Era uma vez um menino...
José.
José vivia numa cidade pequena, pequena.
A cidade não tinha rio.
A cidade não tinha mar.
Cidade triste, aquela cidade.
A cidade só tinha uma estrada.
Estrada grande, enorme, asfalto.
Passava caminhão cheio de carga.
Passava caminhão cheio de gente.
Passava carro cheio de meninos.
E José via.
Entrou ano. Saiu ano.
José cresceu.
Aprendeu a ler com dona Maria.
Aprendeu que lá longe, no fim da estrada...
Tinha outras cidades.
Tinha mar.
Tinha barco.
E até outros meninos tinha.
Já sabia ler o José.
Os caminhões passavam cheios de nomes.
São Paulo.
Minas Gerais.
Pernambuco.
Bahia.
"Meu caminho só Deus sabe".
Fé em Deus e pé na estrada".
"Flor do asfalto".
Aprendeu tanta coisa José.
Mas as coisas na cabeça de José eram complicadas.
Deus andava num avião a jato.
Os passageiros eram santos.
Os arcanjos cantavam fados.
E os anjinhos brincavam nas asas dos aviões.
Aprendeu coisas da vida José.
Aprendeu a pegar boi no laço.
-ÊÊÊÊÊÊ-BOIIIII-EÁÁÁÁÁÁÁ!
Montar cavalo no pelo.
Caçar bicho no mato.
Namorar na pracinha no domingo.
Jogar capoeira como ninguém:
- Água de beber, ê...
Água de beber, camarada.
O galo cantou, ô...
Cocoricou, camarada...
Mas a estrada...
A estrada chamava José.
Um dia José pegou suas coisas.
Mala pequena. Muda de roupa.
Pegou água. Pegou farinha.
Carne-de-sol pegou.
Falou com o pai.
Falou com a mãe.
Com os irmãos falou.
Fez festa no cachorro.
E lá se foi José.
Eu vi José subir no caminhão.
Eu vi a estrada levar José.
Rosto sério. Lenço branco.
Adeus José.
E nunca mais ninguém viu José.
Dizem que ele sumiu na cidade grande.
Dizem muitas coisas do José.
Que ele trabalha em construção.
Que faz arranha-céu alto, alto.
Dizem que ele é marujo, embarcado.
Dizem que ele é piloto de avião a jato.
Eu não sei.
Dizem até que ele está na corte de Dom Sebastião.
Que agora ele é nobre, tem brasão.
E que um dia ele vai voltar.
Cheios de tesouros e nobreza.
E que a cidade vai virar reino.
O reino de Dom Sebastião.
Eu não sei, não.
Mas se você encontrar José,
me faça um favor.
Diga que a gente continua esperando...
Na beira da estrada.
Que todo mundo quer ser nobre.
Usar capa e espada.
Ter brasão.
E viva Dom Sebastião!
Dom Sebastião (1554-1578) foi um rei de Portugal que morreu muito moço, na batalha de Alcácer-Quibir, no Marrocos. Mas seu corpo nunca foi encontrado. Após sua morte, Portugal passou ao domínio da Espanha, que duraria até 1640, e durante todo esse tempo, formou-se no povo português a esperança de que Dom Sebastião voltaria para estabelecer o Quinto Império português: uma espécie de Paraíso terrestre, que se estenderia pelo mundo todo. No Brasil, essa crença, chamada de "sebastianismo", estimulou movimentos populares como o do Reino Encantado (1836/1838), em Pernambuco, retratado por Ariano Suassuna em seu Romance da Pedra do Reino (1971).
Texto de Sônia Robatto retirado do livro Meninos e Meninas, Coleção Literatura em Minha Casa, 4ª Série, Volume 2, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2003.
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