domingo, 29 de junho de 2025

Um Homem Público

Até que ponto terá sido compreensível para ele mesmo o seu próprio ato? Mal posso imaginar o seu desarvoramento solitário. Quando um ato irracional provoca monstruoso eco, o homem provavelmente se sente quase inocentado diante daquilo que seu grito provocou: de vibração em vibração, o desabar da avalanche. A verdade ele mesmo não sabe, talvez nunca saiba, pois já se afogou sob os pretextos. Ele foi "pessoal", o que é crime num homem público. O sacrifício de um líder ou de um santo ou de um artista - que chegaram àquilo que são exatamente por terem sido pessoais - é o de não o serem mais. A cruz de um homem é esquecer-se de sua própria dor. É nesse esquecer-se que acontece então o fato mais essencialmente humano, aquele que faz de um homem a humanidade: a dor própria adquire uma vastidão em que os outros todos cabem e onde se abrigam, são compreendidos; pelo que há de amor na renúncia da própria dor, os quase mortos se levantam. O verdadeiro sentido de Cristo seria a imitação de Cristo. O próprio Cristo foi a imitação de Cristo.

O Brasil inteiro poderia ter subido através do sofrimento daquele homem, através do que ele em si mesmo sabia sobre o medo, a ambição, e sobre a própria tendência ao desatino. Assim como a transcendência da vontade de matar está em, por se conhecer esse abismo, impedir que os outros matem. Mas aquele homem público se restringiu a si mesmo. Da grandeza dos defeitos humanos ele fez defeitos pequenos. Criminoso por pequenez. Era homem a ser ajudado, não a ajudar.


Crônica de Clarice Lispector retirada do livro Para Não Esquecer, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 2020.

Conversa com filho

- Sabe, eu tinha vontade, mamãe, de experimentar às vezes ficar doido.

- Mas pra quê? (Eu sei, eu sei o que você vai dizer, sei porque em mim o meu bisavô deve ter dito o mesmo, eu sei que é através de quinze gerações que uma só pessoa se forma, e que essa pessoa futura me usou para me atravessar como a uma ponte e está usando meu filho e usará o filho de meu filho, assim como um pássaro pousado numa seta que vagarosamente avança.)

- Pra me libertar, assim eu ficava livre...

(Mas haverá a liberdade sem a prévia permissão da loucura. Nós ainda não podemos: somos apenas os gradativos passos dela, dessa pessoa que vem.)


Crônica de Clarice Lispector retirada do livro Para Não Esquecer, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 2020.

sábado, 28 de junho de 2025

Conclusão (6)

Podemos dizer, de modo geral e simples, que o isolamento é a falta de companhia dos outros e que na solidão o indivíduo adota a si mesmo como companhia (independentemente de já possuir ou não outra companhia).

Quando uma pessoa diz que ficou sozinha (no isolamento), está indicando uma vivência que pode ter sido prazerosa ou não. Mas, quando afirma: senti solidão, está sempre dizendo que passou por uma experiência que, sob algum aspecto pelo menos, lhe foi desagradável.

Como já foi dito, o que desagrada, na solidão, é este procedimento costumeiro, que tem a pessoa humana, de ficar escarafunchando a sua própria vida para se criticar. E, como isso é expressão de sua finitude, jamais terá um ponto final.

Consequentemente, é ilusório supor que em algum momento de sua vida o homem se encontrará num estado de alma paradisíaco em que não encontrará pelo menos alguns instantes de solidão. Neste caso, a solução do problema consiste em prevenir ou atenuar seu aguçamento e saber como conviver com ela nos momentos de crise.

Para alcançar este objetivo, o indivíduo pode se utilizar dos expedientes mais variados: fugir do ensimesmamento, dedicar-se a atividades úteis, procurar o diálogo com outras pessoas e com Deus etc. Entretanto, a solução que parece mais eficaz consiste no indivíduo realizar em si mesmo um trabalho de aperfeiçoamento pessoal, tornando-se mais coerente consigo. Crescendo, assim, em autenticidade, elevar-se-á inevitavelmente a sua autoestima. E gostando de si, tornará a sua companhia agradável e compensadora para si mesmo.


Texto de Franz Victor Rúdio retirado do livro Compreensão Humana e Ajuda ao Outro, Editora Vozes, Petrópolis, 1991.

Conferência de abertura do II Encontro de Psicologia do Vale do Paraíba, realizado na Faculdade Salesiana de Filosofia, Ciências e Letras de Lorena, São Paulo. 

Sigamos a Paz (79)

 "Busque a paz e siga-a." - Pedro. (I PEDRO, 3:11.)


Há muita gente que busca a paz; raras pessoas, porém, tentam segui-la.

Companheiros existem que desejam a tranquilidade por todos os meios e suspiram por ela, situando-a em diversas posições da vida, contudo, expulsam-na de si mesmos, tão logo lhes confere o Senhor as dádivas solicitadas.

Esse pede a fortuna material, acreditando seja a portadora da paz ambicionada, todavia, com o aparecimento do dinheiro farto, tortura-se em mil problemas, por não saber distribuir, ajudar, administrar e gastar com simplicidade.

Outro roga a bênção do casamento, mas, quando o Céu lha concede, não sabe ser irmão da companheira que o Pai lhe confiou, perdendo-se através das exasperações de toda sorte.

Outro, ainda, reclama títulos especiais de confiança em expressivas tarefas de utilidade pública, mas, em se vendo honrado com a popularidade e com a expectativa de muitos, repele as bênçãos do trabalho e recua espavorido.

Paz não é indolência do corpo. É saúde e alegria do espírito.

Se é verdade que toda criatura a busca, a seu modo, é imperioso reconhecer, no entanto, que a paz legítima resulta do equilíbrio entre os nossos desejos e os propósitos do Senhor, na posição em que nos encontramos.

Recebido o trabalho que a Confiança Celeste nos permite efetuar, é imprescindível saibamos usar a oportunidade em favor de nossa elevação e aprimoramento.

Disse Pedro - "Busque a paz e siga-a."

Todavia, não existe tranquilidade real sem Cristo em nós, dentro de qualquer situação em que estejamos situados, e a fórmula de integração da nossa alma com Jesus é invariável: - "Negue cada um a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me." Sem essa adaptação do nosso esforço de aprendizes humanos ao impulso renovador do Mestre Divino, ao invés de paz, teremos sempre renovada guerra, dentro do coração.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

sexta-feira, 27 de junho de 2025

É para lá que eu vou

Para além da orelha existe um som, à extremidade do olhar um aspecto, às pontas dos dedos um objeto - é para lá que eu vou.

À ponta do lápis o traço.

Onde expira um pensamento está uma ideia, ao derradeiro hálito de alegria uma outra alegria, à ponta da espada a magia - é para lá que eu vou.

Na ponta dos pés o salto.

Parece a história de alguém que foi e não voltou - é para lá que eu vou.

Ou não vou? Vou, sim. E volto para ver como estão as coisas. Se continuam mágicas. Realidade? Eu vos espero. É para lá que vou.

Na ponta da palavra está a palavra. Quero usar a palavra "tertúlia" e não sei onde e quando. À beira da tertúlia está a família. À beira da família estou eu. À beira de eu estou mim. É para mim que vou. E de mim saio para ver. Ver o quê? Ver o que existe. Depois de morta é para a realidade que vou. Por enquanto é sonho. Sonho fatídico. Mas depois - depois tudo é real. E a alma livre  procura um canto para se acomodar. Mim é um eu que anuncio. Não sei sobre o que estou falando. Estou falando do nada. Eu sou nada. Depois de morta engrandecerei e me espalharei, e alguém dirá com amor meu nome.

É para o meu pobre nome que vou.

E de lá volto para chamar o nome do ser amado e dos filhos. Eles me responderão. Enfim terei uma resposta. Que resposta? A do amor. Amor: eu vos amo tanto. Eu amo o amor. O amor é vermelho. O ciúme é verde. Meus olhos são verdes. Mas são verdes tão escuros que na fotografia saem negros. Meu segredo é ter os olhos verdes e ninguém saber.

À extremidade de mim estou eu. Eu, implorante, eu a que necessita, a que pede, a que chora, a que se lamenta. Mas a que canta. A que diz palavras. Palavras ao vento? Que importa, os ventos as trazem de novo e eu as possuo.

Eu à beira do vento. O morro dos ventos uivantes me chama. Vou, bruxa que sou. E me transmuto.

Oh, cachorro, cadê tua alma? Está à beira de teu corpo? Eu estou à beira de meu corpo. E feneço lentamente.

Que estou a dizer? Estou dizendo amor. E à beira do amor estamos sós.


Conto de Clarice Lispector retirado do livro Onde Estiveres de Noite, Livraria Francisco Alves Editora, Rio de Janeiro, 1997.

quinta-feira, 26 de junho de 2025

Para vencer a solidão (5)

Há diversas maneiras de se considerar este assunto. De modo passageiro, como o tempo desta conferência permite, irei fazer breves alusões a três aspectos que considero os mais importantes.

O recurso mais frequente que se costuma recomendar às pessoas para vencerem a solidão é o aproveitamento útil dos tempos ociosos.

De fato, quando existe um tempo de ociosidade que se prolonga, o indivíduo é naturalmente impelido a ocupá-lo de qualquer maneira. E, neste caso, uma tendência muito comum a qualquer pessoa é a de ficar pensando em si. Ora, pelo fato de ser improdutiva, a ociosidade gera sentimentos de vacuidade e frustração, que podem deprimir o indivíduo. Pensar em si mesmo, neste clima interior, é, então, seguir um caminho destrutivo, que acentua os aspectos negativos da pessoa, gerando uma autocrítica impiedosa

O fato do indivíduo se ocupar em alguma coisa útil já possui, em si mesmo, uma força profilática, que o faz sair de seu casulo e aplicar sua atenção em algo que está fora, libertando-o, assim, da preocupação obsessiva consigo mesmo. Entretanto, este modo de agir só é eficaz se não significar uma forma ansiosa do indivíduo fugir de si. Não se pode vencer a solidão pela fuga, mas sim, pelo enfrentamento. E para que não ocorra este perigo, de ser apenas uma fuga, convém que a atividade, à qual o indivíduo se dedica, seja realmente de interesse para ele, exigindo seus esforços mas trazendo-lhe alegria e satisfação. Desta forma, estará a serviço de seu enriquecimento pessoal, não sendo um simples instrumento para ele se esquecer de si.

Uma solução mais consistente para vencermos a solidão é podermos descobrir um trabalho, uma obra, um ideal ou uma missão que deem um novo sentido à nossa vida e que nos empolgue de modo mais integral. Tal atividade estaria destinada a fomentar a autoestima de qualquer um, pois o diálogo que neste caso o indivíduo estabelecesse consigo mesmo teria a inclinação de ser inspirado no próprio valor de sua produtividade e de sua realização pessoal.

Outra maneira de vencer a solidão é buscar o encontro com outras pessoas. Neste caso, o que se procura não é um simples relacionamento e nem mesmo uma simples companhia, mas, sim,  que o outro seja capaz de acolher e de entender o que se passa com quem o procura. E, como, sem dúvida, a aceitação e a compreensão formam os traços mais expressivos do amor verdadeiro, então podemos afirmar que para vencer a solidão, o que o indivíduo realmente procura é ser amado pelo outro. É como se ele dissesse: - Não acredito em mim. Por favor, mostre-me que eu tenho valor, gostando de mim. Para quebrar a solidão do indivíduo que a procura, o essencial não é a pessoa dizer ou fazer alguma coisa de extraordinário, mas, com sinceridade, mostrar simplesmente que a presença dele traz contentamento; acolhendo-o, portanto, com simpatia.

Existem pessoas que reclamam de não encontrarem esta acolhida afetiva dos outros, quando dela precisam. Isso me faz lembrar de uma passagem da Sagrada Escritura, que diz: "Quem semeia ventos, colhe tempestades." De fato, os outros só podem gostar de nós, se formos capazes de criar uma condição favorável para que isso aconteça. Se, ao contrário, tratamos os outros de um modo rígido e indelicado, se não respeitamos e nem consideramos as pessoas, se nos tornamos aversivos pela maneira de nos relacionarmos, vamos, então colocarmo-nos numa ilha de isolamento, cercada de antipatia por todos os lados. Como é possível, na hora da solidão, encontrarmos alguém que nos aceite e compreenda?

Eu quero dizer o seguinte: pode haver diversas razões que levam a não contarmos com o apoio do outro na hora em que necessitamos. Algumas delas surgem de circunstâncias que não dependem de nós. Mas, com frequência esta falta de apoio indica apenas uma reação à nossa maneira de tratarmos as pessoas. Par o homem religioso, o diálogo mais importante, como ajuda para vencer a solidão, é aquele que se estabelece com Deus através da oração. A fé ensina que Ele é a Força, o Poder e a Sabedoria, que dele o indivíduo recebe a vida, e que, por Ele, jamais é abandonado. Sabe, ainda, que nele pode confiar, porque a sua aceitação e a sua compreensão não têm limites: Deus é Amor.

Finalmente, o modo mais definitivo e eficaz para o indivíduo vencer a solidão é pela procura do seu próprio aperfeiçoamento, de ser mais coerente consigo mesmo, de ser, na realidade, aquilo que é; numa palavra, de ser autêntico. Quanto mais ele for assim, mais terá um relacionamento construtivo consigo mesmo, mais gostará de si de maneira apropriada, mais terá uma autoestima elevada e autônoma, que se tornará fonte generosa do sentimento pessoal de autorrealização e de produtividade para o mundo.


Texto de Franz Victor Rúdio retirado do livro Compreensão Humana e Ajuda ao Outro, Editora Vozes, Petrópolis, 1991.

Conferência de abertura do II Encontro de Psicologia do Vale do Paraíba, realizado na Faculdade Salesiana de Filosofia, Ciências e Letras de Lorena, São Paulo. 

terça-feira, 24 de junho de 2025

Por que a solidão nos causa medo? (4)

Rollo May, em O homem à procura de si mesmo, faz esta afirmação: "Não há dúvida que em todas as épocas a solidão foi temida e as pessoas dela procuraram fugir." E acrescenta mais à frente: "A diferença é que em nossa época o medo da solidão é muito mais intenso e as defesas contra ele - diversões, atividades sociais e 'amizades' - são mais rígidas e compulsivas".

O que nos causa medo quando estamos na solidão?

Mais do que o sentimento de abandono e desvalia em que nos encontramos, parece que nos causa medo o fato de ficarmos entregues a nós mesmos. Quando isso acontece - ficarmos sozinhos conosco - podemos nos tornar uma companhia desagradável e amarga. Sem o controle sobre os nossos pensamentos e sentimentos, que a presença dos outros nos faz ter, podemos ser inclinados a várias atitudes negativas: ficarmos lembrando dos diversos aspectos de situação passadas que nos foram inconvenientes e dolorosas; tornamo-nos críticos e cruéis do que já sentimos e fizemos; cobrarmos de nós, de forma impiedosa e ameaçadora, o que deveríamos ter feito ou não ter feito etc. Podemos, ainda, reclamar, de modo obsessivo e renitente, de sermos vazios e ineptos, por não termos sido capazes de impor uma orientação mais segura à nossa vida, ou de não termos modificado em proveito próprio o mundo em que vivemos. E, assim, povoamos a nossa consciência - às vezes mais e outras menos intensamente - de problemas, acusações, culpas, remorsos, fracassos e frustrações.

É justamente este procedimento, de tratarmos nós mesmos com tal rigor, que é, no meu ponto de vista, a fonte de toda a solidão. Neste caso, sentimo-nos desamparados por nós mesmos e ansiamos por alguém que nos venha socorrer, dando-nos o apoio que não nos demos. Quando nos tratamos bem, aceitando-nos, não sentimos solidão (embora, neste instante, possamos chamar de solidão ao isolamento em que nos encontramos; mas este é, na verdade, outra coisa) ou, para dizer mais exatamente, encontramos apenas  momentos de leve solidão. Estes são inevitáveis, pois como o ser humano é limitado; ninguém pode estar sempre tão satisfeito consigo mesmo a tal ponto de nunca se condenar ou recriminar, mesmo de maneira despropositada.

O tratamento inadequado que o indivíduo dá a si, criando as condições que geram solidão, produz também uma ansiedade que afeta a sua autoestima. Para uma vida produtiva e satisfatória, todos nós precisamos da consideração dos outros e da nossa própria consideração. Ao destratarmo-nos, afetamos o nosso autoapreço. E Maslow diz que " satisfação da necessidade de autoapreço leva a sentimentos de autoconfiança, valia, força, capacidade e suficiência, de ser útil e necessário no mundo. Mas a frustração desta necessidade produz sentimentos de inferioridade, debilidade ou impotência, que, por sua vez, dão lugar a reações desanimadoras e, inclusive, compensatórias e neuróticas.

É sobretudo por isso que a solidão dá medo, ansiedade, pelas críticas despropositadas que podemos fazer a nós, atingindo, deste modo, a nossa autoestima, deteriorando em nós a "autoconfiança, valia, força, capacidade e suficiência", e alimentando aqueles "sentimentos de inferioridade, debilidade ou impotência" que corroem e arruínam a nossa personalidade. Assim, em última análise, o medo que temos da solidão é o de sermos destruídos psicologicamente por nós mesmos.


Texto de Franz Victor Rúdio retirado do livro Compreensão Humana e Ajuda ao Outro, Editora Vozes, Petrópolis, 1991.

Conferência de abertura do II Encontro de Psicologia do Vale do Paraíba, realizado na Faculdade Salesiana de Filosofia, Ciências e Letras de Lorena, São Paulo. 

sábado, 21 de junho de 2025

Enxertia Divina (78)

 "Se não permanecerem na incredulidade, serão enxertados; porque poderoso é Deus para os tornar a enxertar." - Paulo. (ROMANOS, 11:23)


Toda criatura, em verdade, é uma planta espiritual, objeto de minucioso cuidado por parte do Divino Semeador.

Cada homem, qual ocorre ao vegetal, apresenta diferenciados períodos na existência.

Sementeira, germinação, adubação, desenvolvimento, utilidade, florescência, frutificação, colheita...

Nas vésperas do fruto, desvela-se o pomicultor, com mais carinho, pelo aprimoramento da árvore.

É imprescindível haja fartura e proveito.

Na luta espiritual, em identidade de circunstâncias, o Senhor adota iguais normais para conosco.

Atingindo o conhecimento, a razão e a experiência, o Pomicultor Celeste nos confere preciosos recursos de enxertia espiritual, com vistas à nossa sublimação para a vida eterna.

A cada novo dia de tua experiência humana, recebes valioso concurso para que os resultados da presente encarnação te enriqueçam de luz divina pela felicidade que transmites aos outros. És, contudo, uma "árvore consciente", com independência para aceitar ou não os elementos renovadores, com liberdade para registrar a bênção ou desprezá-la.

Repara, atentamente, quantas vezes te convoca o Sublime Semeador ao engrandecimento de ti mesmo.

A enxertia do Alto procura-nos através de mil modos.

Hoje, é na palestra edificante de um companheiro.

Amanhã, será num livro amigo.

Depois, virá por intermédio de uma dádiva aparentemente insignificante da senda.

Se guardas, pois, o propósito de elevação, aproveita a contribuição do Céu, iluminando e santificando o templo íntimo. Mas, se a incredulidade por enquanto te isola a mente, enovelando-te as forças no carretel do egoísmo, o enxerto de sublimação te buscará debalde, porque ainda não produzes, nos recessos do espírito, a seiva que favorece a Vida Abundante.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

sexta-feira, 20 de junho de 2025

Formas de sentir-se sozinho (3)

Foi dito que o sentir-se sozinho pode ser uma característica tanto da solidão quanto do isolamento. Entretanto, assume, num e noutro casos, significados diferentes.

No isolamento, o indivíduo pode ser sozinho e: (1º) não perceber que está, quando, por exemplo, se encontra absorto numa tarefa que está fazendo; (2º) perceber e gostar, como acontece, por exemplo, com o homem religioso que prazerosamente se afasta dos outros para fazer sua oração; (3º) perceber e não gostar, como se dá com alguém que, por exemplo, se vê rejeitado do convívio de outras pessoas. Já na solidão, a consciência de estar sozinho persegue insistentemente o indivíduo, e ele vivencia com sentimentos marcantes de insatisfação e desagrado.

O sentir-se sozinho do isolamento é um dado objetivo, isto é, constitui um fato de realidade capaz de ser percebido, pelo menos por um observador que esteja atento. Deste modo, é possível verificar se uma pessoa está isolada ou não, mesmo que ela nada queira dizer sobre o assunto. Já o sentir-se sozinho da solidão não é um dado objetivo mas um estado de alma, que só pode ser conhecido adequadamente se a pessoa solitária nos comunicar e à medida em que fizer isso.

Embora sendo diferentes, o sentir-se sozinho do isolamento e o da solidão podem estar juntos e confundirem-se na mesma pessoa. Com frequência, o primeiro gera o segundo. Mas pode-se encontrar alguém que esteja isolado sem estar solitário, ou que esteja solitário sem estar isolado.

Para quebrar o isolamento, basta, pelo menos em tese (mas na prática pode não ser tão simples), haver algum contato com alguém. O pensamento e o desejo de quem vive isolado pode ser enunciado, talvez, esquematicamente, da seguinte maneira: "Não quero mais ficar sozinho. Por isso, preciso ver gente e procurar alguém para conversar e conviver". Provavelmente, está é a lógica contida nos apelos feitos por obras assistenciais para que as pessoas visitem crianças (em orfanatos), idosos (em casas de repouso), doentes (em hospitais) etc., pois, mesmo que não lhes levem qualquer presente, o simples fato de manifestarem interesse e de conversarem com eles é suficiente para quebrar o isolamento em que vivem.

Mas, quanto à solidão, só a companhia de alguém não é suficiente para vencê-la. De fato, a experiência nos prova que uma pessoa pode estar em relacionamento constante com outras e, no entanto, sentir-se profundamente sozinha. Podemos imaginar, por exemplo, o caso hipotético de um marido e sua mulher que, juntos, sentam-se à mesa para as refeições, conversam muitas vezes durante o dia e até dormem na mesma cama etc. e, apesar disso, pode um deles (ou os dois) afirmar que vive em permanente solidão. Ou, também, o caso de um religioso, que permanece solitário, embora vivendo cercado pelos irmãos de sua comunidade. Ou, finalmente, todos já ouvimos falar da solidão na multidão, em que o indivíduo, embora vivendo cercado de gente numa grande cidade, sente-se, no entanto, profundamente solitário.


Texto de Franz Victor Rúdio retirado do livro Compreensão Humana e Ajuda ao Outro, Editora Vozes, Petrópolis, 1991.

Conferência de abertura do II Encontro de Psicologia do Vale do Paraíba, realizado na Faculdade Salesiana de Filosofia, Ciências e Letras de Lorena, São Paulo. 

quinta-feira, 19 de junho de 2025

O isolamento e a solidão (2)

Proponho, como base inicial para as nossas discussões posteriores, que façamos uma diferença, pelo menos didática, entre a solidão entendida no sentido amplo e a que é considerada no sentido estrito.

No sentido amplo, solidão equivale a isolamento, e indica uma situação em que o indivíduo (ou grupo) se encontra separado de outras pessoas. Significa, portanto, simplesmente isso: que o processo de relacionamento se encontra prejudicado por causa do rompimento ou diminuição do contato humano com os outros. Para a reflexão que estamos fazendo, o aspecto mais importante do isolamento está no seu correspondente psicológico, isto é, na repercussão que produz dentro da pessoa que, percebendo-se isolada, é acometida pelo sentimento de estar sozinha.

Com relação ao próprio isolamento, convém fazer ainda outra distinção, dizendo que pode ser estrutural e funcional.

O isolamento estrutural é comum a todos os seres humanos. A pessoa o sente porque é um indivíduo diferente dos outros, possuindo a sua originalidade, suas características peculiares e uma existência específica e singular. Baseia-se, portanto, na própria natureza de cada um. Os seus pontos extremos se encontram no nascimento e na morte: nascemos sozinhos e sozinhos morremos. Podemos acreditar que, no útero materno, não tínhamos solidão porque estávamos intimamente unidos à nossa mãe. Começamos, porém, a senti-la na hora do parto, quando fomos separados e nascemos para o mundo. Não parece ser este um dos significados do chamado trauma do nascimento? Igualmente, na hora da morte, ficamos também sozinhos, ao sermos separados de tudo e de todos, que deixamos neste mundo. A morte é um momento de solidão absoluta, mesmo para os que creem em um novo retorno à vida ou para os que acreditam que a separação durante a morte é apenas passageira (porque iremos ao encontro de Deus e daqueles que já se foram antes de nós; com eles nos encontraremos na outra vida, para nunca mais ficarmos sozinhos).

Há também outra maneira, à vezes bem aguda, de sentirmos este tipo de solidão no sentido amplo, à qual estamos nos referindo com o nome de isolamento estrutural. É quando precisamos fazer escolhas e tomar decisões, sobretudo as que são mais relevantes para a nossa vida. Nesta ocasião, os outros podem estar conosco e ajudar-nos até certo ponto. Mas há o instante nevrálgico em que todos nos deixam e não podem mesmo ficar conosco. Sentimo-nos, então, sozinhos, porque, na verdade ninguém pode escolher e nem decidir em nosso lugar. E é exatamente por isso que somos livres e donos de nós mesmos, porque podemos escolher e decidir. Quando, para fugirmos à solidão, permitimos que, pelo menos em assuntos graves, os outros façam escolhas e tomem decisões por nós, perdemos nossa liberdade e, mesmo sem termos consciência disso, submetemo-nos indevidamente aos outros, tornando-nos seus escravos, sob algum aspecto, ao fazermos aquilo que eles querem que façamos.

Outra forma de solidão no sentido amplo é o isolamento funcional. Neste caso, são as características que determinam o seu aparecimento, e podem ser as mais variadas possíveis. Assim, podemos falar de solidão, por motivo espacial ou geográfico, de um responsável por um farol marítimo, que vive sozinho numa ilha distante; por motivo de usos e costumes, de uma pessoa idosa que vive num ambiente só de jovens; por motivo cultural, de um estrangeiro que acaba de chegar a uma terra alheia; por motivo de preconceito, de um negro que precisa viver numa comunidade de brancos racistas etc. O indivíduo também pode, por si mesmo, procurar o isolamento, a fim de refletir, estudar, meditar, orar, realizar certas tarefas, fazer planos de vida, revê-los etc. Pode, ainda, buscá-lo para devanear, para "curtir" alegrias ou tristezas, sucessos ou fracassos, melancolia, remorso, vingança, amor ou para expressar mágoa, ressentimento, para fugir de ambiente que considera aversivo ou hostil etc. São, pois, inumeráveis os motivos que colocam o indivíduo em solidão ou que o fazem procurá-la.

Quero lembrar, de passagem, que este isolamento funcional é sempre relativo para os seres humanos pelo menos no sentido de que somos impelidos pela própria natureza a procurar a convivência com nosso semelhantes; o que, na verdade, sempre fazemos. O termo não assume, portanto, conotações radicais de uma ausência plena e permanente de relacionamento, mas indica simplesmente que a interação foi reduzida, embora possa chegar, em certos casos, a grau infinito. Cortes absolutos de contato podem acontecer por motivos patológicos ou, eventualmente, em situações extraordinárias que se opõem à vontade do homem, como, por exemplo, a de uma pessoa perdida na floresta amazônica.

É bom, também, levar em consideração que a necessidade de relacionamento nos seres humanos, mesmo em casos normais, varia de uma pessoa para outra. Alguns sentem mais premência de buscar a companhia de seus semelhantes do que outros. Por isso, ninguém pode se transformar, para os outros, em padrão da quantidade ou qualidade de relacionamento dizendo, por exemplo: - Se eu fiquei sozinho nesta situação, e por tanto tempo, por que você também não pode ficar?

A solidão no sentido estrito não visa diretamente o relacionamento com outras pessoas, mas a experiência interior de abandono.

Para falarmos da solidão, no sentido amplo, encontramos um termo equivalente, um sinônimo, que foi isolamento. Agora, para nos referirmos à solidão no sentido estrito, só existe esta palavra mesma: solidão. Assim usaremos os dois termos num e noutro sentidos.

O que caracteriza a solidão é a consciência que o indivíduo tem de estar sozinho, mas acompanhado de um sentimento penoso de desamparo e de uma carência premente de alguém que lhe possa dar apoio. Portanto, a percepção de estar sozinho, o sentimento de desamparo e a necessidade de alguém formam os três elementos constitutivos da solidão, interpenetrando-se e misturando-se. A maneira de vivenciá-los depende de quem os experimenta e do momento em que os experimenta.


Texto de Franz Victor Rúdio retirado do livro Compreensão Humana e Ajuda ao Outro, Editora Vozes, Petrópolis, 1991.

Conferência de abertura do II Encontro de Psicologia do Vale do Paraíba, realizado na Faculdade Salesiana de Filosofia, Ciências e Letras de Lorena, São Paulo.