terça-feira, 22 de março de 2022

O rei que só queria comer peixe

Há muito tempo, havia no Tibete um rei que só queria comer pescado, o que era muito bom para os pescadores do reino. Mas eis que chegou um ano de grande estiagem, tão grande que os rios foram secando, e os peixes foram morrendo. Chegou um dia em que não havia mais peixes para pescar. Não havia peixe nem mesmo para o próprio rei, que se viu obrigado a comer apenas arroz, o que não o satisfazia e o deixava muito deprimido.

Então o rei mandou colocar faixas e cartazes por toda a parte anunciando que quem lhe levasse ao palácio qualquer tipo de pescado receberia como recompensa e prêmio qualquer coisa que quisesse pedir. A notícia correu ligeira por todo o reino, mas sem resultado. Por mais que todo mundo tentasse e procurasse, não havia mais peixes nos rios secos. E o rei foi ficando cada vez mais aflito e abatido.

Até que um belo dia apareceu no portão do palácio um homem, um pescador vindo do estrangeiro, com uma cesta cheia de pescado fresco e reluzente, que ele queria oferecer à Sua Majestade. Mas, na entrada do palácio, o guarda de sentinela deteve o homem e lhe perguntou, ríspido, o que ele vinha fazer ali. Quando soube do que se tratava, disse ao pescador:

- Trazes pescado para o rei, não é? Pois muito bem, deixa-o aqui comigo, que eu me encarrego de entregá-lo ao rei.

- Não, disse o homem, eu mesmo quero entregá-lo pessoalmente nas mãos de Sua Majestade.

- Então vende-me o pescado, disse o guarda. Eu pagarei bem.

- Não vim vender esses peixes. Vim oferecê-los de presente ao rei.

Vendo que não conseguia convencer o homem, o guarda mudou de tática:

- Pois fica sabendo que só vou te deixar passar se prometeres dar-me metade do prêmio que vais pedir e ganhar do rei. Jura que vais fazer o que exijo. Senão, não poderás entrar.

- Está bem, disse o homem, - eu concordo. Juro que vou fazer o que tu queres. Mas preciso saber o teu nome, porque se me demorar no palácio, preciso saber como encontrar-te depois.

- Meu nome é Yaco-Zarolho, não te esqueças - disse o guarda.

O pescador entrou na sala do trono e ofereceu o pescado ao rei. Este, exultante, perguntou o que ele queria como prêmio e recompensa. Mas o rei ficou perplexo quando ouviu o homem dizer que só queria duzentas chibatas no lombo. Incrédulo, o rei repetiu a pergunta e ouviu a mesma resposta:

- Peço somente duzentas chibatadas no meu lombo, Majestade.

Diante disso, o rei ordenou aos seus servos que lhe dessem as duzentas chibatadas, "mas bem de leve", para não machucar o lombo do excêntrico pescador. O que começou a ser feito, bem de leve. Mas na centésima chibatada o pescador falou:

- Basta, já recebi metade do meu prêmio. A outra metade eu prometi ao guarda Yaco-Zarolho.

O rei

segunda-feira, 21 de março de 2022

O Banquete da Vingança

    Há muitos séculos, em Mênfis, a opulenta capital do antigo Egito, o rei, um jovem faraó, foi traiçoeiramente assassinado. A bela rainha Nicrotis, viúva do faraó, aceitou o trono que seus súditos lhe ofereciam. Imediatamente, marcou a data da sua coroação, tão cedo que o povo até estranhou, pois parecia que ela esquecera depressa demais seu jovem esposo, traído e assassinado.

    A rainha queria celebrar de forma excepcionalmente suntuosa sua ascensão ao trono egípcio e, para os esplêndidos festejos, mandou construir um enorme salão subterrâneo, ricamente decorado. Nele iria recepcionar, em nababesco banquete, especialmente convidados, grandes e importantes personagens do reino. Seria um banquete do qual ninguém iria se esquecer. Ela prometeu que, após o festim, o povo poderia apreciar um grande espetáculo.

    As obras começaram em ritmo acelerado, com milhares de escravos trabalhando. O suntuoso salão ficou pronto em tempo recorde.

    Logo chegou o dia marcado para o grande festim e os convidados foram chegando, animados e ricamente ataviados. Prontamente, começou o banquete, de requintadas iguarias e capitosas bebidas, em meio à maior magnificência e solenidade.

    A rainha Nicrotis presidia o banquete, mais formosa do que nunca, imponente e majestosa, com um fulgor estranho nos grandes e majestosos olhos negros.

    O festim já andava pelo meio quando, de repente, se ouviu um ruído formidável, um fragor ensurdecedor, enquanto uma grande e feroz alegria inundava as harmoniosas feições da rainha. Ao mesmo tempo, os rostos dos convivas ficavam lívidos de espanto e pavor. É que, presos naquele subterrâneo, eles acabavam de se dar conta de haver caído numa armadilha. Perceberam que, reunidos naquele salão, estavam apenas aqueles cortesãos e nobres da corte que haviam tramado a traição e perpetrado o assassinato do jovem faraó. E agora se cumpria a vingança da rainha Nicrotis: ela mandara construir o salão subterrâneo cercado de enormes bocas de água, disfarçadas de tapadeiras decorativas nas paredes. Tapadeiras essas que, a um sinal da rainha, caíram, deixando entrar torrentes de água por todos os lados, invadindo e inundando o salão, que só tinha uma entrada - fechada - e nenhuma saída.

    Em poucos minutos, o grande salão subterrâneo estava inundado. Os convidados, condenados a morrer afogados, só tiveram tempo de ouvir a voz da rainha Nicrotis proclamando triunfante:

    - Os traidores devem morrer traídos!

    Ninguém conseguiu escapar, ninguém se salvou. O teto do subterrâneo desabou, afundando e cobrindo para sempre aquele enorme tanque, submergindo naquela líquida sepultura, para sempre, todos os que ali se encontravam, inclusive a rainha, que pereceu junto com os traidores.

    No dia seguinte, conforme fora prometido, o povo de Mênfis pôde ver o lugar do trágico banquete da coroação. Todos os corações se encheram de admiração pela coragem da rainha Nicrotis, que não hesitara em sacrificar sua própria vida para que todos os traidores e assassinos do jovem faraó seu esposo tivessem a sorte e a morte que mereciam.

    Foi esse banquete da vingança da rainha Nicrotis.


Conto egípcio recontado pela escritora Tatiana Belinky. Retirado da Revista Nova Escola. Fundação Victor Civita. Editora Abril, Maio de 1996.

domingo, 20 de março de 2022

O Cigano e o Lote do Diabo

    Depois de muito procurar, um pobre cigano conseguiu comprar, por apenas duas moedas, um pequeno lote de terra que ninguém queria, porque tinha uma pedreira com uma caverna cheia de morcegos. Nem bem ele começou a cavar as fundações da sua futura casinha, eis que surgiu na sua frente um homem esquisito, envolto numa capa vermelha, que o interpelou rispidamente, dizendo que ele não podia cavoucar ali. "Este terreno é meu, eu sou um diabo, e neste caverna nossa confraria se reúne todas as semana para o satânico sabá com as bruxas, nossas amigas.!"
    Mesmo tremendo de medo, o cigano protestou, dizendo que estava no seu direito, pois comprara o lote do alcaide, com o seu pouco e suado dinheirinho, e não abriria mão dele.
    Os diabos respeitam os tratos. Esse diabo então propôs ao cigano recomprar-lhe o lote pelo dobro do que ele pagara. "Assim, com quatro moedas, poderás comprar outro terreno, melhor do que este". O cigano animou-se e tratou de regatear. "Quatro moedas é pouco, quero o meu boné cheio de moedas de ouro, senão não arredo o pé daqui." O diabo resmungou, mas acabou concordando e saiu para buscar o dinheiro.
    O cigano, assim que se viu só, cavou mais que depressa um buraco fundo no chão e o cobriu com o seu boné - previamente furado - de boca para cima. Quando o diabo voltou com um saco de moedas e começou a despejá-las no boné, não conseguiu enchê-lo, porque elas caíam pelo furo do boné no buraco do chão. O boné só ficou cheio quando o saco do diabo ficou vazio. Coçando a cabeça, perplexo, o diabo sumiu de vista, largando do chão o saco, que o cigano imediatamente encheu com as moedas do buraco e saiu assobiando, rico e feliz da vida.
    Ele então construiu uma bela casa, casou com uma linda cigana e viveu à tripa forra durante um bom tempo. Mas dinheiro que vem fácil se vai fácil e, um belo dia, o cigano se viu pobre de novo. Sua mulher lhe azucrinava tanto a paciência por causa de falta de dinheiro que um dia, aborrecido, ele saiu de casa para a estrada. Andou que andou até que, de repente, sem perceber, se viu naquele lote de terra onde encontrara o diabo, anos antes. "Bem que eu poderia arrancar mais algum daquele diabo bobão", pensou ele. No mesmo instante, surgiu na sua frente o mesmo homem de capa vermelha, que rosnou para ele, enfezado: "O que estás fazendo aqui? Já me basta a bronca que levei do meu chefão Belzebu por causa daquela história do boné sem fundo. Vai embora, senão eu te dou uma surra. Vê só como sou forte!" E o diabo apanhou uma pedra e a esmagou na mão até ela virar pó.
    O cigano, apesar do medo, não se deu por achado. "Sou mais forte do que tu", disse, e disfarçadamente tirou do bolso um pedaço de queijo, fingindo que apanhara uma pedra no chão: "Olha o que eu faço com a tua pedra!" E esmagou o queijo na mão até pingar suco de queijo do seu punho fechado. O diabo arregalou os olhos, espantado, e o cigano disse: "Ou tu me trazes mais um saco de dinheiro, do teu tamanho, ou eu destruo a tua caverna com as minhas mãos fortes!"
    O diabo, alarmado, disparou para dentro da caverna e voltou curvado debaixo de um enorme saco de moedas, que colocou no chão. E já ia sumir quando o cigano disse: "Não estou disposto a carregar peso. Quero que leves este saco para minha casa, senão destruo a tua caverna!" O diabo, amedrontado, obedeceu e carregou o saco de moedas para a casa do cigano, que ainda lhe agradeceu, zombeteiro: "Grato pelo tua gentileza, amigo diabo. Podes voltar para a caverna e contar aos teus coleguinhas que desta vez escapaste de boa!"
    O diabo chispou embora e o cigano voltou-se para sua atônita mulher: "Estamos ricos de novo, me respeita agora, não me azucrines mais a paciência! E daqui em diante sê mais econômica, por que não quero ter um terceiro encontro com o diabo: bastam os dois sustos que já levei. Se este dinheiro do inferno acabar, prefiro voltar a trabalhar e ganhar  vida com suor do meu rosto".

História do folclore cigano recontada por Tatiana Belinky. Retirado da Revista Nova Escola. Fundação Victor Civita. Editora Abril. Abril de 1996.

sábado, 19 de março de 2022

No Exato Momento

Como é impossível ao corpo manter-se sem o sangue, também a alma não viverá em paz sem o combustível da fé.

A fé constitui o elemento basilar para a sustentação da vida digna e realizadora.

Da mesma forma que o corpo não pode subsistir sem o alimento, o espírito não consegue manter-se em equilíbrio sem a força da oração.

O alimento é secundário ao organismo, que o prescinde, momentaneamente, a de reequilibrar-se e manter a saúde, enquanto que, sem a prece, o ser espiritual se aturde e entorpece.

O homem está predestinado a dominar os instintos, vencendo as paixões que agrilhoam à infelicidade, colocando-se a serviço do bem que lhe corresponde. Para consegui-lo, faz-se-lhe indispensável a coragem da fé, porquanto a covardia que o impede de tomar as decisões enobrecedoras é mais perigosa e violenta do que outras imperfeições que o assinalam, de certo modo, consequências dela.

A oração constitui a força mais eficaz para vencer tal impedimento - o medo - e atirar-se com valor na conquista dos objetivos para os quais se encontra no mundo.

Os grandes homens atingiram as metas a que se propunham, impulsionados pela fé que resultava da sua identificação com o bem. E a comunhão pela prece sempre foi o alimento para sustentá-los nos momentos mais graves e cruciais da existência.

Certamente outros tantos se arremeteram nas batalhas do crime e da destruição, guindados pelo egoísmo e pelo medo às situações de agressividade e loucura em que se exauriram.

Atormentados, odiaram e foram odiados; perseguiram e terminaram vencidos.

Os homens não impuseram sofrimentos a ninguém; amaram e deixaram rastros luminosos, clareando o roteiro daqueles que também amam e lhes seguem os exemplos e os passos.

É inadiável se eleja, entre o bem e o mal, o que é de melhor para a vida: mais profícuo, salutar, aprazível e pacificador.

Por meio da oração, será fácil discernir, escolher e adotar qual o caminho mais seguro e feliz.

A prece autêntica, aquela que brota do coração buscando Deus, a Ele se entregando, torna-se um escudo de segurança, de defesa, uma proteção contra os elementos perniciosos que vigem interiormente no homem ou que vêm de fora tentando agredi-lo.

Só aparentemente se pode vencer um homem de fé, um homem que ora. Nunca, porém, se conseguirá dominá-lo. Ele é livre e está sempre em paz. Nada o perturba, porque não teme nada, nada ambiciona, somente anelando por alcançar a perfeição.

A prece é a salvação da vida. Sem ela, o homem enlouquece.

Quando estejas cercado de dificuldades e agressões, não vendo possibilidade alguma de chegar-te o socorro a tempo, ora, entregando-te a Deus, e a salvação te alcançará de Cima, no momento exato.


Retirado do livro Momentos de Coragem; Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 8ª Edição, 2014.

sexta-feira, 18 de março de 2022

O Samurai e a Cerejeira

    No distrito de Iyo, no Japão, existe uma árvore antiquíssima. É chamada de "cerejeira do 16º dia" porque, nesse dia do primeiro mês do ano lunar, ela se cobre de flores - e somente nesse dia. As cerejeiras costumam florir na primavera, mas essa árvore é diferente: floresce no inverno, porque dentro dela habita o espírito de um ser humano.

    Sobre ela conta-se curiosa história. Havia muitos e muitos séculos, a cerejeira crescia no jardim de um samurai (guerreiro), que a amava muito. Durante muitos anos, ele se deliciou com a formosa e perfumada florada no 16º dia do primeiro mês de cada ano.

    O samurai teve vida longa. Viveu tanto tempo que viu morrer toda a sua família: pais, irmãos, filhos, netos e até bisnetos. Ficou muito velho e muito só, sem ninguém a quem dedicar afeto e carinho. Vira a cerejeira crescer e florescer desde criança. Os pais e os avós dele já haviam brincado à sombra da árvore.

    Na sua solidão de ancião, todo o amor do samurai se voltou para aquela cerejeira já bem velha, mas que ficava viçosa e florida sempre no mesmo dia, todos os anos, para alegria e consolo de seu coração solitário.

    Os anos foram passando. Até que, num certo 16º dia do primeiro mês de certo ano, a cerejeira amanheceu nua e seca. O velho caiu em profunda tristeza. Não deixou que arrancassem a árvore morta, na esperança de que no ano seguinte ela revivesse. Mas a pobre cerejeira ficava cada vez mais seca.

    O samurai ficou tão abatido que os vizinhos se condoeram e lhe deram de presente uma cerejeira nova, a mais bonita que puderam encontrar. O velhinho agradeceu, fingindo ficar satisfeito com o presente, mas no fundo da alma continuava roído de tristeza. Sentia saudade da florada de inverno da árvore amada.

    Dia e noite ele pensava na cerejeira, inconsolável. Mas, no ano seguinte, quando chegou o 16º dia do primeiro mês, teve de repente uma ideia que lhe pareceu feliz: lembrou-se de uma coisa na qual todos, naquela região, acreditavam. Era que, quando alguém o desejava muito, e os deuses o permitiam, a pessoa podia fazer uma permuta: trocar a sua própria vida pela de uma planta, de um animal ou mesmo de um inseto!

    Então, o velho samurai saiu para o jardim e, ajoelhado junto à cerejeira seca e morta, falou com ela, suplicando:

    - Por favor, minha cerejeira amada. Eu te imploro. Tem pena de mim e atende ao meu humilda pedido: floresce só mais uma vez, para que eu possa morrer em teu lugar!

    Depois da súplica, voltou para casa e lá pegou os seus mais alvos lençóis e seus mais ricos tapetes, que estendeu ao pé da árvore seca. Então, solenemente, sentou-se no tapete e, sem hesitar, fez o haraquiri, rasgando o próprio ventre com a sua espada, conforme a tradição dos samurais. E morreu feliz, com um sorriso nos lábios.

    No mesmo instante, o espírito do velho saiu de seu corpo e entrou na árvore seca. A cerejeira morta reviveu. Fresca e viçosa como antes, cobriu-se de flores lindas e perfumadas.

    Desde então, com a neve ainda atapetando o chão, a antiquíssima cerejeira continua florescendo a cada 16º dia do primeiro mês de cada ano novo, vestindo-se de flores e enchendo o jardim de perfume e beleza.

    E de todas as partes, dos povoados mais distantes, sai gente nesse dia para ver a cerejeira florir milagrosamente - e fazer toda sorte de pedidos ao espírito do velho samurai que nela se abriga.


Lenda do folclore japonês recontada por Tatiana Belinky. Retirado da Revista Nova Escola. Fundação Victor Civita. Editora Abril. Março de 1996.

quinta-feira, 17 de março de 2022

A Barrica Curandeira

    Um rapaz trabalhou durante muito tempo numa cervejaria e, quando se despediu do patrão, recebeu em recompensa pelos bons serviços uma barrica de cerveja. O moço a pôs nos ombros e partiu, alegre. Mas quanto mais caminhava mais pesada ficava a barrica. O moço ia ficando cansado de carregá-la, quando cruzou no caminho com um velho de longas barbas brancas.

    - Aceitas beber um pouco desta cerveja comigo? - perguntou o rapaz. - A barrica me pesa tanto que gostaria de aliviá-la.

    - Chega na hora certa - disse o velho. - Estou com uma sede brava.

    - E quem és tu, vovozinho?

    - Sou o Destino.

    - Então não quero beber contigo, porque és injusto com os homens: a uns dás alegrias e riquezas; outros deixas passar fome.

    E o moço retomou o seu caminho, com a pesada barrica nos ombros. Pouco mais adiante, encontrou um sujeito de aspecto estranho.

    - Queres beber um pouco de cerveja comigo? - convidou o moço.

    - Com muito gosto, tanto mais que estou cansado e sedento - retrucou o sujeito.

    - E quem és tu?

    - Sou o Diabo.

    - Sinto muito, mas não posso beber contigo. És aquele que atormenta os homens e os faz cair em tentação!

    E o moço retomou o caminho, com a barrica nas costas, cada vez mais pesada. Mas logo depois cruzou com uma velha tão esquálida que mais parecia um esqueleto.

    - Aceitas beber um pouco de cerveja comigo? - ofereceu o rapaz.

    - De bom grado - respondeu a velhota.

    - E quem és tu, vovozinha?

    - Sou a Morte.

    - Contigo beberei, sim. És honesta e justa com os homens, tratas ricos e pobres como iguais.

    E, com isso, o moço pôs a barrica no chão e fez jorrar dela a espumante e fresca cerveja, que a velha sorveu com grande prazer.

    Nunca antes eu bebi uma cerveja tão saborosa! - exclamou a Morte, após algumas canecas. - Parece até que rejuvenesci uns dez mil anos. Para mostrar minha gratidão, vou dar-te um presentinho. A tua cerveja, de hoje em diante, curará todas as doenças e não se acabará nunca. Mas toma cuidado: quando fores atender a um doente, antes de ministrar-lhe este singular remédio, olha bem em volta - se me vires aos pés da cama, faz o doente beber a cerveja; mas, se me vires à cabeceira, nem tentes servi-la ao enfermo, pois não adiantará nada e ainda poderás te ver em maus lençóis.

    A Morte sumiu e o moço seguiu o seu caminho, com a barrica cheia, mas agora leve, nos ombros. Logo ele se pôs a bancar o médico e em pouco tempo ficou famoso e rico.

    Aconteceu, porém, que um dia a filha do rei caiu gravemente enferma e, o rei prometeu metade do reino em recompensa a quem conseguisse curá-la. O dono da barrica foi chamado. Mas, ao entrar no quarto da doente, ele viu, num sobressalto, a Morte sentada numa cadeira, cochilando à cabeceira da doente. O moço não gostou da perspectiva de perder metade do reino por não poder curar a princesa e então teve uma ideia.

    Como a Morte continuava cochilando, sem se aperceber de presença do seu protegido, este mandou, em voz baixa, que os criados virassem silenciosamente a cama da moribunda, de maneira que a cadeira com a Morte ficasse aos pés da doente. Em seguida, fez a princesa beber a cerveja, curando-a no ato..

    - Tu me enganaste! exclamou a Morte, ao ver frustrada a sua intenção. - Assim, eu não te devo mais nada. Estamos quites!

    - Mas eu ganhei metade do reino - regozijou-se o moço.

    - De nada te valerá tal reino - rosnou a Morte. - Agora tu me pertences, és meu!

    A Morte tocou-o com a mão ossuda e gelada e o curandeiro da cerveja miraculosa tombou ao chão, morto.


História do folclore da Escandinávia recontada pela escritora Tatiana Belinky. Retirado da Revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril, Dezembro de 1995.

quarta-feira, 16 de março de 2022

A Princesa e o Saltimbanco

    Havia, muitos e muitos anos atrás, num reino muito distante daqui, uma princesa muito linda. Ela adorava dança, música e todas as artes que no mundo existiam. Por isso, artistas de todas as partes faziam fila para poder se apresentar naquele pequeno reino, pois o prêmio maior pelos espetáculos era o sorriso da bela princesa.

    Num dia em que o sol se confundia com as nuvens claras e nem parecia inverno ou verão, apareceu no reino um grupo de saltimbancos, trazendo um espetáculo muito interessante. Os mensageiros do reino logo correram para avistar a princesa, que, encantada com a novidade, aceitou o convite para ver o espetáculo bem na primeira fila.

    Curiosa em saber o que trazia a nova companhia, a princesa chegou bem antes do início da peça para ver os preparativos da montagem. Foi aí que, no meio daquele movimento todo, ela o viu.

    Ela enxergou um rapaz enorme, alto, forte, tão forte que carregava metade de um cenário inteiro sorrindo, como quem carrega flores. O moço, por sua vez, ao perceber que a princesa olhava para ele,  baixou os olhos, tímido. "Imagine, a mais bela de todas as princesas olhando para mim", pensou. Ela também falou a mesma coisa para os seus botões. Mas, mesmo pensando coisas tão mal pensadas, os dois não conseguiram parar de se olhar.

    O cenário ficou pronto, a peça começou e o moço escondeu-se atrás do palco. E a linda princesa ficou inquieta, pensando num jeito de se encontrar com aquele que mexera com seu coração. Mas como?

    Do outro lado, o moço também a observava, achando estranho que a princesa, famosa por apreciar os espetáculos com muito interesse e alegria, estivesse distraída e com um ar preocupado. E suspirou, olhando para ela.

    A princesa também suspirou, impaciente. Mas, de repente, chamou sua aia e lhe disse:

    - Quero que vá atrás do palco, aia. Leve este novelo de fita até o rapaz maior que houver lá dentro. Ele é enorme, forte, mas tem o olhar mais meigo que você já deve ter visto. Amarre a ponta do novelo em seu pulso e traga a outra para mim. Não se preocupe, ele não perguntará nada e nem a impedirá de fazer isso. Vá logo, por favor!

    E assim a aia fez.

    O moço, a princípio, ficou um pouco assustado. Mas, feliz, reconheceu a fita que amarrava seu braço com a mesma que enfeitava os cabelos da princesa. E se soube preso. E nunca em sua vida imaginou tão doce prisão. Grades de fitas coloridas, música, dança e sorriso da princesa mais encantadora do mundo. Então, amarrou o laço mais forte em seu pulso.

    A princesa não sabia, mas ele iria levá-la em seu cavalo para o seu reino. Ela não sabia, mas ele também era um príncipe. Um príncipe viking, acostumado a vencer muitas guerras, mas completamente fascinado pela arte dos saltimbancos. A princesa não sabia, mas estava condenada a ser feliz para sempre ao lado do príncipe viking. Ou será que sabia?


Conto de Januária Cristina retirado da Revista Nova Escola. Fundação Victor Civita, Editora Abril. Novembro de 1995.

terça-feira, 15 de março de 2022

Dois Amigos e a Liberdade

    Zezinho achou um passarinho com uma asa quebrada. Ele parecia estar chorando de dor e tremia inteirinho.

    Devagar, com muito cuidado, Zezinho foi tratar da asa do passarinho. Passou remédio, enfaixou a asa e deu comida para ele. E todos os dias ia lá no cantinho do quintal para ver como estava seu mais novo companheiro.

    O tempo foi passando e o passarinho  melhorando. Zezinho botou-lhe o nome de Leco e vivia conversando com ele. Chegava da escola e logo corria para contar-lhe as novidades do dia.

    Fazia os deveres dividindo com Leco as dificuldades da Matemática, as poesias bonitas que a professora de Português mandava recitar em voz alta e as novidades das Ciências.

    O bichinho ouvia tudo com os olhos bem abertos. De vez em quando até piava, o que significava para Zezinho que Leco estava opinando sobre alguma coisa.

    O menino percebia que agora o passarinho não tinha mais cara de choro. Estava ficando bom, mas não tinha vontade de sair dali. Os dois se entendiam tão bem que Leco chegou a pensar que Zezinho fosse um pássaro maior. Nunca tinha visto um menino que não quisesse acertá-lo com um estilingue ou prendê-lo numa gaiola.

    Zezinho não via a hora de chegar em casa para poder ficar com o Leco, conversando, brincando, vendo-o voar. Sentia-se tão bem em sua companhia que era como se ele fosse um irmão muito querido.

    Quando Leco ficou forte, voando bem alto, convidou o garoto para voar com ele. Ir para bem longe, conhecer outras terras. Mas Zezinho não tinha asas e, além disso, havia sua família, seus outros colegas, a escola, as peladas de futebol.

    O passarinho não podia ficar? - quis saber o menino. Não. Ser pássaro só tinha graça se vivesse voando por aí.

    Os dois se separaram então. Mas a amizade não acabou. Zezinho passou a amar todos os pássaros e Leco, todos os meninos. Eles espalharam esta história pelo mundo e houve muita gente que começou a ver meninos cantando como pássaros e pássaros conversando como meninos.


Texto de Januária Cristina retirado da Revista Nova Escola. Fundação Victor Civita, Editora Abril, Setembro de 1995.

segunda-feira, 14 de março de 2022

Uma Pedra no Caminho

    Perto de uma aldeia erguia-se o palácio de um duque, diferente de muitos nobres do seu tempo, pois era bondoso, generoso e costumava ajudar os habitantes daquele povoado. Sempre que algum deles tinha problemas ou estava em dificuldades, fosse consertar um telhado arrancado pela ventania, fosse enviar alimentos quando havia falta, ou fosse o que fosse, o duque acudia logo.

    Acontece que, com o tempo, os aldeões começaram a ficar mal-acostumados. Se tornaram acomodados e preguiçosos e, o que é pior, egoístas e mal-agradecidos. Até que um dia o duque se deu conta disso e resolveu testar aqueles aldeões, para ver se entre eles ainda havia pelo menos alguns dispostos a fazer um gesto em favor da comunidade.

    E imaginou um plano. Certa manhã, bem cedo, ele saiu do palácio, despercebido, e foi sozinho até a única estrada da região, bem na metade do caminho. Lá, ele procurou e encontrou uma pedra, tão grande e pesada que mal conseguiu levantá-la. Carregou-a, com grande esforço, até bem no meio do estreito caminho, que só dava para um carro, fechando, assim, a única passagem. Mas, antes, colocou embaixo daquela pedra uma grande bolsa cheia de moedas de ouro. Feito isso, o duque escondeu-se atrás de uma moita na beira da estrada e ficou observando o que ia acontecer.

    Pouco depois, chegou um aldeão, tangendo umas ovelhas que ia levar ao mercado, e parou diante da pedra, espantado. Resmungou em voz alta: "Como é que o duque permite uma coisa destas? Eu é que não vou remover esta pedra. O duque que cuide disso!" E contornou a pedra, sempre reclamando.

    Logo apareceram duas mulheres, carregando cestas de ovos e conversando. Quando deram com a pedra, sentaram-se nela, continuando a tagarelar e a criticar o duque, que permitia que deixasse o caminho atravancado e não mandava seus criados retirar o obstáculo. E acabaram também contornando a pedra, sempre resmungando e culpando o duque.

    As horas iam correndo, e muita gente passava e parava na frente da pedra, todos sempre reclamando e culpando o duque. Eram camponeses e soldados, padres e mercadores, jovens e velhos - pessoas de todas as classes -, mas ninguém se dispunha a tirar a pedra do caminho.

    O duque estava quase desanimando quando, já ao entardecer, aproximou-se cantarolando um rapazinho, filho do moleiro, carregando um saco de farinha nas costas. Ele parou na frente da pedra e disse: "Ora essa, uma pedra no meio do caminho, atrapalhando a passagem de pessoas e carros! Que perigo!" Sem hesitar, pôs o saco de farinha no chão e, com menos esforço que o velho duque, levantou a pedra e a  depositou na beira da estrada. Só quando voltou para apanhar o saco de farinha é que ele viu a bolsa de moedas que estivera embaixo, e leu espantado e incrédulo o que nela estava escrito: "Para aquele que remover esta pedra". Olhou em volta. Nisto, o duque saiu do esconderijo e disse:

    - Meu filho, tu me devolveste a fé na humanidade! Ainda há gente boa nesta aldeia! O dinheiro é teu mesmo, faças bom uso dele!.


Conto do folclore alemão recontado pela escritora Tatiana Belinky. Retirado na Revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril, Agosto de 1995.

domingo, 13 de março de 2022

Vrishadarbha e a Pomba

    Certo dia, há muito tempo atrás, uma pomba ferida caiu do céu aos pés de Vrishadarbha, o rei de Benares, famoso por sua bondade e compaixão pelos necessitados. Ofegante, a avezinha implorou ao rei que a protegesse de um gavião que a perseguia e já a machucara.

    - Fica tranquilo, pombinha, não tenhas medo - disse o rei. - Eu te protegerei, tens a minha palavra. Para te proteger, sou capaz de dar o meu reino e até a minha vida. Mal nenhum te advirá, prometo.

    Mas o cruel gavião, que ouvira essas palavras, pousou na frente do rei e o interpelou:

    - Este pássaro, a pomba, é a minha comida, ó rei. Ela me é destinada pelos deuses. Tu não deverias negar-me a minha presa legal, ganha com árduo esforço! Tu és o soberano, podes intervir entre os seres humanos teus súditos. Mas não tens poder legal sobre os pássaros que voam pelos céus! Que direito tu tens de me forçar a morrer de fome?

    O rei, um homem justo, retrucou:

    - Não te deixarei morrer de fome. Ordenarei que preparem um javali ou um veado. Poderás te fartar à vontade. Mas não comerás esta pomba.

    Ao que o gavião lhe respondeu, maldoso:

    - Eu não como carne de javali, nem de veado. O alimento que me foi destinado é a pomba. Mas, ó monarca compadecido, se te importas tanto com ela, façamos um trato: tu me darás o equivalente ao peso desta pomba em carne do teu próprio corpo. Com isso ficarei satisfeito.

    E o rei retrucou:

    - A tua sugestão é justa, gavião. Farei o que tu propões.

    Imediatamente, mandando trazer uma balança, o rei começou a cortar pedaços do seu próprio corpo e a colocá-los num dos pratos, enquanto no outro punha a pomba ferida.

    Os cortesãos, as princesas, os ministros e os servos acorreram aflitos e, horrorizados, levantaram um alarido de protestos tão fortes que chegou aos céus como um grande trovão. E a própria terra tremeu, ao ver que o rei de Benares não só prometia como fazia o que os seus guerreiros mais valentes não seriam capazes de fazer, nem pelos seus próprios filhos.

    O rei continuava a cortar pedaços das suas pernas, coxas, músculos e braços, mas, quanto mais da sua carne ele punha na balança, mais pesada ficava a pomba, no prato oposto.

    O rei já estava quase reduzido ao esqueleto descarnado e então, vendo que não conseguia igualar o peso da pomba, ele decidiu dar o seu corpo inteiro para cumprir a palavra. Subiu na balança, ele mesmo. E equilibrou o peso.

    Naquele momento, apareceram os deuses. Ouviu-se uma música celestial e uma chuva de néctar caiu sobre o rei, e o seu corpo lhe foi milagrosamente devolvido. Flores maravilhosas caíram do céu e as ninfas celestes cantaram e dançaram. Surgiu uma carruagem faiscante de pedrarias, e os deuses arrebataram o rei, puseram-no na carruagem e o levaram com eles para o céu.


Lenda indiana recontada pela escritora Tatiana Belinky. Retirado da Revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril, Junho de 1995.