Parado no portão de ferro, olhei direto para o sol. Meu truque antigo: o em volta tão claro que atingia seu oposto e se tornava escuro, enchendo-se de sombras e reflexos que se uniam aos poucos, organizando-se em forma de objetos, ou apenas dançavam, soltos no espaço à minha frente, sem formar coisa alguma. Eram esses que me interessavam, os que dançavam vadios no ar, sem fazer parte das nuvens, das árvores nem das casas. Eu não sabia para onde iam, depois que meu olho novamente acostumado à luz colocava cada coisa em seu lugar, assim: casa - paredes, janelas e portas; árvores - tronco, galhos e folhas; nuvem - fiapos estirados ou embolados, vezenquando brancos, vezenquando coloridos. Cada coisa, cada coisa: inteira, na união de todas as suas infinitas partes. Mas e a sombra e os reflexos, esses que não se integravam em forma alguma, onde ficavam guardados? Para onde ia a parte das coisas que não cabia na própria coisa? Para o fundo do meu olho, esperando o ofuscamento para vir outra vez à tona? Ou entre as próprias coisas-coisas, no espaço vazio entre o fim de uma parte e o começo de outra? Como um por trás do real, feito espírito de sombra ou luz, claro-escuro escondido no mais de-dentro de um tronco ou no pequeno espaço entre um tijolo e outro no meio de dois fiapos de nuvem - onde? As cigarras chiavam no pátio. Respirei fundo, erguendo um pouco os ombros para engolir mais ar. Meu corpo inteiro nunca tinha me parecido tão novo. Comecei a descer o morro, o quartel ficava para trás. Bola de fogo suspensa, o sol sobre o rio. Sacudi um pé de jasmim-do-cabo, a chuva adocicada despencou na minha cabeça. Na primeira curva, o Chevrolet antigo parou a meu lado. Como um grande morcego cinza.
- Vai pra cidade?
Como se estivesse surpreso, espiei para dentro.Ele estava debruçado na janela, o sol invadindo o meio sorriso, fazendo brilhar o remendo dourado no canino esquerdo.
- Quer carona?
- Vou tomar o bonde logo ali na Azenha.
- Te deixo lá - disse. E abriu a porta do carro.
Entrei. O cigarro moveu-se de um lado para outro da boca, enquanto a mão engatava a primeira. Um vento entrando pela janela fazia meu cabelo voar. Ele segurou o cigarro, Continental sem filtro, eu tinha visto, entre o polegar e o indicador amarelados, cuspiu pela janela, depois me olhou.
- Ficou com medo de mim?
Não era mais leão, nem general espartano. A voz macia, um homem comum sentado na direção de seu carro. Tirei do bolso a caixinha de chicletes, abri devagar, sem oferecer. Mastiguei. A camada de açúcar partiu-se, uma coisa gelada abriu minha garganta. Engoli o vento.
- Não sei - e quase acrescentei meu sargento. Sorri por dentro. - Bom, no começo fiquei um pouco. Depois vi que o senhor estava do meu lado.
- Senhor, não. Garcia, a bagualada toda me chama de Garcia. Luiz Garcia de Souza. Sargento Garcia. - Simulou uma continência, tornou a cuspir, tirando primeiro o cigarro da boca. - Quer dizer então que tu achou que eu estava do teu lado. - Eu quis dizer qualquer coisa, mas ele não deixou. O carro chegava ao fim do morro. - É que logo vi que tu era diferente do resto. - Olhou para mim. Sem frio nem medo, me encolhi no banco. - Tenho que lidar com gente grossa o dia inteiro. Nem te conto. Aí quando aparece um moço mais fino, assim que nem tu, a gente logo vê. - Passou os dedos no bigode. - Então quer dizer que tu vai ser filósofo, é? Mas me conta, qual é a tua filosofia de vida?
O chiclete agora era uma pasta branca cheia de casquinhas quebradiças entre meus dentes.
- De vida? Não sei, outro dia andei lendo um cara aí. Leibniz, aquele das mônadas, conhece?
- Das o quê?
Me ajeitei no banco.
- As mônadas. É um cara aí, dizia que tudo no Universo são. Assim como janelas fechadas, como caixas. Mônadas, entende? Separadas umas das outras. - Franziu a testa. Interessado. Ou sem entender nada. Continuei. - Incomunicáveis, entende? Umas coisas assim meio sem ter nada a ver umas com as outras.
- Tudo?
- É, tudo. As casas, as pessoas cada uma delas. Os animais, as plantas, tudo. Cada um uma mônada. Fechada.
Pisou no freio. Estendi as mãos para a frente. Pareceu não ver.
- Mas tu acredita mesmo nisso?
- Eu acho que.
- Pois pra te falar a verdade, eu aqui não entendo desses troços. Passo o dia inteiro naquele quartel, com aquela bagualada mais grossa que dedo destroncado. E com eles a gente tem é que tratar assim mesmo, no braço, trazer ali, no cabresto, de rédea curta, senão te montam pelo cangote e a vida vira um inferno. Não tenho tempo pra perder pensando nessas coisas aí do Universo. Mas acho bacana. - A voz amaciou, depois tornou a endurecer. - Minha filosofia de vida é simples: pisa nos outros antes que te pisem. Não tem essas mônicas daí. Mas tu tem muita estrada pela frente, guri. Sabe que idade eu tenho? - Examinou meu rosto. Eu não disse nada. - Pois tenho trinta e três. Do teu tamanho andava por aí meio desorientado, matando contrabandista na fronteira. O quartel é que me pôs nos eixos, senão tinha virado bandido. A vida me ensinou a ser um cara aberto. Admito tudo. Só não aguento comunista. Mas graças a Deus a revolução já deu um jeito nesse putedo todo. Aprendi a me virar, seu filósofo. A me defender no braço e no grito. - Jogou fora o cigarro. A voz macia outra vez. - Mas contigo é diferente.
Mastiguei com mais força o chiclete.
- Diferente como?
Olhava direto pra mim. Embora o vento entrasse pela janela aberta, uma coisa morna tinha se instalado dentro do carro, naquele ar enfumaçado entre ele e eu. Podia haver pontes entre as mônadas, pensei. E mordi a ponta da língua.
- Assim, um moço fino, educado. Bonito. - Fez uma curva mais rápida. O pneu guinchou. - Escuta, tu tem mesmo que ir embora agora já?
- Agora, já-já, não. Mas se eu chegar em casa muito tarde minha mãe fica uma fúria.
Mais duas quadras e chegaríamos no ponto do bonde, em frente ao cinema Castelo. Bem depressa, tinha que dizer ou fazer alguma coisa, só não sabia o quê, meu coração galopava esquisito, as mãos molhadas. Olhei para ele. Continuava olhando para mim. As casas baixas da Azenha passavam amontoadas, meio caídas umas sobre as outras, uma parede rosa, uma janela azul, uma porta verde, um gato preto numa janela branca, uma mulher de lenço amarelo na cabeça, chamando alguém, a lomba do cemitério, uma menina pulando corda, os ciprestes ficando para trás. Estendeu a mão. Achei que ia fazer uma mudança, mas os dedos desviaram da alavanca para pousar sobre a minha coxa.
- Escuta, tu não tá afim de dar uma chegadinha comigo num lugar aí?
- Que lugar? - Temi que a voz desafinasse. Mas saiu firme.
Aranha lenta, a mão subiu mais, deslizou pela parte interna da coxa. E apertou, quente.
- Um lugar aí, coisa fina. A gente pode ficar mais à vontade, sabe como é? Ninguém incomoda. Quer?
Tínhamos ultrapassado o ponto do bonde. Bem no fundo, lá onde o riacho encontrava com o Guaíba, só a parte superior do sol estava fora d'água. Devia estar amanhecendo no Japão - antípodas, mônadas -, nessa hora eu sempre pensava assim. Me vinha a sensação de que o mundo era enorme, cheio de coisas desconhecidas. Boas nem más. Coisas soltas, feito aqueles reflexos e sombras, metidos no meio de outras coisas, como se nem existissem, esperando só a hora de a gente ficar ofuscado para sair flutuando no meio do que se podia tocar. Assim: dentro do que se podia tocar, escondido, vivia também o que só era visível quando o olho ficava tão inundado de luz que enxergava esse invisível no meio do tocável. Eu não sabia.
- Me dá um cigarro - pedi. Ele acendeu. Tossi. Meu pai com o cinturão dobrado, agora tu vai me fumar todo esse maço, desgraçado, parece filho de bagaceira. A mão quente subiu mais, afastou a camisa, um dedo entrou no meu umbigo, apertou, juntou-se aos outros, aranha peluda, tornou a baixar, caminhando entre as minhas pernas.
- Claro que quer. Estou vendo que tu não quer outra coisa, guri.
Pegou na minha mãe. Conduziu-a até o meio das pernas dele. Meus dedos se abriram um pouco. Duro, tenso, rijo. Quase estourando a calça verde. Moveu-se quando toquei. E inchou mais. Cavidades-porosas-que-se-enchem-de-sangue-quando-excitadas. Meu primo gritou na minha cara: maricão, mariquinha. O vento descabelava o verde da Redenção, os coqueiros da João Pessoa. Mariquinha, maricão, quiá-quiá-quiá. E não, eu não sabia.
- Nunca fiz isso.
Parecia contente.
- Mas não me diga. Nunca? Nem quando era piá? Uma sacanagenzinha ali, na beira da sanga? Nem com mulher? Com china na zona? Não acredito. Nem nunca barranqueou égua? Tamanho homem.
- É verdade.
Diminuiu a marcha.
- Pois eu te ensino. Quer?
Traguei fundo. Uma tontura me subiu na cabeça. De dentro das casas, das árvores e das nuvens, as sombras e os reflexos guardados espiavam, esperando que eu olhasse outra vez direto para o sol. Mas ele já tinha caído no rio. Durante a noite, os pontos de luz dormiam quietos, escondidos, guardados no meio das coisas. Ninguém sabia. Nem eu.
- Quero - eu disse.
III
Vontade de parar, mas tinha um andar incontrolável nas pernas, a cabeça em várias direções, subindo a ladeira atrás dele, tu sabe como é, tem sempre gente espiando a vida alheia, melhor eu ir na frente, no portão azul, vem vindo devagar, como se não me conhecesse, como se nunca tivesse me visto em toda a tua vida. Como se nunca o tivesse visto em toda a minha vida, seguindo aquela mancha verde, mãos nos bolsos, cigarro aceso, de repente sumindo portão adentro, com um rápido olhar para trás, gancho que me fisgava. Mergulhei atrás dele. Subi os degraus de cimento, empurrei a porta entreaberta, madeira velha, vidro rachado, penetrei na sala escura, com cheiro de mofo e cigarro, flores murchas boiando em água viscosa.
- O de sempre, então? - ela perguntava, e quase imediatamente corrigi, dentro da minha cabeça, olhando melhor, e mais atento, ele, dentro de um robe colorido, desses meio estofadinhos, cheio de manchas vermelhas, não sei se tomate, batom ou sangue. - O senhor, hein, sargento? - Piscou íntimo, íntima, para o sargento, para mim. - Esta é a vítima?
- Conhece Isadora?
A mão molhada, cheia de anéis, as longas unhas vermelhas, meio descascadas, como a porta. Apertei. Ela riu.
- Isadora, queridinho. Nunca ouviu falar? Isadora Duncan, a bailarina. Uma mulher finíssima, maravilhosa, a minha ídola, eu adoro tanto que adotei o nome. Já pensou se eu usasse o Valdemir que minha mãezinha me deu? Coitadinha, tão bem intencionada. Mas o nome, ai, o nome. Coisa mais cafona. Aí mudei.
Se deus quiser, um dia ainda vou morrer estrangulada pela minha própria écharpe. Tem Coisa mais chique?
- Bacana - eu disse.
O sargento ria, esfregando as mãos.
- Não repare, Isadora. Ele está meio encabulado. Diz que é a primeira vez.
- Nossa. Taludinho assim. E nunca fez, é? Nunquinha? - A mão no meu ombro, pedra de anel arranhando leve meu pescoço. Revirou os olhos. - Conta a verdade pra tua Isadora, somente a verdade, nada mais que a verdade. Nunca fez? - Tentei sorrir. O canto da minha boca tremeu. Falava sem parar, olhinhos meio estrábicos, sombreados de azul. - Mas olha, relaxa que vai dar tudo certinho. Sempre tem uma primeira na vida, é um momento histórico, queridinho. Merece até uma comemoração. Uma cachacinha, sargento? Tem aí daquela divina que o senhor gosta.
- O moço tá com pressa.
Isadora piscou, maliciosa, os cílios duros de tinta respingando pequenos pontinhos pretos na face.
- Pressa? Eu, hein? Sei. Não é todo dia que a gente tem carne fresquinha. De primeira, não é, sargento? - Ele riu. Ela rodou a chave nas mãos e, por um instante, pensei numa baliza, na frente de um desfile de sete de setembro, jogando para o alto um pequeno bastão cheio de fitas coloridas. - Tá bem, tá bem. Vou levar os pombinhos para a suíte nupcial. Que tal o quarto sete? Número de sorte, não é? Afinal, a primeira vez é uma só na vida. - Passou por mim enfiando-se no corredor. - Tenho certeza que o mocinho vai adorar, ficar freguês de caderno. Ninguém esquece uma mulher como Isadora.
O sargento me empurrou. Entre a farda verde e o robe cheio de manchas, imprensado no corredor estreito, eu. Isadora cantava, que queres tu de mim que fazes junto a mim se tudo está perdido amor? Um ruído seco, ferro contra ferro. A cama com lençóis encardidos, um rolo de papel higiênico cor-de-rosa sobre o caixote que servia de mesinha de cabeceira. Isadora enfiou a cabeça despenteada pelo vão da porta.
- Divirtam-se, crianças. Só não gritem muito, senão os vizinhos ficam umas feras.
A cabeça desapareceu. A porta fechou. Sentei na cama, mãos nos bolsos. Ele chegou muito perto. Volume esticando a calça, bem próximo do meu rosto. O cheiro, cigarro, suor, bosta de cavalo. Enfiou a mão pela gola da minha camisa, baixou os dedos, beliscou o mamilo. Estremeci. Gozo, nojo ou medo, não saberia. Os olhos dele se contraíram.
- Tira a roupa.
Joguei as peças, uma por uma, sobre o assoalho sujo. Deitei de costas. Fechei os olhos. Ardiam, como se tivesse acordado de manhã muito cedo. Então um corpo pesado caiu sobre o meu e uma boca molhada, uma boca funda feito poço, uma língua ágil lambeu meu pescoço, entrou no ouvido, enfiou-se pela minha boca, um choque seco de dentes, ferro contra ferro, enquanto dedos hábeis desciam por minhas virilhas, inventando um caminho novo. Que culpa tenho eu se até o pranto que chorei se foi por ti não sei - a voz de Isadora vinha de longe, como se saísse de dentro de um aquário, Isadora afogada, a maquiagem derretida colorindo a água, a voz aguda misturada com gemidos, metendo-se entre aquele bafo morno, cigarro, suor, bosta de cavalo, que agora comandava meus movimentos, virando-me de bruços sobre a cama. O cheiro azedo dos lençóis. Tranquei a respiração. Os olhos abertos, vi a trama grossa do tecido. Com os joelhos, lento, firme, ele abria caminho entre as minhas coxas, procurando passagem. Punhal em brasa, farpa, lança afiada. Quis gritar, mas as duas mãos se fecharam sobre a minha boca. Empurrou, gemendo. Sem querer, imaginei uma lanterna rasgando a escuridão de uma caverna escondida, há muitos anos, uma caverna secreta. Mordeu minha nuca. Com o corpo, procurei jogá-lo para fora de mim.
- Seu puto - ele gemeu. - Veadinho sujo. Bichinha louca.
Agarrei o travesseiro com as duas mãos e, num arranco, consegui deitar de costas. Minha cara roçou a barba dele. Tornei a ouvir a voz de Isadora, que mais me podes dar que mais me tens a dar a marca de uma nova dor. Molhada, nervosa, a língua voltou a entrar no meu ouvido. As mãos agarraram minha cintura. Comprimiu o corpo inteiro contra o meu. Podia sentir os pelos molhados do peito dele melando a minha pele. Quis empurrá-lo outra vez mas, entre o pensamento e o gesto, ele juntou-se ainda mais a mim, e depois um gemido mais fundo, e depois um estremecimento no corpo inteiro, e depois um líquido grosso morno viscoso espalhou-se pela minha barriga. Ele soltou o corpo. Como um saco de areia úmida jogado sobre mim.
A madeira amarela do teto, eu vi, o fio comprido, o bico de luz na ponta, suspenso, apagado. Aquele cheiro adocicado boiando na penumbra cinza do quarto.
Quando estendeu a mão para o rolo de papel higiênico, consegui deslizar o corpo pela beirada da cama e, de repente, estava no meio do quarto, enfiando a roupa, abrindo a porta, olhando para trás a tempo de vê-lo passar um pedaço de papel pela própria barriga, uma farda verde em cima da cadeira, ao lado das botas negras, brilhantes, e antes que erguesse os olhos afundei no túnel escuro do corredor, a sala deserta com suas folhas podres, a voz de Isadora ainda mais remota, se foi por ti não sei, barulho de copos na cozinha, o vidro rachado, a madeira descascada da porta, os quatro degraus de cimento, o portão azul, alguém gritando alguma coisa, mas longe, tão longe como se eu estivesse na janela de um trem em movimento, tentando apanhar um farrapo de voz na plataforma da estação cada vez mais recuada, sem conseguir juntar os sons em palavras, como uma língua estrangeira, como uma língua molhada, nervosa entrando rápida pelo mais secreto de mim para acordar alguma coisa que não devia acordar nunca, que não devia abrir os olhos nem sentir cheiros nem gostos nem tatos, uma coisa que devia permanecer para sempre surda cega muda naquele mais de dentro de mim, como os reflexos escondidos, que nenhum ofuscamento se fizesse outra vez, porque devia ficar enjaulada amordaçada ali no fundo pantanoso de mim, feito bicho numa jaula fedida, entre grades e ferrugens, quieta, domada, fera esquecida da própria ferocidade, para sempre e sempre assim.
Embora eu soubesse que, uma vez desperta, não voltaria a dormir.
Dobrei a esquina, passei na frente do colégio, sentei na praça onde as luzes recém-começavam a acender. A bunda nua de pedra da estátua. Zeus. Zeus ou Júpiter, repeti. Enumerei: Palas-Atena ou Minerva, Posseidon ou Netuno, Hades ou Plutão, Afrodite ou Vênus, Hermes ou Mercúrio. Hermes, repeti, o mensageiro dos deuses, ladrão e andrógino. Nada doía. Eu não sentia nada. Tocando o pulso com os dedos podia perceber as batidas do coração. O ar entrava e saía, lavando os pulmões. Por cima das árvores do parque ainda era possível ver algumas nuvens avermelhadas, o rosa virando roxo e cinza, até o azul mais escuro e o negro da noite. Vai chover amanhã, pensei, vai cair tanta e tanta chuva que será como se a cidade toda tomasse banho. As sarjetas, os bueiros, os esgotos levariam para o rio todo o pó, toda a lama, toda a merda de todas as ruas.
Queria dançar sobre os canteiros, cheio de uma alegria tão maldita que os passantes jamais compreenderiam. Mas não sentia nada. Era assim, então. E ninguém me conhecia.
Subi correndo no primeiro bonde, sem esperar que parasse, sem saber para onde ia. Meu caminho, pensei confuso, meu caminho não cabe nos trilhos de um bonde. Pedi passagem, sentei, estiquei as pernas. Porque ninguém esquece uma mulher como Isadora, repeti sem entender. Debruçado na janela aberta, olhando as casas e os verdes do Bonfim. Eu não o conhecia. Eu nunca o tinha visto em toda a minha vida. Uma vez desperta não voltará a dormir. O bonde guinchou na curva. Amanhã, decidi, amanhã sem falta começo a fumar.
Conto de Caio Fernando Abreu retirado do livro Morangos Mofados, Editora Brasiliense, série Circo de Letras. 8ª Edição, 1987. Esse texto recebeu o prêmio Status de Literatura 1980. Status foi uma revista destinada ao público masculino. Não existe mais...