sábado, 31 de agosto de 2024

Estendamos o Bem (35)

 "Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem." - Paulo. (ROMANOS, 12:21)


Repara que, em plena casa da Natureza, todos os elementos, em face do mal, oferecem o melhor que possuem para o reajustamento da harmonia e para a vitória do bem.

Quando o temporal parece haver destruído toda a paisagem, congregam-se as forças divinas da vida para a obra do refazimento.

O Sol envia sobre o lamaçal, curando as chagas do chão.

O vento acaricia o arvoredo e enxuga-lhe os ramos.

O cântico das aves substitui a voz do trovão.

A planície recebe a enxurrada, sem revoltar-se, e converte-a em adubo precioso.

O ar que suporta o peso das nuvens e o choque da faísca destruidora, torna à leveza e à suavidade.

A árvore de frondes quebradas ou feridas regenera-se, em silêncio, a fim de produzir novas flores e novos frutos.

A terra, nossa mãe comum, sofre a chuva de granizos e o banho de lodo, periodicamente, mas nem por isso deixa de engrandecer o bem cada vez mais.

Por que conservaremos, por nossa vez, o fel e o azedume do mal, na intimidade do coração?

Aprendamos a receber a visita da adversidade, educando-lhe as energias para proveito da vida.

A ignorância é apenas uma grande noite que cederá lugar ao sol da sabedoria.

Usa o tesouro de teu amor, em todas as direções, e estendamos o bem por toda parte.

A fonte, quando tocada de lama, jamais se dá por vencida. Acolhe os detritos no próprio seio e, continuando a fluir, transforma-os em bênçãos, no curso de suas águas que prosseguem correndo, com brandura e humildade, para benefício de todos.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

Do fundo das gavetas

 Escritos marginais de grandes criadores da palavra formam um subgênero próprio da sátira literária


Remexer o fundo das gavetas dos grandes criadores da palavra pode permitir pitorescas descobertas. Produzidos para criticar costumes e personalidades de uma época, para afrontar uma ideia corrente ou por mero capricho e diversão, escritos contundentes foram mantidos por muito tempo à margem das bibliografias oficiais de escritores, historiadores, cientistas e filósofos consagrados. Alguns desses textos, nascidos apócrifos, ainda ecoam em nossos dias.

Títulos escapam da mera curiosidade de rodapé para integrarem um subgênero próprio de ironia literária. Escaparam das injunções editoriais do momento, esquivaram-se dos julgamentos condenatórios e dos olhares atravessados de seus contemporâneos. Alguns foram renegados em vida por seus autores. A posteridade os tirou da gaveta.

Com essas obras, ampliamos o que sabemos - e sentimos - sobre autores que veneramos ou sobre as condições de escrita de sua época. E descobrimos facetas licenciosas ou escatológicas por muito encobertas. Em parte porque, como a amostra a seguir talvez indique, ainda vale a pena descortiná-las.


O AMOR NATURAL

Carlos Drummond de Andrade


Publicado só depois da morte do autor, o livro reúne os poemas eróticos drummondianos. O poeta publicara obras fesceninas em revistas especializadas, nos anos 70, mas a maioria do que saiu em O amor natural era inédita. "Para repousar do amor, vamos à cama", diz um de seus versos de carnal reflexão lasciva.

O próprio Drummond preferiu colocar a coletânea no fundo mais fundos das gavetas, para que, se viesse a ser publicada por seus herdeiros, o fosse somente depois de sua morte.

O resultado é surpreendente quanto mais imaginamos o autor de figura plácida e terna, de paixão contida e sentida.


A bunda, que engraçada

A bunda, que engraçada.

Está sempre sorrindo, nunca é trágica.


Não lhe importa o que vai

pela frente do corpo. A bunda basta-se.

Existe algo mais? Talvez os seios.

Ora - murmura a bunda - esses garotos

ainda lhes falta muito que estudar.


A bunda são duas luas gêmeas

em rotundo meneio. Anda por si

na cadência mimosa, no milagre 

de ser duas em uma, plenamente.


A bunda se diverte

por conta própria. E ama.

Na cama agita-se. Montanhas

avolumam-se, descem. Ondas batendo

numa praia infinita.


Lá vem sorrindo a bunda. Vai feliz

na carícia de ser e balançar.

Esferas harmoniosas sobre o caos.


A bunda é a bunda,

redunda.

(Carlos Drummond de Andrade)


Trecho da matéria Do Fundo das Gavetas; escrito por Luiz Costa Pereira Júnior, retirado da revista Língua Portuguesa, Ano 9, número 113, Março de 2015, Editora Segmento, São Paulo.

domingo, 25 de agosto de 2024

Guardemos o Cuidado (34)

 "... mas nada é puro para os contaminados e infiéis." - Paulo (TITO, 1:15.)


O homem enxerga sempre, através da visão interior.

Com as cores que usa por dentro, julga os aspectos de fora.

Pelo que sente, examina os sentimentos alheios.

Na conduta dos outros, supõe encontrar os meios e fins das ações que lhe são peculiares.

Daí, o imperativo de grande vigilância para que a nossa consciência não se contamine pelo mal.

Quando a sombra vagueia em nossa mente, não vislumbramos senão sombras em toda parte.

Junto das manifestações do amor mais puro, imaginamos alucinações carnais.

Se encontramos um companheiro trajado com louvável apuro, pensamos em vaidade.

Ante o amigo chamado à carreira pública, mentalizamos a tirania política.

Se o vizinho sabe economizar com perfeito aproveitamento da oportunidade, fixamo-lo com desconfiança e costumamos tecer longas reflexões em torno de apropriações indébitas.

Quando ouvimos um amigo na defesa justa, usando a energia que lhe compete, relegamo-lo, de imediato, à categoria dos intratáveis.

Quando a treva se estende, na intimidade de nossa vida, deploráveis alterações nos atingem os pensamentos.

Virtudes, nessas circunstâncias, jamais são vistas.

Os males, contudo, sobram sempre.

Os mais largos gestos de bênção recebem lastimáveis interpretações.

Guardemos cuidado toda vez que formos visitados pela inveja, pelo ciúme, pela suspeita ou pela maledicência.

Casos intrincados existem nos quais o silêncio é o remédio bendito e eficaz, porque, sem dúvida, cada espírito observa o caminho ou o caminheiro, segundo a visão clara ou escura de que dispõe.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

sábado, 24 de agosto de 2024

Iminência e Eminência, Piti & Moringa.

São palavras parônimas, ou seja, vocábulos quase homônimos, que se diferenciam ligeiramente na grafia e na pronúncia. O berço de "iminência", por exemplo, é o latim imminentìa, o estado de alguma coisa que está para acontecer logo, que é iminente.

Já "eminência", que também tem berço no latim eminentia, é palavra que remete a alta posição social, grande reputação, proeminência.

Iminente, portanto, é o que está prestes a acontecer. Usa-se em contextos de algum tipo de ameaça - perigo iminente, risco iminente, etc.

Eminente gerou a expressão eminência parda. É o tratamento dispensado aos cardeais. O homem forte do reinado de Luís XIII, da França, era o cardeal Richelieu, conhecido como Eminência Vermelha, pela cor de suas vestes. Seu secretário, um padre capuchinho chamado Joseph, era apelidado de Éminence Grise, pois grise significa pardo em francês, cinzento, sombrio, irônico paralelo a Richelieu, ambos trabalhando à sombra do chefe. Assim sucede geralmente em todo governo forte, cada um com sua eminência parda, que permanece anônima, não aparece mas manda um bocado.


PITI

Designação que teria sido dada por Joseph Babinski aos distúrbios secundários da histeria, rigorosamente subordinados aos primários. É o mesmo que chilique, escândalo ou barraco. Exemplos práticos: bater o pé quando não se agrada de alguma coisa; o diretor deu um piti com sua secretária porque ela esqueceu de lhe dar o recado de que um dos clientes precisava falar com ele. É o estado de nervos exibido por uma pessoa por causa de pequenos aborrecimentos que não mereceriam tal conduta. Cena comum no mundo do cinema quando determinado ator dá um piti contra os fotógrafos e atira um deles ao chão com máquina e tudo. Exemplo de piti foi o que a atriz Linda Daniel deu no Copacabana Palace nos anos 50 ao jogar pela janela os móveis de seu quarto por considerá-los, digamos, reles para sua tão decantada fama internacional.


MORINGA

Vaso de barro que pode receber água - e que, aliás, lhe dá sabor muito especial e gostoso -, com capacidade entre um e dois litros, utilizado sobretudo por habitantes do Nordeste do Brasil. è também o único gênero de plantas da família das angiospérmicas. Quando da recente ameaça de cólera no Zimbábue, pesquisadores locais usaram o pó obtido das sementes da árvore moringa para conseguir água potável e prevenir a doença. Suas folhas e flores são usadas para enriquecimento de alimentos por contar com grande quantidade de nutrientes, além de seu uso como ração animal. Numa acepção bem paulista, o vocábulo também é sinônimo de cabeça - "fica frio, não precisa esquentar a moringa" ou "fiquei de moringa quente porque não consegui pagar as contas".


Textos de Márcio Cotrim retirado da revista Língua Portuguesa, Ano 9, nº 112, Fevereiro de 2015, Editora Segmento, São Paulo.

domingo, 18 de agosto de 2024

Erguer e Ajudar (33)

 "E ele dando-lhe a mão, a levantou..." - (ATOS, 9:41)


Muito significativa a lição dos Atos, quando Pedro restaura a irmã Dorcas para a vida.

Não se contenta o apóstolo em pronunciar palavras lindas aos seus ouvidos, renovando-lhe as forças gerais.

Dá-lhe as mãos para que se levante.

O ensinamento é dos mais simbólicos.

Observamos muitos companheiros a se reerguerem para o conhecimento, para a alegria e para a virtude, banhados pela divina claridade do Mestre, e que podem levantar milhares de criaturas para a Esfera Superior.

Para isso, porém, não bastará a predicação pura e simples.

O sermão é, realmente, um apelo sublime, do qual não prescindiu o próprio Cristo, mas não podemos esquecer que o Celeste Amigo, se doutrinou no monte, igualmente no monte multiplicou os pães para o povo esfaimado, restabelecendo-lhe o ânimo.

Nós, os que nos achávamos mortos na ignorância, e que hoje, por acréscimo da Misericórdia infinita, já podemos desfrutar algumas bênçãos de luz, precisamos estender o serviço de socorro aos demais.

Não nos desincumbiremos, porém, da tarefa salvacionista, simplesmente pronunciando alguns discursos admiráveis.

É imprescindível usar nossas mãos nas obras do bem.

Esforço dos braços significa atividade pessoal.

Sem o empenho de nossas energias, na construção do Reino Espiritual com o Cristo, na Terra, debalde alinharemos observações excelentes em torno das preciosidades da Boa Nova ou das necessidades da redenção humana.

Encontrando o nosso irmão, caído na estrada, façamos o possível por despertá-lo com os recursos do verbo transformador, mas não olvidemos que, para trazê-lo de novo à vida construtiva, será indispensável, segundo a inesquecível lição de Pedro, estendendo-lhe fraternalmente as nossas mãos.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

sábado, 17 de agosto de 2024

Quando a ciência vira alquimia

 Tom panfletário para defender teorias pode ser sintoma de dogma linguístico


A ciência funda-se nos princípios da objetividade, neutralidade e imparcialidade, pilares do método científico, na busca da verdade, doa em quem doer, e na destruição de crenças infundadas, por mais arraigadas que estejam.

Não obstante, muitos discursos, especialmente nas ciências humanas - mas não exclusivamente nestas -, pautam-se pela subjetividade e passionalidade. Essa conduta tem servido aos críticos da ciência, que a consideram apenas mais uma fantasia do espírito humano e lhe atribuem a mesma credibilidade que a filosofia ou a religião. Mas é preciso lembrar que, quando a ciência se torna ideologia, a culpa não é dela mesma, mas dos cientistas, que, como seres humanos, são falhos e emocionais (além de, por vezes, incompetentes ou desonestos).

Com a linguística não é diferente. Embora tenha sido a primeira das humanidades a ganhar status de ciência, em princípios do século 19, muito do que se publica hoje a respeito de língua resvala no juízo de valor, na subjetividade e tendenciosidade em detrimento dos fatores objetivos.


Variação

É natural que todo estudioso, face à sua própria formação acadêmica e interesse de pesquisa, se filie a alguma corrente teórica, isto é, adote uma determinada metáfora para descrever a realidade (a língua como ser vivo, estrutura mecânica, sistema complexo, fato biológico, social ou mental, e assim por diante). Mas a defesa instransigente do modelo a despeito da realidade que ele pretende descrever arrisca-se a transformar teoria em dogma e ciência em religião ou facção política.

Nenhuma teoria científica, por mais neutra, imparcial e objetiva que seja (e é preciso que assim o seja, senão não é científica), está livre de transformar-se em ideologia nas mãos de pesquisadores imaturos ou mal-intencionados. A bola da vez parece se a chamada linguística variacionista.

Decorrente dos estudos sociolinguísticos dos anos 1970, esse linha de investigação teve o mérito de mostrar que a língua não é um sistema único, monolítico, mas um conjunto de subsistemas apenas parcialmente coincidentes, em que as variações e mudanças decorrem de fatores como o tempo histórico, a localização geográfica, a classe social, o nível de escolarização, a situação de comunicação, a modalidade (oral ou escrita) e o meio físico (canal ou mídia) em que se dá o discurso.


Revisão

A teoria variação linguística permitiu mostrar que todos somos, como diria Evanildo Bechara, poliglotas em nossa língua, assim como contribuiu para relativizar a questão do erro gramatical e da obediência cega à norma padrão. Entretanto, se desmistificou a crença de que "a maioria dos brasileiros não sabe falar português" ou "nunca se falou tão mal como hoje em dia", muniu os ideológicos de plantão com argumentos que, para contestar a norma vigente, fazem apologia da fala popular e não escolarizada; para defender uma pseudodemocracia linguística, legitimam o desrespeito à gramática, vista como instrumento de repressão a serviço das classes dominantes; e assim por diante.

É evidente que não se pode nem se deve usar o português normativo numa mesa de bar ou numa brincadeira de crianças, mas isso não quer dizer que se deva estimular as pessoas a falar de modo informal em situações formais. É óbvio que está equivocado o professor que destrói a autoestima dos alunos ao convencê-los de que são ignorantes, falam errado ou não sabem se expressar direito. É para mostrar que há várias línguas dentro da língua e que cada uma é adequada a uma situação de discurso que muitos linguistas propõem o ensino da variação linguística em sala de aula. Mas desde que fique claro que o objetivo da escola é ensinar o aluno a manejar com maestria o português formal, pois é este o que lhe será exigido no mercado de trabalho e em muitas relações sociais, até porque no português informal o aluno já é proficiente.


Contexto

Mas há educadores que, mesmo bem-intencionados, disseminam a falsa crença de que o importante na comunicação é a eficiência (Si deu pra  intendê, tá tudo certo!) e de que clareza, correção e elegância são coisas supérfluas ou, pior, excludentes ("a norma culta é o instrumento linguístico criado pela burguesia para oprimir o proletariado"). Esses maus educadores acabam contribuindo para alimentar a fama que os linguistas têm entre gramáticos conservadores e leigos desavisados de que são a favor do vale-tudo em matéria de língua.

Com isso, perde a linguística séria, pautada no método científico; perde o já tão desprestigiado ensino da língua; perdem os estudantes, que irão para o mercado de trabalho despreparados e para a sociedade dotados de um vocabulário de não mais que oitocentas palavras; perde enfim o país, costumeiramente na lanterninha em avaliações internacionais de desempenho escolar.


Texto de Aldo Bizzocchi retirado da revista Língua Portuguesa, Ano 9, nº 113, Março de 2015, Editora Segmento, São Paulo.

sábado, 10 de agosto de 2024

A Boa Parte (32)

 "Maria escolheu a boa parte, que não lhe será tirada." - Jesus. (LUCAS, 10:42.)


Não te esqueças da "boa parte" que reside em todas as criaturas e em todas as coisas.

O fogo destrói, mas transporta consigo o elemento purificador.

A pedra é contundente, mas consolida a segurança.

A ventania açoita impiedosa, todavia, ajuda a renovação.

A enxurrada é imundície, entretanto, costuma carrear o adubo indispensável à sementeira vitoriosa.

Assim também há criaturas que, em se revelando negativas em determinados setores da luta humana, são extremamente valiosas em outros.

A apreciação unilateral é sempre ruinosa.

A imperfeição completa, tanto quanto a perfeição integral, não existem no plano em que evolutimos.

O criminoso, acusado por toda a gente, amanhã pode ser o enfermeiro que te estende o copo d'água.

O companheiro, no qual descobres agora uma faixa de trevas, pode ser depois o irmão sublimado que te convida ao bom exemplo.

A tempestade da hora em que vivemos é, muitas vezes, a fonte do bem-estar das horas que vamos viver.

Busquemos o lado melhor das situações, dos acontecimentos e das pessoas.

"Maria escolheu a boa parte, que não lhe será tirada" - disse-nos o Senhor.

Assimilemos a essência da divina lição.

Quem procura a "boa parte" e nela se detém, recolhe no campo da vida o tesouro espiritual que jamais lhe será roubado.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

De que é feita a prosa de ficção

 Contar histórias significa mobilizar quatro aplicativos principais


Quando dizemos que um conto ou um romance "contam uma história" estamos fazendo uma simplificação, porque cada autor conta sua história de uma maneira diferente. Cada autor tem sua paleta de cores, ou sua caixa de ferramentas, ou sua pasta de aplicativos - fique o leitor com a comparação que achar mais justa. Para mim, os aplicativos principais (pois não estou dizendo que não haja outros) são quatro: descrição, ação, diálogo e narração. Eles  aparecem aqui e ali com nomes diferentes, mas são estes os nomes que aplico para uso próprio; talvez essa divisão possa ser útil a mais alguém.


Descrição

É qualquer texto que reproduz o mundo físico, visível, palpável, onde acontece a história:

"Ele chegou a uma ruazinha estreita, calçada de pedras, iluminada por um lampião. Na calçada, diante do batente de uma casa, um velho de pijama cochilava numa cadeira de balanço. Ele caminhou até o número que tinha anotado."

O romance realista do século 19 refinou a arte da descrição a um ponto que me parece insuperável. Uma tentativa de superá-la foi feita por alguns autores do século 20, especialistas em descrições minuciosas, de extrema imaginação; Alain Robbe-Grillet (Encontro em Hong Kong, A Suspeita, etc) e Georges Perec (A Vida Modo de Usar, As coisas, Um Homem que Dorme) se especializaram nisso, e sua literatura, embora excelente, bate muitas vezes num teto de onde não é possível ir além.

É bom lembrar que a descrição não á apenas visual, não é somente a tentativa de evocar na mente do leitor o que Ezra Pound chamava de "fanopeia", a impressão visual produzida pelo texto. O autor pode estar descrevendo a sensação total produzida por um ambiente físico:

"Uma criada de roupa amarfanhada abriu a porta e pediu-lhe que esperasse. A sala tinha um cheiro úmido e abafado como se há muito tempo as janelas não fossem abertas para dar entrada ao sol; farelos de comida pelo chão indicavam que não tinha sido varrida na véspera. Do quarto ao lado, a TV ligada bradava o ruído irritante de um filme de mercenários em guerra. Ele sentou no sofá, que cedeu mais do que era de se esperar. E esperou um longo tempo".

Sensações físicas dão origem a interpretações. O autor não apenas descreve o que o personagem vê, cheira ou escuta, mas a impressão que aquilo lhe causa.


Ação

É o que acontece, a parte dinâmica da narrativa, se mistura a todo o resto. Ação e descrição devem estar misturadas como café e leite. A ação pode ocorrer em diferentes níveis de tempo. É possível sintetizar ações de vários anos num pequeno trecho:

"Há dez anos ele tentava localizar aquele homem. Viajou o país inteiro, remexeu arquivos, consultou cartórios, rastreou os indícios de sua passagem."

Estreitando um pouco o foco temporal, pode-se narrar uma ação de um dia inteiro:

"De posse do endereço, ele voltou ao hotel, almoçou, deu alguns telefonemas, e ao anoitecer pegou o ônibus que o deixaria próximo do local."

A ação é aparentemente fácil de escrever ("basta contar o que as pessoas estão fazendo"), mas pode ser traiçoeira. Uma das armadilhas mais frequentes são as cenas de ações muito específicas: cenas de sexo, de briga corporal, etc. Não basta dizer o que está acontecendo, é preciso fazê-lo de um modo que tenha a ver com os atos, os movimentos. Não se pode narrar uma briga como se narra uma refeição.


Narração

É o texto em que o autor comenta, fala o que há na mente dos personagens, dirige-se ao leitor, evoca passados ou futuros, etc. É um espaço onde ambiente e personagens retrocedem para o fundo do palco e o autor se adianta. Não sei se "narração" é o termo adequado, mas evoca uma presença por trás do texto (que não é necessariamente o autor, é muitas vezes um "preposto" seu, criado por ele para contar a história):

"A escolha do filme e o volume alto tinham sido propositais. O estalo do 22 passou despercebido. O homem e a criada arrastaram o corpo para o buraco retangular cavado desde a véspera. Para eles era um ritual aguardado, que se cumpria em minutos e sinalizava o início de uma nova espera. Pás de uma terra escura, empapada de chuva, foram jogadas sobre o cadáver e sobre os ossos carcomidos que despontavam no fundo. Dentro da casa, o tiroteio do filme continuava, surdo àquele outro tiroteio esparso que há anos vinha reduzindo o número dos detentores de um segredo mortal."


Diálogo

Parece simples - é o que os personagens dizem, geralmente indicado por travessões (uns usam aspas, à norte-americana). Para alguns, é a parte fácil: dezenas de páginas de bate-papo ininterrupto. Muitas vezes torna-se a parte redundante (o diálogo só confirma o que já foi mostrado) ou supérflua (o autor inexperiente pede a um personagem que explique ao leitor um ou outro detalha que ele não conseguiu deixar claro).

Idealmente, todo diálogo deveria trazer uma revelação sobre quem fala e escuta, sobre a narrativa propriamente.

" - Quem lhe deu meu endereço me ligou em seguida - disse a voz à janela, sobressaltando-o.

Olhou: era o velhinho que estivera cochilando na calçada, e o revólver em sua mão não tremia.

- Não pense que me caço. Fui eu que o pesquei."


Texto de Bráulio Tavares retirado da revista Língua Portuguesa, Ano 9, nº 113, Março de 2015, Editora Segmento, São Paulo.

sábado, 3 de agosto de 2024

Lavradores (31)

 "O lavrador que trabalha deve ser o primeiro a gozar dos frutos." - Paulo. (II TIMÓTEO, 2:6)


Há lavradores de toda classe.

Existem aqueles que compram o campo e exploram-no, através de rendeiros suarentos, sem nunca tocarem o solo com as próprias mãos.

Encontramos em muitos lugares os que relegam a enxada à ferrugem, cruzando os braços e imputando à chuva ou ao sol o fracasso da sementeira que não vigiam.

Somos defrontados por muitos que fiscalizam a plantação dos vizinhos, sem qualquer atenção para  com os trabalhos que lhes dizem respeito.

Temos diversos que falam despropositadamente com referência a inutilidades mil, enquanto vermes destruidores aniquilam as flores frágeis.

Vemos numerosos acusando a terra como incapaz de qualquer produção, mas negando à gleba que lhes foi confiada a bênção da gota d'água e o socorro do adubo.

Observamos muitos que se dizem possuídos pela dor de cabeça, pelo resfriado ou pela indisposição e perdem a sublime oportunidade de semear.

A Natureza, no entanto, retribui a todos eles com o desengano, a dificuldade, a negação e o desapontamento.

Mas o agricultor que realmente trabalha, cedo recolhe a graça do celeiro farto.

E assim ocorre na lavoura do espírito.

Ninguém logrará o resultado excelente, sem esforçar-se, conferindo à obra do bem o melhor de si mesmo.

Paulo de Tarso, escrevendo numa época de senhores e escravos, de superficialidade e favoritismo, não nos diz que o semeador distinguido por César ou mais endinheirado seria o legítimo detentor da colheita, mas asseverou, com indiscutível acerto, que o lavrador dedicado às próprias obrigações será o primeiro a beneficiar-se com as vantagens do fruto.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

terça-feira, 30 de julho de 2024

A evolução esbarra na educação

Que as línguas evoluem já se tornou um truísmo. Estamos tão acostumados à ideia de que cada geração se expressa de modo diferente e novos termos e construções surgem a todo momento que prestamos mais atenção à mudança do que à conservação. E, no entanto, se a tendência natural da língua é mudar, o fato verdadeiramente admirável não é que haja inovações o tempo todo, mas que exista certa estabilidade no sistema, de modo que conseguimos nos comunicar com eficiência desde que aprendemos a falar até o fim da vida.

Embora muitos pensem que exista uma força impulsionando a evolução, na verdade, a mudança se dá por inércia: é necessário uma força para deter ou retardar a evolução. Afinal, abandonada à própria sorte, toda língua muda rápida e inexoravelmente, já que todo falante, mesmo involuntariamente, contribui para essa transformação.


Formalidade

O fator que mais obstrui a mudança é a escrita: línguas com escrita formal são mais conservadoras que as ágrafas. A escrita socialmente partilhada precisa que haja uniformidade espacial e temporal. E para que exista escrita formal, tem de haver educação. Portanto, a escola é a grande força a se opor à evolução da gramática (o léxico muda mais pacificamente com o próprio progresso social). A língua falada na România, os territórios europeus outrora dominados por Roma, mudou mais do século 5º ao 10º de nossa era do que nos cinco séculos anteriores ou nos dez seguintes. Essa rápida mutação se deveu ao desaparecimento da educação formal durante a Alta Idade Média.


Níveis

Todas as línguas literárias, ou de cultura, admitem um nível de linguagem formal e um informal, além de um que podemos chamar de "iletrado". Em Português, em simplificação grosseira, esses três níveis podem ser representados pelas construções "nós vamos", "a gente vai" e "nós vai" (ou "a gente vamos"). Entre os dois primeiros níveis e o terceiro há uma barreira: um falante escolarizado alterna seu registro entre formal e informal conforme o interlocutor e a situação de comunicação em que se encontre (entrevista de emprego, palestra, bate-papo entre amigos). Mas nunca se expressa como as pessoas iletradas, a não ser de brincadeira. Já estas acabam prisioneiras de seu nível de linguagem pela falta de escolaridade.

É notável que em países como os escandinavos a distância entre a língua falada e a escrita é menor do que em outros, como o Brasil. Mas para discutir esse ponto, é preciso primeiro desfazer um equívoco frequente entre nível formal e modalidade escrita, assim como entre nível informal e modalidade falada. Muitos acreditam que a norma padrão existe só para a escrita, e a expressão oral é livre de obedecer a ela dada a sua natural informalidade.

Há formalidade e informalidade tanto na escrita quanto na fala: podemos escrever a um amigo em linguagem coloquial, como se estivéssemos falando com ele, assim como se deve usar o Português padrão numa conferência ou aula magna. É bem verdade que a maioria dos textos escritos é formal e a dos atos de fala é informal, o que gera a confusão entre registro e modalidade.


Conservadorismo

Pessoas bem escolarizadas tendem a se expressar de maneira mais próxima do padrão mesmo em situações informais. Ou seja, não se passa pelo processo de escolarização impunemente! Portanto, se em certos países a língua falada está bem próxima da escrita, é porque, neles, a qualidade e a abrangência da educação são muito altas.

Povos como o sueco ou o alemão têm a fama de escreverem como se fala; a realidade é que eles falam como se escreve, ou seja, a forte ênfase em escrita no ensino básico faz com que os falantes, mesmo em ambientes informais, prefiram "nós vamos" a "a gente vai".

No Português brasileiro, a distância entre a língua dos contratos e ofícios e a dos botequins e campinhos de futebol é abismal - em Portugal, essa distância é um pouco menor. Isso se dá em parte porque nosso padrão é excessivamente conservador (jornais e revistas tendem a um meio-termo, elegante e correto, mas simples e direto), mas também porque nossa escola é fraca; fosse mais forte, mais gente usaria "nós vamos" em lugar de "a gente vai", e mais pessoas diriam "a gente vai" em vez de "a gente vamos".

Some-se a isso o fato de que, para muitos estudantes, a figura de prestígio e modelo de comportamento e linguagem não é o professor, mas o traficante, temido e respeitado por seu poder de fogo. Nesse sentido, arriscaria dizer que, em matéria de fala, a população de baixo letramento - que, infelizmente, inclui até universitários - não se encontra em situação tão diferente da experimentada pelos europeus da Idade das Trevas.


Texto de Aldo Bizzochi retirado da revista Língua Portuguesa, Ano 9, nº 115, Maio de 2015, Editora Segmento, São Paulo.