quinta-feira, 12 de junho de 2025

Sobre o corte no Candomblé (Anexo 3)

Para contribuir para o diálogo a respeito do corte no candomblé, reproduzo a íntegra de uma carta publicada resumidamente no Jornal de Piracicaba de 23 de janeiro de 2011:

Muito oportuno, lúcido e realmente dialógico o artigo "Liberdade religiosa e sacrifício de animais", de Ivan Gabriel França de Negri. Com relação ao tema, este é um dos poucos textos publicados na imprensa que não agridem aqueles que pensam de maneira diferente de seus autores.

Com muita tristeza acompanhei no ano de 2010 a tentativa de parte da sociedade civil e de legisladores municipais de proibir o corte nos terreiros de candomblé da cidade. Por trás da "defesa dos direitos dos animais", preconceito religioso, rancor, incompreensão, falta de argumentos lógicos. Articulistas de jornais exaltados mostravam grande desconhecimento dos fundamentos do candomblé, dos orixás, de entidades, por vezes empregando termos, além de raivosos, altamente preconceituosos.

Conforme afirmo em meu livro Xirê: orikais - canto de amor aos orixás (Piracicaba: Limão Doce, 2010), "nos anos 90 li uma matéria num jornal de grande circulação nacional que tratava de tema polêmico, por vezes tabu: a não utilização de animais em rituais de candomblé. Isso à época me chamou muito a atenção, mas o tema foi deixado de lado. Não me recordo com precisão das referências da matéria, contudo tenho encontrado outras, esparsas, sobre Agenor Miranda e Mestre Didi apresentando ideias semelhantes". Anos depois, encontrei Iya Senzaruban e me iniciei no candomblé vegetariano, organizado por ela paulatinamente há quase 20 de seus mais de 45 anos de candomblé. Em sua casa (Ilê Iya Tunde), fui confirmado e saí ogã de Oxum.

Por nunca ter praticado ou vivenciado o corte, acredito ter imparcialidade suficiente para aqui deixar meu depoimento a favor dos  irmãos que veem suas práticas erroneamente condenadas , uma vez que aqueles que os desrespeitam não compreendem a função do corte no culto e na alimentação da própria comunidade dos terreiros e seu entorno. Se existe abuso e crueldade, que haja fiscalização legítima e democrática para coibir tais práticas. Sobre o tema, vale a pena ler em meu livro a respeito do cuidado com que os animais são geralmente criados nos terreiros, ao contrário do que acontece na maioria dos criadouros. Muitos dos rituais citados pelos detratores do candomblé, em Piracicaba, jamais aconteceram em qualquer ilê deste país. Infelizmente, no libelo contra os candomblecistas da cidade, palavras de Iya Senzaruban foram utilizadas descontextualizadas, transcritas de entrevistas.

O candomblé vegetariano não faz proselitismo. Conforme repito sempre, trata-se de "uma prática que respeita os fundamentos de outras tradições e amorosamente também exige respeito". Infelizmente somos discriminados por nossa opção de culto mais pelos próprios irmãos de candomblé do que por aqueles que comumente criticam o candomblé, mas jamais faríamos isso. Nossa forma de culto difere, mas nossa identidade é a mesma. O vegetarianismo no culto, assim como na alimentação, é uma opção pessoal/coletiva que não pode ser violentamente imposta a ninguém.

Neste início de ano, convido os irmãos a dialogarem com aqueles que cultuam orixás, sejam do candomblé, da umbanda (à qual pertenço hoje e que, em seus fundamentos, ao contrário do que se afirma ao léu e a despeito de algumas casas, não pratica o corte), de outras religiões, simpatizantes dos cultos e outros. Até mesmo para criticar é preciso conhecer. Ou se está fadado a dizer besteiras. Um célebre provérbio dos terreiros afirma "Enu eja pa eja". Em tradução livre do iorubá, "O peixe morre pela boca".


Retirado do livro Para Conhecer o Candomblé, de Ademir Barbosa Júnior, Universo dos Livros, São Paulo, 2013.

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