11 novembro 2025

História do Corpo no Brasil (Apresentação)

O corpo humano nunca esteve tão "na moda" como hoje. Em nenhum momento da história, as formas, a aparência, a textura ou seu cheiro foram tão discutidos por leigos e especialistas. O mundo pós-moderno criou um tipo de corpo e todos os demais, para serem aceitos, devem se encaixar no modelo. Magro, diga-se de passagem. Não há espaço para os corpos que ocupam muito espaço. Os distintivos de beleza se globalizaram e quem não os tem busca a cirurgia plástica, atualmente bem mais acessível financeiramente. Alega-se que a mídia construiu este padrão de beleza e, a partir daí, todos se sentiram na obrigação de aderir ou não, para não ficar de fora do chamado grupo socialmente aceito. Entretanto, há uma questão que não quer se calar. A maioria não se encaixa no "modelo". Logo, trata-se de algo feito ou pensado para uma minoria, enquanto o restante ou luta desesperadamente para atingir o que se espera dele ou simplesmente ignora os padrões e segue a vida.

A história já nos mostrou, por variados caminhos, que quase tudo nunca foi como é agora, e a relação de uma sociedade com seu próprio corpo também reflete as mudanças complexas vivenciadas ao longo de variados processos históricos. Este é um dos objetivos desta obra: apresentar essas variações e como a sociedade lidou com elas ao longo do tempo.

Os textos aqui desenvolvidos enfocam o corpo humano de variadas óticas, abordagens e concepções teóricas. Todos tiveram como preocupação inicial pensar o corpo de uma perspectiva histórica, inserindo-o em um momento específico da sociedade brasileira. A partir daí, cada autor procurou, usando informações provenientes de fontes diferentes - algumas inclusive, sobre sociedades não brasileiras - entender o processo de construção do corpo do(a) brasileiro(a). Cronologicamente, o livro começa no período colonial, apresentando, no Capítulo 1, os corpos dos primeiros habitantes do Brasil, os índios, e como o projeto português tentou mudá-los, transformando-os em súditos cristãos do rei de Portugal. O Capítulo 2 analisa de que modo esse projeto colonial cristão conseguiu catequizar determinados grupos negros, usando para isso não só uma retórica específica, mas principalmente de imagens de santos também negros, objetivando a criação não só de corpos dóceis e cristãos, mas, acima de tudo, bons cativos. O Capítulo 3 trabalha com a ideia dos corpos mestiços e do deslocamento de gentes e de comportamentos, gerando um trânsito de imagens bastante complexo. O Capítulo 4 inaugura uma seção transitória entre o período colonial e o imperial. Os temas desenvolvidos nesse bloco estão ligados à sexualidade e à esterilidade e às soluções encontradas pela própria sociedade para resolver ou amenizar esses problemas. As bebidas e suas ações sobre os corpos também foram analisadas, bem como o público que consumia cada uma delas, no Capítulo 5.

O que fazer com um corpo morto? Esta foi a preocupação do Capítulo 6, que buscou apresentar como a sociedade lidou com os mortos e de que modo foram tratados tanto pelas religiões como pelas autoridades, e como esse tratamento mudou ao longo do período analisado. Mudanças também não faltaram no capítulo seguinte, o Capítulo 7, que analisa as roupas e a moda no Brasil colonial e imperial. Ainda que pensada apenas para as camadas mais altas da sociedade, os mais pobres e até mesmo os escravos, acabavam encontrando um jeito de copiar ou adaptar o que havia para suas próprias realidades. A cólera e a tuberculose eram duas das doenças que mais afetavam a população e os corpos acometidos por essas doenças precisavam ser tratados, isolados e controlados para que o restante da sociedade se mantivesse sã. Este é o tema do Capítulo 8, e o 9 apresenta corpos que, ao não seguir o controle social e religioso, optaram pelo suicídio, demonstrando que os preceitos de um bom tratamento ao corpo nem sempre funcionavam. Por fim, fechando a Parte I, há o Capítulo 10 sobre as atitudes de higiene que as autoridades insistiam para que a população tivesse sobre seus corpos, sendo o banho diário a principal delas.

A Parte II engloba análises sobre o período republicano. O bloco se inicia, no Capítulo 11, com uma apresentação sobre periódicos que circulavam na cidade do Rio de Janeiro no início do século XIX veiculando imagens de mulheres nuas e textos picantes e a relação que a sociedade carioca mantinha com eles. Da pornografia para o controle estatal sobre o corpo. Este é o tema do capítulo seguinte (Capítulo 12): como o governo Vargas construiu uma imagem de corpo ideal usando as crianças e os jovens como modelos de comportamentos esperados por bons cidadãos. Nesse mesmo período, há também a análise sobre os corpos dos trabalhadores das indústrias de São Paulo e a transformação destes em "corpos-máquinas" (tema do Capítulo 13). O último texto dessa parte, o Capítulo 14, identifica como os corpos de crianças portadoras de deficiência foram encaradas como "fardos sociais" e sistematicamente excluídos da sociedade.

A Parte III, a última do livro, é claramente voltada para questões atuais e tem uma preocupação quase sociológica a respeito dos usos que fazemos de nossos corpos. A temática do Capítulo 15, o primeiro desta parte, envolve a questão da velhice real e a esperada e todas as dificuldades em lidar com elas e suas transformações. Na sequência, o Capítulo 16 trabalha com os problemas causados pelos transtornos alimentares, a obesidade e a relação entre as carências afetivas e o consumo de açúcares e gorduras e, posteriormente, o sentimento de culpa, a bulimia e a anorexia. O texto seguinte, no Capítulo 17, aborda a relação das mulheres com os padrões de beleza e feiura e as práticas cirúrgicas levadas a cabo para atingir os modelos esperados. Por fim, finalizando a obra há o Capítulo 18 que trata sobre a eterna busca do corpo "sarado" por meio da prática de exercícios físicos, demonstrando que os valores, tanto de estética quanto da prática esportiva, sofreram mudanças significativas ao longo da história.

Esta é, portanto, uma obra múltipla, que busca compreender o corpo em suas variadas manifestações e o entende como um ser-objeto que sofre e, ao mesmo tempo, exerce transformações que não são livres das sujeições históricas de seu tempo.


Apresentação do livro História do Corpo no Brasil, vários autores - organização de Mary Del Priore e Márcia Amantino, Editora Unesp, São Paulo, 2011.

10 novembro 2025

Apresentação (do livro Sexualidade Masculina, Gênero e Saúde)

Esta obra ancora-se, principalmente, em minha experiência de pesquisa ao longo de 15 anos voltada para as relações entre sexualidade, saúde e doença. Durante esse período, procurei não só estudar essas relações por meio da análise das literaturas nacionais e internacionais, como também me voltei para a escuta das falas de sujeitos que integraram pesquisas por mim realizadas.

Nessa trajetória de pesquisa, nos últimos cinco anos, comecei a ajustar o foco para a sexualidade masculina em específico, sem, entretanto, perder a perspectiva relacional de gênero. Isso significa, principalmente, que compreendo essa sexualidade com base na contextualização dos modelos de gênero construídos culturalmente nas relações e nas instituições sociais. Considerando essa dimensão - que será mais bem trabalhada no capítulo 3 -, partilhei da premissa de que a sexualidade masculina e feminina se constroem na produção/reprodução de modelos de gêneros. Em outras palavras, as condutas e os enredos sexuais masculinos só se configuram como tal segundo o que compreendemos por condutas e enredos sexuais femininos e vice-versa. Assim, adoto uma abordagem sociocultural da sexualidade, procurando interpretar o contexto, as razões e as lógicas das falas e das ações, correlacionando-as ao conjunto de inter-relações e conjunturas, entre corpos analíticos.

Entre meus estudos sobre sexualidade masculina, destaca-se a pesquisa "A construção da masculinidade como fator impeditivo do cuidar de si" (Gomes, 2004), vinculada à Bolsa de Produtividade em Pesquisa (entre agosto de 2003 e fevereiro de 2007) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto Fernandes Figueira da Fundação Oswaldo Cruz (IFF/Fiocruz). Em geral, eu pretendia compreender algumas ideias que se encontram no imaginário social relacionadas ao 'ser homem' e podem comprometer a saúde dos homens. Privilegiei a 'prevenção do câncer de próstata para problematizar as relações entre masculinidade e cuidados em saúde. Meus objetivos foram: a) analisar as representações da masculinidade para profissionais da saúde e para homens que usualmente não buscam atendimentos nos serviços de saúde; b) analisar os modelos explicativos para as dificuldades de os homens cuidarem de si e de profissionais atuarem com esse gênero, principalmente no que se refere à prevenção do câncer de próstata; c) propor princípios para o campo da saúde coletiva que permitam melhor compreender aspectos socioantropológicos da masculinidade, visando a ações específicas voltadas para a saúde do homem.

A metodologia deste estudo ancorou-se na abordagem de pesquisa qualitativa, voltada para a problematização dos sentidos que os sujeitos atribuem aos fenômenos e ao conjunto de relações em que eles se inserem (Denzin & Lincoln, 2000; Deslandes & Gomes, 2004), com base em princípios da hermenêutica-dialética (Minayo, 2005).

Em termos de sujeitos do estudo, optei por trabalhar com homens maiores de 40 anos e com médicos urologistas, a fim de focalizar o câncer de próstata. Decidi também atuar junto com dois grupos de homens que trabalhavam ou residiam na cidade do Rio de Janeiro: os com nenhuma ou pouca escolaridade (Grupo 1) e os homens com Ensino Superior (Grupo 2). A composição desses grupos ajudou-me a verificar se o grau de instrução poderia interferir no cuidar de si. Em relação aos profissionais da saúde, procurei aqueles com pelo menos cinco anos de experiência no atendimento a homens. Com base nesses critérios, entrevistei dez médicos, dez homens do Grupo 1 e oito do Grupo 2. Fiz a seleção prevendo a possibilidade de inclusões sucessivas de informantes, até que fosse possível uma discussão densa sobre as questões da pesquisa e aprofundada sobre o objeto de estudo (Minayo, 2006). Adotei a técnica de universos familiares (Vaitsman, 1994; Velho, 1981), em que pessoas conhecidas do pesquisador indicam outras a serem entrevistadas, que, por sua vez, indicam outras conhecidas.

A coleta dos dados apoiou-se em entrevistas semiestruturadas, realizadas em horários e locais escolhidos pelos entrevistadores, em um único encontro de, em média, uma hora e trinta minutos. Nas entrevistas, focalizei os sentidos atribuídos ao ser homem, ao cuidar de si e à prevenção do câncer de próstata por meio do toque retal.

As informações fornecidas pelos sujeitos pelos sujeitos foram trabalhadas por meio de dois métodos que se articulam na perspectiva hermenêutica-dialética (Minayo, 2005): o método de interpretação de sentidos (Gomes, Minayo & Silva, 2005; Gomes, 2007) e o método de análise e interpretação de narrativas (Gomes & Mendonça, 2002).

As opiniões dos entrevistados sobre masculinidade, uso de serviços de saúde por parte de homens e prevenção do câncer de próstata foram trabalhadas nos termos do primeiro método. No trato dessas opiniões, percorri os seguintes passos: a) compreensão dos depoimentos; b) identificação e problematização das ideias explícitas e implícitas no texto: c) busca de sentidos socioculturais subjacentes aos depoimentos; d) estabelecimento de relações entre sentidos atribuídos pelos sujeitos, resultado de outros estudos acerca do assunto, e o referencial teórico do estudo; e) elaboração de síntese interpretativa.

Em relação às narrativas dos sujeitos a respeito de sua sexualidade, utilizei o segundo método. Na primeira etapa, busquei compreender o contexto das interpretações sobre sexualidade, principalmente acerca da experiência de iniciação sexual. Na segunda, procurei desvendar os aspectos estruturais da narrativa, problematizando seus conteúdos por meio de questões voltadas para cenários, personagens, espaços e eventos mencionados, bem como o enredo e o desfecho delineado pelos narradores. Como terceira etapa, elaborei uma síntese interpretativa, em que dados revelados pelas narrativas dialogam com o contexto sócio-histórico. Os resultados dessa pesquisa, que em parte já se encontram publicados em artigos (Gomes, Nascimento & Araújo, 2007; Gomes et al., 2007), serão utilizados em capítulos deste volume para embasar minha discussão acerca do assunto.

Além dessa pesquisa, para ilustrar a discussão, trago uma interpretação que fiz dos conteúdos de uma revista sobre saúde do homem, de circulação internacional, lançada recentemente no Brasil. Nessa interpretação, com algumas adaptações, apliquei aspectos do método de análise e interpretação de narrativas. No capítulo 4, figuram as conclusões desse estudo.

Os capítulos, embora demarquem especificidades ou prismas das relações estabelecidas entre sexualidade masculina, gênero e saúde, se articulam em torno do propósito de contribuir para a promoção da sexualidade masculina saudável. Por essa expressão, estou entendendo a experiência de uma vida sexual prazerosa, informada, sem riscos de doenças, livre de violência e baseada na autoestima, sem que questões do masculino sejam vistas separadamente das do feminino. A perspectiva relacional de gênero atravessa os diferentes capítulos, implícita ou explicitamente, dando visibilidade ao confronto entre a sexualidade masculina e feminina e ao mesmo tempo relativizando-o.

No capítulo 1, discutirei, principalmente, a pertinência de abordar a temática em questão. Nele, apresentarei minhas motivações para desenvolver este estudo. O que me moveu para tal empreendimento foi, sobretudo, minha experiência de pesquisador que, há mais de dez anos, se volta para questões relacionadas à sexualidade. Nesta parte, apresentarei também a relevância da discussão, apoiando-me nas literaturas nacional e internacional. Minha justificativa centra-se, principalmente, na intenção de trazer subsídios para a promoção da saúde sexual masculina, de forma a beneficiar não só os homens como também as mulheres, no contexto das relações de gênero.

O capítulo 2 versará sobre o quadro geral da morbi-mortalidade masculina no Brasil. O propósito é fornecer ao leitor um cenário no qual se inseriria a discussão sobre a sexualidade masculina. Estabelecerei considerações gerais que poderão servir para que algumas informações acerca do assunto sejam problematizadas, levando em conta as questões de gênero. Observarei que, em função dos dados da área da saúde disponíveis, a caracterização tratará muito mais dos comprometimentos da saúde e da mortalidade do que da saúde propriamente dita. Neste capítulo, também discutirei aspectos relacionados ao reduzido envolvimento de homens com os cuidados em saúde, seja no que se refere ao autocuidado, seja no que tange à busca de cuidados especializados.

No capítulo 3, apresentarei um referencial teórico-conceitual básico acerca do assunto. Buscarei não só estabelecer uma ancoragem para a discussão como também disponibilizar um referencial para que novos estudos possam ser desenvolvidos. Tratarei, principalmente, dos conceitos 'gênero', 'masculinidade' e 'sexualidade masculina'. Nessa discussão teórico-conceitual, observarei que os conceitos nem sempre demarcam fronteiras nítidas em torno do que querem referir: ora superpõem, ora se diferenciam mutuamente. Neste capítulo, procurarei tecer considerações baseadas em discursos de vários autores que tratam do assunto, como se fossem fios que se entrelaçam em uma só trama.

O capítulo 4 é uma interpretação de conteúdos de uma revista voltada especificamente para a saúde do homem, que passou a circular nas bancas de jornal brasileiras no fim do primeiro semestre de 2006. Ao interpretar as narrativas presentes nessa revista, quero destacar - de forma ilustrativa - a maneira como a mídia vem focalizando a sexualidade e a saúde do homem em geral, desvendando os modelos subjacentes às mensagens veiculadas para segmentos masculinos da população. Assim, procurarei não só identificar os conteúdos acerca do assunto nas matérias da revista, mas principalmente, o que se encontra a tais conteúdos.

No capítulo 5, discutirei cenários, enredos e personagens de narrativas sexuais masculinas. Os autores das narrativas são homens com pouca ou nenhuma escolaridade e homens com Ensino Superior que falam sobre as suas histórias sexuais. A escuta dessas falas me possibilitou melhor compreender trajetórias vivenciadas por homens na construção de sua sexualidade. Junto com o desenvolvimento das narrativas, estabelecerei um diálogo entre os dados de minha pesquisa e os de outros estudos. Com esse diálogo, acredito que será possível contribuir para que a sexualidade masculina seja problematizada e mais bem dimensionada no campo das ações voltadas para as especificidades do masculino e para as questões de gênero em geral.

No capítulo 6, explicitarei o que entendo por sexualidade saudável, procurando não reduzir tal expressão à medicalização ou à prevenção de doenças. Em seguida, discutirei aspectos que possam via a embasar a formulação de princípios para a promoção da sexualidade masculina saudável em uma perspectiva que contemple as relações entre gêneros.

As referências aqui reunidas foram de fundamental importância par que eu pudesse discutir o assunto central desta obra. São fontes - teóricas e empíricas - a que recorri para embasar a discussão, tanto em termos de conteúdo como no que diz respeito a formas de abordar o assunto. Tais referências servem também de ponto de partida para que a discussão seja ampliada ou para que novos estudos sobre o assunto sejam desenvolvidos.

Não posso deixar de agradecer a todos que, de uma forma ou de outra, me ajudaram neste empreendimento. Li em prólogos de publicações e aprendi com minha própria experiência que um livro nunca é de um só autor. Em menor ou maior proporção, mesmo naqueles assinados por um só nome participam - direta ou indiretamente - outros autores. Aqui não poderia ser diferente. Nela, há a colaboração ou participação de inúmeras pessoas. Algumas estiveram mais perto, fazendo com que sua elaboração não fosse uma tarefa solitária. Outras, de forma indireta, também muito contribuíram para que o empreendimento chegasse ao término, sem que se dessem conta disso.


Texto de Romeu Gomes na apresentação de seu livro Sexualidade Masculina, Gênero e Saúde, Editora Fiocruz, coleção Criança, Mulher e Saúde, Rio de Janeiro, 2012.

07 novembro 2025

O Significado de Ansiedade (prefácio das duas edições)

PREFÁCIO DA PRIMEIRA EDIÇÃO

Este livro é o resultado de muitos anos de exploração, pesquisa e meditação acerca de uma dos mais urgentes problemas de nossos dias. A experiência clínica provou a psicólogos e psiquiatras que o problema central em psicoterapia é a natureza da ansiedade. Na medida em que fomos capazes de solucionar esse problema, demos um primeiro passo na compreensão das causas de integração e desintegração da personalidade.

Mas se a ansiedade fosse meramente um fenômeno de desajustamento, poderia muito bem ser consignado ao consultório e à clínica, e este livro à biblioteca dos profissionais. Entretanto, são esmagadoras as provas de que vivemos hoje a "era da ansiedade". Se penetrarmos sob a superfície das crises políticas, econômicas, comerciais, profissionais ou familiares, a fim de descobrirmos suas causas psicológicas, ou se procurarmos entender a Arte, a Poesia, a Filosofia ou a Religião modernas, defrontamo-nos de imediato com o problema da ansiedade em quase todos os quadrantes. O estresse e as tensões comuns da vida no mundo em mudança de hoje são tais que poucos - se porventura alguns - podem escapar à necessidade de enfrentar a ansiedade e de haver-se com ela de alguma forma.

Nestes últimos cem anos, por razões que se apresentarão nos capítulos seguintes, psicólogos, filósofos, historiadores sociais e outros estudiosos da humanidade, preocuparam-se cada vez mais com essa inexprimível e informe intranquilidade que persegue e acossa cada passo do homem moderno. Entretanto, durante todo esse tempo, que seja de meu conhecimento, apenas duas tentativas foram realizadas em forma de livro - um ensaio de Kierkegaard e um de Freud - para apresentar um quadro objetivo da ansiedade e indicar métodos construtivos de lidar com ela.

Este estudo procura reunir num só volume as teorias da ansiedade oferecidas por modernos investigadores em diferentes áreas da nossa cultura, descobrir os elementos comuns em todas essas teorias e formular esses conceitos de maneira que possamos dispor de uma base comum para novas investigações. Se a síntese da teoria da ansiedade aqui apresentada servir a finalidade de produzir certa coerência e ordem nesse campo, uma boa parte do meu objetivo terá sido alcançada.

É claro que a ansiedade não constitui meramente um conceito teórico abstrato; é-o tanto quanto para uma pessoa cujo barco naufragou a milhas da costa representa o fato de saber nadar. Um exame da ansiedade que não fosse orientado no sentido dos problemas humanos imediatos não valeria o tempo gasto em escrever ou ler. Por conseguinte, a síntese teórica foi testada pela investigação de situações reais de ansiedade e o estudo de casos selecionados, a fim de descobrir que provas concretas podem haver em apoio das minhas conclusões quanto ao significado de ansiedade e aos propósitos que esta serve na experiência humana.

Para manter este estudo dentro de limites controláveis, restringi o seu âmbito às observações de pessoas que são nossas contemporâneas em todos os aspectos importantes e, mesmo dentro desses limites, apenas a figuras sumamente significativas. São pessoas que representam a civilização ocidental como conhecemos por experiência própria, quer se trate de filósofos como Kierkegaard, psicoterapeutas como Freud, romancistas, poetas, economistas, historiadores sociais ou outros dotados de uma percepção profunda dos problemas humanos. Essas restrições, no tempo e no espaço, servem para colocar o problema da ansiedade em foco, mas nem por isso se deve aduzir que a ansiedade seja exclusivamente um problema moderno ou tão-somente um problema ocidental. Espero que este livro estimule pesquisas semelhantes em outras partes do campo.

Em virtude do vital interesse geral pelo tema da ansiedade, formulei as minhas conclusões de maneira que sejam claras não só para leitores profissionais, mas também para estudantes, cientistas sociais e leitores que buscam um entendimento psicológico dos problemas modernos. De fato, este livro é pertinente para as preocupações dos cidadãos inteligentes que sentem em sua própria carne as tensões e conflitos geradores de ansiedade do nosso tempo, e que a si mesmo se perguntam o significado e as causas dessa ansiedade e de que modo está poderá ser enfrentada.

Aos interessados num exame comparativo das modernas escolas de psicoterapia, este volume servirá como um compêndio conveniente, dado que apresenta os pontos de vistas de uma dúzia de líderes nesse campo. Não existe melhor forma de compreender essas várias escolas do que comparar as suas teorias de ansiedade.

Durante os anos em que estive trabalhando neste livro, minhas ideias sobre ansiedade foram apuradas e ampliadas por discussões com muitos colegas de profissão e amigos, numerosos demais par os mencionar aqui. Mas desejo expressar o meu apreço ao Dr. O. H. Mowrer, Dr. Kurt Goldstein, Dr. Paul Tillich e Drª Esther Lloyd-Jones, que leram o manuscrito em suas várias fases e discutiram comigo, ao longo de muitas e estimulantes horas, o problema da ansiedade nos campos que representam. Também sou devedor, pela ajuda direta e indireta neste estudo, ao Dr. Erich Fromm e outros colegas no William Alanson White Institute of Psychiatry, Psychoanalysis and Psychology (Instituto de Psiquiatria, Psicanálise e Psicologia William Alanson White). Uma palavra final de apreço é endereçada aos assistentes psiquiátricos e sociais na instiutição em que foram realizados os estudos de casos de mães solteiras. Esses colegas forneceram ajuda especializada na compreensão desses casos, embora - por razões óbvias - devam permanecer anônimos.  

ROLLO MAY

New York, NY.

Fevereiro de 1950


PREFÁCIO DA EDIÇÃO REVISTA

Desde que a primeira edição deste livro veio a lume em 1950, verificou-se uma enorme soma de pesquisa e interesse na ansiedade. Em contraste com o fato de que somente dois livros foram escritos sobre ansiedade antes de 1950, grande número de volumes foram publicados no último quarto de século. E, em contraste com a meia dúzia de ensaios explorando o assunto antes de 1950, estimou-se que pelo menos 6.000 estudos e dissertações sobre a ansiedade e temas afins apareceram depois de 1950. A ansiedade saiu certamente da penumbra do gabinete profissional para a luz brilhante do mercado. Satisfaz-me o fato de que a publicação deste livro tenha instigado parte desse surto de interesse.

Mas, apesar de todos os esforços devotados por parte de pessoas talentosas, não conheço nenhum que afirme ter sido solucionado o enigma da ansiedade. O nosso conhecimento aumentou, mas não aprendemos como tratar a ansiedade. Embora o conceito de ansiedade normal, conforme proposto na primeira edição deste livro, tenha sido geralmente aceito em teoria, as suas implicações não foram enfrentadas. Ainda nos apegamos à crença ilógica de que "saúde mental é viver sem ansiedade". Parecemos ignorar que a ilusão de viver sem ansiedade revela uma percepção radicalmente errônea da realidade - um ponto que se tornou iniludivelmente claro em nossos dias de irradiação atômica e bomba de hidrogênio.

A ansiedade tem um significado. Embora parte desse significado possa ser destrutiva, uma outra parte pode também ser construtiva. A nossa própria sobrevivência é o resultado de medidas tomadas há muito tempo para fazer frente à ansiedade. Originalmente, o homem primitivo, como disseram Freud e Adler, experimentava ansiedade como um advertência da ameaça à sua vida pelos dentes e garras de animais selvagens. A ansiedade desempenhou um papel destacado no desenvolvimento da capacidade de nossos antepassados para pensar e da habilidade para usar símbolos e ferramentas que ampliassem seu alcance protetor.

Mas, em nossos dias, ainda vemos as nossas principais ameaças provirem dos dentes e garras de inimigos físicos, quando na realidade são predominantemente psicológicos e, na mais ampla acepção, espirituais - isto é, lidam com a inexpressividade. Já não somos presa de tigres e mastodontes, mas vítimas de danos infligidos em nosso amor-próprio, de ostracismo pelo nosso grupo, ou da ameaça de derrota na luta competitiva. A forma de ansiedade mudou, mas a experiência mantém-se relativamente a mesma.

A ansiedade é essencial à condição humana. Para dar um exemplo pessoal, sinto ansiedade antes de cada conferência que profiro, muito embora já tenha feito centenas delas. Certo dia, cansado de suportar essa tensão que me parecia tão desnecessária, e com a ajuda de uma forte resolução, tratei de me condicionar de modo a livrar-me de ansiedade. Nessa noite, estava perfeitamente descontraído e livre de tensão quando subi ao estrado. Mas proferi uma palestra medíocre. Faltavam-se a tensão, o sentimento de desafio, a excitação do cavalo de corrida no starting gate - aqueles estados de espírito e do corpo em que a ansiedade normal se manifesta.

O confronto com a ansiedade pode aliviar-nos (note-se a palavra pode e não o emprego do verbo em seu tempo futuro) do tédio, aguçar a nossa sensibilidade e garantir a presença da tensão que é necessária para preservar a existência humana. A presença de ansiedade indica vitalidade. Tal como a febre, atesta que uma luta está se desenrolando no interior da personalidade. Na medida em que essa luta prosseguir, é possível uma solução construtiva. Quando deixa de existir ansiedade, a luta findou e a depressão poderá sobrevir. Foi por isso que Kierkgaard sustentou ser a ansiedade o nosso "melhor mestre". Sublinhou ele, que sempre que uma nova possibilidade surgir, a ansiedade também aí está. Estas considerações apontam para um tópico que mal foi aflorado na pesquisa contemporânea, a saber, a relação entre ansiedade, por um lado, e criatividade, originalidade e inteligência, por outro. A Parte III deste livro, embora tratando brevemente desses tópicos, foi inteiramente reescrita para o presente volume.

Acredito ser necessária uma teoria ousada que englobe não só a nossa ansiedade normal e neurótica, mas também a ansiedade na Literatura, Arte e Filosofia. Essa teoria deve ser formulada em nosso mais alto nível de abstração. Proponho que essa teoria se fundamente na definição de que ansiedade é a experiência de Ser afirmando-se contra o Não-Ser. Este último é o que reduziria ou destruiria o Ser, como a agressão, fadiga, tédio e, em última instância, a morte. Reescrevi este livro na esperança de que a sua publicação ajude à formação dessa teoria da ansiedade.

É um prazer expressar a minha gratidão aos estudantes e colegas que me instigaram a proceder à revisão deste livro, uma tarefa que resultou consideravelmente mais gratificante do que eu esperava. Sou especialmente grato à minha colega de pesquisa, Drª Joanne Cooper, que me deu indispensável ajuda nas explorações bibliográficas sobre o assunto, assim como por suas penetrantes sugestões.


ROLLO MAY

Tiburon, Califórnia

Junho de 1977.


Textos de Rollo May retirado do livro O Significado de Ansiedade - As Causas da Integração e Desintegração da Personalidade, Coleção Psyche, Zahar Editores, Rio de Janeiro, Edição de 1980.

06 novembro 2025

Introdução (do livro Sob a Sombra de Saturno)

Este livro se baseia na explanação apresentada no Centro Jung da Filadélfia, em abril de 1992. Explanação que já não era sem tempo. Evitara pessoalmente o tema durante toda uma década, embora o sofrimento, as aspirações e a cura dos homens ocupassem pouco a pouco meu tempo como analista junguiano.

Doze anos atrás, a proporção dos meus clientes era de nove mulheres para cada homem. Atualmente, a maioria dos meus clientes é do sexo masculino e a proporção é de seis homens para quatro mulheres. Acredito que a mudança também tenha ocorrido no consultório de outros terapeutas, e as razões para isso contribuíram igualmente à ascensão do movimento masculino. Evitara o tema porque muita coisa parecia em andamento. Na melhor das hipóteses, via o trabalho maciço de purificação acadêmica e emocional, e na pior, uma fenômeno pop-psíquico que eu considerava repugnante.

Preocupo-me muito com a cura e a transformação das pessoas, trabalho este em geral tão intenso, tão profundamente pessoal, que amiúde é fácil esquecer o mundo mais amplo e os grandes problemas sociais dos quais todos participamos e pelos quais somos todos feridos. Tornou-se, porém, cada vez mais claro para mim que as histórias de cada homem coincidiam de fato e apresentavam temas constantes. À semelhança do que as mulheres aprenderam antes de nós, comecei a perceber que a experiência coletiva dos homens é também parte inevitável da sua história pessoal. A trama e urdidura da história privada e da mitologia pública incorpora-se à formação do caráter individual.

Hoje, é claro, já existem muitos livros excelentes a respeito de vários aspectos do dilema dos homens modernos. Recorrerei de vez em quando a eles neste livro, diretamente, conscientemente, e com gratidão.

Todos participamos da luta rumo à comunidade, e cada uma das nossas vozes tem timbre diferente. Não me proponho oferecer contribuição original à erudição masculina, mas, sim, tomar questões complexas e destilar, integrar e expressá-las através de termos que sejam compreendidos por muitos. Também recorro à experiência clínica dos homens da terapia. A eles sou igualmente grato por me permitirem o uso de seus casos.

O objetivo de Sob a sombra de Saturno, portanto, é oferecer uma visão sinótica das feridas e da cura dos homens, e ainda examinar a situação existente nesta última década do século.

Mas, sobretudo, devo uma confissão: evitei falar do assunto por anos e anos, não apenas porque as questões me pareciam em contínua transição, mas porque também eu tenho sofrido por viver sob a sombra de Saturno e nem sempre estou certo com relação à minha posição no relacionamento com minha natureza masculina. O destino quis que eu nascesse homem. Durante anos simplesmente tomei como certo esse acidente e suas consequências, achando mais assustador do que libertador a tentativa de um passo para fora dessa sombra.

Nas páginas que seguem, citarei de vez em quando exemplos autobiográficos, não para agradar a mim próprio e sim porque os considero típicos e representativos. Como observou o pintor Tony Berlant: "Quanto mais pessoal e introspectiva a obra de arte, mais universal se torna".

Ao focalizar as questões masculinas, não tenho a intenção de minimizar as feridas das mulheres. Nós, do sexo masculino, temos grande dívida de gratidão para com as mulheres, que se manifestaram, não apenas para expressar a própria dor dentro da nossa cultura sexista, mas também para tornar os homens mais livres para serem mais plenamente eles mesmos. Seu cri de couer ajudou os homens a examinar com mais consciência as próprias feridas, e em decorrência disso todos ficamos mais bem servidos. O exemplo das mulheres lutando para se libertar das sombras do coletivo confere coragem e torna necessário que os homens realizem o mesmo. A não ser que os homens consigam emergir das trevas, continuaremos a ferir tanto as mulheres quanto a nós próprios, e o mundo jamais será lugar seguro ou saudável. Este trabalho, portanto, não é apenas para nós, mas também para os que nos rodeiam.

Em meados do século passado, o teólogo dinamarquês Sören Kierkegaard observou que não podemos salvar nossa era, senão expressar a convicção de que ela está perecendo. As forças inconscientes, as instituições públicas e as ideologias que nos orientam a vida possuem um momento de inércia tal que não esperaríamos ocasionar rápida mudança na sociedade e no papel desempenhado pelos sexos. Não obstante, o primeiro requisito é que os homens se tornem conscientes do fato de se apresentarem cruelmente feridos. A inconsciência do trauma deles faz com que firam vezes a fio tanto a si próprios quanto às mulheres. Sempre pergunto que restaria às mulheres senão passar a odiarem os homens que as oprimem, e aos homens quase analogamente, odiarem e temerem-se uns os outros.

Este livro, portanto, recorre ao trabalho de muitas pessoas, a fim de conduzir cada homem a maior consciência e incentivar o diálogo que precisa desabrochar para a cura. Se as imagens que governam consciente e inconscientemente nossa vida só podem ser analisadas e resolvidas com o sofrimento particular e individual, a crescente capacidade dos homens de confessarem sua dor e sua raiva, de conversarem cada vez mais uns com os outros, também, ajudará a curar as feridas do mundo.

Convido o leitor, ou leitora, a se ver na jornada aqui descrita. No caso das mulheres, a descrição da luta com o complexo materno, por exemplo, será útil na compreensão da estranha ambivalência que parece afligir os homens em suas vidas. A jornada masculina tem muitas passagens, muitos perigos. Os rigores e as tarefas que identificamos são os mais prováveis de vivenciarmos. É falsa a ideia de que aquilo que desconhecemos não nos magoaria; na verdade, o que não conhecemos nos fere fundo, e à semelhança de Sansão conseguiríamos, então, deitar cegamente o templo por sobre nossas próprias cabeças.

Para que cada qual passe a ter mais consciência das transições e dos tormentos masculinos, sou obrigado a contar segredos masculinos. Revelo-os para que as mulheres entendam melhor o assunto. Alguns desses segredos talvez sejam novos para os próprios homens, embora duvide seriamente de que um único leitor do sexo masculino deste livro vá discordar de que aponte as feridas que ele tem carregado no seu coração solitário e assustado. Que não encerremos a ferida e o medo, ao menos acabemos com a solidão.

O título deste livro alude ao fato de tantos os homens quanto as mulheres padecerem sempre sob a pesada sombra das ideologias, umas conscientes, algumas herdadas da família e do grupo étnico, e outras ainda como parte da estrutura da história da nação e de seu chão mítico. Essa sombra representa o peso opressivo sobre a alma. Os homens padecem sob ela, com o espírito oprimido e definhado. A experiência dessa sombra opressiva é saturnina. As definições do que significa ser homem - os papéis e as expectativas masculinas, a competição e a animosidade, a humilhação e a desvalorização de muitas das melhores qualidades e capacidades dos homens - conduzem à esmagadora opressão. Esse fardo sempre esteve presente, porém hoje em dia os homens de coragem estão começando a questionar a necessidade de viver sob esse jugo.

Saturno era o deus romano da agricultura. Por um lado, na qualidade de deus da geração, ajudou a criar a antiga civilização romana; por outro, vinha associado a uma multidão de histórias obscuras e sangrentas. Sua encarnação grega primeva, Crono, nasceu  do princípio masculino Urano e do princípio Geia ou Gaia. Urano odiava os filhos por temer o potencial deles; conta a lenda que fora "o primeiro a maquinar ações vergonhosas". Sua mulher, Gaia, fabricou uma foice e induziu Crono a atacar o pai. Crono golpeou e cortou o falo do próprio pai. Terríveis gigantes nasceram das gotas de sangue que caíram sobre a terra. O mar, fecundado e salpicado de esperma, deu luz à Afrodite, cujo nome significa "nascida da espuma".

Crono-Saturno substituiu o pai, tornando-se tirano de igual magnitude. Sempre que ele e sua consorte Reia tinham filhos, ele comia. A única criança que conseguiu evitar essa sina foi Zeus. Por sua vez, Zeus liderou uma revolta contra o próprio pai, dando início a uma guerra de dez anos. Muitas forças civilizadoras emergiram com o triunfo de Zeus, mas também ele se tornou prisioneiro do complexo do poder e tornou-se dominador.

Assim, a história de Crono-Saturno envolve poder, ciúme, insegurança - violência para com o princípio do eros, com a geração e com a terra. Como Jung comentou certa vez, na presença do poder o amor nunca está presente. Junto com a grande capacidade de aquisição do poder dramatizada pelos deuses, vemos sua corrupção no complexo do poder. O poder em si é neutro, mas sem eros ele é perseguido pelo medo e pela ambição compensatória, arremessado em direção a fins violentos. Como observou Shakespeare, "inquieta permanece a cabeça que usa coroa".

A maioria dos homens ao longo da história cresceram sob a sombra deste legado saturnino. Sofreram com a corrupção do poder, movidos pelo medo, ferindo a si e aos semelhantes. Se os homens modernos sentem que não há alternativas, que o legado de Saturno é a única possibilidade que existe, eu não penso assim.

Sob a sombra de Saturno é oferecido ao leitor como forma de identificar algumas dentre as inúmeras maneiras pelas quais este mito obscuro marcou nossa alma. Minha esperança é que leve cada um a se voltar para dentro de si em busca de maior liberdade pessoal.


OS OITO SEGREDOS 

QUE OS HOMENS CARREGAM


1. A vida dos homens é tão governada por expectativas restritivas com relação ao papel que devem desempenhar quanto a vida das mulheres.

2. A vida dos homens é basicamente governada pelo medo.

3. O poder feminino é imenso na organização psíquica dos homens.

4. Os homens conluiam-se numa conspiração de silêncio cujo objetivo é reprimir sua verdade emocional.

5. O ferimento é necessário porque os homens precisam abandonar a Mãe e transcender o complexo materno.

6. A vida dos homens é violenta porque suas almas foram violadas.

7. Todo homem carrega consigo profundo anseio pelo seu pai e pelos Pais tribais.

8. Para que os homens fiquem curados, precisam ativar dentro de si o que não receberam do exterior.


Introdução do livro Sob a Sombra de Saturno - a ferida e a cura dos homens, de James Hollis, Paulus Editora, São Paulo, 5ª Edição, 2019.

05 novembro 2025

Capítulo 13 - Em Resumo (Do livro Sobre o Poder Pessoal - Rogers)

Toda revolução social é precedida por, ou traz consigo, uma mudança na percepção do mundo e/ou uma mudança na percepção do possível. Como não podia deixar de ser, essas novas maneiras de ver são, a princípio, consideradas como um contra-senso ridículo, ou coisa pior do que isso, pelo senso comum coletivo da época.

A revolução de Copérnico é, sem dúvida, o principal exemplo. Pensar que a Terra não era o centro do universo, que girava em torno do Sol e era parte de uma vasta galáxia, não era apenas absurdo, era uma heresia que solapava a religião e a civilização. Há também exemplos menos importantes. Era enorme absurdo pensar que organismos invisíveis, que ninguém podia ver, pudessem ser causa de doenças. A crença de que escravos não eram objetos para serem comprados e vendidos como gado, mas sim pessoas com plenos direitos humanos, não era somente um pensamento nocivo, contrário à História e à Bíblia: era também economicamente perturbador e perigoso. A noção revelada por uma fórmula matemática obscura de que a menor porção da matéria, o átomo, uma vez rompido, poderia libertar uma força incalculável, era evidentemente apenas um excêntrico rebento da ficção científica.

Entretanto, todas essas "ridículas" mudanças perceptuais alteraram a face e a natureza de nosso mundo. Foi o "senso comum" que passou a ser gradualmente ridículo.

Vejamos um exemplo corriqueiro da maneira pela qual esta mudança acontece. Era um fato perfeitamente óbvio para todos - e além disso apoiado pelas Sagradas Escrituras - que a Terra era plana, e aqueles que sugeriram que ela era esférica eram hereges perigosos. Mas, quando Colombo navegou para o Novo Mundo, sem com isso cair da extremidade da Terra, essa experiência real, essa evidência de que a concepção anteriormente aceita era um erro, forçou uma mudança no modo de se perceber a Terra. E essa mudança não ocorreu apenas na geografia. Contribuiu para uma reavaliação desse novo campo denominado ciência. Pôs em dúvida o papel do homem nesse contexto mais amplo. Questionou até mesmo a Bíblia, como enciclopédia de conhecimento factual. Abriu a mente humana a possibilidade até então desconhecidas. Levou a visões de continentes a serem descobertos e países a serem explorados. Alterou toda a estrutura perceptual de vida de homens e mulheres ficaram amedrontados e foram estimulados e transformados pela perspectiva. O impossível passou a ser possível.

Não foram as teorias relacionadas à terra que causaram tudo isso. Elas já existiam há muito tempo. A mudança foi forçada pela evidência de que as teorias tinham validade.

Parece-me quase do mesmo tipo, a evidência da eficácia da abordagem centrada na pessoa que pode transformar uma revolução, pequena e silenciosa, em uma mudança muito mais significativa, da maneira pela qual a humanidade percebe o possível. Estou próximo demais dos fatos para saber se este será um acontecimento menor ou maior, mas acredito que represente uma mudança radical. Como toda corrente que flui em torno das raízes da cultura, ameaçando minar-lhe as acalentadas concepções e os longos caminhos batidos, constitui uma força assustadora, força que, como de costume, choca-se com todo o peso do senso comum da cultura.

O que desejo fazer é comparar vários elementos do senso comum com as provas que os contradizem. Vou fazê-lo de modo bastante resumido, visto que a demonstração já foi apresentada neste livro.

É incorrigivelmente idealista pensar que o organismo humano é basicamente digno de confiança.

- Mas -

A pesquisa e as ações baseadas nessa hipótese tendem a confirmar essa opinião - até mesmo a confirmá-la com força.

É absurdo pensar que podemos conhecer os elementos que tornam o desenvolvimento psicológico humano possível.

- Mas -

Tais elementos têm sido definidos e identificados como condições de atitudes, medidos e demonstrados como eficazes.

É ridículo pensar que a terapia pode ser democratizada.

- Mas -

Quando o relacionamento terapêutico é igualitário, quando cada um assume a responsabilidade por si mesmo no relacionamento, o crescimento independente (e mútuo) é muito mais rápido.

É irracional pensar que uma pessoa com problemas possa melhorar sem o aconselhamento e orientação de um psicoterapeuta experiente.

- Mas -

Há muitas provas de que, em um relacionamento marcado por condições facilitadoras, a pessoa com problemas pode assumir a autoexploração e tornar-se autodeterminada, de maneira profundamente lúcida.

É perigoso pensar que indivíduos psicóticos podem ser tratados como pessoas.

- Mas -

Está provado que este é o caminho mais rápido pelo qual o psicótico pode servir-se de seu próprio problema como material a ser assimilado em seu crescimento pessoal.

É impreciso e ineficaz não controlar as pessoas.

- Mas -

Sabe-se que, quando o poder é deixado às pessoas e quando somos verdadeiros, compreensivos e interessados por elas, ocorrem mudanças construtivas no comportamento, e elas manifestam mais força, poder e  responsabilidade.

Uma família ou um casamento sem uma forte autoridade reconhecida está fadada ao insucesso.

- Mas -

Demonstrou-se que, quando o controle é compartilhado, quando condições facilitadoras estão presentes, ocorrem relacionamentos importantes, saudáveis e enriquecedores.

Precisamos assumir a responsabilidade pelos jovens, visto que não são capazes de autogovernar-se. É estúpido pensar de outra forma.

- Mas -

Em clima facilitador, o comportamento responsável desenvolve-se e floresce tanto entre jovens quanto entre pessoas mais idosas.

Os professores precisam ter controle sobre seus alunos.

- Mas -

Confirmou-se que, onde os professores compartilham o poder e confiam em seus alunos, a aprendizagem autodirigida atinge melhores resultados do que nas classes controladas pelo professor.

Os professores precisam ser firmes, rigorosos na disciplina e severos na avaliação, se desejam que ocorra a aprendizagem.

- Mas -

Comprovou-se que o professor que compreende com empatia o significado que a escola tem para o estudante, que o respeita como pessoa e que é autêntico nos relacionamentos, promove um clima de aprendizagem efetivamente superior quanto aos efeitos, em relação ao professor que age de acordo com o "senso comum".

Os professores devem ensinar o que os alunos precisam saber.

- Mas -

A aprendizagem significativa é maior quando os alunos escolhem, dentre uma ampla variedade de opções e recursos, o que eles precisam e querem saber.

É óbvio que em qualquer organização deve haver um chefe. Qualquer outra ideia é absurda.

- Mas -

Tem sido demonstrado que os líderes que confiam nos membros da organização, que compartilham e difundem o controle e que mantêm comunicação livre e pessoal, conseguem melhor moral, organizações mais produtivas e facilitam o desenvolvimento de novos líderes.

Grupos oprimidos devem revoltar-se. A revolução violenta é o único caminho para os oprimidos obterem poder e melhorarem suas vidas.

- Mas -

A história confirma a opinião de que, mesmo se bem sucedida, a revolução simplesmente conduz a uma nova tirania que substitui a antiga. Uma revolução não-violenta, baseada na abordagem centrada na pessoa, e que dá poder ao oprimido, parece ser muito mais promissora.

Profundas rivalidades religiosas bem como rancores provenientes de preconceitos culturais e raciais não têm solução. É pura fantasia pensar que eles possam ser reconciliados.

- Mas -

O fato é que existem inúmeros exemplos em pequena escala para mostrar que melhoria na comunicação, redução da hostilidade e medidas para resolver as tensões, são de todo possíveis e se apoiam na abordagem experimental de grupos intensivos.

Um encontro ou um workshop precisam ser organizados por um ou mais líderes responsáveis. Qualquer outra maneira é irrealista e quixotesca.

- Mas -

Tem-se demonstrado que um grande e complexo empreendimento pode ser centrado na pessoa, do começo ao fim - em seu planejamento, desenvolvimento e resultados - e que tal concentração de pessoas, sentindo seu próprio poder, pode agir criativamente em novas e inexploradas áreas - resultado que não poderia ser conseguido por métodos habituais.

É óbvio que, em uma situação estritamente controlada com todo o poder concentrado numa elite, as pessoas sem poder não exercem nenhuma influência significativa.

- Mas -

Em uma situação quase perfeita de laboratório, os membros sem poder de um acampamento diurno, que vieram a respeitar sua própria força por serem tratados de maneira centrada na pessoa, mostraram-se extremamente poderosos.

Nos anos sessenta houve uma tendência a mudanças sociais de base, mas agora isto desapareceu. Somente um sonhador não reconheceria isto.

- Mas -

Cada vez mais pessoas, adeptas da abordagem centrada na pessoa aplicada à vida, estão se infiltrando nas escolas, na vida política, nas organizações, assim como estabelecendo estilos diferentes de vida. Estão vivendo novos valores e constituem um contínuo e crescente fermento de mudança social.

As pessoas não mudam.

- Mas -

Um novo tipo, com valores muito diferentes dos que constituem nossa atual cultura, está emergindo em número cada vez maior, vivendo e agindo de acordo com modos que rompem com o passado.

Nossa cultura está se tornando cada vez mais caótica. Precisamos voltar atrás.

- Mas -

Uma revolução silenciosa está se desenvolvendo em quase todas as áreas. Ela promete levar-nos em direção a um mundo mais humano, mais centrado na pessoa.


Texto de Carl R. Rogers retirado do livro Sobre o Poder Pessoal, Livraria Martins Fontes Editora Ltda., São Paulo, 1978.

04 novembro 2025

O Ego: a dimensão consciente da personalidade

Embora suas bases sejam em si mesmas relativamente desconhecidas e inconscientes, o ego é, por excelência, um fator consciente. É inclusive adquirido, em termos empíricos, ao longo da vida. Parece surgir, em primeiro lugar, da colisão entre o fator somático e o meio ambiente, e, depois de estabelecido como sujeito, prossegue desenvolvendo-se a partir de outras colisões com o mundo exterior e interior.

Apesar da ilimitada extensão de suas bases, o ego nunca é mais e nunca é menos que a consciência como um todo. Como fator consciente, o ego poderia ser, pelo menos no plano teórico, descrito de forma completa. Isso porém nunca chega a ser mais do que uma imagem da personalidade consciente; todos os aspectos desconhecidos ou inconscientes para o sujeito estarão ausentes. A imagem completa teria que incluí-los. Mas uma descrição total da personalidade, mesmo teórica, é absolutamente impossível porque a porção inconsciente que a compõe não pode ser apreendida pelos recursos cognitivos. Essa porção inconsciente, como a experiência o tem generosamente comprovado, não é de maneira alguma destituída de importância. Pelo contrário, as qualidades mais decisivas de uma pessoa são em geral inconscientes e podem ser percebidas apenas pelos outros, ou têm que ser laboriosamente descobertas com ajuda externa.

Está claro, então, que a personalidade como um fenômeno total não coincide com o ego, quer dizer, com a personalidade consciente, mas forma uma entidade que precisa ser distinguida do ego. Sem dúvida, a necessidade dessa distinção só recai sobre uma psicologia que admite o fator do inconsciente e, para ela, essa distinção é da mais lapidar importância.

Sugeri que se chamasse a personalidade total que, embora presente, não pode ser plenamente conhecida, de Self (si-mesmo). Por definição, o ego está subordinado ao Self e mantém com ele uma relação de parte para o todo. Dentro do campo da consciência, como dissemos, ele tem livre-arbítrio. Com isso não estou querendo dizer nada de filosófico, apenas me refiro ao bem conhecido fato psicológico de se ter "liberdade de escolha" - ou melhor, o sentimento subjetivo de liberdade. Mas, da mesma forma como nosso livre-arbítrio choca-se com as necessidades que vêm do mundo externo, também no mundo interior subjetivo essa função encontra seus limites fora do campo da consciência, ao entrar em conflito com os fatos do Self. E, assim como as circunstâncias e eventos externos "acontecem" conosco e limitam nossa liberdade, também o Self atua sobre o ego como uma ocorrência objetiva diante da qual o livre-arbítrio pode fazer muito pouco. Na realidade, é bem sabido que o ego não só nada pode fazer contra o Self, como é às vezes realmente assimilado por componentes inconscientes da personalidade em seu processo de desenvolvimento, sendo por eles profundamente alterado.

Diante da natureza dessa função, é impossível oferecer uma descrição geral do ego, exceto em termos formais. Qualquer outro modo de observação teria que admitir a individualidade que aliás se constitui em uma de suas principais características. Embora os numerosos elementos que compõem este complexo fator sejam em si os mesmos em toda parte, são infinitamente variados em sua clareza, tonalidade emocional e abrangência. O resultado de sua combinação - o ego - é, portanto, e até onde é possível julgar, individual e único, conservando até certo ponto sua identidade. Sua estabilidade é relativa porque às vezes podem se dar mudanças extensas na personalidade. Essas alterações não são necessariamente sempre patológicas, podem ser decorrentes do próprio processo de desenvolvimento e, nessa medida, pertencer à variação normal.

Sendo o ponto de referência do campo da consciência, o ego é o sujeito de todas as bem-sucedidas tentativas de adaptação passíveis de serem alcançadas pela vontade. Portanto, o ego desempenha uma parte significativa dentro da economia psíquica. É tão importante a sua posição nesse sentido que há bons motivos para se alimentar a falsa noção de que o ego é o centro da personalidade e que o campo da consciência é a psique em si. Afora as alusões encontradas em Leibniz, Kant, Schelling e Schopenhauer, e os esboços filosóficos de Carus e von Hartmann, é somente a partir do final do século XIX que a moderna psicologia com seu método indutivo descobriu os fundamentos da consciência e comprovou empiricamente a existência de uma psique fora do campo consciente. Com essa descoberta, a posição do ego até então absoluta tornou-se relativa, o que quer dizer que, embora conserve seu atributo de centro do campo da consciência, é discutível se funciona ou não como centro da personalidade. O ego é parte da personalidade, não a personalidade inteira. Como já disse, é simplesmente impossível estimar se sua parcela de participação é grande ou pequena, e até onde é livre ou depende das qualidades da psique "extraconsciente". Podemos dizer apenas que sua liberdade é limitada e sua dependência comprovada de maneira muitas vezes decisiva.


Texto de Carl Gustav Jung retirado do livro Espelhos do Self - As imagens arquetípicas que moldam a sua vida, vários autores, organização de Christine Downing, Editora Cultrix, São Paulo, 1998.

O texto integral desse ensaio encontra-se no livro Aion: Estudos sobre o simbolismo do si-mesmo, C.G. Jung, Editora Vozes, RJ, 1982, Obras Completas.

03 novembro 2025

Ser Homem

"Quando eu era pequeno - engraçado - eu me sentia mais próximo da minha mãe que do meu pai, ela era mais afetuosa, mas eu sabia que era a opinião do meu pai sobre mim que contava, era a sua aprovação que eu realmente queria. Por quê? Não sei. Mas eu ainda sou assim, num certo sentido: amo muito minha esposa, nós somos felizes juntos, mas para me sentir realmente feliz eu preciso, acima de tudo, fazer parte do mundo dos homens e ser reconhecido pelos outros homens como um homem bem-sucedido."

Num sentido concreto, o que "conta" para os homens numa sociedade patriarcal são as relações entre eles próprios - muito mais do que as relações entre homens e mulheres. Os homens procuram nos outros aprovação, aceitação, legitimação e respeito. Os homens veem os outros homens como árbitros do que é real, como guardiães da sabedoria e detentores e controladores do poder.

Mas é possível para os homens sentirem-se próximos de outros homens na nossa sociedade? Compartilhar sentimentos? Como é que eles são educados em nossa sociedade? O que significa ser um homem? O que é que eles aprendem de seus pais a respeito do que significa ser homem? E eles se sentem próximos de seus pais na infância? Como se sentem a respeito de suas amizades com outros homens? Como é que as relações com outros homens se comparam com as relações com mulheres? Que padrões de comportamento e aprovação os homens estabelecem uns para os outros? Como foi que o papel tradicional afetou a capacidade dos homens de se sentirem próximos uns dos outros?

Paradoxalmente, embora os homens se vejam uns aos outros como "aquele que é importante", a maioria tem medo de se aproximar demais. "Sentimentos" por outros homens devem ser expressos apenas de forma casual, e não devem ultrapassar a admiração e o respeito. Assim, as relações entre homens costumam se basear numa aceitação mútua de papéis e posições, numa integração no grupo, ao invés de numa discussão pessoal e íntima sobre suas vidas e sentimentos. Como disse um homem, "nós somos mais colegas do que amigos". Nossa cultura glorifica e ao mesmo tempo limita severamente as relações entre homens, mesmo aquelas entre pais e filhos. Ainda assim, alguns homens afirmaram ter um sentimento profundo de afinidade e companheirismo para com outros homens.

Como são as amizades íntimas entre os homens? Como se sentem os homens sobre isso? O que elas significam dentro de suas vidas? Como os homens gostam de passar o tempo juntos? O que é que eles veem de mais importante nos outros homens? Como se relacionavam quando meninos - incluindo as relações físicas? Como se sentem ao demonstrar seus sentimentos ou afeição para com outros homens?


Trecho inicial do livro O Relatório Hite sobre a sexualidade masculina, Shere Hite, Difel - Difusão Editorial S.A., São Paulo, 1981/1982.

12 outubro 2025

Escrevendo

Não me lembro mais onde foi o começo, foi por assim dizer escrito todo ao mesmo tempo. Tudo estava ali, ou devia estar, como no espaço-temporal de um piano aberto, nas teclas simultâneas do piano. Escrevi procurando com muita atenção o que se estava organizando em mim e que só depois da quinta paciente cópia é que passei a perceber. Meu receio era de que, por impaciência com a lentidão que tenho em compreender, eu estivesse apressando antes da hora um sentido. Tinha a impressão de que, mais tempo eu me desse, e a história diria sem convulsão o que ela precisava dizer. Cada vez mais acho tudo uma questão de paciência, de amor criando paciência, de paciência criando amor. - Ele se levantou todo ao mesmo tempo, emergindo mais aqui do que ali. Eu interrompia uma frase no capítulo 10, digamos, para escrever o que era o capítulo 2, por sua vez interrompido durante meses porque escrevia o capítulo 18. Esta paciência eu tive, e com ela aprendia: a de suportar, sem nenhuma promessa, o grande incômodo da desordem. Mas também é verdade que a ordem constrange. - Como sempre, a dificuldade maior era a da espera. (Estou me sentindo mal, diria a mulher para o médico. É que a senhora vai ter um filho. E eu que pensava que estava morrendo, responderia a mulher. A alma deformada, crescendo, se avolumando, sem nem ao menos se saber que aquilo é espera. Às vezes, ao que nasce morto, sabe-se que se esperava.) - Além da espera difícil, a paciência de recompor paulatinamente a visão que foi instantânea. E como se isso não bastasse, infelizmente não sei "redigir", não consigo "relatar" uma ideia, não sei "vestir uma ideia com palavras". O que vem à tona já vem com ou através de palavras, ou não existe. - Ao escrevê-lo, de novo a certeza só aparentemente paradoxal de que o que atrapalha ao escrever é ter de usar palavras. É incômodo. Se eu pudesse escrever por intermédio de desenhar na madeira ou de alisar uma cabeça de menino ou de passear pelo campo, jamais teria entrado pelo caminho da palavra. Faria o que tanta gente que não escreve faz, e exatamente com a mesma alegria e o mesmo tormento de quem escreve, e com as mesmas profundas decepções inconsoláveis: não usaria palavras. O que pode vir a ser a minha solução. Se for, bem-vinda.


Crônica de Clarice Lispector retirada do livro Para Não Esquecer, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 2019.

11 outubro 2025

Demonstrações do Céu (92)

 "Disseram-lhe, pois: que sinal fazes tu para que o vejamos, e creiamos em ti? - (JOÃO, 6:30.)


Em todos os tempos, quando alguém na Terra se refere às coisas do Céu, verdadeira multidão de indagadores se adianta pedindo demonstrações objetivas das verdades anunciadas.

Assim é que os médiuns modernos são constantemente assediados pelas exigências de quantos se colocam à procura da vida espiritual.

Esse [e vidente e deve dar provas daquilo que identifica.

Aquele escreve em condições supranormais e é constrangido a fornecer testemunho das fontes de sua inspiração.

Aquele outro materializa os desencarnados e, por isso, é convocado ao teste público.

Todavia, muita gente se esquece de que todas as criaturas do Senhor exteriorizam os sinais que lhes dizem respeito.

O mineral é reconhecido pela utilidade.

A árvore é selecionada pelos frutos.

O firmamento espalha mensagens de luz.

A água dá notícias do seu trabalho incessante.

O ar esparge informações, sem palavras, do seu poder na manutenção da vida.

E entre os homens prevalecem os mesmos imperativos.

Cada irmão de luta é examinado pelas suas características.

O tolo dá-se a conhecer pelas puerilidades.

O entendido revela mostras de prudência.

O melhor demonstra as virtudes que lhe são peculiares.

Desse modo, o aprendiz do Evangelho, ao solicitar revelações do Céu para a jornada da Terra, não deve olvidar as necessidades de revelar-se firmemente disposto a caminhar para o Céu.

Houve dia em que a turba vulgar dirigiu-se ao próprio Salvador que a beneficiava, perguntando: - "que sinal fazes tu para que o vejamos, e creiamos em ti?"

Imagina, pois, que se ao Senhor da Vida foi dirigida semelhante interrogativa, que indagação não se fará do Alto a nós mesmos, toda vez que rogarmos sinais do Céu, a fim de atendermos ao nosso simples dever?


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

Donas do nosso lar

Empregadas domésticas são figuras folclóricas em qualquer lar. Imagina numa casa de bibas. Normalmente conservadoras, elas chegam desconfiadas. "Dois homens e uma cama! Há algo de esquisito nessa casa!" Para logo depois virarem grandes aliadas no espetáculo de vaudeville que, muitas vezes, se transforma o dia-a-dia de dois gays vivendo sob o mesmo teto.

O primeiro contato com essas rainhas dos nossos lares é o mais difícil. Como dizer para aquela senhora, com saia até o joelho, coque no cabelo, a maior pinta de evangélica radical, que ali moram você e seu namorado? Mais fácil contar pra mãe, né? Ela, ao menos, a gente conhece. Mas não adianta esconder, porque um dia os dois acabam pegos juntos no chuveiro. E aí a empregada vai embora revoltada e fazendo fofoca com o porteiro.

Só não passa por essa dificuldade quem faz a linha Act up e diz logo de cara: "Antônia, aqui também mora o Pedro e nós somos bichas. Você entendeu?" Assim mesmo, com esse vocabulário, porque se sofisticar com somos gays, homossexuais, transviados, pederastas... Ela vai perguntar em seguida: "São o quê, patrão?" Então, você terá que explicar de qualquer maneira: "Bichas, Antônia! Nós somos bichas. Entendeu agora?"

A alternativa pra não enfrentar a conversa é ter a sorte de contratar uma empregada enrustida, como a Dulce. Ela trabalha para duas bibas empresários faz 17 anos. Eles são muito gays e completamente assumidos. Mas não há santo que faça Dulce reconhecer isso. Quando tem festa no apartamento da dupla, a empregada enrustida vira atração, pobrezinha:

- Dulce, preciso lhe contar. Marcelo e Sérgio estão juntos todos esses anos. Casados, feito homem e mulher, fazem sexo e tudo. Só você ainda não sabe.

- Não levanta esse falso, seu Henrique.

- Verdade, você não vê? Eles dormem até na mesma cama.

- Imagina, seu Marcelo e seu Sérgio, que não podem ver mulher de saia.

Inexplicavelmente, ela duvida. E ainda testemunha contra a calúnia, mesmo sendo a única mulher a dormir naquela casa.

Outro estilo clássico de empregada de gays é a de fachada. Ela dá a maior força, mas não aprova que os patrões deem muita pinta. Acha necessário disfarçar e sempre dá um jeito de falar de noitadas com mulheres com as visitas, que naturalmente pensam que ela é louca. A Francisca, por exemplo, chega ao requinte de mentir ao telefone, sempre que pega uma ligação dos pais do seu patrão biba. "Deixa eu vê se ele já saiu do quarto. Você conhece o danado do seu filho. Chegou com uma mulher e tá trancado na maior safadeza."

Pouco importa pra elas que você não esconda sua homossexualidade. Generosas como mães zelosas, querem nos proteger a todo custo. Mas, às vezes, atrapalham. Vera Lúcia, por exemplo, sempre deixa de saia justa os paqueras de uma biba dom Juan. Bem-sucedido com homens, na cama dele não faltam belos jovens. Mas Vera Lúcia, muito simpática, num esforço de memória, sempre chama o rapaz pelo nome do visitante de outra noite qualquer. "Olha, seu Eduardo, fiz vitamina de abacate como o senhor gosta." A biba que já alertou mil vezes - "Vera Lúcia quando você vir homem aqui não abra a boca, sua anta!" - quase morre de vergonha, ou de medo de ser tomado por promíscuo, e fala desolado para a lesada: "Fofa, esse é o Marcos." Quem, no entanto, consegue manter empregada despachada de boca calada? "Gente, nem reconheci. E o seu Marcos gosta de quê mesmo no café?"

Para os enrustidos, ter empregada aliada é gênero de primeira necessidade. Um conhecido, filho de família rica e tradicional do Rio Grande do Sul, tem uma ótima para os seus propósitos. Esperta passista do Salgueiro, Cleonice é treinada para sumir com tudo gay do apartamento em 23 minutos. Basta um parente qualquer ligar, mesmo do aeroporto, já no Rio de Janeiro, dizendo que vai pra lá e ela dispara feito um raio. Em tempo cronometrado, escamoteia porta-retratos, livros, revistas, bilhetes, deixa calcinha lavada esquecida no box, até o quadro do Vitor Arruda desaparece da parede. Cleonice é tão pós-graduada nas paranoias do patrão que, em época de visita, troca invariavelmente os nomes das bibas que ligam pra ele. Nem a gente escapou dessa.

- Seu Patrick, dona Nelsa da Revista Playboy lá no telefone.

Foi indisfarçável o espanto dos parentes diante de nome tão improvável. Restou à biba esforçada um sorriso amarelo e a saída de emergência.

- Família excêntrica, a da gatinha.


Editorial de Nelson Feitosa para a hoje extinta revista Sui Generis, ano 3, número 24, SG Press Editora, Rio de Janeiro, 1997.