sábado, 14 de junho de 2025

Pai Nosso (77)

 "Pai nosso..." - Jesus. (MATEUS, 6:9.)


A grandeza da prece dominical nunca será devidamente compreendida por nós que lhe recebemos as lições divinas.

Cada palavra, dentro dela, tem a fulguração de sublime luz.

De início, o Mestre Divino lança-lhe os fundamentos em Deus, ensinando que o Supremo Doador da Vida deve constituir, para nós todos, o princípio e a finalidade de nossas tarefas.

É necessário começar e continuar em Deus, associando nossos impulsos ao plano divino, a fim de que nosso trabalho não se perca no movimento ruinoso ou inútil.

O Espírito Universal do Pai há de presidir-nos o mais humilde esforço, na ação de pensar e falar, ensinar e fazer.

Em seguida, com um simples pronome possessivo, o Mestre exalta a comunidade.

Depois de Deus, a Humanidade será o tema fundamental de nossas vidas.

Compreenderemos as necessidades e as aflições, os males e as lutas de todos os que nos cercam ou estaremos segregados no egoísmo primitivista.

Todos os triunfos e fracassos que iluminam e obscurecem a Terra pertencem-nos, de algum modo.

Os soluços de um hemisfério repercutem no outro.

A dor do vizinho é uma advertência para a nossa casa.

O erro de um irmão, examinando nos fundamentos, é igualmente nosso, porque somos componentes imperfeitos de uma sociedade menos perfeita, gerando causas perigosas e, por isso, tragédias e falhas dos outros afetam-nos por dentro.

Quando entendemos semelhante realidade, o "império do eu" passa a incorporar-se por célula bendita à vida santificante.

Sem amor a Deus e à Humanidade, não estamos suficientemente seguros na oração.

Pai nosso... - disse Jesus para começar.

Pai do Universo... Nosso mundo...

Sem nos associarmos aos propósitos do Pai, na pequenina tarefa que nos foi permitido executar, nossa prece será, muitas vezes, simples repetição do "eu quero", invariavelmente cheio de desejos, mas quase sempre vazio de sensatez e de amor.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

quinta-feira, 12 de junho de 2025

Sobre o corte no Candomblé (Anexo 3)

Para contribuir para o diálogo a respeito do corte no candomblé, reproduzo a íntegra de uma carta publicada resumidamente no Jornal de Piracicaba de 23 de janeiro de 2011:

Muito oportuno, lúcido e realmente dialógico o artigo "Liberdade religiosa e sacrifício de animais", de Ivan Gabriel França de Negri. Com relação ao tema, este é um dos poucos textos publicados na imprensa que não agridem aqueles que pensam de maneira diferente de seus autores.

Com muita tristeza acompanhei no ano de 2010 a tentativa de parte da sociedade civil e de legisladores municipais de proibir o corte nos terreiros de candomblé da cidade. Por trás da "defesa dos direitos dos animais", preconceito religioso, rancor, incompreensão, falta de argumentos lógicos. Articulistas de jornais exaltados mostravam grande desconhecimento dos fundamentos do candomblé, dos orixás, de entidades, por vezes empregando termos, além de raivosos, altamente preconceituosos.

Conforme afirmo em meu livro Xirê: orikais - canto de amor aos orixás (Piracicaba: Limão Doce, 2010), "nos anos 90 li uma matéria num jornal de grande circulação nacional que tratava de tema polêmico, por vezes tabu: a não utilização de animais em rituais de candomblé. Isso à época me chamou muito a atenção, mas o tema foi deixado de lado. Não me recordo com precisão das referências da matéria, contudo tenho encontrado outras, esparsas, sobre Agenor Miranda e Mestre Didi apresentando ideias semelhantes". Anos depois, encontrei Iya Senzaruban e me iniciei no candomblé vegetariano, organizado por ela paulatinamente há quase 20 de seus mais de 45 anos de candomblé. Em sua casa (Ilê Iya Tunde), fui confirmado e saí ogã de Oxum.

Por nunca ter praticado ou vivenciado o corte, acredito ter imparcialidade suficiente para aqui deixar meu depoimento a favor dos  irmãos que veem suas práticas erroneamente condenadas , uma vez que aqueles que os desrespeitam não compreendem a função do corte no culto e na alimentação da própria comunidade dos terreiros e seu entorno. Se existe abuso e crueldade, que haja fiscalização legítima e democrática para coibir tais práticas. Sobre o tema, vale a pena ler em meu livro a respeito do cuidado com que os animais são geralmente criados nos terreiros, ao contrário do que acontece na maioria dos criadouros. Muitos dos rituais citados pelos detratores do candomblé, em Piracicaba, jamais aconteceram em qualquer ilê deste país. Infelizmente, no libelo contra os candomblecistas da cidade, palavras de Iya Senzaruban foram utilizadas descontextualizadas, transcritas de entrevistas.

O candomblé vegetariano não faz proselitismo. Conforme repito sempre, trata-se de "uma prática que respeita os fundamentos de outras tradições e amorosamente também exige respeito". Infelizmente somos discriminados por nossa opção de culto mais pelos próprios irmãos de candomblé do que por aqueles que comumente criticam o candomblé, mas jamais faríamos isso. Nossa forma de culto difere, mas nossa identidade é a mesma. O vegetarianismo no culto, assim como na alimentação, é uma opção pessoal/coletiva que não pode ser violentamente imposta a ninguém.

Neste início de ano, convido os irmãos a dialogarem com aqueles que cultuam orixás, sejam do candomblé, da umbanda (à qual pertenço hoje e que, em seus fundamentos, ao contrário do que se afirma ao léu e a despeito de algumas casas, não pratica o corte), de outras religiões, simpatizantes dos cultos e outros. Até mesmo para criticar é preciso conhecer. Ou se está fadado a dizer besteiras. Um célebre provérbio dos terreiros afirma "Enu eja pa eja". Em tradução livre do iorubá, "O peixe morre pela boca".


Retirado do livro Para Conhecer o Candomblé, de Ademir Barbosa Júnior, Universo dos Livros, São Paulo, 2013.

segunda-feira, 9 de junho de 2025

Como nascem os deuses (Anexo 2)

A seguir, apresenta-se um texto bastante elucidativo da pesquisadora e terapeuta Mirella Faur (2007), o qual pode tranquilamente aplicar-se aos orixás.

O panteão das tradições antigas resultou na interação dos dois princípios cósmicos universais: o masculino, representado pelo Pai Céu, e o feminino, personificado pela Mãe Terra. O casamento sagrado desses polos gerou formas energéticas secundárias, polarizadas pela influência das forças telúricas, cósmicas, planetárias e dos fenômenos da Natureza. Quando modeladas pela egrégora mental de um conjunto racial, tribal ou grupal, essas energias se manifestam como arquétipos divinos, imbuídos de características e atributos específicos e com apresentações e nomes que variam conforme o lugar de origem.

A existência e a sobrevivência dos arquétipos de determinado panteão dependem da intensidade com que são cultuados e da duração desse culto. Sem essa conexão e nutrição recíproca, as matrizes etéreas enfraquecem-se e acabam desaparecendo com o passar do tempo.

Apesar de as divindades dependerem da egrégora humana, elas não são mero furto de nossa imaginação: são expressões reais de poderosos campos energéticos e vórtices de energia cósmica. Elas existem em uma realidade diferente do mundo tridimensional, chamada pelos xamãs de nagual ou "realidade incomum" (ou extrafísica), e têm o poder de existir e agir independentemente da vontade humana.

Esses centros de energia cósmica, sutis e inteligentes, denominados divindades (sejam elas deuses, vibrações originais, devas ou orixás), supervisionam o livre-arbítrio coletivo e auxiliam nas decisões tomadas pelos indivíduos, dentro dos limites, valores e regras do ambiente ao qual pertencem. Isso significa que elas não interferem no livre-arbítrio, nem agem contra os interesses do agrupamento humano que as "criam" e que continua "alimentando-as" por meio de invocações, oferendas, cultos e rituais. Existe uma necessidade de intercâmbio energético permanente entre a origem e o resultado da criação, entre o criador e a criatura.

Uma divindade deixará de existir apenas quando não tiver mais nenhum ser humano que invoque sua presença ou acredite em sua existência. Quando isso ocorrer, o campo energético por ela  representado não se extingue no espaço, mas se desloca ou volta à sua origem, podendo servir como substrato para a criação de um novo arquétipo, em lugar ou tempo diferente.

Os deuses e as deusas não são arquétipos estáticos, eles evoluem e se modificam de acordo com o progresso cultural e tecnológico e a trajetória espiritual humana. As mudanças na percepção e interpretação de suas manifestações e a compreensão expandida de seus atributos e funções levam à readaptação dos mitos e a sua adaptação às novas necessidades mentais, psicológicas e sociais da comunidade à qual pertencem. São as projeções e as formas mentais humanas que determinam a "metamorfose" das divindades, que acompanham, de maneira simbiótica, o desenvolvimento de seu povo e o surgimento de novos valores e hábitos comportamentais, morais e sociais. Compreende-se, assim, o porquê das diferenças nos mitos de um mesmo deus ou deusa e os variados nomes a eles atribuídos.


Retirado do livro Para Conhecer o Candomblé, de Ademir Barbosa Júnior, Universo dos Livros, São Paulo, 2013.

sábado, 7 de junho de 2025

Orixás na Umbanda (Anexo 1)

De modo geral, a Umbanda não considera os orixás que descem ao terreiro energias e/ou forças supremas desprovidas de inteligência e individualidade. Na verdade (e os africanos assim já o consideravam), os orixás são ancestrais divinizados, que incorporam conforme a ancestralidade, as afinidades e a coroa de cada médium. No Brasil, teriam sido confundidos com os chamados imolês, isto é, divindades criadoras, acima das quais aparece um único deus: Olorum (Olodumaré ou Zâmbi). Na linguagem e na concepção umbandistas, portanto, quem incorpora numa gira de umbanda não são os orixás propriamente ditos, mas seus falangeiros. Tal concepção está de acordo com o conceito de ancestral (espírito) divinizado (e/ou evoluído) vivenciado pelos africanos que para cá foram trazidos como escravos. Mesmo que essa visão não seja consensual (há quem defenda que tais ancestrais já encarnaram, enquanto outros segmentos umbandistas rejeitam esse conceito), ao menos se admite no meio umbandista que o orixá que incorpora possui um grau adequado de adaptação à energia dos encarnados, o que seria incompatível para os orixás hierarquicamente superiores.

Na pesquisa feita por Miriam de Oxalá a respeito da ancestralidade e da divinização de ancestrais, aparece, dentre outras fontes, a célebre pesquisadora Olga Guidolle Cacciatore (1997), para quem os orixás são intermediários entre Olorum, ou melhor, entre seu representante (e filho) Oxalá e os homens. Muitos deles são antigos reis, rainhas ou heróis divinizados, os quais representam as vibrações das forças elementares da natureza - raios, trovões, ventos, tempestades, água, fenômenos naturais como o arco-íris, atividades econômicas primordiais do homem primitivo - caça, agricultura - ou minerais, como o ferro que tanto serviu a essas atividades de sobrevivência, assim como às de extermínio na guerra.

Entretanto, e como o tema está sempre aberto ao diálogo, à pesquisa, ao registro de impressões, conforme observa o médium umbandista e escritor Norberto Peixoto, é possível incorporar a forma-pensamento de um orixá, a qual é plasmada e mantida pelas mentes dos encarnados. Nas palavras do médium,

Era dia de sessão de preto-velho, estávamos na abertura dos trabalhos, na hora da defumação. O congá "repentinamente" ficou vibrado com o orixá Nanã, que é considerado a mãe maior dos orixás e o seu axé (força) é um dos sustentadores da egrégora da casa desde a sua fundação, formando par com Oxóssi. Faltavam poucos dias para o amaci (ritual de lavagem da cabeça com ervas maceradas), que tem por finalidade fortalecer a ligação dos médiuns com os orixás regentes e guias espirituais. Pedi um ponto cantado de Nanã Buruquê, antes dos cânticos habituais. Fiquei envolvido com uma energia lenta, mas firme. Fui transportado mentalmente para a beira de um lago lindíssimo e o orixá Nanã me "ocupou", como se entrasse em meu corpo astral ou se interpenetrasse com ele, havendo uma incorporação total.

(...)

Vou explicar com sinceridade e sem nenhuma comparação, como tanto vemos por aí, como se a manifestação de um ou outro (dos espíritos na umbanda versus dos orixás em outros cultos) fosse mais ou menos superior, conforme o pertencimento de quem os compara a uma ou outra religião. A "entidade" parecia um "robô", um autômato sem pensamento contínuo, levado pelo som e pelos gestos. Sem dúvida, houve uma intensa movimentação de energia benfeitora, mas durante a manifestação do orixá minha cabeça ficou mentalmente vazia, como se nenhuma outra mente ocupasse o corpo energético do orixá que dançava, o que acabei sabendo depois tratar-se de uma forma-pensamento plasmada e mantida "viva" pelas mentes dos encarnados.

No cotidiano dos terreiros, por vezes o vocábulo orixá é utilizado também para guias e entidades. Nessas casas, por exemplo, é comum ouvir alguém dizer antes de uma gira de pretos-velhos: "Precisamos preparar mais banquinhos, pois hoje temos muitos médiuns e, portanto, aumentará o número de orixás em terra".


Retirado do livro Para Conhecer o Candomblé, de Ademir Barbosa Júnior, Universo dos Livros, São Paulo, 2013.

Fermento Espiritual (76)

 "Não sabeis que um pouco de fermento leveda a massa toda?" - Paulo. (I CORÍNTIOS, 5:6.)


O fermento é uma substância que excita outras substâncias, e nossa vida é sempre um fermento espiritual com que influenciamos as existências alheias.

Ninguém vive só.

Temos conosco milhares de expressões do pensamento dos outros e milhares de outras pessoas nos guardam a atuação mental, inevitavelmente.

Os raios de nossa influência entrosam-se com as emissões de quantos nos conhecem direta ou indiretamente, e pesam na balança do mundo para o bem ou para o mal.

Nossas palavras determinam palavras em quem nos ouve, e, toda vez que não formos sinceros, é provável que o interlocutor seja igualmente desleal.

Nossos modos e costumes geram modos e costumes da mesma natureza, em torno de nossos passos, mormente naqueles que se situam em posição inferior à nossa, nos círculos da experiência e do conhecimento.

Nossas atitudes e atos criam atitudes e atos do mesmo teor, em quantos nos rodeiam, porquanto aquilo que fazemos atinge o domínio da observação alheia, interferindo no centro de elaboração das forças mentais de nossos semelhantes.

O único processo, portanto, de reformar edificando é aceitar as sugestões do bem e praticá-las intensivamente, por intermédio de nossas ações.

Nas origens de nossas determinações, porém, reside a ideia.

A mente, em razão disso, é a sede de nossa atuação pessoal, onde estivermos.

Pensamento é fermentação espiritual. Em primeiro lugar estabelece atitudes, em segundo gera hábitos e, depois, governa expressões e palavras, através das quais a individualidade influencia na vida e no mundo. Regenerado, pois, o pensamento de um homem, o caminho que o conduz ao Senhor se lhe revela reto e limpo.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

A hora de partir

Mamãe Lua sabia que as pessoas não queriam morrer. Elas desejavam viver para sempre, como ela: nascendo, crescendo, minguando e reaparecendo toda-poderosa e cheia no céu. Então, em uma bela noite, mamãe Lua chamou um lagarto e pediu que ele fosse à Terra e dissesse para todos, homens, mulheres, meninos e meninas, que a partir daquele dia todos acordariam e viveriam até o final dos tempos.

- Pode deixar, mamãe Lua! Vou avisar todo mundo - disse o lagarto, deixando-a tranquila, pois sua mensagem chegaria para as pessoas rapidamente.

E o lagarto foi caminhando, todo bonito e faceiro, sempre parando para olhar alguma coisa ou conversar com alguém, em vez de se concentrar em sua missão. Quando estava no meio do caminho, encontrou uma árvore carregada de frutas bem madurinhas. Subiu na árvore e comeu, comeu, até ficar com a barriga bem cheia. "Acho que vou descansar um pouquinho antes de continuar a minha viagem", pensou o lagarto. E ali mesmo, debaixo da árvore, dormiu.

A centopeia, que cuida para que a morte chegue no tempo certo a cada um, soube da mensagem que mamãe Lua havia enviado para a Terra. Preocupada, ela chamou um mongoose, um pequeno animal de pelo curto, muito ágil e esperto, e pediu:

- Corra até a Terra e diga a todos, homens, mulheres, meninos e meninas, que quando morrerem jamais voltarão a viver. Eles devem morrer para sempre!

O mongoose chegou rapidamente à Terra e avisou todas as pessoas que elas morreriam para sempre. Tempos depois, chegou o lagarto trazendo a mensagem da mamãe Lua. Mas já era tarde demais. As pessoas estavam muito tristes.

Mamãe Lua soube da situação e ficou muito brava com o lagarto:

- Onde já se viu?

E foi ela mesma falar com as pessoas.

- Eu não posso mudar a situação - lamentou. - A mensagem da centopeia chegou primeiro. Mas digo que, mais do que nunca, vocês devem viver intensamente cada momento, com muito amor e respeito à vida que existe em cada pessoa, bicho, planta, em cada grão de terra, em todo o universo. Porque todos nós somos um. Estamos ligados pela grande força da vida.

Mamãe Lua abriu um grande sorriso e continuou:

- E quando chegar o dia de vocês partirem para a Terra dos Espíritos dos seus antepassados vocês viverão para sempre por meio das coisas que realizarem aqui, do amor que alimentarem e da vida que continuará nascendo, crescendo e morrendo neste planeta.

Uma paz imensa encheu o coração de toda a gente. E todos foram dormir porque o dia seguinte sempre será um novo dia.


Conto de Denise Carreira retirado do livro Lendas Africanas (E a força dos tambores cruzou o mar), Editora Salesiana, São Paulo, 2008.

sábado, 31 de maio de 2025

Administração (75)

 "Dá conta de tua administração." - Jesus. (LUCAS, 16:2)


Na essência, cada homem é servidor pelo trabalho que realiza na obra do Supremo Pai, e, simultaneamente, é administrador, porquanto cada criatura humana detém possibilidades enormes no plano em que moureja

Mordomo do mundo não é somente aquele que encanece os cabelos, à frente dos interesses coletivos, nas empresas públicas ou particulares, combatendo tricas mil, a fim de cumprir a missão a que se dedica.

Cada inteligência da Terra dará conta dos recursos que lhe forem confiados.

A fortuna e a autoridade não são valores únicos de que devemos dar conta hoje e amanhã.

O corpo é um templo sagrado.

A saúde física é um tesouro.

A oportunidade de trabalhar é uma bênção.

A possibilidade de servir é um obséquio divino.

O ensejo de aprender é uma porta libertadora.

O tempo é um patrimônio inestimável.

O lar é uma dádiva do Céu.

O amigo é um benfeitor.

A experiência benéfica é uma grande conquista.

A ocasião de viver em harmonia com o Senhor, com os semelhantes e com a Natureza é uma glória comum a todos.

A hora de ajudar os menos favorecidos de recursos ou entendimento é valiosa.

O chão para semear, a ignorância para se instruída e a dor para se consolada são apelos que o Céu envia sem palavras ao mundo inteiro.

Que fazes, portanto, dos talentos preciosos que repousam em teu coração, em tuas mãos e no teu caminho? Vela por tua própria tarefa no bem, diante do Eterno, porque chegará o momento em que o Poder Divino te pedirá: - "Dá conta de tua administração."


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

quarta-feira, 28 de maio de 2025

O estranho procedimento de dona Dolores

Começou na mesa do almoço. A família estava comendo - pai, mãe, filho e filha - e de repente a mãe olhou para o lado, sorriu e disse:

- Para a minha família, só serve o melhor. Por isso eu sirvo arroz Rizobon. Rende mais e é mais gostoso.

O pai virou-se rapidamente na cadeira para ver com quem a mulher estava falando. Não havia ninguém.

- O que é isso, Dolores?

- Tá doida, mãe?

Mas dona Dolores parecia não ouvir. Continuava sorrindo. Dali a pouco levantou-se da mesa e dirigiu-se para a cozinha. Pai e filhos se entreolharam.

- Acho que a mamãe pirou de vez.

- Brincadeira dela...

A mãe voltou da cozinha carregando uma bandeja com cinco taças de gelatina.

- Adivinhem o que tem de sobremesa?

Ninguém respondeu. Estavam constrangidos por aquele tom jovial de dona Dolores, que nunca fora assim.

- Acertaram! - exclamou dona Dolores, colocando a bandeja sobre a mesa. - Gelatina Quero Mais, uma festa em sua boca. Agora com os novos sabores framboesa e manga.

O pai e os filhos começaram a comer a gelatina, um pouco assustados. Sentados à mesa, dona Dolores olhou de novo para o lado e disse:

- Bote essa alegria na sua mesa todos os dias. Gelatina Quero Mais. Dá gosto comer!

Mais tarde o marido de dona Dolores entrou na cozinha e a encontrou segurando uma lata de óleo à altura do rosto e falando para uma parede.

- A saúde da minha família em primeiro lugar. Por isto, aqui em casa só uso o puro óleo Paladar.

- Dolores...

Sem olhar para o marido, dona Dolores o indicou com a cabeça.

- Eles vão gostar.

O marido achou melhor não dizer nada. Talvez fosse caso de chamar um médico. Abriu a geladeira, atrás de uma cerveja. Sentiu que dona Dolores se colocava atrás dele. Ela continuava falando para a parede.

- Todos encontram tudo o que querem na nossa Gelatec Espacial, agora com prateleiras superdimensionadas, gavetas em Vidro-Glass e muito, mas muito mais espaço. Nova Gelatec Espacial, a cabe tudo.

- Pare com isso, Dolores.

Mas dona Dolores não ouvia.

Pai e filhos fizeram uma reunião secreta, aproveitando que dona Dolores estava na frente da casa, mostrando para uma plateia invisível as vantagens de uma nova tinta de paredes.

- Ela está nervosa, é isso.

- Claro. É uma fase. Passa logo.

- É melhor nem chamar a atenção dela.

- Isso. É nervos.

Mas dona Dolores não parecia nervosa. Ao contrário, andava muito calma. E não podia passar por um membro da família sem virar-se para o lado e fazer um comentário afetuoso:

- Todos andam muito mais alegres desde que eu comecei a usar Limpol nos ralos.

Ou:

- Meu marido também passou a usar desodorante Silvester. E agora todos aqui em casa respiram aliviados.

Apesar do seu ar ausente, dona Dolores não deixava de conversar com o marido e com os filhos.

- Vocês sabiam que o laxante Vida Mansa agora tem dois ingredientes recém desenvolvidos pela ciência que o tornam duas vezes mais eficiente?

- O quê?

- Sim, os fabricantes de Vida Mansa não descansam para que você possa descansar.

- Dolores...

Mas dona Dolores estava outra vez virada para o lado, e sorrindo:

- Como esposa e mãe, eu sei que minha obrigação é manter a regularidade da família. Vida Mansa, uma mãozinha da ciência à Natureza. Experimente!

Naquela noite o filho levou um susto. Estava escovando os dentes quando a mãe entrou de surpresa no banheiro, pegou a sua pasta de dentes e começou a falar para o espelho.

- Ele tinha horror de escovar os dentes até que eu segui o conselho do dentista, que disse a palavra mágica: Zaz. Agora escovar os dentes é um prazer, não é, Jorginho?

- Mãe, eu...

- Diga você também a palavra mágica. Zaz! O único com HXO.

O marido de dona Dolores acompanhava, apreensivo, da cama, o comportamento da mulher. Ela estava sentada na frente do toucador e falando para uma câmera que só ela via, enquanto passava creme no rosto.

- Marcel de Paris não é apenas um creme hidratante. Ele devolve à sua pele o fresco que o tempo levou, e que parecia perdido para sempre. Recupere o tempo perdido com Marcel de Paris.

Dona Dolores caminhou, languidamente, para a câmera, deixando cair seu robe de chambre no caminho. Enfiou-se entre os lençóis e beijou o marido na boca. Depois, apoiando-se num cotovelo, dirigiu-se outra vez para a câmera.

- Ele não sabe, mas estes lençóis são da nova linha Passional da Santex. Bons lençóis para maus pensamentos. Passional da Santex. Agora, tudo pode acontecer...

Dona Dolores abraçou o marido. Que olhou para todos os lados antes de abraçá-la também. No dia seguinte certamente levaria a mulher a um médico. Por enquanto, pretendia aproveitar. Fazia tanto tempo. Apagou a luz, prudentemente, embora soubesse que não havia nenhuma câmera por perto. Por via das dúvidas, por via das dúvidas.


Texto de Luís Fernando Veríssimo retirado do livro A Velhinha de Taubaté, 9ª Edição, L&PM Editores, Porto Alegre, 1986.

terça-feira, 27 de maio de 2025

Quando há Luz (74)

 "O amor do Cristo nos constrange." - Paulo. (II CORÍNTIOS, 5:14.)


Quando Jesus encontra santuário no coração de um homem, modifica-se-lhe a marcha inteiramente.

Não há mais lugar dentro dele para a adoração improdutiva, para a crença sem obras, para a fé inoperante.

Algo de indefinível na terrestre linguagem transtorna-lhe o espírito.

Categoriza-o a massa comum por desajustado, entretanto, o aprendiz do Evangelho, chegando a essa condição, sabe que o Trabalhador Divino como que lhe ocupa as profundidades do ser.

Renova-se-lhe toda a conceituação da existência.

O que ontem era prazer, hoje é ídolo quebrado.

O que  representava meta a atingir, é roteiro errado que ele deixa ao abandono.

Torna-se criatura fácil de contentar, mas muito difícil de agradar.

A voz do Mestre, persuasiva e doce, exorta-o a servir sem descanso.

Converte-se-lhe a alma num estuário maravilhoso, onde os padecimentos vão ter, buscando arrimo, e por isso sofre a constante pressão das dores alheias.

A própria vida física afigura-se-lhe um madeiro, em que o Mestre se aflige. É-lhe o corpo a cruz viva em que o Senhor se agita crucificado.

O único refúgio em que repousa é o trabalho perseverante no bem geral.

Insatisfeito, embora resignado; firme na fé, não obstante angustiado; servindo a todos, mas sozinho em si mesmo, segue, estrada a fora, impelido por ocultos e indescritíveis aguilhões...

Esse é o tipo de aprendiz que o amor do Cristo constrange, na feliz expressão de Paulo. Vergasta-o a luz celeste por dentro até que abandone as zonas inferiores em definitivo.

Para o mundo, será inadaptado e louco.

Para Jesus, é o vaso das bênçãos.

A flor é uma linda promessa, onde se encontre.

O fruto maduro, porém, é alimento para Hoje.

Felizes daqueles que espalham a esperança, mas bem-aventurados sejam os seguidores do Cristo que suam e padecem, dia a dia, para que seus irmãos se reconfortem e se alimentem no Senhor!


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

segunda-feira, 26 de maio de 2025

O Recital

Uma boa maneira de começar um conto é imaginar uma situação rigidamente formal - digamos, um recital de quarteto de cordas - e depois começar a desfiá-la, como um pulôver velho. Então, vejamos. Um recital de quarteto de cordas.

O quarteto entra no palco sob educados aplausos da seleta plateia. São três homens e uma mulher. A mulher, que é jovem e bonita, toca viola. Veste um longo vestido preto. Os três homens estão de fraque. Tomam os seus lugares atrás das partituras. Da esquerda para a direita: um violino, outro violino, a viola e o violoncelo. Deixa ver se não esqueci nenhum detalhe. O violoncelista tem um grande bigode ruivo. Isto pode se revelar importante mais tarde, no conto. Ou não.

Os quatro afinam seus instrumentos. Depois, silêncio. Aquela expectativa nervosa que precede o início de qualquer concerto. As últimas tossidas da plateia. O primeiro violinista consulta seus pares com um olhar discreto. Estão todos prontos. O violinista coloca o instrumento sob o queixo e posiciona seu arco. Vai começar o recital. Nisso...

Nisso, o quê? Qual é a coisa mais insólita que pode acontecer num recital de um quarteto de cordas? Passar uma manada de zebus pelo palco, por trás deles? Não. Uma manada de zebus passa, parte da plateia pula das suas poltronas e procura as saídas em pânico, outra parte fica paralisada e perplexa, mas depois tudo volta ao normal. O quarteto, que manteve-se firme em seu lugar até o último zebu - são profissionais e, mesmo, aquilo não pode estar acontecendo - começa a tocar. Nenhuma explicação é perdida ou oferecida. Segue o Mozart.

Não. É preciso instalar-se no acontecimento, como a semente da confusão, uma pequena incongruência. Algo que crie apenas um mal-estar, de início e chegue lentamente, em etapas sucessivas, ao caos. Um morcego que pousa na cabeça do segundo violinista durante um pizzicato. Não. Melhor ainda. Entra no palco um homem carregando uma tuba.

Há um murmúrio na plateia. O que é aquilo? O homem entra, com sua tuba, dos bastidores. Posta-se ao lado do violoncelo. O primeiro violinista, retesado como um mergulhador que subitamente descobriu que não tem água na piscina, olha para a tuba entre fascinado e horrorizado. O que é aquilo? Depois de alguns instantes em que a tensão no ar é como a corda de um violino esticada ao máximo, o primeiro violinista fala:

- Por favor...

- O quê? - diz o homem da tuba, já na defensiva. - Vai dizer que eu não posso ficar aqui?

- O que o senhor quer?

- Quero tocar, ora. Podem começar que eu acompanho.

Alguns risos da plateia. Ruídos de impaciência. Ninguém nota que o violoncelista olhou para trás e quando deu com o tocador de tuba virou o rosto em seguida, como se quisesse se esconder. O primeiro violinista continua:

- Retire-se, por favor.

- Por quê? Quero tocar também.

O primeiro violinista olha nervosamente para a plateia.

Nunca em toda a sua carreira como líder do quarteto teve que enfrentar algo parecido. Um vez um mosquito entrou na sua narina durante uma passagem de Vivaldi. Mas nunca uma tuba.

- Por favor. Isto é um recital para quarteto de cordas. Vamos tocar Mozart. Não tem nenhuma parte para a tuba.

- Eu improviso alguma coisa. Vocês começam e eu faço o um-pá-pá.

Mais risos da plateia. Expressões de escândalo. De onde surgiu aquele homem com uma tuba? Ele nem está de fraque. Segundo algumas versões veste uma camiseta do Vasco. Usa chinelos de dedo. A violista sente-se mal. O violinista ameaça chamar alguém dos bastidores para retirar o tocador de tuba a força. Mas ele aproxima o bocal do seu instrumento dos lábios e ameaça:

- Se alguém se aproximar de mim eu toco pof!

A perspectiva de se ouvir um pof naquele recinto paralisa a todos.

- Está bem - diz o primeiro violinista. - Vamos conversar. Você, obviamente, entrou no lugar errado. Isto é um recital de cordas. Estamos nos preparando para tocar Mozart. Mozart não tem um-pá-pá.

-Mozart não sabe o que está perdendo - diz o tocador de tuba, rindo para a plateia e tentando conquistar a sua simpatia.

Não consegue. O ambiente é hostil. O tocador de tuba muda de tom. Torna-se ameaçador:

- Está bem, seus elitistas. Acabou. Onde é que vocês pensam que estão, no século XVIII? Já houve 17 revoluções populares depois de Mozart. Vou confiscar estas partituras em nome do povo. Vocês todos serão interrogados. Um a um, pá-pá.

Torna-se suplicante:

- Por favor, só o que eu quero é tocar um pouco também. Eu sou humilde. Não pude estudar instrumento de corda. Eu mesmo fiz esta tuba, de um Volkswagen velho. Deixa...

Num tom sedutor, para a violista:

- Eu represento os seus sonhos secretos. Sou um produto da sua imaginação lúbrica, confessa. Durante o Mozart, neste quarteto antisséptico, é em mim que você pensa. Na minha barriga e na minha tuba fálica. Você quer ser violada por mim num alegro assai, confessa...

Finalmente, desafiador, para o violoncelista:

- Esse bigode ruivo. Estou reconhecendo. É o mesmo bigode que eu usava em 1968. Devolve!

O tocador de tuba e o violoncelista atracam-se. Os outros membros do quarteto entram na briga. A plateia agora grita e pula. É o caos! Simbolizando, talvez, a falência final de todo o sistema de valores que teve início com o Iluminismo europeu ou o triunfo do instinto sobre a razão ou, ainda, uma pane mental do autor. Sobre o palco, um dos resultados da briga é que agora quem está com o bigode ruivo é a violista. Vendo-a assim, o tocador de tuba para de morder a perna do segundo violinista, abre os braços e grita: "Mamãe!"

Nisso, entra no palco uma manada de zebus.


Texto de Luís Fernando Veríssimo retirado do livro O Analista de Bagé, L&PM Editora, 55ª Edição, Porto Alegre, 1982.