Gosto que me enrosco
Eu tô com ele
Tô no barato dele
No meu baralho ele é o rei
Gosto do seu brinco na orelha
Fui eu que dei pra ele
Fui eu que dei
Prata de pirata, lataria
Mas brilha mais
Do que um dia azul de sol
Brilha como a luz
Nos olhos de quem
Ama e se derrama
Eternamente por alguém
Ou eternamente
Por um dia só
Que faz que não termina
Nunca mais
Que faz que não termina
Nunca mais
Sabe,
Esse amor não tem dó
Toma tudo e bate só
No meu peito assim
Feito um coração
Por ele e nele,
Aquele que me quer
Por ele e nele
Doa a quem doer
Música de Michi Ruzitschka e Clima, gravada por Giana Viscardi, no CD Orum, lançado em 2013.
quarta-feira, 24 de junho de 2020
Poder
Pode ser loucura, pode ser razão
Pode ser sim, pode ser não
Pode ser Maria, pode ser João
Pode ser carro, pode ser avião
Pode ser saúde, pode ser educação
Pode ser porta, pode ser portão
Pode ser amor, pode ser prisão
Pode ser drama, Pode ser pastelão
Pode ser laranja, pode ser limão
Pode ser bíblia, pode ser alcorão
Pode ser inverno, pode ser verão
Pode ser pé, pode ser mão
Pode ser nevoeiro, pode ser poluição
Pode ser samba, pode ser baião
Pode ser São Jorge, pode ser dragão
Pode ser circo, pode ser pão
Só não sei por que
Eu e você
Não pode não
Pode ser purê, pode ser pirão
Pode ser rei, pode ser peão
Pode ser chapeuzinho, pode ser lobão
Pode ser raio, pode ser trovão
Pode ser sujeira, pode ser sabão
Pode ser seda, pode ser algodão
Pode ser bermuda, pode ser calção
Pode ser beijo, pode ser chupão
Pode ser reforma, pode ser revolução
Pode ser creme, pode ser loção
Pode ser conselho, pode ser lição
Pode ser gato, pode ser cão
Pode ser fila, pode ser procissão
Pode ser Eva, pode ser Adão
Pode ser madeira, pode ser carvão
Pode ser antes, pode ser então
Só não sei por que
Eu e você
Não pode não
Pode ser guitarra, pode ser violão
Pode ser brocha, pode ser garanhão
Pode ser trepada, pode ser masturbação
Pode ser cama, pode ser chão
Pode ser visita, pode ser invasão
Pode ser regra, pode ser exceção
Pode ser tristeza, pode ser preocupação
Pode ser Marte, pode ser Plutão
Pode ser xadrez, pode ser gamão
Pode ser sério, pode ser gozação
Pode ser solteiro, pode ser sultão
Pode ser papo, pode ser discussão
Pode ser progresso, pode ser recessão
Pode ser bolsa, pode ser pregão
Pode ser favela, pode ser mansão
Pode ser fim, pode ser introdução
Só não sei por que
Eu e você
Não pode não
Pode ser cinema, pode ser televisão
Pode ser cara, pode ser coração
Pode ser mentira, pode ser plantão
Pode ser hobby, pode ser profissão
Pode ser país, pode ser nação
Pode ser Santos, pode ser Cubatão
Pode ser palpite, pode ser dedução
Pode ser cópia, pode ser invenção
Pode ser cagaço, pode ser precaução
Pode ser frango, pode ser faisão
Pode ser arroz, pode ser feijão
Pode ser juros, pode ser inflação
Pode ser incompetência, pode ser distração
Pode ser águia, pode ser gavião
Pode ser mocinho, pode ser vilão
Pode ser um, pode ser milhão
Só não sei por que
Eu e você
Não pode não
Pode ser problema, pode ser solução
Pode ser pobre, pode ser barão
Pode ser biriba, pode ser balão
Pode ser bela, pode ser canhão
Pode ser anágua, pode ser combinação
Pode ser bagre, pode ser salmão
Pode ser geladeira, pode ser fogão
Pode ser pai, pode ser patrão
Pode ser acaso, pode ser intenção
Pode ser pico, pode ser injeção
Pode ser hotel, pode ser pensão
Pode ser arte, pode ser borrão
Pode ser doente, pode ser são
Pode ser áries, pode ser escorpião
Pode ser inteiro, pode ser fração
Pode ser tudo, pode ser tão
Só não sei por que
Eu e você
Não pode não
Música de Arnaldo Antunes e Tadeu Jungle, que faz parte do CD O Silêncio, lançado em 1997.
terça-feira, 23 de junho de 2020
Trecho 152
Pasmo sempre quando acabo qualquer coisa. Pasmo e desolo-me. O meu instinto de perfeição deveria inibir-me de acabar; deveria inibir-me até de dar começo. Mas distraio-me e faço. O que consigo é um produto, em mi, não de uma aplicação de vontade, mas de uma cedência dela. Começo porque não tenho força para pensar; acabo porque não tenho alma para suspender. Este livro é a minha covardia.
A razão por que tantas vezes interrompo um pensamento com um trecho de paisagem, que de algum modo se integra no esquema, real ou suposto, das minhas impressões, é que essa paisagem é uma porta por onde fujo ao conhecimento da minha impotência criadora. Tenho a necessidade, em meio das conversas comigo que formam as palavras deste livro, de falar de repente com outra pessoa, e dirijo-me à luz que paira, como agora, sobre os telhados das casas, que parecem molhados de tê-la de lado; ao agitar brando das árvores altas na encosta citadina, que parecem perto, numa possibilidade de desabamento mudo; aos cartazes sobrepostos das casas ingremadas, com janelas por letras onde o sol morto doira goma húmida.
Por que escrevo, se não escrevo melhor? Mas que seria de mim se não escrevesse o que consigo escrever, por inferior a mim mesmo que nisso seja? Sou um plebeu da aspiração, porque tento realizar; não ouso o silêncio como quem receia um quarto escuro. Sou como os que prezam a medalha mais que o esforço, e gozam a glória na peliça.
Para mim, escrever é desprezar-me; mas não posso deixar de escrever. Escrever é como a droga que repugno e tomo, o vício que desprezo e em que vivo. Há venenos necessários, e há-os sutilíssimos, compostos de ingredientes da alma, ervas colhidas nos recantos das ruínas dos sonhos, papoulas negras achadas ao pé das sepulturas dos propósitos, folhas longas de árvores obscenas que agitam os ramos nas margens ouvidas dos rios infernais da alma.
Escrever, sim, é perder-me, mas todos se perdem, porque tudo é perda. Porém eu perco-me sem alegria, não como o rio na foz para que nasceu incógnito, mas como o lago feito na praia pela maré alta, e cuja água sumida nunca mais regressa ao mar.
Por que escrevo, se não escrevo melhor? Mas que seria de mim se não escrevesse o que consigo escrever, por inferior a mim mesmo que nisso seja? Sou um plebeu da aspiração, porque tento realizar; não ouso o silêncio como quem receia um quarto escuro. Sou como os que prezam a medalha mais que o esforço, e gozam a glória na peliça.
Para mim, escrever é desprezar-me; mas não posso deixar de escrever. Escrever é como a droga que repugno e tomo, o vício que desprezo e em que vivo. Há venenos necessários, e há-os sutilíssimos, compostos de ingredientes da alma, ervas colhidas nos recantos das ruínas dos sonhos, papoulas negras achadas ao pé das sepulturas dos propósitos, folhas longas de árvores obscenas que agitam os ramos nas margens ouvidas dos rios infernais da alma.
Escrever, sim, é perder-me, mas todos se perdem, porque tudo é perda. Porém eu perco-me sem alegria, não como o rio na foz para que nasceu incógnito, mas como o lago feito na praia pela maré alta, e cuja água sumida nunca mais regressa ao mar.
segunda-feira, 22 de junho de 2020
Carpinteiro do Universo
Carpinteiro do universo eu sou
Carpinteiro do universo eu sou
Não sei porque nasci pra querer ajudar
A querer consertar o que não pode ser
Não sei pois nasci para isso e aquilo
E o enguiço de tanto querer
Carpinteiro do universo inteiro eu sou
Carpinteiro do universo inteiro eu sou
Estou sempre pensando em aparar o cabelo de alguém
E sempre tentando mudar a direção do trem
A noite a luz do meu quarto eu não quero apagar
Pra que você não tropece na escada quando chegar
Carpinteiro do universo inteiro eu sou
Carpinteiro do universo inteiro eu sou
O meu egoísmo é tão egoísta
Que o auge do meu egoísmo é querer ajudar
Carpinteiro do universo inteiro eu sou
Carpinteiro do universo inteiro eu sou
Carpinteiro do universo inteiro eu sou assim
No final, carpinteiro de mim
Música do CD Panela do Diabo, de Raul Seixas e Marcelo Nova, lançado em 1989. Composição dos dois.
Carpinteiro do universo eu sou
Não sei porque nasci pra querer ajudar
A querer consertar o que não pode ser
Não sei pois nasci para isso e aquilo
E o enguiço de tanto querer
Carpinteiro do universo inteiro eu sou
Carpinteiro do universo inteiro eu sou
Estou sempre pensando em aparar o cabelo de alguém
E sempre tentando mudar a direção do trem
A noite a luz do meu quarto eu não quero apagar
Pra que você não tropece na escada quando chegar
Carpinteiro do universo inteiro eu sou
Carpinteiro do universo inteiro eu sou
O meu egoísmo é tão egoísta
Que o auge do meu egoísmo é querer ajudar
Carpinteiro do universo inteiro eu sou
Carpinteiro do universo inteiro eu sou
Carpinteiro do universo inteiro eu sou assim
No final, carpinteiro de mim
Música do CD Panela do Diabo, de Raul Seixas e Marcelo Nova, lançado em 1989. Composição dos dois.
Mar É
Não é risco
Nem pavor
Não se dá no medo
Ou na dor
Quem quiser ir além-mar
Vai se deixar levar no mar
Pro seu lugar
É no rumo
Do puxar
E é na corrente de voltar
O que é teu é no além-mar
Não é preciso nem remar
Já vai chegar
Vai ser
Bem, bem melhor que você pensou
Continente é de maré
Essa maré que traz o amor
E molha o pé
(Você nem viu, já chegou)
Teu percurso é no mar
Chegar feito onda e quebrar
Se te parte a pedra em mil
Logo retorna ao anil
Refeito ao mar
Vento sopra e empurra o mar
Sopra e empurra o que é de mim
Música que fecha o CD Vista Pro Mar, do Silva, lançado em 2014. Composição dele e do irmão Lucas Silva.
Vista Pro Mar
Eu não nasci do mar
Mas sou daqui
Já mergulhei pra não sair
Quem é de preamar
Se encontra aqui
Não há mais maré baixa
Em mim
Eu sou de remar
Sou de insistir
Mesmo que sozinho
Só vai se afogar
Quem não reagir
Mesmo que sozinho
Música que abre o CD Vista Pro Mar, do Silva, lançado em 2014. Composição dele e do irmão Lucas Silva.
Hoje
Se permita ser
Qualquer coisa menos superficial
Qualquer coisa que elevem os teus sonhos
Mas fujam do mundo imoral
Deixa eu te dizer
Que o amor é fogo que arde forte para dois
Que muda tudo, finda o peito,
E só depois
Te enche de pleno prazer
A gente sofre a dor da sorte
E se parte para vencer
É pura morte, desventura
Viver de vaidade para quê
Hoje a gente vê
Que o dia é duro para chegar até o final
Que cada um possui uma dose de demônios
E a luta é um feito fatal
Fácil perceber
Que o padrão virou doença secular
Moldar o corpo se tornou tão instintivo
E a mente parou de malhar
A gente sofre a dor da sorte
E se parte para vencer
É pura morte, desventura,
Viver de vaidade para quê?
Tudo tem um jeito
Tudo tem um preço
O apreço é o preço da hora
É tudo questão de ser
Somos o que somos
Somos quem seremos
Somos o aqui, o agora
Somos iguais ao morrer
A gente sofre a dor da sorte
E se parte para vencer
É pura morte, desventura
Viver de vaidade para quê?
A gente sofre a dor da sorte
E se parte para vencer
É pura morte, desventura
Viver de vaidade para quê?
Música que abre o CD Arsênico, de Romero Ferro, lançado em 2015.
Qualquer coisa menos superficial
Qualquer coisa que elevem os teus sonhos
Mas fujam do mundo imoral
Deixa eu te dizer
Que o amor é fogo que arde forte para dois
Que muda tudo, finda o peito,
E só depois
Te enche de pleno prazer
A gente sofre a dor da sorte
E se parte para vencer
É pura morte, desventura
Viver de vaidade para quê
Hoje a gente vê
Que o dia é duro para chegar até o final
Que cada um possui uma dose de demônios
E a luta é um feito fatal
Fácil perceber
Que o padrão virou doença secular
Moldar o corpo se tornou tão instintivo
E a mente parou de malhar
A gente sofre a dor da sorte
E se parte para vencer
É pura morte, desventura,
Viver de vaidade para quê?
Tudo tem um jeito
Tudo tem um preço
O apreço é o preço da hora
É tudo questão de ser
Somos o que somos
Somos quem seremos
Somos o aqui, o agora
Somos iguais ao morrer
A gente sofre a dor da sorte
E se parte para vencer
É pura morte, desventura
Viver de vaidade para quê?
A gente sofre a dor da sorte
E se parte para vencer
É pura morte, desventura
Viver de vaidade para quê?
Música que abre o CD Arsênico, de Romero Ferro, lançado em 2015.
sexta-feira, 19 de junho de 2020
Amor Mais Que Discreto
Talvez haja entre nós o mais total interdito
Mas você é bonito o bastante
Complexo o bastante
Bom o bastante
Pra tornar-se ao menos por um instante
O amante do amante
Que antes de te conhecer eu não cheguei a ser
Eu sou um velho, mas somos dois meninos
Nossos destinos são mutuamente interessantes
Um instante, alguns instantes, o grande espelho
E aí a minha vida ia fazer mais sentido
E a sua talvez mais que a minha
Talvez bem mais que a minha
Os livros, filmes, filhos ganhariam colorido
Se um dia afinal eu chegasse a ver que você vinha
E isso é tanto que pinta no meu canto
Mas pode dispensar a fantasia
O sonho em branco e preto
Amor mais que discreto
Que é já uma alegria
Até mesmo sem ter o seu passado, seu tempo
Seu agora, seu antes, seu depois
Sem ser remotamente sequer imaginado
Sequer imaginado, sequer imaginado sequer
Por qualquer de nós dois
Música de Caetano Veloso que faz parte do CD Tomada, de Filipe Catto, lançado em 2015.
Avesso
Nós já temos encontro marcado
Eu só não sei quando
Se daqui a dois dias
Se daqui a mil anos
Com dois canos pra mim apontados
Ousaria te olhar, ousaria te ver
Num insuspeitável bar, pra decência não nos ver
Perigoso é te amar, doloroso querer
Somos homens pra saber o que é melhor pra nós
O desejo a nos punir, só porque somos iguais
A idade Média é aqui
Mesmo que me arranquem o sexo, minha honra, meu prazer
Te amar eu ousaria
E você, o que fará se esse orgulho nos perder?
No clarão do luar, espero
Cá nos braços do mar me entrego
Quanto tempo levar, quero saber se você
É tão forte que nem lá no fundo irá desejar
O que eu sinto, meu Deus, é tão forte!
Até pode matar
O teu pai já me jurou de morte por eu te desviar
Se os boatos criarem raízes
Ousarias me olhar?
Ousarias me ver?
Dois meninos num vagão e o mistério do prazer
Perigoso é me amar, obscuro querer
Somos grandes para entender, mas pequenos pra opinar
Se eles vão nos receber
É mais fácil condenar ou noivados pra fingir
Mesmo que chegue o momento que eu não esteja mais aqui
E meus ossos virem adubo
Você pode me encontrar no avesso de uma dor
No clarão do luar, espero
Cá nos braços do mar me entrego
Quanto tempo levar, quero saber se você
É tão forte que nem lá no fundo irá desejar...
Música do CD "Leve", de Jorge Vercilo, lançado em 2000.
quinta-feira, 18 de junho de 2020
Trecho 232 de O Livro do Desassossego
" Quanto mais avançamos na vida, mais nos convencemos de duas verdades que todavia se contradizem. A primeira é de que, perante a realidade da vida, soam pálidas todas as ficções da literatura e da arte. Dão, é certo, um prazer mais nobre que os da vida; porém são como os sonhos, em que sentimos sentimentos que na vida se não sentem, e se conjugam formas que na vida se não encontram; são contudo sonhos, de que se acorda, que não constituem memórias nem saudades, com que vivamos depois uma segunda vida.
A segunda é de que, sendo desejo de toda alma nobre o percorrer a vida por inteiro, ter experiência de todas as coisas, de todos os lugares e de todos os sentimentos vividos, e sendo isto impossível, a vida só subjetivamente pode ser vivida por inteiro, só negada pode ser vivida na sua substância total.
Estas duas verdades são irredutíveis uma à outra. O sábio abster-se-á de as querer conjugar, e abster-se-á também de repudiar uma ou outra. Terá contudo que seguir uma, saudoso da que não segue; ou repudiar ambas, erguendo-se acima de si mesmo em um nirvana próprio.
Feliz quem não exige da vida mais do que ela espontaneamente lhe dá, guiando-se pelo instinto dos gatos, que buscam o sol quando há sol, e quando não há sol o calor, onde quer que esteja. Feliz quem abdica da sua personalidade pela imaginação, e se deleita na contemplação das vidas alheias, vivendo, não todas as impressões, mas o espetáculo externo de todas as impressões alheias. Feliz, por fim, esse que abdica de tudo, e a quem, porque abdicou de tudo, nada pode ser tirado nem diminuído.
O campônio, o leitor de novelas, o puro asceta - estes três são os felizes da vida, porque são estes três que abdicam da personalidade - um porque vive do instinto, que é impessoal, outro porque vive da imaginação, que é esquecimento, o terceiro porque não vive,e, não tendo morrido, dorme.
Nada me satisfaz, nada me consola, tudo - quer haja sido, quer não - me sacia. Não quero ter a alma e não quero abdicar dela. Desejo o que não desejo e abdico do que não tenho. Não posso ser nada nem tudo: sou a ponte de passagem entre o que não tenho e o que não quero. "
Trecho 232 de "O Livro do Desassossego", de Fernando Pessoa.
A segunda é de que, sendo desejo de toda alma nobre o percorrer a vida por inteiro, ter experiência de todas as coisas, de todos os lugares e de todos os sentimentos vividos, e sendo isto impossível, a vida só subjetivamente pode ser vivida por inteiro, só negada pode ser vivida na sua substância total.
Estas duas verdades são irredutíveis uma à outra. O sábio abster-se-á de as querer conjugar, e abster-se-á também de repudiar uma ou outra. Terá contudo que seguir uma, saudoso da que não segue; ou repudiar ambas, erguendo-se acima de si mesmo em um nirvana próprio.
Feliz quem não exige da vida mais do que ela espontaneamente lhe dá, guiando-se pelo instinto dos gatos, que buscam o sol quando há sol, e quando não há sol o calor, onde quer que esteja. Feliz quem abdica da sua personalidade pela imaginação, e se deleita na contemplação das vidas alheias, vivendo, não todas as impressões, mas o espetáculo externo de todas as impressões alheias. Feliz, por fim, esse que abdica de tudo, e a quem, porque abdicou de tudo, nada pode ser tirado nem diminuído.
O campônio, o leitor de novelas, o puro asceta - estes três são os felizes da vida, porque são estes três que abdicam da personalidade - um porque vive do instinto, que é impessoal, outro porque vive da imaginação, que é esquecimento, o terceiro porque não vive,e, não tendo morrido, dorme.
Nada me satisfaz, nada me consola, tudo - quer haja sido, quer não - me sacia. Não quero ter a alma e não quero abdicar dela. Desejo o que não desejo e abdico do que não tenho. Não posso ser nada nem tudo: sou a ponte de passagem entre o que não tenho e o que não quero. "
Trecho 232 de "O Livro do Desassossego", de Fernando Pessoa.
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