "milhares (de homens) que secretamente satisfazem a si mesmos na solidão ou com alguém do mesmo sexo". Atualmente, as coisas são com certeza bem diferentes na Holanda, onde é possível encontrar nas ruas policiais de brinquinho na orelha. E mais: o Exército não apenas aceita homossexuais declarados como mantém uma espécie de sindicato organizado por eles. Num país tolerante como esse, a ideia é que todos os segmentos devem estar representados nas instituições mais importantes, para assim refletir com fidelidade o tecido social.

Convém observar que se está aí num terreno movediço. Se a relação entre eros (amor) e tânatos (morte) é uma vivência quotidiana do humano, os exércitos constituem um campo privilegiado para esse encontro. Entre os seres humanos, aqueles profissionais preparados para a mortandade indiscriminada das guerras encontram-se, obrigatoriamente, mais próximos ao mundo de tânatos. Estranho é que as paranoias masculinas falocráticas não enxergam a lógica de tal corolário, tratado como resultado de oposições inconciliáveis. Georges Bataille relevava a conexão erótico-tanática ao lembrar que foi a consciência clara da morte que levou os homens da era Paleolítica a pintar tantos falos em suas cavernas, numa espécie de convergência de duas verdades básicas. Inicialmente, erotismo e morte parecem opostos, porque o desejo é resultado da vida e a vivência erótica é o ápice da afirmação vital. Desde os primórdios, foi o conhecimento da morte que deu corpo ao erotismo, diferindo os homens pré-históricos dos animais. Mas também é verdade que a perspectiva permanente da morte nos leva à violência exasperada e quase desesperada do erotismo. Não por acaso, o orgasmo é chamado de "pequena-morte", entre os franceses. A ruptura tanática confina com a explosão erótica porque "a desordem sexual (...) nos transtorna, às vezes nos devasta (...) e nos compromete na violência do abraço". Para Bataille, ocorre o oposto da união quando dois seres se encontram sexualmente: ambos partilham "um estado de crise em que tanto um quanto outro estão fora de si", dominados pela violência. Assim, no espelho erigido de tânatos, tal como ocorre dentro dos exércitos, fatalmente estará refletida a face de eros. Quebrar o espelho da morte para refrear eros denuncia ainda mais o paradoxo embutido no fascínio amoroso que a morte exerce sobre todos nós. O espelho rompido é, certamente, a melhor maneira de reforçar, pelo recalque, a presença dominadora de eros no universo tanático dos exércitos.

Capítulo 15 do livro Seis Balas Num Buraco Só - a crise do masculino, de João Silvério Trevisan, Editora Record, 1998, Coleção Contraluz.

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

O Rei dos Clones

Em um futuro próximo,
seres humanos são criados em série
como mão-de-obra robotizada

Em 2050 a clonagem humana já havia se tornado rotina.Superados os problemas técnicos e apesar das restrições éticas, feitas sobretudo pelas ONGs, o procedimento já não chamava a atenção. Mas, como sempre acontece com tais inovações, surgiram situações absolutamente inesperadas, criadas por personagens singulares.

Max Kluskin, conhecido como "O rei dos clones", era um destes. Europeu sem nacionalidade definida - o que pouco importava, num mundo completamente globalizado -, era considerado um dos maiores experts em clonagem. Iniciara sua carreira como pesquisador; um dia, porém, cansado de ser pobre (palavras dele), decidira usar seus conhecimentos para ganhar dinheiro. Como? Industrializando a produção de clones. No que estava, aliás, atendendo a uma oculta demanda. Apesar da igualdade entre povos e pessoas, a exploração ainda estava em certas regiões, não necessariamente as mais pobres. Ricaços queriam, para as suas mansões, dezenas de criados e criadas. Misteriosas empresas empregavam mão-de-obra com fins nebulosos. Chefes locais queriam mercenários.

Kluskin, que não era exatamente um defensor dos direitos humanos, logo se deu conta de que estava diante de uma potencial mina de ouro. Resolveu aproveitar a oportunidade. Abriu o seu próprio laboratório e começou a produzir clones sob encomenda.

Além de dominar perfeitamente a técnica da clonagem, Kluskin havia introduzido uma revolucionária modificação no processo: mediante certos genes e derivados hormonais, acelerava o crescimento celular e o desenvolvimento orgânico com tal rapidez que, em poucos dias - às vezes em horas -, um embrião transformava-se num ser completo. Ou seja: feito o pedido, ele rapidamente podia entregar aos solicitantes clones jovens ou adultos.

O empreendimento se expandiu extraordinariamente. Em breve, Kluskin tinha sob seu comando dezenas de técnicas e auxiliares. E aí começou a refinar a técnica, atendendo a pedidos especiais. Olhos azuis? Sem problema. Pernas compridas, para um futuro atleta? Fácil, muito fácil. Cérebro orientado para a ciência? Claro, é só pedir. E havia também clones especialmente desenhados para certas ocupações. Mordomos, por exemplo: clones de fisionomia circunspecta, disposição para o trabalho caseiro, fidelidade. Seguranças: jovens de grande força física, capazes de correr qualquer risco. Secretárias: moças bonitas e inteligentes. O departamento de marketing da empresa exibia, na internet holográfica, clones para as diferentes funções: "Alô, eu sou Órion, o seu massagista. Minhas mãos foram especialmente desenhadas para o trabalho que eu vou exercer, como seu corpo poderá constatar. Tenha-me a seu serviço e você não se arrependerá".

A notícia se espalhou. Algumas pessoas ficaram, claro, encantadas; mas a opinião pública reagiu com surpresa e até indignação. Organizações formaram-se no mundo todo para lutar contra o que era chamado de "linha de montagem humana". Intelectuais, médicos e educadores assinaram uma petição exigindo o fim das atividades de Kluskin. O caso foi parar no Corte Mundial. A defesa de Kluskin estava a cargo de 12 dos mais hábeis advogados do mundo. Seus sofismas resultaram inúteis. Os juízes deram a sentença: em nenhum lugar da Terra Kluskin poderia fabricar seus clones. Parecia o término da carreira daquele a quem muitos rotulavam de cientista louco. Mas Kluskin era, antes de mais nada, muito esperto. Reuniu todos os seus assessores para dizer que continuaria, sim, produzindo clones.

- Mas como? - indagou o chefe do laboratório, surpreso. - Nenhum lugar na Terra nos receberá.

Kluskin, um homem baixo, gordo, calvo, olhos frios e astutos, sorriu, irônico:

- Você o disse: nenhum lugar na Terra. Mas e fora da Terra? Se estivermos no espaço sideral?

E aí revelou o seu plano.

Já há algum tempo, prevendo uma possível complicação, tinha adquirido uma enorme estação espacial, ainda em órbita, porém desativada. O que, do ponto de vista legal, era a solução perfeita. Estações espaciais não eram consideradas parte do planeta; a elas não se aplicava, portanto, a legislação terrena. E não haveria maiores inconvenientes: teriam espaço para instalar o laboratório, além de alojamento para todos os colaboradores. E haveria também um sistema de transporte entre a estação e a sede na Terra.

- Vocês decerto ouviram falar daquilo que, no começo do século, era chamado de paraíso fiscal: um lugar para onde o capital migrava, ficando fora do alcance das autoridades. Pois bem, nós vamos ter o primeiro paraíso da clonagem. E conto com a colaboração de vocês para isso.

Fechou a cara:

- Mas quem não estiver de acordo, pode sair. Já.

Kluskin era assim, implacável. Quem não estava com ele, estava contra ele. E ai de quem estivesse contra. Circulava uma história, nos meios ligados à clonagem, de que, no início de sua carreira, ele tivera como rival um talentoso cientista. Esse homem subitamente desaparecera. Também se dizia que Kluskin tinha, escondido, um clone encarregado do serviço sujo: um homem ainda jovem, com descomunal força física, programado para liquidar pessoas. Essa era apenas uma das lendas que contavam sobre ele.

Ninguém se levantou. Kluskin sorriu.

- Muito bem. Já tenho pronto o cronograma de mudança. Em um mês estaremos na estação espacial.

O cronograma foi cumprido à risca e, em um mês, a estação, chamada Paraíso I, estava em funcionamento. Era uma estrutura com mais de um quilômetro de comprimento por outro de largura, capaz de albergar centenas de pessoas. Naves espaciais levaram Kluskin e sua equipe até a Paraíso I. Sua partida foi comemorada pelas ONGs que o hostilizavam. A nova escravidão acabou antes mesmo de começar, diziam todos.

Estavam enganados, naturalmente. Em breve a clonagem estaria funcionando a todo vapor. Mais que isso, demandas chegavam continuamente, pelos numerosos agentes que Kluskin espalhara pelo globo. Eles sabiam como chegar a potenciais clientes. Apesar dos preços agora mais elevados, os pedidos eram constantes. O Rei dos Clones vencera.


Uma Pequena Falha

Isso, pelo menos, era o que ele pensava: afinal, um plano tão bem elaborado só podia dar certo.

Mas nesse plano havia uma falha: PQ-37.

PQ-37 era o meu nome. E quem era eu? Um jovem e vigoroso clone. Como todos os clones de Kluskin, não tinha nome, e sim um código. Eu fora criado para trabalhar na indústria de computação. Meu cérebro, devidamente programado, era o equivalente biológico de um computador. Eu não deveria pensar em nada, não deveria sentir afeto algum. E de fato passava os dias imóvel, aguardando o momento em que seria remetido a meu futuro proprietário, na Terra. Desse período, aliás, lembro pouco. Minha memória para o cotidiano era muito restrita.

Mas aí algo começou a acontecer. Quando dei por mim, estava pensando. Não em computação; em outras coisas. E pensar, para mim, era uma coisa nova e perturbadora. Vocês talvez não acreditem nisso, porque estão acostumados a pensar; mas para mim era quase uma aventura, e chegava a assustar.

O que tinha havido? Por que eu estava pensando? Dei-me conta de que só poderia ser por um erro genético. Kluskin cometera um engano. Regiões de meu cérebro que deveriam ficar inativadas agora davam sinais de vida; como se eu estivesse saindo de um coma. E, de fato, estava entrando na realidade. Uma realidade que me parecia estranha. Sentado, como sempre, no compartimento dos clones (havia ali uns 40 deles), eu já não permanecia apático; observava os técnicos, ouvia o que falavam. E o que eles falavam - sem se dar conta de que agora um dos clones podia pensar no que diziam - estava sendo muito revelador. Percebi que eu não passava de um produto prestes a sair da linha de montagem de Max Kluskin.

Que raramente aparecia. Quase sempre ficava fechado em seu gabinete, dando ordens ou falando com clientes pelo seu sofisticadíssimo sistema de telecomunicações. Dali, ele decidiria o meu futuro.

Aos poucos, uma imensa revolta foi nascendo em mim. Revolta combinada com amargura: dava-me conta de minha triste situação, mas sentia-me impotente diante do inexorável futuro. Amaldiçoava-me pelo defeito de programação cerebral que me permitia tomar consciência da situação - mas não mudá-la.

Mas será mesmo que eu não podia fazer nada?

Talvez pudesse. Talvez pudesse fazer alguma coisa. Havia, pelo menos, um alvo: Kluskin.

Ele era a chave de tudo. Todos ali obedeciam cegamente ao seu comando. Sem Kluskin, a fabricação de clones chegaria ao fim. Mais do que isso: sem Kluskin, os clones poderiam ser libertados, e, mais importante, transformados - pela engenharia genética, ou por um processo de reeducação - em seres humanos normais. O meu caso, aliás: eu estava a caminho da normalidade, ainda que fosse dolorosa.

Mas o que fazer? Matar Kluskin? Sequestrá-lo? Isso era uma coisa que me repugnava, a violência. Além disso, seria missão impossível: o home era sempre acompanhado de um guarda-costas, um clone fortíssimo, produzido para protegê-lo.

Não. Eu tinha de pensar em outra coisa. Em quê? Nada me ocorria, e isso era desesperador, sobretudo porque o tempo era pouco; das conversas que ouvia, depreendi que todos os clones estavam sendo negociados com um poderoso empresário da Terra. Breve seríamos vendidos. O que, para mim, talvez fosse uma oportunidade para a fuga. Mas e meus companheiros? Quem os libertaria? E Kluskin, ficaria impune?

E então, olhando para meus companheiros de compartimento, uma ideia brotou-me na mente, uma ideia que parecia fantástica, mas que talvez fosse uma solução: um clone de Kluskin. Um clone igual a ele, capaz de assumir o comando da estação.

Naquela noite, enquanto todos dormiam, esgueirei-me até o laboratório de clonagem. Ali estavam todos os manuais de procedimentos. Graças a meu cérebro fantástico, rapidamente assimilei toda aquela tecnologia; em horas, estava pronto para fabricar um clone. Só precisava era de uma minúscula amostra dos tecidos de Kluskin. Como consegui-la?

O acaso ajudou. No dia seguinte, o próprio Kluskin apareceu no compartimento, para uma inspeção. Foi passando pelos clones, todos imóveis. Eu aguardava, o coração batendo forte. Quando o homem passou por mim, num gesto rápido e aparentemente sem propósito, arranhei-lhe o braço.

- Que diabo é isso? - gritou Kluskin. E virando-se para um assessor, ordenou: - Esse clone vai ser despachado depois de amanhã. Antes disso, vamos fazer uma revisão nele. Era só o que faltava, ter aborrecimentos com o cliente.

E saiu. Mal pude conter um sorriso. Em minhas unhas, estava aquilo de que precisava: algumas células do poderosos Kluskin.

Não podia perder tempo. Mal anoiteceu, fui para o laboratório e me pus a trabalhar afanosamente. Coloquei as células na câmara adequada e a programei para operar na maior velocidade. Deu certo: em poucas horas, surgiu o novo Kluskin, igual ao anterior. Nasceu nu, naturalmente. Felizmente, os técnicos haviam deixado uma vestimenta espacial, igual à que todos usavam na estação, inclusive Kluskin.

Expliquei ao novo clone - que surgia para a vida atordoado, mas dócil, disposto - o que tinha de fazer. Correndo pelos corredores, na semiobscuridade, chegamos aos aposentos do chefe. De novo, tivemos sorte: o guarda-costas estava ali sentado, profundamente adormecido. Entramos subrepticiamente. Kluskin estava deitado, dormindo. Nós o agarramos e, antes que pudesse esboçar qualquer reação, injetei-lhe um poderoso sonífero, tirado da farmácia de bordo. Em poucos segundos ele jazia inerte, completamente dopado. Sempre com a ajuda do clone, coloquei-o embaixo da cama. O clone ficou ali - no lugar de Kluskin - e eu voltei ao compartimento.

De manhã, os alto-falantes convocaram todos os membros da equipe, e mais os clones, para uma reunião de emergência no salão principal. Fui para lá. A perplexidade era geral. o que estaria acontecendo?

E aí então apareceu Kluskin, o falso Kluskin:

- Houve uma mudança de planos - disse, seco. - Estamos voltando para a Terra. Imediatamente.

A surpresa foi geral. Mas ordens de Max Kluskin não podiam ser discutidas. Em poucas horas estávamos a bordo da nave que tinha chegado da Terra no dia anterior. Quando chegamos ao destino, kluskin - o falso Kluskin - anunciou que estava abandonando a produção de clones. Cada um deveria seguir seu próprio caminho.

Com o auxílio da ONG "Liberdade para os clones", consegui ajuda para os meus ex-companheiros de cativeiro. Com o tempo, todos foram recuperados e se tornaram seres humanos normais.

Kluskin continua a bordo da estação espacial, que tem víveres para muitos anos. Ele poderá voltar quando quiser, naturalmente, mas pelo jeito não pretende fazê-lo. Talvez tenha outros planos. Um paraíso fiscal no espaço, quem sabe.

Conto de Moacyr Scliar publicado na Revista Galileu de Outubro de 2011, Ano 11, nº 123. Editora Globo.

domingo, 23 de agosto de 2020

Passagem Para Pasárgada

O cara chega na estação rodoviária, dirige-se ao guichê de uma empresa:

- Me dá aí uma passagem.

- Pra onde?

- Pra Pasárgada. Vou-me embora pra Pasárgada.

- Sinto muito, fazemos linha somente no interior paulista. Não serve Botucatu?

- Não. Tem que ser pra Pasárgada.

- Então tente outra empresa. Quem sabe s São Jorge...?!

Tentou. Ao chegar no guichê da viação São Jorge, perguntou:

- Tem passagem pra Pasárgada?

- Pasárgada..., Pasárgada..., fica no estado de Goiás?

- Não sei, pode ficar...

- Peraí um pouquinho, tá?

O funcionário da empresa grita para o seu colega de trabalho:

- Ô João, Pasárgada fica em Goiás?

- Não, que eu saiba não.

O funcionário volta-se para o homem:

- Infelizmente não. Talvez fique no Mato Grosso do Sul. Tá vendo aquela empresa ali?

- Tô.

- Pode ser que...

O homem vai até lá. Espera alguns minutos na fila e finalmente:

- Pasárgada fica no Mato Grosso do Sul?

- Não. Ouvi dizer que é no Maranhão, pertinho de São Luís.

- Obrigado.

O homem dirige-se a uma empresa nordestina:

- Quero uma passagem pra Pasárgada.

- Tá maluco? Pasárgada fica perto de Sabará, Minas Gerais. A empresa Tiradentes é quem faz essa linha. Esta empresa só vai para o Nordeste.

Caminhou meio desanimado para a viação Tiradentes:

- O funcionário da empresa Padre Cícero me informou que Pasárgada fica próxima a Sabará. Me dá aí uma passagem.

- Ele deve ter-se enganado, meu senhor. Pasárgada é uma cidade paraense. Um amigo meu até já foi pra lá!

- Então quero uma passagem pro Pará.

- O senhor dirija-se àquela empresa ali. Nossos ônibus só vão até Minas Gerais.

Já cansado de tanto andar pela rodoviária, o homem não se deixa desanimar por completo:

- Quero uma passagem pro Pará.

- Belém?

- Não. Pasárgada.

- Pasárgada? Tem certeza?

- Tenho. Fui informado que Pasárgada fica no interior paraense.

- Não fica não. Há vinte anos que trabalho nesta empresa e nunca vendi uma passagem pra essa tal de Pasárgada. O senhor não confundiu Pará com Paraná?

- Pode ser... mas, o senhor tem certeza que não é no Pará?

- Tenho. Garanto pro senhor.

E qual é a empresa que vai pro Paraná?

- É aquela ali, tá vendo?

- Tô. Obrigado.

Quase sem voz o homem sussurra ao ouvido do vendedor:

- Quanto custa a passagem pra Pasárgada?

- Pasárgada fica no Brasil?

- Acho que fica.

- Se fica, pode ter certeza que não se encontra no Paraná! Que tal conhecer Foz do Iguaçu? Já viu as cataratas de perto?

- Obrigado, já conheço. Eu quero mesmo é ir pra Pasárgada.

Depois de percorrer todas as empresas, caminhou para a saída da rodoviária, mas reparou que não havia perguntado para aquela escondidinha ali no canto:

- Viação Sonhos do Poeta, às suas ordens.

- Quero ir pra Pasárgada, tem passagem?

- Sinto desapontá-lo, mas a empresa fechou essa linha.

- Por quê?

- Não deu lucro.

- Ué, eu ouvi dizer tanta coisa bonita sobre lá.

- Sim é verdade. Mas faz tempo que trabalho aqui e uma só pessoa foi para lá, por isso resolveram fechar.

- E quem foi?

- Um minutinho, deixa verificar no registro. Pasárgada..., Pasárgada..., tá aqui! Foi um tal de Bandeira, Manuel Bandeira. O senhor conhece?

- É, já ouvi falar, dizem até que ele era amigo do rei...

Conto de Alexandre Azevedo retirado do livro Que Azar, Godofredo! Atual Editora, 13ª Edição, 1998, Série Transas e Tramas.

sábado, 22 de agosto de 2020

Caminhos do Coração

Multiplicam-se os caminhos do processo evolutivo, especialmente durante a marcha que se faz no invólucro carnal.

Há caminhos atapetados de facilidades, que conduzem a profundos abismos do sentimento.

Apresentam-se caminhos ásperos, coalhados de pedrouços que ferem, na forma de vícios e derrocadas morais escravizadores.

Abrem-se, atraentes, caminhos de vaidade, levando a situações vexatórias, cujo recuo se torna difícil.

Repontam caminhos de angústia, marcados por desencantos e aflições desnecessárias, que percorrem com loucura irrefreável.

Desdobram-se caminhos de volúpias culturais, que intoxicam a alma de soberba, exilando-a para as regiões da indiferença pelas dores alheias.

Aparecem caminhos de irresponsabilidade, repletos de soluções fáceis para os problemas gerados ao longo do tempo.

Caminhos e caminhantes!

Existem caminhos de boa aparência, que disfarçam dificuldades de acesso e encobrem feridas graves no percurso.

Caminhos curtos e longos, retos e curvos, de ascensão e descida, estão por toda parte, especialmente no campo moral, aguardando ser escolhidos.

Todos eles conduzem a algum lugar, ou se interrompem, ou não levam a parte alguma... São apenas, caminhos: começados, interrompidos, concluídos...

Tens o direito de escolher o teu caminho, aquele que deves seguir.

Ao fazê-lo, repassa pela mente os objetivos que persegues, os recursos que se encontram à tua disposição íntima, assinalando o estado evolutivo, a fim de teres condição de seguir.

Se possível, opta pelos caminhos do coração.

Eles, certamente, levarão os teus anseios e a tua vida ao ponto de luz que brilha à frente, esperando por ti.

O homem estremunha-se entre os condicionamentos do medo, da ambição, da prepotência e da segurança que raramente discerne com correção.

O medo domina-lhe as paisagens íntimas, impedindo-lhe o crescimento, o avanço, retendo-o em situação lamentável, embora todas as possibilidades que lhe sorriem esperança.

A ambição alucina-o, impulsionando-o para assumir compromissos perturbadores que o intoxicam de vapores venenosos decorrentes da exagerada ganância.

A prepotência anestesia-lhe os sentimentos, enquanto lhe exacerba as paixões inferiores, tornando-o infeliz, na desenfreada situação a que se entrega.

A liberdade a que se aspira, propõe-lhe licenças que se permite sem respeito aos direitos alheios nem observância dos deveres para com o próximo e a vida, destruindo qualquer possibilidade de segurança, que, aliás, é sempre relativa enquanto se transita na veste física.

Os caminhos do coração se encontram, porém, enriquecidos da coragem, que se vitaliza com a esperança do bem, da humildade, que reconhece a própria fragilidade e satisfaz-se com os dons do espírito - ao invés do tresvariado desejo de amealhar coisas de secundária importância - os serviços enobrecedores e a paz, que são a verdadeira segurança em relação às metas a conquistar.

Os caminhos do coração encontram-se iluminados pelo conhecimento da razão, que lhes clareia o leito, facilitando o percurso.

Jesus escolheu os caminhos do coração para acercar-se das criaturas e chamá-las ao Reino dos Céus.

Francisco de Assis seguiu-Lhe o exemplo e tornou-se o herói da humildade.

Vicente de Paulo optou por eles e fez-se o campeão da caridade.

Gandhi redescobriu-os e comoveu o mundo, revelando-se como o apóstolo da não violência.

Incontáveis criaturas, nos mais diversos períodos da Humanidade e mesmo hoje, identificaram esses caminhos do coração e avançam com alegria na direção da plenitude espiritual.

Diante dos variados caminhos que se desdobram convidativos, escolhe os caminhos do coração, qual ovelha mansa, e deixa que o Bom Pastor te conduza ao aprisco pelo qual anelas.

Texto retirado do livro Momentos de Felicidade. Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, 5ª Edição, 2014.

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

A Lua

Nem luz, nem luar. O céu e as ruas permaneciam escuros, prejudicando, de certo modo, os meus desígnios. Sólida, porém, era a minha paciência e eu nada fazia senão vigiar os passos de Cris. Todas as noites, após o jantar, esperava-o encostado ao muro da sua residência, despreocupado em esconder-me ou tomar qualquer precaução para fugir aos seus olhos, pois nunca se inquietava com o que poderia estar se passando em torno dele. A profunda escuridão que nos cercava e a rapidez com que, ao sair de casa, ganhava o passeio jamais me permitiriam ver-lhe a fisionomia. Resoluto, avançava pela calçada, como se tivesse um lugar certo para ir. Pouco a pouco, os seus movimentos tornavam-se lentos e indecisos, desmentindo-lhe a determinação anterior. Acompanhava-o com dificuldade. Sombras maliciosas e traiçoeiras vinham a meu encontro, forçando-me a enervantes recuos. O invisível andava pelas minhas mãos, enquanto Cris, sereno e desembaraçado, locomovia-se facilmente. Não parasse ele repetidas vezes, impossível seria a minha tarefa. Quando vislumbrava seu vulto, depois de tê-lo perdido por momentos, encontrava-o agachado, enchendo os bolsos internos com coisas impossíveis de serem distinguidas de longe.

Bem monótono era segui-lo sempre pelos mesmos caminhos. Principalmente por não o ver entrar em algum edifício, conversar com amigos ou mulheres. Nem ao menos cumprimentava um conhecido.

Na volta, de madrugada, Cris ia retirando de dentro do paletó os objetos que colhera na ida e, um a um, jogava-os fora. Tinha a impressão de que os examinava com ternura antes de livrar-se deles.

Alguns meses decorridos, os seus passeios obedeciam ainda a uma regularidade constante. Sim, invariável era o trajeto seguido por Cris, não obstante a aparente falta de rumo com que caminhava. Partindo da sua casa, descia dez quarteirões em frente, virando na segunda avenida do percurso. Dali andava pequeno trecho, enveredando imediatamente por uma rua tortuosa e estreita. Quinze minutos depois atingia a zona suburbana da cidade, onde os prédios eram raros e  sujos. Somente estacava ao deparar uma casa de armarinho, em cuja vitrina forrada de papel crepom, encontrava-se permanentemente exposta uma pobre boneca. Tinha os olhos azuis, um sorriso de massa.

Uma noite - já me acostumara ao negro da noite - constatei, ligeiramente surpreendido, que os seus passos não nos conduziriam pelo itinerário da véspera. (Havia algo que ainda não amadurecera o suficiente para sofrer tão súbita ruptura.)

Nesse dia, o andar firme em linha reta, evitando as ruas transversais, pelas quais passava sem se deter. Atravessou o centro urbano, deixou para trás a avenida em que se localizava o comércio atacadista. Apenas se demorou uma vez - assim mesmo espontaneamente - defronte a um cinema, no qual meninos de outros tempos assistiam filmes em série. Fez menção de comprar entrada, o que deveras me alarmou. Contudo, sua indecisão foi breve e prosseguiu a caminhada. Enfiou-se pela rua do meretrício, parando a espaços, diante dos portões, espiando pelas janelas, quase todas muito próximas do solo.

Em frente a uma casa baixa, a única da cidade que aparecia iluminada, estacionou hesitante. Tive a intuição de que aquele seria o instante preciso, pois se Cris retrocedesse, não lograria outra oportunidade. Corri para o seu lado e, sacando do punhal, mergulhei-o nas suas costas. Sem um gemido e o mais leve estertor, caiu no chão. Do seu corpo magro saiu a lua. Uma meretriz que passava, talvez movida por impensado gesto, agarrou-a nas mãos, enquanto uma garoa de prata cobria as roupas do morto. A mulher, vendo o que sustinha entre os dedos, se desfez num pranto convulsivo. Abandonando a lua, que foi varando o espaço, ela escondeu a face no meu ombro. Afastei-a de mim, e, abaixando-me, contemplei o rosto de Cris. Um rosto infantil, os olhos azuis. O sorriso de massa.

Conto de Murilo Rubião retirado do livro Contos Reunidos, Editora Ática, 1998.