sábado, 22 de julho de 2023

O Presente

O peru estava engordando desde o mês de agosto. Chamava-se Alencar, não me perguntem por quê, nem quem lhe deu este nome. Nós o conhecíamos como Alencar e pronto.

Alencar nos foi dado de presente por um humorista, amigo da minha mãe. Sua última piada na vida? Pode ser. Nunca descobrimos com que intenção.

Se nosso apartamento não fosse de cobertura, não sei o que faríamos com ele. Um peru está acostumado a viver na terra, o que ele ia fazer num apartamento como o nosso, que nem grande é?

- Já sei. Vamos comer o Alencar no teu aniversário - minha mãe falou. - Até lá a gente dá bastante milho para ele ficar bem gordinho, e daí... Vai ver só que banquete.

Alencar, que ouviu o que a minha mãe disse, ficou desesperado. E agora?

O jeito era não comer. Ninguém ia querer um peru magrelo, sem carne, na mesa. Claro que não. E ele começou a fazer regime e exercício.

Andava de um lado para outro, sem descanso. Se estivesse bem magro e raquítico... Não ouviu pessoas comentarem histórias semelhantes? Pois é. Não estava atrás de originalidade, e sim da sobrevivência.

O erro da mãe foi amarrar o Alencar com um cordão de náilon.

- Imagine se ele resolve sair por aí, dar um salto, pode até cair lá embaixo e morrer.

"Que ironia", pensei. "Vai morrer de qualquer jeito". Então resolvi proteger o pobre do peru e dar só saladas para ele.

Alencar tinha caráter. Como tinha. O milho que a minha mãe dava, jogava um por um no ralo. Ouvia o barulho do grão caindo lá embaixo...

Outro prazer do Alencar: se exibir andando na balaustrada do terraço. Como o cordão era bastante comprido, ele subia no parapeito e andava de cá pra lá, de lá pra cá.

Sabia que causava a maior admiração nos vizinhos do nosso prédio. Alencar estufava o peito, vaidoso. Glu-glu-glu.

E emagrecia. Como emagrecia.

Em outubro, minha mãe prestou atenção no Alencar.

- Oh, minha filha, o Alencar parece que está tão magrinho... Você tem dado milho para ele?

- Claro que tenho, mãe. Mas ele não quer comer.

- Do jeito que ele está, nem vale a pena  matar. Melhor comprar um peru no supermercado.

- Ou fazer outra coisa, mamãe. Que tal salsicha? Todos meus amigos adoram.

- Está bem - ela concordou.

- E se a gente levasse o Alencar para a casa da vovó? Lá tem galinheiro...

Alencar não esperava outra coisa da vida. Queria porque queria ir para a casa da vovó. E começou a comer. Comer muito. Precisava chegar lá gordo e forte. Mal eu aparecia com o pacote de milho, ele voava em cima de mim.

Aí foi minha vez de dizer.

- Escute aqui, Alencar. Se você engordar, minha mãe vai querer servir você no meu aniversário. E, se você escapar dela, minha avó vai querer servir você no Natal.

Alencar virou de lado, como fazem os perus, e sorriu para mim, com o olhar mais agradecido do mundo.

Deixamos o Alencar no sítio da vovó, e esquecemos dele.

Mas no Natal, ao ver aquele peru enorme em cima da mesa, comecei a chorar.

- Que aconteceu com essa menina?

Minha mãe finalmente se deu conta.

- O peru. Deve ser o peru. É o Alencar?

- Claro que não. O Alencar está no galinheiro. Pode ir ver, queridinha.

E lá estava o Alencar, magro, magérrimo, mas orgulhoso, rei do pedaço, cercado de peruas por todos os lado.


Conto de Edla Van Steen retirado do livro Conto com Você, da Série Literatura em Minha Casa, Volume 2 - Conto - 4ª série; Global Editora, São Paulo, 2003.

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