O corpo humano nunca esteve tão "na moda" como hoje. Em nenhum momento da história, as formas, a aparência, a textura ou seu cheiro foram tão discutidos por leigos e especialistas. O mundo pós-moderno criou um tipo de corpo e todos os demais, para serem aceitos, devem se encaixar no modelo. Magro, diga-se de passagem. Não há espaço para os corpos que ocupam muito espaço. Os distintivos de beleza se globalizaram e quem não os tem busca a cirurgia plástica, atualmente bem mais acessível financeiramente. Alega-se que a mídia construiu este padrão de beleza e, a partir daí, todos se sentiram na obrigação de aderir ou não, para não ficar de fora do chamado grupo socialmente aceito. Entretanto, há uma questão que não quer se calar. A maioria não se encaixa no "modelo". Logo, trata-se de algo feito ou pensado para uma minoria, enquanto o restante ou luta desesperadamente para atingir o que se espera dele ou simplesmente ignora os padrões e segue a vida.
A história já nos mostrou, por variados caminhos, que quase tudo nunca foi como é agora, e a relação de uma sociedade com seu próprio corpo também reflete as mudanças complexas vivenciadas ao longo de variados processos históricos. Este é um dos objetivos desta obra: apresentar essas variações e como a sociedade lidou com elas ao longo do tempo.
Os textos aqui desenvolvidos enfocam o corpo humano de variadas óticas, abordagens e concepções teóricas. Todos tiveram como preocupação inicial pensar o corpo de uma perspectiva histórica, inserindo-o em um momento específico da sociedade brasileira. A partir daí, cada autor procurou, usando informações provenientes de fontes diferentes - algumas inclusive, sobre sociedades não brasileiras - entender o processo de construção do corpo do(a) brasileiro(a). Cronologicamente, o livro começa no período colonial, apresentando, no Capítulo 1, os corpos dos primeiros habitantes do Brasil, os índios, e como o projeto português tentou mudá-los, transformando-os em súditos cristãos do rei de Portugal. O Capítulo 2 analisa de que modo esse projeto colonial cristão conseguiu catequizar determinados grupos negros, usando para isso não só uma retórica específica, mas principalmente de imagens de santos também negros, objetivando a criação não só de corpos dóceis e cristãos, mas, acima de tudo, bons cativos. O Capítulo 3 trabalha com a ideia dos corpos mestiços e do deslocamento de gentes e de comportamentos, gerando um trânsito de imagens bastante complexo. O Capítulo 4 inaugura uma seção transitória entre o período colonial e o imperial. Os temas desenvolvidos nesse bloco estão ligados à sexualidade e à esterilidade e às soluções encontradas pela própria sociedade para resolver ou amenizar esses problemas. As bebidas e suas ações sobre os corpos também foram analisadas, bem como o público que consumia cada uma delas, no Capítulo 5.
O que fazer com um corpo morto? Esta foi a preocupação do Capítulo 6, que buscou apresentar como a sociedade lidou com os mortos e de que modo foram tratados tanto pelas religiões como pelas autoridades, e como esse tratamento mudou ao longo do período analisado. Mudanças também não faltaram no capítulo seguinte, o Capítulo 7, que analisa as roupas e a moda no Brasil colonial e imperial. Ainda que pensada apenas para as camadas mais altas da sociedade, os mais pobres e até mesmo os escravos, acabavam encontrando um jeito de copiar ou adaptar o que havia para suas próprias realidades. A cólera e a tuberculose eram duas das doenças que mais afetavam a população e os corpos acometidos por essas doenças precisavam ser tratados, isolados e controlados para que o restante da sociedade se mantivesse sã. Este é o tema do Capítulo 8, e o 9 apresenta corpos que, ao não seguir o controle social e religioso, optaram pelo suicídio, demonstrando que os preceitos de um bom tratamento ao corpo nem sempre funcionavam. Por fim, fechando a Parte I, há o Capítulo 10 sobre as atitudes de higiene que as autoridades insistiam para que a população tivesse sobre seus corpos, sendo o banho diário a principal delas.
A Parte II engloba análises sobre o período republicano. O bloco se inicia, no Capítulo 11, com uma apresentação sobre periódicos que circulavam na cidade do Rio de Janeiro no início do século XIX veiculando imagens de mulheres nuas e textos picantes e a relação que a sociedade carioca mantinha com eles. Da pornografia para o controle estatal sobre o corpo. Este é o tema do capítulo seguinte (Capítulo 12): como o governo Vargas construiu uma imagem de corpo ideal usando as crianças e os jovens como modelos de comportamentos esperados por bons cidadãos. Nesse mesmo período, há também a análise sobre os corpos dos trabalhadores das indústrias de São Paulo e a transformação destes em "corpos-máquinas" (tema do Capítulo 13). O último texto dessa parte, o Capítulo 14, identifica como os corpos de crianças portadoras de deficiência foram encaradas como "fardos sociais" e sistematicamente excluídos da sociedade.
A Parte III, a última do livro, é claramente voltada para questões atuais e tem uma preocupação quase sociológica a respeito dos usos que fazemos de nossos corpos. A temática do Capítulo 15, o primeiro desta parte, envolve a questão da velhice real e a esperada e todas as dificuldades em lidar com elas e suas transformações. Na sequência, o Capítulo 16 trabalha com os problemas causados pelos transtornos alimentares, a obesidade e a relação entre as carências afetivas e o consumo de açúcares e gorduras e, posteriormente, o sentimento de culpa, a bulimia e a anorexia. O texto seguinte, no Capítulo 17, aborda a relação das mulheres com os padrões de beleza e feiura e as práticas cirúrgicas levadas a cabo para atingir os modelos esperados. Por fim, finalizando a obra há o Capítulo 18 que trata sobre a eterna busca do corpo "sarado" por meio da prática de exercícios físicos, demonstrando que os valores, tanto de estética quanto da prática esportiva, sofreram mudanças significativas ao longo da história.
Esta é, portanto, uma obra múltipla, que busca compreender o corpo em suas variadas manifestações e o entende como um ser-objeto que sofre e, ao mesmo tempo, exerce transformações que não são livres das sujeições históricas de seu tempo.
Apresentação do livro História do Corpo no Brasil, vários autores - organização de Mary Del Priore e Márcia Amantino, Editora Unesp, São Paulo, 2011.