quarta-feira, 18 de junho de 2025

O significado da solidão humana (Introdução 1)

Durante todo o tempo em que fui professor desta Faculdade, por mais de 15 anos, não me recordo de ter havido um seminário, um simpósio e nem mesmo uma simples palestra, que tivesse dado aos alunos o ensejo de discutirem o tema da solidão. E, no entanto, todos sabem que o assunto é de muita relevância e de grande atualidade.

O fenômeno da solidão é universal no tempo e no espaço, atingindo todos os povos de todos os tempo. Estudá-lo é, pois, um bom caminho para se obter alguma compreensão da personalidade humana. Além disso, torna-se cada vez mais corrente a ideia de que a solidão é uma das características que mais acentuadamente  definem o homem moderno. Procurar entendê-la - tanto para os profissionais da Psicologia, como para vocês, futuros psicólogos, - é uma forma adequada e produtiva de captar os sinais dos tempos em que vivemos, a fim de descobrirmos o modo mais eficaz de prestarmos ajuda aos que vêm até nós na busca de serem socorridos.

Estes e outros motivos - que irão aparecendo progressivamente durante a minha conferência - fizeram nascer em mim, assim que recebi o honroso convite para participar deste encontro, a ideia de lhes propor, embora de maneira sumária como a tempo desta conferência permite, o meu ponto de vista sobre a solidão humana, a fim de termos a oportunidade de, juntos, analisá-lo e discuti-lo.


Texto de Franz Victor Rúdio retirado do livro Compreensão Humana e Ajuda ao Outro, Editora Vozes, Petrópolis, 1991.

Conferência de abertura do II Encontro de Psicologia do Vale do Paraíba, realizado na Faculdade Salesiana de Filosofia, Ciências e Letras de Lorena, São Paulo. 

terça-feira, 17 de junho de 2025

Uma Amizade Sincera

Não é que fôssemos amigos de longa data. Conhecemo-nos apenas no último ano da escola. Desde esse momento estávamos juntos a qualquer hora. Há tanto tempo precisávamos de um amigo que nada havia que não confiássemos um ao outro. Chegamos a um ponto de amizade que não podíamos mais guardar um pensamento: um telefonava logo ao outro, marcando encontro imediato. Depois da conversa, sentíamo-nos tão contentes como se nos tivéssemos presenteado a nós mesmos. Esse estado de comunicação contínua chegou a tal exaltação que, no dia em que nada tínhamos a nos confiar, procurávamos com alguma aflição um assunto. Só que o assunto devia ser grave, pois em qualquer um não caberia a veemência de uma sinceridade pela primeira vez experimentada.

Já nesse tempo apareceram os primeiros sinais de perturbação entre nós. Às vezes um telefonava, encontrávamo-nos, e nada tínhamos a nos dizer. Éramos muito jovens e não sabíamos ficar calados. De início, quando começou a faltar assunto, tentamos comentar as pessoas. Mas bem sabíamos que já estávamos adulterando o núcleo da amizade. Tentar falar sobre nossas mútuas namoradas também estava fora de cogitação, pois um homem não falava de seus amores. Experimentamos ficar calados - mas tornávamo-nos inquietos logo depois de nos separarmos.

Minha solidão, na volta de tais encontros, era grande e árida. Cheguei a ler livros apenas para poder falar deles. Mas a amizade sincera queria a sinceridade mais pura. À procura desta, eu começava a me sentir vazio. Nossos encontros eram cada vez mais decepcionantes. Minha sincera pobreza revelava-se aos poucos. Também ele, eu sabia, chegara ao impasse de si mesmo.

Foi quando, tendo minha família se mudado para São Paulo, e ele morando sozinho, pois sua família era do Piauí, foi quando o convidei a morar em nosso apartamento, que ficava sob a minha guarda. Que rebuliço de alma. Radiantes, arrumávamos nossos livros e discos, preparávamos um ambiente perfeito para a amizade. Depois de tudo pronto - eis-nos dentro de casa, de braços abanando, mudos, cheios apenas de amizade.

Queríamos tanto salvar o outro. Amizade é matéria de salvação.

Mas todos os problemas já tinham sido tocados, todas as possibilidades estudadas. Tínhamos apenas essa coisa que havíamos procurado sedentos até então e enfim encontrado: uma amizade sincera. Único modo, sabíamos, e com que amargor sabíamos, de sair da solidão que um espírito tem no corpo.

Mas como se nos revelava sintética a amizade. Como se quiséssemos espalhar em longo discurso um truísmo que uma palavra esgotaria. Nossa amizade era tão insolúvel como a soma de dois números: inútil querer desenvolver para mais de um momento a certeza de que dois e três são cinco.

Tentamos organizar algumas farras no apartamento, mas não só os vizinhos reclamaram como não adiantou.

Se ao menos pudéssemos prestar favores um ao outro. Mas nem havia oportunidade, nem acreditávamos em provas de uma amizade que delas não precisava. O mais que podíamos fazer era o que fazíamos: saber que éramos amigos. O que não bastava para encher os dias, sobretudo as longas férias.

Data dessas férias o começo da verdadeira aflição.

Ele, a quem eu nada podia dar senão minha sinceridade, ele passou a ser uma acusação de minha pobreza. Além do mais, a solidão de um ao lado do outro, ouvindo música ou lendo, era muito maior do que quando estávamos sozinhos. E, mais que maior, incômoda. Não havia paz. Indo depois cada um para o seu quarto, com alívio nem nos olhávamos.

É verdade que houve uma pausa no curso das coisas, uma trégua que nos deu mais esperanças do que em realidade caberia. Foi quando meu amigo teve uma pequena questão com a Prefeitura. Não é que fosse grave, mas nós a tornamos para melhor usá-la. Porque então já tínhamos caído na facilidade de prestar favores. Andei entusiasmado pelos escritórios dos conhecidos de minha família, arranjando pistolões para meu amigo. E quando começou a fase de selar papéis, corri por toda a cidade - posso dizer em consciência que não houve firma que se reconhecesse sem ser através de minha mão.

Nessa época encontrávamo-nos de noite em casa, exaustos e animados: contávamos as façanhas do dia, planejávamos os ataques seguintes. Não aprofundávamos muito o que estava sucedendo, bastava que tudo isso tivesse o cunho da amizade. Pensei compreender por que os noivos se presenteiam, por que o marido faz questão de dar conforto à esposa, e esta prepara-lhe afanada o alimento, por que a mãe exagera nos cuidados ao filho. Foi, aliás, nesse período que, com algum sacrifício, dei um pequeno broche de ouro àquela que é hoje minha mulher. Só muito depois eu ia compreender que estar também é dar.

Encerrada a questão com a Prefeitura - seja dito, de passagem, com vitória nossa - continuamos um ao lado do outro, sem encontrar aquela palavra que cederia a alma. Cederia a alma? Mas afinal de contas quem queria ceder a alma? Ora essa.

Afinal o que queríamos? Nada. Estávamos fatigados, desiludidos.

A pretexto de férias com minha família, separamo-nos. Aliás ele também ia ao Piauí. Um aperto de mão comovido foi o nosso adeus no aeroporto. Sabíamos que não nos veríamos mais, senão por acaso. Mais que isso: que não queríamos nos rever. E sabíamos também que éramos amigos. Amigos sinceros.


Conto de Clarice Lispector retirado do livro A Legião Estrangeira, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 2019.

segunda-feira, 16 de junho de 2025

Ruído de Passos

Tinha oitenta e um anos de idade. Chamava-se dona Cândida Raposo.

Essa senhora tinha a vertigem de viver. A vertigem se acentuava quando ia passar dias numa fazenda: a altitude, o verde das árvores, a chuva, tudo isso a piorava. Quando ouvia Liszt se arrepiava toda. Fora linda na juventude. E tinha vertigem quando cheirava profundamente uma rosa.

Pois foi com dona Cândida Raposo que o desejo de prazer não passava.

Teve enfim a grande coragem de ir a um ginecologista. E perguntou-lhe envergonhada, de cabeça baixa:

- Quando é que passa?

- Passa o quê, minha senhora?

- A coisa.

- Que coisa?

- A coisa, repetiu. O desejo de prazer, disse enfim.

- Minha senhora, lamento lhe dizer que não passa nunca.

Olhou-o espantada.

- Mas eu tenho oitenta e um anos de idade!

- Não importa, minha senhora. É até morrer.

- Mas isso é o inferno!

- É a vida, senhora Raposo.

A vida era isso, então? Essa falta de vergonha?

- E o que é que eu faço? Ninguém me quer mais...

O médico olhou-a com piedade.

- Não há remédio, minha senhora.

- E se eu pagasse?

- Não ia adiantar de nada. A senhora tem que se lembrar que tem oitenta e um anos de idade.

- E... E se eu me arranjasse sozinha? O senhor entende o que eu quero dizer?

- É, disse o médico. Pode ser um remédio.

Então saiu do consultório. A filha esperava-a embaixo, de carro. Um filho Cândida Raposo perdera na guerra, era um pracinha. Tinha essa intolerável dor no coração: a de sobreviver a um ser adorado.

Nessa mesma noite deu um jeito e solitária satisfez-se. Mudos fogos de artifícios. Depois chorou. Tinha vergonha. Daí em diante usaria o mesmo processo. Sempre triste. É a vida, senhora Raposo, é a vida. Até a bênção da morte.

A morte.

Pareceu-lhe ouvir ruído de passos. Os passos de seu marido Antenor Raposo.


Conto de Clarice Lispector retirado do livro A via crucis do corpo, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1984.

domingo, 15 de junho de 2025

Nunca é tarde, sempre é tarde

Conseguiu aprontar-se mas não teve tempo de guardar o material de maquiagem espalhado sobre a penteadeira. Olhou-se no espelho. Nem bonita, nem feia. Secretária. Sou uma secretária, pensou, procurando conscientizar-se. Não devo ser, no trabalho, nem bonita, nem feia. Devo me pintar, vestir-me bem, mas sem exagero. Beleza mesmo é pra fim de semana. Nem bonita, nem feia, disse consigo mesma. Concluiu que não havia tempo nem para o café. Cruzou a sala e o hall em disparada, na direção da porta de saída, ao mesmo tempo em que gritava para a mãe envolvida pelos vapores da cozinha, eu como alguma coisa lá mesmo. Sempre tem alguém com alguma bolachinha disponível. Café nunca falta. A mãe reclamou mais uma vez. Você acaba doente, Su. Assim não pode. Assim, não. Su, enlouquecida pela pressa, nada ouviu. Poucas vezes ouvia o que a mãe lhe dizia. Louca de pressa, ia sair, avançou a mão para a maçaneta da porta e assustou-se. A campainha tocou naquele exato momento. Quem haveria de ser àquela hora? A campainha era insistente. Aquele dedo nervoso apertava-a sem tréguas. A campainha. Su acordou finalmente com o tilintar vibrante do despertador Westclox e se deu conta de que sequer havia-se levantado. Raios. Tudo por fazer. Mesmo que acordasse em tempo, tinha sempre que correr, correr. Tinha tudo cronometrado, desde o levantar-se até o retoque do batom e o perfumezinho final. Exploit da Atkinsons. Perfume quente. Mais ou menos quente. Esqueceu onde havia deixado o relógio de pulso. Perambulou nervosamente pela casa procurando-o. Atrasou-se alguns preciosos minutos. A mãe achou-o sobre a mesinha do telefone. Su colocou-o no pulso. Viu as horas. Havia conseguido aprontar-se, mas não teve tempo de guardar o material de maquiagem espalhado sobre a penteadeira. Olhou-se no espelho. Nem bonita, nem feia, pensou. Vou ficar bonita mesmo só no sábado. Não havia tempo nem para o café. Cruzou em disparada a sala e o hall, em direção à porta de saída, ao mesmo tempo em que gritava para a mãe, bolachinha disponível. Avançou a mão para a fechadura e assustou-se com o toque insistente da campainha. Algum dedo nervoso. O Westclox. Su acordou e deu-se conta mais uma vez da trágica e permanente verdade de que ainda não estava pronta. Levantou-se de um ímpeto. Correu ao banheiro, voltou do banheiro, vestiu-se com a roupa estrategicamente deixada sobre a cadeira na noite anterior. Ao sentar-se mais uma vez frente ao espelho, notou que, embora não tivesse ainda se pintado, o material de maquiagem já estava espalhado sobre a penteadeira. O batom aberto e usado, o Exploit desastradamente destampado, evaporando. O despertador tocou novamente. Ou tocou finalmente? E estava com toda corda, pois demorou a silenciar. Mesmo assim, Su andou pela casa toda, tentando desesperadamente acordar-se. Ocorreu afinal a ideia de pedir ajuda à mãe. Estava, envolvida pelos vapores da cozinha, mostrou-se compreensiva. Esta bém, Su. Espere só um instantinho que eu vou lá no quarto te acordar.


Conto de Silvio Fiorani retirado do livro Contos Brasileiros Contemporâneos, organização de Julieta de Godoy Ladeira, Editora Moderna, Coleção Travessias, São Paulo, 1997.

sábado, 14 de junho de 2025

Pai Nosso (77)

 "Pai nosso..." - Jesus. (MATEUS, 6:9.)


A grandeza da prece dominical nunca será devidamente compreendida por nós que lhe recebemos as lições divinas.

Cada palavra, dentro dela, tem a fulguração de sublime luz.

De início, o Mestre Divino lança-lhe os fundamentos em Deus, ensinando que o Supremo Doador da Vida deve constituir, para nós todos, o princípio e a finalidade de nossas tarefas.

É necessário começar e continuar em Deus, associando nossos impulsos ao plano divino, a fim de que nosso trabalho não se perca no movimento ruinoso ou inútil.

O Espírito Universal do Pai há de presidir-nos o mais humilde esforço, na ação de pensar e falar, ensinar e fazer.

Em seguida, com um simples pronome possessivo, o Mestre exalta a comunidade.

Depois de Deus, a Humanidade será o tema fundamental de nossas vidas.

Compreenderemos as necessidades e as aflições, os males e as lutas de todos os que nos cercam ou estaremos segregados no egoísmo primitivista.

Todos os triunfos e fracassos que iluminam e obscurecem a Terra pertencem-nos, de algum modo.

Os soluços de um hemisfério repercutem no outro.

A dor do vizinho é uma advertência para a nossa casa.

O erro de um irmão, examinando nos fundamentos, é igualmente nosso, porque somos componentes imperfeitos de uma sociedade menos perfeita, gerando causas perigosas e, por isso, tragédias e falhas dos outros afetam-nos por dentro.

Quando entendemos semelhante realidade, o "império do eu" passa a incorporar-se por célula bendita à vida santificante.

Sem amor a Deus e à Humanidade, não estamos suficientemente seguros na oração.

Pai nosso... - disse Jesus para começar.

Pai do Universo... Nosso mundo...

Sem nos associarmos aos propósitos do Pai, na pequenina tarefa que nos foi permitido executar, nossa prece será, muitas vezes, simples repetição do "eu quero", invariavelmente cheio de desejos, mas quase sempre vazio de sensatez e de amor.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

quinta-feira, 12 de junho de 2025

Sobre o corte no Candomblé (Anexo 3)

Para contribuir para o diálogo a respeito do corte no candomblé, reproduzo a íntegra de uma carta publicada resumidamente no Jornal de Piracicaba de 23 de janeiro de 2011:

Muito oportuno, lúcido e realmente dialógico o artigo "Liberdade religiosa e sacrifício de animais", de Ivan Gabriel França de Negri. Com relação ao tema, este é um dos poucos textos publicados na imprensa que não agridem aqueles que pensam de maneira diferente de seus autores.

Com muita tristeza acompanhei no ano de 2010 a tentativa de parte da sociedade civil e de legisladores municipais de proibir o corte nos terreiros de candomblé da cidade. Por trás da "defesa dos direitos dos animais", preconceito religioso, rancor, incompreensão, falta de argumentos lógicos. Articulistas de jornais exaltados mostravam grande desconhecimento dos fundamentos do candomblé, dos orixás, de entidades, por vezes empregando termos, além de raivosos, altamente preconceituosos.

Conforme afirmo em meu livro Xirê: orikais - canto de amor aos orixás (Piracicaba: Limão Doce, 2010), "nos anos 90 li uma matéria num jornal de grande circulação nacional que tratava de tema polêmico, por vezes tabu: a não utilização de animais em rituais de candomblé. Isso à época me chamou muito a atenção, mas o tema foi deixado de lado. Não me recordo com precisão das referências da matéria, contudo tenho encontrado outras, esparsas, sobre Agenor Miranda e Mestre Didi apresentando ideias semelhantes". Anos depois, encontrei Iya Senzaruban e me iniciei no candomblé vegetariano, organizado por ela paulatinamente há quase 20 de seus mais de 45 anos de candomblé. Em sua casa (Ilê Iya Tunde), fui confirmado e saí ogã de Oxum.

Por nunca ter praticado ou vivenciado o corte, acredito ter imparcialidade suficiente para aqui deixar meu depoimento a favor dos  irmãos que veem suas práticas erroneamente condenadas , uma vez que aqueles que os desrespeitam não compreendem a função do corte no culto e na alimentação da própria comunidade dos terreiros e seu entorno. Se existe abuso e crueldade, que haja fiscalização legítima e democrática para coibir tais práticas. Sobre o tema, vale a pena ler em meu livro a respeito do cuidado com que os animais são geralmente criados nos terreiros, ao contrário do que acontece na maioria dos criadouros. Muitos dos rituais citados pelos detratores do candomblé, em Piracicaba, jamais aconteceram em qualquer ilê deste país. Infelizmente, no libelo contra os candomblecistas da cidade, palavras de Iya Senzaruban foram utilizadas descontextualizadas, transcritas de entrevistas.

O candomblé vegetariano não faz proselitismo. Conforme repito sempre, trata-se de "uma prática que respeita os fundamentos de outras tradições e amorosamente também exige respeito". Infelizmente somos discriminados por nossa opção de culto mais pelos próprios irmãos de candomblé do que por aqueles que comumente criticam o candomblé, mas jamais faríamos isso. Nossa forma de culto difere, mas nossa identidade é a mesma. O vegetarianismo no culto, assim como na alimentação, é uma opção pessoal/coletiva que não pode ser violentamente imposta a ninguém.

Neste início de ano, convido os irmãos a dialogarem com aqueles que cultuam orixás, sejam do candomblé, da umbanda (à qual pertenço hoje e que, em seus fundamentos, ao contrário do que se afirma ao léu e a despeito de algumas casas, não pratica o corte), de outras religiões, simpatizantes dos cultos e outros. Até mesmo para criticar é preciso conhecer. Ou se está fadado a dizer besteiras. Um célebre provérbio dos terreiros afirma "Enu eja pa eja". Em tradução livre do iorubá, "O peixe morre pela boca".


Retirado do livro Para Conhecer o Candomblé, de Ademir Barbosa Júnior, Universo dos Livros, São Paulo, 2013.

segunda-feira, 9 de junho de 2025

Como nascem os deuses (Anexo 2)

A seguir, apresenta-se um texto bastante elucidativo da pesquisadora e terapeuta Mirella Faur (2007), o qual pode tranquilamente aplicar-se aos orixás.

O panteão das tradições antigas resultou na interação dos dois princípios cósmicos universais: o masculino, representado pelo Pai Céu, e o feminino, personificado pela Mãe Terra. O casamento sagrado desses polos gerou formas energéticas secundárias, polarizadas pela influência das forças telúricas, cósmicas, planetárias e dos fenômenos da Natureza. Quando modeladas pela egrégora mental de um conjunto racial, tribal ou grupal, essas energias se manifestam como arquétipos divinos, imbuídos de características e atributos específicos e com apresentações e nomes que variam conforme o lugar de origem.

A existência e a sobrevivência dos arquétipos de determinado panteão dependem da intensidade com que são cultuados e da duração desse culto. Sem essa conexão e nutrição recíproca, as matrizes etéreas enfraquecem-se e acabam desaparecendo com o passar do tempo.

Apesar de as divindades dependerem da egrégora humana, elas não são mero furto de nossa imaginação: são expressões reais de poderosos campos energéticos e vórtices de energia cósmica. Elas existem em uma realidade diferente do mundo tridimensional, chamada pelos xamãs de nagual ou "realidade incomum" (ou extrafísica), e têm o poder de existir e agir independentemente da vontade humana.

Esses centros de energia cósmica, sutis e inteligentes, denominados divindades (sejam elas deuses, vibrações originais, devas ou orixás), supervisionam o livre-arbítrio coletivo e auxiliam nas decisões tomadas pelos indivíduos, dentro dos limites, valores e regras do ambiente ao qual pertencem. Isso significa que elas não interferem no livre-arbítrio, nem agem contra os interesses do agrupamento humano que as "criam" e que continua "alimentando-as" por meio de invocações, oferendas, cultos e rituais. Existe uma necessidade de intercâmbio energético permanente entre a origem e o resultado da criação, entre o criador e a criatura.

Uma divindade deixará de existir apenas quando não tiver mais nenhum ser humano que invoque sua presença ou acredite em sua existência. Quando isso ocorrer, o campo energético por ela  representado não se extingue no espaço, mas se desloca ou volta à sua origem, podendo servir como substrato para a criação de um novo arquétipo, em lugar ou tempo diferente.

Os deuses e as deusas não são arquétipos estáticos, eles evoluem e se modificam de acordo com o progresso cultural e tecnológico e a trajetória espiritual humana. As mudanças na percepção e interpretação de suas manifestações e a compreensão expandida de seus atributos e funções levam à readaptação dos mitos e a sua adaptação às novas necessidades mentais, psicológicas e sociais da comunidade à qual pertencem. São as projeções e as formas mentais humanas que determinam a "metamorfose" das divindades, que acompanham, de maneira simbiótica, o desenvolvimento de seu povo e o surgimento de novos valores e hábitos comportamentais, morais e sociais. Compreende-se, assim, o porquê das diferenças nos mitos de um mesmo deus ou deusa e os variados nomes a eles atribuídos.


Retirado do livro Para Conhecer o Candomblé, de Ademir Barbosa Júnior, Universo dos Livros, São Paulo, 2013.

sábado, 7 de junho de 2025

Orixás na Umbanda (Anexo 1)

De modo geral, a Umbanda não considera os orixás que descem ao terreiro energias e/ou forças supremas desprovidas de inteligência e individualidade. Na verdade (e os africanos assim já o consideravam), os orixás são ancestrais divinizados, que incorporam conforme a ancestralidade, as afinidades e a coroa de cada médium. No Brasil, teriam sido confundidos com os chamados imolês, isto é, divindades criadoras, acima das quais aparece um único deus: Olorum (Olodumaré ou Zâmbi). Na linguagem e na concepção umbandistas, portanto, quem incorpora numa gira de umbanda não são os orixás propriamente ditos, mas seus falangeiros. Tal concepção está de acordo com o conceito de ancestral (espírito) divinizado (e/ou evoluído) vivenciado pelos africanos que para cá foram trazidos como escravos. Mesmo que essa visão não seja consensual (há quem defenda que tais ancestrais já encarnaram, enquanto outros segmentos umbandistas rejeitam esse conceito), ao menos se admite no meio umbandista que o orixá que incorpora possui um grau adequado de adaptação à energia dos encarnados, o que seria incompatível para os orixás hierarquicamente superiores.

Na pesquisa feita por Miriam de Oxalá a respeito da ancestralidade e da divinização de ancestrais, aparece, dentre outras fontes, a célebre pesquisadora Olga Guidolle Cacciatore (1997), para quem os orixás são intermediários entre Olorum, ou melhor, entre seu representante (e filho) Oxalá e os homens. Muitos deles são antigos reis, rainhas ou heróis divinizados, os quais representam as vibrações das forças elementares da natureza - raios, trovões, ventos, tempestades, água, fenômenos naturais como o arco-íris, atividades econômicas primordiais do homem primitivo - caça, agricultura - ou minerais, como o ferro que tanto serviu a essas atividades de sobrevivência, assim como às de extermínio na guerra.

Entretanto, e como o tema está sempre aberto ao diálogo, à pesquisa, ao registro de impressões, conforme observa o médium umbandista e escritor Norberto Peixoto, é possível incorporar a forma-pensamento de um orixá, a qual é plasmada e mantida pelas mentes dos encarnados. Nas palavras do médium,

Era dia de sessão de preto-velho, estávamos na abertura dos trabalhos, na hora da defumação. O congá "repentinamente" ficou vibrado com o orixá Nanã, que é considerado a mãe maior dos orixás e o seu axé (força) é um dos sustentadores da egrégora da casa desde a sua fundação, formando par com Oxóssi. Faltavam poucos dias para o amaci (ritual de lavagem da cabeça com ervas maceradas), que tem por finalidade fortalecer a ligação dos médiuns com os orixás regentes e guias espirituais. Pedi um ponto cantado de Nanã Buruquê, antes dos cânticos habituais. Fiquei envolvido com uma energia lenta, mas firme. Fui transportado mentalmente para a beira de um lago lindíssimo e o orixá Nanã me "ocupou", como se entrasse em meu corpo astral ou se interpenetrasse com ele, havendo uma incorporação total.

(...)

Vou explicar com sinceridade e sem nenhuma comparação, como tanto vemos por aí, como se a manifestação de um ou outro (dos espíritos na umbanda versus dos orixás em outros cultos) fosse mais ou menos superior, conforme o pertencimento de quem os compara a uma ou outra religião. A "entidade" parecia um "robô", um autômato sem pensamento contínuo, levado pelo som e pelos gestos. Sem dúvida, houve uma intensa movimentação de energia benfeitora, mas durante a manifestação do orixá minha cabeça ficou mentalmente vazia, como se nenhuma outra mente ocupasse o corpo energético do orixá que dançava, o que acabei sabendo depois tratar-se de uma forma-pensamento plasmada e mantida "viva" pelas mentes dos encarnados.

No cotidiano dos terreiros, por vezes o vocábulo orixá é utilizado também para guias e entidades. Nessas casas, por exemplo, é comum ouvir alguém dizer antes de uma gira de pretos-velhos: "Precisamos preparar mais banquinhos, pois hoje temos muitos médiuns e, portanto, aumentará o número de orixás em terra".


Retirado do livro Para Conhecer o Candomblé, de Ademir Barbosa Júnior, Universo dos Livros, São Paulo, 2013.

Fermento Espiritual (76)

 "Não sabeis que um pouco de fermento leveda a massa toda?" - Paulo. (I CORÍNTIOS, 5:6.)


O fermento é uma substância que excita outras substâncias, e nossa vida é sempre um fermento espiritual com que influenciamos as existências alheias.

Ninguém vive só.

Temos conosco milhares de expressões do pensamento dos outros e milhares de outras pessoas nos guardam a atuação mental, inevitavelmente.

Os raios de nossa influência entrosam-se com as emissões de quantos nos conhecem direta ou indiretamente, e pesam na balança do mundo para o bem ou para o mal.

Nossas palavras determinam palavras em quem nos ouve, e, toda vez que não formos sinceros, é provável que o interlocutor seja igualmente desleal.

Nossos modos e costumes geram modos e costumes da mesma natureza, em torno de nossos passos, mormente naqueles que se situam em posição inferior à nossa, nos círculos da experiência e do conhecimento.

Nossas atitudes e atos criam atitudes e atos do mesmo teor, em quantos nos rodeiam, porquanto aquilo que fazemos atinge o domínio da observação alheia, interferindo no centro de elaboração das forças mentais de nossos semelhantes.

O único processo, portanto, de reformar edificando é aceitar as sugestões do bem e praticá-las intensivamente, por intermédio de nossas ações.

Nas origens de nossas determinações, porém, reside a ideia.

A mente, em razão disso, é a sede de nossa atuação pessoal, onde estivermos.

Pensamento é fermentação espiritual. Em primeiro lugar estabelece atitudes, em segundo gera hábitos e, depois, governa expressões e palavras, através das quais a individualidade influencia na vida e no mundo. Regenerado, pois, o pensamento de um homem, o caminho que o conduz ao Senhor se lhe revela reto e limpo.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

A hora de partir

Mamãe Lua sabia que as pessoas não queriam morrer. Elas desejavam viver para sempre, como ela: nascendo, crescendo, minguando e reaparecendo toda-poderosa e cheia no céu. Então, em uma bela noite, mamãe Lua chamou um lagarto e pediu que ele fosse à Terra e dissesse para todos, homens, mulheres, meninos e meninas, que a partir daquele dia todos acordariam e viveriam até o final dos tempos.

- Pode deixar, mamãe Lua! Vou avisar todo mundo - disse o lagarto, deixando-a tranquila, pois sua mensagem chegaria para as pessoas rapidamente.

E o lagarto foi caminhando, todo bonito e faceiro, sempre parando para olhar alguma coisa ou conversar com alguém, em vez de se concentrar em sua missão. Quando estava no meio do caminho, encontrou uma árvore carregada de frutas bem madurinhas. Subiu na árvore e comeu, comeu, até ficar com a barriga bem cheia. "Acho que vou descansar um pouquinho antes de continuar a minha viagem", pensou o lagarto. E ali mesmo, debaixo da árvore, dormiu.

A centopeia, que cuida para que a morte chegue no tempo certo a cada um, soube da mensagem que mamãe Lua havia enviado para a Terra. Preocupada, ela chamou um mongoose, um pequeno animal de pelo curto, muito ágil e esperto, e pediu:

- Corra até a Terra e diga a todos, homens, mulheres, meninos e meninas, que quando morrerem jamais voltarão a viver. Eles devem morrer para sempre!

O mongoose chegou rapidamente à Terra e avisou todas as pessoas que elas morreriam para sempre. Tempos depois, chegou o lagarto trazendo a mensagem da mamãe Lua. Mas já era tarde demais. As pessoas estavam muito tristes.

Mamãe Lua soube da situação e ficou muito brava com o lagarto:

- Onde já se viu?

E foi ela mesma falar com as pessoas.

- Eu não posso mudar a situação - lamentou. - A mensagem da centopeia chegou primeiro. Mas digo que, mais do que nunca, vocês devem viver intensamente cada momento, com muito amor e respeito à vida que existe em cada pessoa, bicho, planta, em cada grão de terra, em todo o universo. Porque todos nós somos um. Estamos ligados pela grande força da vida.

Mamãe Lua abriu um grande sorriso e continuou:

- E quando chegar o dia de vocês partirem para a Terra dos Espíritos dos seus antepassados vocês viverão para sempre por meio das coisas que realizarem aqui, do amor que alimentarem e da vida que continuará nascendo, crescendo e morrendo neste planeta.

Uma paz imensa encheu o coração de toda a gente. E todos foram dormir porque o dia seguinte sempre será um novo dia.


Conto de Denise Carreira retirado do livro Lendas Africanas (E a força dos tambores cruzou o mar), Editora Salesiana, São Paulo, 2008.