sexta-feira, 27 de junho de 2025

É para lá que eu vou

Para além da orelha existe um som, à extremidade do olhar um aspecto, às pontas dos dedos um objeto - é para lá que eu vou.

À ponta do lápis o traço.

Onde expira um pensamento está uma ideia, ao derradeiro hálito de alegria uma outra alegria, à ponta da espada a magia - é para lá que eu vou.

Na ponta dos pés o salto.

Parece a história de alguém que foi e não voltou - é para lá que eu vou.

Ou não vou? Vou, sim. E volto para ver como estão as coisas. Se continuam mágicas. Realidade? Eu vos espero. É para lá que vou.

Na ponta da palavra está a palavra. Quero usar a palavra "tertúlia" e não sei onde e quando. À beira da tertúlia está a família. À beira da família estou eu. À beira de eu estou mim. É para mim que vou. E de mim saio para ver. Ver o quê? Ver o que existe. Depois de morta é para a realidade que vou. Por enquanto é sonho. Sonho fatídico. Mas depois - depois tudo é real. E a alma livre  procura um canto para se acomodar. Mim é um eu que anuncio. Não sei sobre o que estou falando. Estou falando do nada. Eu sou nada. Depois de morta engrandecerei e me espalharei, e alguém dirá com amor meu nome.

É para o meu pobre nome que vou.

E de lá volto para chamar o nome do ser amado e dos filhos. Eles me responderão. Enfim terei uma resposta. Que resposta? A do amor. Amor: eu vos amo tanto. Eu amo o amor. O amor é vermelho. O ciúme é verde. Meus olhos são verdes. Mas são verdes tão escuros que na fotografia saem negros. Meu segredo é ter os olhos verdes e ninguém saber.

À extremidade de mim estou eu. Eu, implorante, eu a que necessita, a que pede, a que chora, a que se lamenta. Mas a que canta. A que diz palavras. Palavras ao vento? Que importa, os ventos as trazem de novo e eu as possuo.

Eu à beira do vento. O morro dos ventos uivantes me chama. Vou, bruxa que sou. E me transmuto.

Oh, cachorro, cadê tua alma? Está à beira de teu corpo? Eu estou à beira de meu corpo. E feneço lentamente.

Que estou a dizer? Estou dizendo amor. E à beira do amor estamos sós.


Conto de Clarice Lispector retirado do livro Onde Estiveres de Noite, Livraria Francisco Alves Editora, Rio de Janeiro, 1997.

quinta-feira, 26 de junho de 2025

Para vencer a solidão (5)

Há diversas maneiras de se considerar este assunto. De modo passageiro, como o tempo desta conferência permite, irei fazer breves alusões a três aspectos que considero os mais importantes.

O recurso mais frequente que se costuma recomendar às pessoas para vencerem a solidão é o aproveitamento útil dos tempos ociosos.

De fato, quando existe um tempo de ociosidade que se prolonga, o indivíduo é naturalmente impelido a ocupá-lo de qualquer maneira. E, neste caso, uma tendência muito comum a qualquer pessoa é a de ficar pensando em si. Ora, pelo fato de ser improdutiva, a ociosidade gera sentimentos de vacuidade e frustração, que podem deprimir o indivíduo. Pensar em si mesmo, neste clima interior, é, então, seguir um caminho destrutivo, que acentua os aspectos negativos da pessoa, gerando uma autocrítica impiedosa

O fato do indivíduo se ocupar em alguma coisa útil já possui, em si mesmo, uma força profilática, que o faz sair de seu casulo e aplicar sua atenção em algo que está fora, libertando-o, assim, da preocupação obsessiva consigo mesmo. Entretanto, este modo de agir só é eficaz se não significar uma forma ansiosa do indivíduo fugir de si. Não se pode vencer a solidão pela fuga, mas sim, pelo enfrentamento. E para que não ocorra este perigo, de ser apenas uma fuga, convém que a atividade, à qual o indivíduo se dedica, seja realmente de interesse para ele, exigindo seus esforços mas trazendo-lhe alegria e satisfação. Desta forma, estará a serviço de seu enriquecimento pessoal, não sendo um simples instrumento para ele se esquecer de si.

Uma solução mais consistente para vencermos a solidão é podermos descobrir um trabalho, uma obra, um ideal ou uma missão que deem um novo sentido à nossa vida e que nos empolgue de modo mais integral. Tal atividade estaria destinada a fomentar a autoestima de qualquer um, pois o diálogo que neste caso o indivíduo estabelecesse consigo mesmo teria a inclinação de ser inspirado no próprio valor de sua produtividade e de sua realização pessoal.

Outra maneira de vencer a solidão é buscar o encontro com outras pessoas. Neste caso, o que se procura não é um simples relacionamento e nem mesmo uma simples companhia, mas, sim,  que o outro seja capaz de acolher e de entender o que se passa com quem o procura. E, como, sem dúvida, a aceitação e a compreensão formam os traços mais expressivos do amor verdadeiro, então podemos afirmar que para vencer a solidão, o que o indivíduo realmente procura é ser amado pelo outro. É como se ele dissesse: - Não acredito em mim. Por favor, mostre-me que eu tenho valor, gostando de mim. Para quebrar a solidão do indivíduo que a procura, o essencial não é a pessoa dizer ou fazer alguma coisa de extraordinário, mas, com sinceridade, mostrar simplesmente que a presença dele traz contentamento; acolhendo-o, portanto, com simpatia.

Existem pessoas que reclamam de não encontrarem esta acolhida afetiva dos outros, quando dela precisam. Isso me faz lembrar de uma passagem da Sagrada Escritura, que diz: "Quem semeia ventos, colhe tempestades." De fato, os outros só podem gostar de nós, se formos capazes de criar uma condição favorável para que isso aconteça. Se, ao contrário, tratamos os outros de um modo rígido e indelicado, se não respeitamos e nem consideramos as pessoas, se nos tornamos aversivos pela maneira de nos relacionarmos, vamos, então colocarmo-nos numa ilha de isolamento, cercada de antipatia por todos os lados. Como é possível, na hora da solidão, encontrarmos alguém que nos aceite e compreenda?

Eu quero dizer o seguinte: pode haver diversas razões que levam a não contarmos com o apoio do outro na hora em que necessitamos. Algumas delas surgem de circunstâncias que não dependem de nós. Mas, com frequência esta falta de apoio indica apenas uma reação à nossa maneira de tratarmos as pessoas. Par o homem religioso, o diálogo mais importante, como ajuda para vencer a solidão, é aquele que se estabelece com Deus através da oração. A fé ensina que Ele é a Força, o Poder e a Sabedoria, que dele o indivíduo recebe a vida, e que, por Ele, jamais é abandonado. Sabe, ainda, que nele pode confiar, porque a sua aceitação e a sua compreensão não têm limites: Deus é Amor.

Finalmente, o modo mais definitivo e eficaz para o indivíduo vencer a solidão é pela procura do seu próprio aperfeiçoamento, de ser mais coerente consigo mesmo, de ser, na realidade, aquilo que é; numa palavra, de ser autêntico. Quanto mais ele for assim, mais terá um relacionamento construtivo consigo mesmo, mais gostará de si de maneira apropriada, mais terá uma autoestima elevada e autônoma, que se tornará fonte generosa do sentimento pessoal de autorrealização e de produtividade para o mundo.


Texto de Franz Victor Rúdio retirado do livro Compreensão Humana e Ajuda ao Outro, Editora Vozes, Petrópolis, 1991.

Conferência de abertura do II Encontro de Psicologia do Vale do Paraíba, realizado na Faculdade Salesiana de Filosofia, Ciências e Letras de Lorena, São Paulo. 

terça-feira, 24 de junho de 2025

Por que a solidão nos causa medo? (4)

Rollo May, em O homem à procura de si mesmo, faz esta afirmação: "Não há dúvida que em todas as épocas a solidão foi temida e as pessoas dela procuraram fugir." E acrescenta mais à frente: "A diferença é que em nossa época o medo da solidão é muito mais intenso e as defesas contra ele - diversões, atividades sociais e 'amizades' - são mais rígidas e compulsivas".

O que nos causa medo quando estamos na solidão?

Mais do que o sentimento de abandono e desvalia em que nos encontramos, parece que nos causa medo o fato de ficarmos entregues a nós mesmos. Quando isso acontece - ficarmos sozinhos conosco - podemos nos tornar uma companhia desagradável e amarga. Sem o controle sobre os nossos pensamentos e sentimentos, que a presença dos outros nos faz ter, podemos ser inclinados a várias atitudes negativas: ficarmos lembrando dos diversos aspectos de situação passadas que nos foram inconvenientes e dolorosas; tornamo-nos críticos e cruéis do que já sentimos e fizemos; cobrarmos de nós, de forma impiedosa e ameaçadora, o que deveríamos ter feito ou não ter feito etc. Podemos, ainda, reclamar, de modo obsessivo e renitente, de sermos vazios e ineptos, por não termos sido capazes de impor uma orientação mais segura à nossa vida, ou de não termos modificado em proveito próprio o mundo em que vivemos. E, assim, povoamos a nossa consciência - às vezes mais e outras menos intensamente - de problemas, acusações, culpas, remorsos, fracassos e frustrações.

É justamente este procedimento, de tratarmos nós mesmos com tal rigor, que é, no meu ponto de vista, a fonte de toda a solidão. Neste caso, sentimo-nos desamparados por nós mesmos e ansiamos por alguém que nos venha socorrer, dando-nos o apoio que não nos demos. Quando nos tratamos bem, aceitando-nos, não sentimos solidão (embora, neste instante, possamos chamar de solidão ao isolamento em que nos encontramos; mas este é, na verdade, outra coisa) ou, para dizer mais exatamente, encontramos apenas  momentos de leve solidão. Estes são inevitáveis, pois como o ser humano é limitado; ninguém pode estar sempre tão satisfeito consigo mesmo a tal ponto de nunca se condenar ou recriminar, mesmo de maneira despropositada.

O tratamento inadequado que o indivíduo dá a si, criando as condições que geram solidão, produz também uma ansiedade que afeta a sua autoestima. Para uma vida produtiva e satisfatória, todos nós precisamos da consideração dos outros e da nossa própria consideração. Ao destratarmo-nos, afetamos o nosso autoapreço. E Maslow diz que " satisfação da necessidade de autoapreço leva a sentimentos de autoconfiança, valia, força, capacidade e suficiência, de ser útil e necessário no mundo. Mas a frustração desta necessidade produz sentimentos de inferioridade, debilidade ou impotência, que, por sua vez, dão lugar a reações desanimadoras e, inclusive, compensatórias e neuróticas.

É sobretudo por isso que a solidão dá medo, ansiedade, pelas críticas despropositadas que podemos fazer a nós, atingindo, deste modo, a nossa autoestima, deteriorando em nós a "autoconfiança, valia, força, capacidade e suficiência", e alimentando aqueles "sentimentos de inferioridade, debilidade ou impotência" que corroem e arruínam a nossa personalidade. Assim, em última análise, o medo que temos da solidão é o de sermos destruídos psicologicamente por nós mesmos.


Texto de Franz Victor Rúdio retirado do livro Compreensão Humana e Ajuda ao Outro, Editora Vozes, Petrópolis, 1991.

Conferência de abertura do II Encontro de Psicologia do Vale do Paraíba, realizado na Faculdade Salesiana de Filosofia, Ciências e Letras de Lorena, São Paulo. 

sábado, 21 de junho de 2025

Enxertia Divina (78)

 "Se não permanecerem na incredulidade, serão enxertados; porque poderoso é Deus para os tornar a enxertar." - Paulo. (ROMANOS, 11:23)


Toda criatura, em verdade, é uma planta espiritual, objeto de minucioso cuidado por parte do Divino Semeador.

Cada homem, qual ocorre ao vegetal, apresenta diferenciados períodos na existência.

Sementeira, germinação, adubação, desenvolvimento, utilidade, florescência, frutificação, colheita...

Nas vésperas do fruto, desvela-se o pomicultor, com mais carinho, pelo aprimoramento da árvore.

É imprescindível haja fartura e proveito.

Na luta espiritual, em identidade de circunstâncias, o Senhor adota iguais normais para conosco.

Atingindo o conhecimento, a razão e a experiência, o Pomicultor Celeste nos confere preciosos recursos de enxertia espiritual, com vistas à nossa sublimação para a vida eterna.

A cada novo dia de tua experiência humana, recebes valioso concurso para que os resultados da presente encarnação te enriqueçam de luz divina pela felicidade que transmites aos outros. És, contudo, uma "árvore consciente", com independência para aceitar ou não os elementos renovadores, com liberdade para registrar a bênção ou desprezá-la.

Repara, atentamente, quantas vezes te convoca o Sublime Semeador ao engrandecimento de ti mesmo.

A enxertia do Alto procura-nos através de mil modos.

Hoje, é na palestra edificante de um companheiro.

Amanhã, será num livro amigo.

Depois, virá por intermédio de uma dádiva aparentemente insignificante da senda.

Se guardas, pois, o propósito de elevação, aproveita a contribuição do Céu, iluminando e santificando o templo íntimo. Mas, se a incredulidade por enquanto te isola a mente, enovelando-te as forças no carretel do egoísmo, o enxerto de sublimação te buscará debalde, porque ainda não produzes, nos recessos do espírito, a seiva que favorece a Vida Abundante.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

sexta-feira, 20 de junho de 2025

Formas de sentir-se sozinho (3)

Foi dito que o sentir-se sozinho pode ser uma característica tanto da solidão quanto do isolamento. Entretanto, assume, num e noutro casos, significados diferentes.

No isolamento, o indivíduo pode ser sozinho e: (1º) não perceber que está, quando, por exemplo, se encontra absorto numa tarefa que está fazendo; (2º) perceber e gostar, como acontece, por exemplo, com o homem religioso que prazerosamente se afasta dos outros para fazer sua oração; (3º) perceber e não gostar, como se dá com alguém que, por exemplo, se vê rejeitado do convívio de outras pessoas. Já na solidão, a consciência de estar sozinho persegue insistentemente o indivíduo, e ele vivencia com sentimentos marcantes de insatisfação e desagrado.

O sentir-se sozinho do isolamento é um dado objetivo, isto é, constitui um fato de realidade capaz de ser percebido, pelo menos por um observador que esteja atento. Deste modo, é possível verificar se uma pessoa está isolada ou não, mesmo que ela nada queira dizer sobre o assunto. Já o sentir-se sozinho da solidão não é um dado objetivo mas um estado de alma, que só pode ser conhecido adequadamente se a pessoa solitária nos comunicar e à medida em que fizer isso.

Embora sendo diferentes, o sentir-se sozinho do isolamento e o da solidão podem estar juntos e confundirem-se na mesma pessoa. Com frequência, o primeiro gera o segundo. Mas pode-se encontrar alguém que esteja isolado sem estar solitário, ou que esteja solitário sem estar isolado.

Para quebrar o isolamento, basta, pelo menos em tese (mas na prática pode não ser tão simples), haver algum contato com alguém. O pensamento e o desejo de quem vive isolado pode ser enunciado, talvez, esquematicamente, da seguinte maneira: "Não quero mais ficar sozinho. Por isso, preciso ver gente e procurar alguém para conversar e conviver". Provavelmente, está é a lógica contida nos apelos feitos por obras assistenciais para que as pessoas visitem crianças (em orfanatos), idosos (em casas de repouso), doentes (em hospitais) etc., pois, mesmo que não lhes levem qualquer presente, o simples fato de manifestarem interesse e de conversarem com eles é suficiente para quebrar o isolamento em que vivem.

Mas, quanto à solidão, só a companhia de alguém não é suficiente para vencê-la. De fato, a experiência nos prova que uma pessoa pode estar em relacionamento constante com outras e, no entanto, sentir-se profundamente sozinha. Podemos imaginar, por exemplo, o caso hipotético de um marido e sua mulher que, juntos, sentam-se à mesa para as refeições, conversam muitas vezes durante o dia e até dormem na mesma cama etc. e, apesar disso, pode um deles (ou os dois) afirmar que vive em permanente solidão. Ou, também, o caso de um religioso, que permanece solitário, embora vivendo cercado pelos irmãos de sua comunidade. Ou, finalmente, todos já ouvimos falar da solidão na multidão, em que o indivíduo, embora vivendo cercado de gente numa grande cidade, sente-se, no entanto, profundamente solitário.


Texto de Franz Victor Rúdio retirado do livro Compreensão Humana e Ajuda ao Outro, Editora Vozes, Petrópolis, 1991.

Conferência de abertura do II Encontro de Psicologia do Vale do Paraíba, realizado na Faculdade Salesiana de Filosofia, Ciências e Letras de Lorena, São Paulo. 

quinta-feira, 19 de junho de 2025

O isolamento e a solidão (2)

Proponho, como base inicial para as nossas discussões posteriores, que façamos uma diferença, pelo menos didática, entre a solidão entendida no sentido amplo e a que é considerada no sentido estrito.

No sentido amplo, solidão equivale a isolamento, e indica uma situação em que o indivíduo (ou grupo) se encontra separado de outras pessoas. Significa, portanto, simplesmente isso: que o processo de relacionamento se encontra prejudicado por causa do rompimento ou diminuição do contato humano com os outros. Para a reflexão que estamos fazendo, o aspecto mais importante do isolamento está no seu correspondente psicológico, isto é, na repercussão que produz dentro da pessoa que, percebendo-se isolada, é acometida pelo sentimento de estar sozinha.

Com relação ao próprio isolamento, convém fazer ainda outra distinção, dizendo que pode ser estrutural e funcional.

O isolamento estrutural é comum a todos os seres humanos. A pessoa o sente porque é um indivíduo diferente dos outros, possuindo a sua originalidade, suas características peculiares e uma existência específica e singular. Baseia-se, portanto, na própria natureza de cada um. Os seus pontos extremos se encontram no nascimento e na morte: nascemos sozinhos e sozinhos morremos. Podemos acreditar que, no útero materno, não tínhamos solidão porque estávamos intimamente unidos à nossa mãe. Começamos, porém, a senti-la na hora do parto, quando fomos separados e nascemos para o mundo. Não parece ser este um dos significados do chamado trauma do nascimento? Igualmente, na hora da morte, ficamos também sozinhos, ao sermos separados de tudo e de todos, que deixamos neste mundo. A morte é um momento de solidão absoluta, mesmo para os que creem em um novo retorno à vida ou para os que acreditam que a separação durante a morte é apenas passageira (porque iremos ao encontro de Deus e daqueles que já se foram antes de nós; com eles nos encontraremos na outra vida, para nunca mais ficarmos sozinhos).

Há também outra maneira, à vezes bem aguda, de sentirmos este tipo de solidão no sentido amplo, à qual estamos nos referindo com o nome de isolamento estrutural. É quando precisamos fazer escolhas e tomar decisões, sobretudo as que são mais relevantes para a nossa vida. Nesta ocasião, os outros podem estar conosco e ajudar-nos até certo ponto. Mas há o instante nevrálgico em que todos nos deixam e não podem mesmo ficar conosco. Sentimo-nos, então, sozinhos, porque, na verdade ninguém pode escolher e nem decidir em nosso lugar. E é exatamente por isso que somos livres e donos de nós mesmos, porque podemos escolher e decidir. Quando, para fugirmos à solidão, permitimos que, pelo menos em assuntos graves, os outros façam escolhas e tomem decisões por nós, perdemos nossa liberdade e, mesmo sem termos consciência disso, submetemo-nos indevidamente aos outros, tornando-nos seus escravos, sob algum aspecto, ao fazermos aquilo que eles querem que façamos.

Outra forma de solidão no sentido amplo é o isolamento funcional. Neste caso, são as características que determinam o seu aparecimento, e podem ser as mais variadas possíveis. Assim, podemos falar de solidão, por motivo espacial ou geográfico, de um responsável por um farol marítimo, que vive sozinho numa ilha distante; por motivo de usos e costumes, de uma pessoa idosa que vive num ambiente só de jovens; por motivo cultural, de um estrangeiro que acaba de chegar a uma terra alheia; por motivo de preconceito, de um negro que precisa viver numa comunidade de brancos racistas etc. O indivíduo também pode, por si mesmo, procurar o isolamento, a fim de refletir, estudar, meditar, orar, realizar certas tarefas, fazer planos de vida, revê-los etc. Pode, ainda, buscá-lo para devanear, para "curtir" alegrias ou tristezas, sucessos ou fracassos, melancolia, remorso, vingança, amor ou para expressar mágoa, ressentimento, para fugir de ambiente que considera aversivo ou hostil etc. São, pois, inumeráveis os motivos que colocam o indivíduo em solidão ou que o fazem procurá-la.

Quero lembrar, de passagem, que este isolamento funcional é sempre relativo para os seres humanos pelo menos no sentido de que somos impelidos pela própria natureza a procurar a convivência com nosso semelhantes; o que, na verdade, sempre fazemos. O termo não assume, portanto, conotações radicais de uma ausência plena e permanente de relacionamento, mas indica simplesmente que a interação foi reduzida, embora possa chegar, em certos casos, a grau infinito. Cortes absolutos de contato podem acontecer por motivos patológicos ou, eventualmente, em situações extraordinárias que se opõem à vontade do homem, como, por exemplo, a de uma pessoa perdida na floresta amazônica.

É bom, também, levar em consideração que a necessidade de relacionamento nos seres humanos, mesmo em casos normais, varia de uma pessoa para outra. Alguns sentem mais premência de buscar a companhia de seus semelhantes do que outros. Por isso, ninguém pode se transformar, para os outros, em padrão da quantidade ou qualidade de relacionamento dizendo, por exemplo: - Se eu fiquei sozinho nesta situação, e por tanto tempo, por que você também não pode ficar?

A solidão no sentido estrito não visa diretamente o relacionamento com outras pessoas, mas a experiência interior de abandono.

Para falarmos da solidão, no sentido amplo, encontramos um termo equivalente, um sinônimo, que foi isolamento. Agora, para nos referirmos à solidão no sentido estrito, só existe esta palavra mesma: solidão. Assim usaremos os dois termos num e noutro sentidos.

O que caracteriza a solidão é a consciência que o indivíduo tem de estar sozinho, mas acompanhado de um sentimento penoso de desamparo e de uma carência premente de alguém que lhe possa dar apoio. Portanto, a percepção de estar sozinho, o sentimento de desamparo e a necessidade de alguém formam os três elementos constitutivos da solidão, interpenetrando-se e misturando-se. A maneira de vivenciá-los depende de quem os experimenta e do momento em que os experimenta.


Texto de Franz Victor Rúdio retirado do livro Compreensão Humana e Ajuda ao Outro, Editora Vozes, Petrópolis, 1991.

Conferência de abertura do II Encontro de Psicologia do Vale do Paraíba, realizado na Faculdade Salesiana de Filosofia, Ciências e Letras de Lorena, São Paulo. 

quarta-feira, 18 de junho de 2025

O significado da solidão humana (Introdução 1)

Durante todo o tempo em que fui professor desta Faculdade, por mais de 15 anos, não me recordo de ter havido um seminário, um simpósio e nem mesmo uma simples palestra, que tivesse dado aos alunos o ensejo de discutirem o tema da solidão. E, no entanto, todos sabem que o assunto é de muita relevância e de grande atualidade.

O fenômeno da solidão é universal no tempo e no espaço, atingindo todos os povos de todos os tempo. Estudá-lo é, pois, um bom caminho para se obter alguma compreensão da personalidade humana. Além disso, torna-se cada vez mais corrente a ideia de que a solidão é uma das características que mais acentuadamente  definem o homem moderno. Procurar entendê-la - tanto para os profissionais da Psicologia, como para vocês, futuros psicólogos, - é uma forma adequada e produtiva de captar os sinais dos tempos em que vivemos, a fim de descobrirmos o modo mais eficaz de prestarmos ajuda aos que vêm até nós na busca de serem socorridos.

Estes e outros motivos - que irão aparecendo progressivamente durante a minha conferência - fizeram nascer em mim, assim que recebi o honroso convite para participar deste encontro, a ideia de lhes propor, embora de maneira sumária como a tempo desta conferência permite, o meu ponto de vista sobre a solidão humana, a fim de termos a oportunidade de, juntos, analisá-lo e discuti-lo.


Texto de Franz Victor Rúdio retirado do livro Compreensão Humana e Ajuda ao Outro, Editora Vozes, Petrópolis, 1991.

Conferência de abertura do II Encontro de Psicologia do Vale do Paraíba, realizado na Faculdade Salesiana de Filosofia, Ciências e Letras de Lorena, São Paulo. 

terça-feira, 17 de junho de 2025

Uma Amizade Sincera

Não é que fôssemos amigos de longa data. Conhecemo-nos apenas no último ano da escola. Desde esse momento estávamos juntos a qualquer hora. Há tanto tempo precisávamos de um amigo que nada havia que não confiássemos um ao outro. Chegamos a um ponto de amizade que não podíamos mais guardar um pensamento: um telefonava logo ao outro, marcando encontro imediato. Depois da conversa, sentíamo-nos tão contentes como se nos tivéssemos presenteado a nós mesmos. Esse estado de comunicação contínua chegou a tal exaltação que, no dia em que nada tínhamos a nos confiar, procurávamos com alguma aflição um assunto. Só que o assunto devia ser grave, pois em qualquer um não caberia a veemência de uma sinceridade pela primeira vez experimentada.

Já nesse tempo apareceram os primeiros sinais de perturbação entre nós. Às vezes um telefonava, encontrávamo-nos, e nada tínhamos a nos dizer. Éramos muito jovens e não sabíamos ficar calados. De início, quando começou a faltar assunto, tentamos comentar as pessoas. Mas bem sabíamos que já estávamos adulterando o núcleo da amizade. Tentar falar sobre nossas mútuas namoradas também estava fora de cogitação, pois um homem não falava de seus amores. Experimentamos ficar calados - mas tornávamo-nos inquietos logo depois de nos separarmos.

Minha solidão, na volta de tais encontros, era grande e árida. Cheguei a ler livros apenas para poder falar deles. Mas a amizade sincera queria a sinceridade mais pura. À procura desta, eu começava a me sentir vazio. Nossos encontros eram cada vez mais decepcionantes. Minha sincera pobreza revelava-se aos poucos. Também ele, eu sabia, chegara ao impasse de si mesmo.

Foi quando, tendo minha família se mudado para São Paulo, e ele morando sozinho, pois sua família era do Piauí, foi quando o convidei a morar em nosso apartamento, que ficava sob a minha guarda. Que rebuliço de alma. Radiantes, arrumávamos nossos livros e discos, preparávamos um ambiente perfeito para a amizade. Depois de tudo pronto - eis-nos dentro de casa, de braços abanando, mudos, cheios apenas de amizade.

Queríamos tanto salvar o outro. Amizade é matéria de salvação.

Mas todos os problemas já tinham sido tocados, todas as possibilidades estudadas. Tínhamos apenas essa coisa que havíamos procurado sedentos até então e enfim encontrado: uma amizade sincera. Único modo, sabíamos, e com que amargor sabíamos, de sair da solidão que um espírito tem no corpo.

Mas como se nos revelava sintética a amizade. Como se quiséssemos espalhar em longo discurso um truísmo que uma palavra esgotaria. Nossa amizade era tão insolúvel como a soma de dois números: inútil querer desenvolver para mais de um momento a certeza de que dois e três são cinco.

Tentamos organizar algumas farras no apartamento, mas não só os vizinhos reclamaram como não adiantou.

Se ao menos pudéssemos prestar favores um ao outro. Mas nem havia oportunidade, nem acreditávamos em provas de uma amizade que delas não precisava. O mais que podíamos fazer era o que fazíamos: saber que éramos amigos. O que não bastava para encher os dias, sobretudo as longas férias.

Data dessas férias o começo da verdadeira aflição.

Ele, a quem eu nada podia dar senão minha sinceridade, ele passou a ser uma acusação de minha pobreza. Além do mais, a solidão de um ao lado do outro, ouvindo música ou lendo, era muito maior do que quando estávamos sozinhos. E, mais que maior, incômoda. Não havia paz. Indo depois cada um para o seu quarto, com alívio nem nos olhávamos.

É verdade que houve uma pausa no curso das coisas, uma trégua que nos deu mais esperanças do que em realidade caberia. Foi quando meu amigo teve uma pequena questão com a Prefeitura. Não é que fosse grave, mas nós a tornamos para melhor usá-la. Porque então já tínhamos caído na facilidade de prestar favores. Andei entusiasmado pelos escritórios dos conhecidos de minha família, arranjando pistolões para meu amigo. E quando começou a fase de selar papéis, corri por toda a cidade - posso dizer em consciência que não houve firma que se reconhecesse sem ser através de minha mão.

Nessa época encontrávamo-nos de noite em casa, exaustos e animados: contávamos as façanhas do dia, planejávamos os ataques seguintes. Não aprofundávamos muito o que estava sucedendo, bastava que tudo isso tivesse o cunho da amizade. Pensei compreender por que os noivos se presenteiam, por que o marido faz questão de dar conforto à esposa, e esta prepara-lhe afanada o alimento, por que a mãe exagera nos cuidados ao filho. Foi, aliás, nesse período que, com algum sacrifício, dei um pequeno broche de ouro àquela que é hoje minha mulher. Só muito depois eu ia compreender que estar também é dar.

Encerrada a questão com a Prefeitura - seja dito, de passagem, com vitória nossa - continuamos um ao lado do outro, sem encontrar aquela palavra que cederia a alma. Cederia a alma? Mas afinal de contas quem queria ceder a alma? Ora essa.

Afinal o que queríamos? Nada. Estávamos fatigados, desiludidos.

A pretexto de férias com minha família, separamo-nos. Aliás ele também ia ao Piauí. Um aperto de mão comovido foi o nosso adeus no aeroporto. Sabíamos que não nos veríamos mais, senão por acaso. Mais que isso: que não queríamos nos rever. E sabíamos também que éramos amigos. Amigos sinceros.


Conto de Clarice Lispector retirado do livro A Legião Estrangeira, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 2019.

segunda-feira, 16 de junho de 2025

Ruído de Passos

Tinha oitenta e um anos de idade. Chamava-se dona Cândida Raposo.

Essa senhora tinha a vertigem de viver. A vertigem se acentuava quando ia passar dias numa fazenda: a altitude, o verde das árvores, a chuva, tudo isso a piorava. Quando ouvia Liszt se arrepiava toda. Fora linda na juventude. E tinha vertigem quando cheirava profundamente uma rosa.

Pois foi com dona Cândida Raposo que o desejo de prazer não passava.

Teve enfim a grande coragem de ir a um ginecologista. E perguntou-lhe envergonhada, de cabeça baixa:

- Quando é que passa?

- Passa o quê, minha senhora?

- A coisa.

- Que coisa?

- A coisa, repetiu. O desejo de prazer, disse enfim.

- Minha senhora, lamento lhe dizer que não passa nunca.

Olhou-o espantada.

- Mas eu tenho oitenta e um anos de idade!

- Não importa, minha senhora. É até morrer.

- Mas isso é o inferno!

- É a vida, senhora Raposo.

A vida era isso, então? Essa falta de vergonha?

- E o que é que eu faço? Ninguém me quer mais...

O médico olhou-a com piedade.

- Não há remédio, minha senhora.

- E se eu pagasse?

- Não ia adiantar de nada. A senhora tem que se lembrar que tem oitenta e um anos de idade.

- E... E se eu me arranjasse sozinha? O senhor entende o que eu quero dizer?

- É, disse o médico. Pode ser um remédio.

Então saiu do consultório. A filha esperava-a embaixo, de carro. Um filho Cândida Raposo perdera na guerra, era um pracinha. Tinha essa intolerável dor no coração: a de sobreviver a um ser adorado.

Nessa mesma noite deu um jeito e solitária satisfez-se. Mudos fogos de artifícios. Depois chorou. Tinha vergonha. Daí em diante usaria o mesmo processo. Sempre triste. É a vida, senhora Raposo, é a vida. Até a bênção da morte.

A morte.

Pareceu-lhe ouvir ruído de passos. Os passos de seu marido Antenor Raposo.


Conto de Clarice Lispector retirado do livro A via crucis do corpo, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1984.

domingo, 15 de junho de 2025

Nunca é tarde, sempre é tarde

Conseguiu aprontar-se mas não teve tempo de guardar o material de maquiagem espalhado sobre a penteadeira. Olhou-se no espelho. Nem bonita, nem feia. Secretária. Sou uma secretária, pensou, procurando conscientizar-se. Não devo ser, no trabalho, nem bonita, nem feia. Devo me pintar, vestir-me bem, mas sem exagero. Beleza mesmo é pra fim de semana. Nem bonita, nem feia, disse consigo mesma. Concluiu que não havia tempo nem para o café. Cruzou a sala e o hall em disparada, na direção da porta de saída, ao mesmo tempo em que gritava para a mãe envolvida pelos vapores da cozinha, eu como alguma coisa lá mesmo. Sempre tem alguém com alguma bolachinha disponível. Café nunca falta. A mãe reclamou mais uma vez. Você acaba doente, Su. Assim não pode. Assim, não. Su, enlouquecida pela pressa, nada ouviu. Poucas vezes ouvia o que a mãe lhe dizia. Louca de pressa, ia sair, avançou a mão para a maçaneta da porta e assustou-se. A campainha tocou naquele exato momento. Quem haveria de ser àquela hora? A campainha era insistente. Aquele dedo nervoso apertava-a sem tréguas. A campainha. Su acordou finalmente com o tilintar vibrante do despertador Westclox e se deu conta de que sequer havia-se levantado. Raios. Tudo por fazer. Mesmo que acordasse em tempo, tinha sempre que correr, correr. Tinha tudo cronometrado, desde o levantar-se até o retoque do batom e o perfumezinho final. Exploit da Atkinsons. Perfume quente. Mais ou menos quente. Esqueceu onde havia deixado o relógio de pulso. Perambulou nervosamente pela casa procurando-o. Atrasou-se alguns preciosos minutos. A mãe achou-o sobre a mesinha do telefone. Su colocou-o no pulso. Viu as horas. Havia conseguido aprontar-se, mas não teve tempo de guardar o material de maquiagem espalhado sobre a penteadeira. Olhou-se no espelho. Nem bonita, nem feia, pensou. Vou ficar bonita mesmo só no sábado. Não havia tempo nem para o café. Cruzou em disparada a sala e o hall, em direção à porta de saída, ao mesmo tempo em que gritava para a mãe, bolachinha disponível. Avançou a mão para a fechadura e assustou-se com o toque insistente da campainha. Algum dedo nervoso. O Westclox. Su acordou e deu-se conta mais uma vez da trágica e permanente verdade de que ainda não estava pronta. Levantou-se de um ímpeto. Correu ao banheiro, voltou do banheiro, vestiu-se com a roupa estrategicamente deixada sobre a cadeira na noite anterior. Ao sentar-se mais uma vez frente ao espelho, notou que, embora não tivesse ainda se pintado, o material de maquiagem já estava espalhado sobre a penteadeira. O batom aberto e usado, o Exploit desastradamente destampado, evaporando. O despertador tocou novamente. Ou tocou finalmente? E estava com toda corda, pois demorou a silenciar. Mesmo assim, Su andou pela casa toda, tentando desesperadamente acordar-se. Ocorreu afinal a ideia de pedir ajuda à mãe. Estava, envolvida pelos vapores da cozinha, mostrou-se compreensiva. Esta bém, Su. Espere só um instantinho que eu vou lá no quarto te acordar.


Conto de Silvio Fiorani retirado do livro Contos Brasileiros Contemporâneos, organização de Julieta de Godoy Ladeira, Editora Moderna, Coleção Travessias, São Paulo, 1997.