quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Ewá

Ewá é considerada uma divindade feminina das águas, o orixá do Rio Yewá, na Nigéria. Sua origem ainda hoje é polêmica.


    Ewá é associada a um orixá feminino oriundo de Daomé, conhecido como Dan. A força desse orixá se concentrava numa cobra que engolia sua própria cauda, dando-lhe um sentido de perpetuidade. Talvez por isso, muitas vezes, ela também seja considerada a metade feminina de Oxumarê.

    Assim como Iemanjá e Oxum, Ewá é uma entidade feminina das águas. É reverenciada como a dona do mundo e dos horizontes e associada à fecundidade. Segundo algumas lendas, era filha de Nanã e irmã de Obaluaê, Ossain e irmã gêmea de Oxumarê. Conta-se que sua grande beleza ganhou fama em diversos reinos e atraiu um grande número de pretendentes ao reino de Nanã. Eles lutavam entre si para conquistar o coração de Ewá que,  constrangida com a situação, foi obrigada a escolher um noivo. Aflita e indecisa diante de tanta confusão, ela acabou perdendo sua forma, transformando-se numa poça d'água que se evaporou com o sol. Em pouco tempo, o vapor desenhou no céu uma nuvem branca na forma de um coração.

    Outra lenda conta que Ewá era uma linda virgem que se entregou a Xangô. Iansã, mulher de Xangô, enciumada e irada a perseguiu. Para fugir da deusa dos ventos e tempestades, ela se escondeu nas matas com Oxóssi, com quem aprendeu a ser uma guerreira e caçadora.

    Devido à complexidade de seu ritual, Ewá é cultuada apenas em três casas na Bahia. Pouco se sabe sobre seus trajes, suas insígnias e rituais. Ela representa o orixá da alegria, da beleza, dos cantos e das satisfações que a vida pode nos dar. É responsável pela mudança das águas, do estado sólido ao gasoso, gerando as nuvens e chuvas. Está ligada às mutações dos vegetais e animais, às mudanças e transformações, rápidas ou lentas, orgânicas ou inorgânicas. Ela rege tudo o que nasce, representando a própria beleza contida naquilo que tem vida.

    Ewá é considerada protetora das virgens e de tudo o que é inexplorado. Ela tem o poder da vidência, atributo que lhe foi concedido por Orunmilá. Como "Senhora do Céu", ela está no lugar onde o homem não pode alcançá-la. O seu dia da semana é segunda-feira e seus adeptos usam cordões verde-mar e rosa.


Arquétipo


    O arquétipo de Ewá é de pessoas alegres, que gostam de dançar, cantar e aproveitar ao máximo tudo o que a vida pode lhes proporcionar. Generosas e bondosas, adoram novidades e são muito criativas. No entanto, são um pouco volúveis e facilmente mudam de opinião e pensamento, principalmente diante de alguma novidade. Detestam a rotina e, por este motivo, estão sempre modificando coisas e situações em sua vida. Geralmente são pessoas dotadas de muita beleza, interna e externa.


Retirado da revista Sexto Sentido Especial - Orixás; Mythos Editora, São Paulo, 2010.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

O Leão de Mali

    Esta história me foi contada por Ismail Mamadu, o griô. Ela traz, de forma simbólica, o mito da fundação do reino de Mali, hoje República do Mali, na África Ocidental. País de onde veio grande parte dos antepassados dos brasileiros de hoje - os mandingas. O mito também mostra o sincretismo entre a religião islâmica (os djins são como duendes para o muçulmano) e as crenças tribais (os babalaôs, que eram os guardiões das muralhas e hoje são os adivinhos). Esse mito, como tantos outros de outros povos, trata do conflito entre o homem e seus limites naturais. Concretamente, ele conta como uma tribo, entre tantas outras daquela região, ergueu-se e se sobrepôs às outras, fundando um reino. Um mito semelhante à leda do Rei Arthur, só que faz parte da herança cultural africana. Aconteceu centenas de anos atrás.

    Um búfalo imenso e horroroso assolava as terras de Do, no país dos mandingas. Não se podia ir à fonte sozinho, não se podia dormir sem o fogo aceso e sem sentinelas. O monstro não escolhia idade. Entre uma colheita e outra, matou cento e sete caçadores e feriu setenta e sete! Apareciam estraçalhados no meio da savana, o embornal das flechas vazio.

    Até que vieram de muito longe dois irmãos caçadores, Oulamba e Oulani. Tinham o cabelo fofo como a flor do algodão e seu andar era rápido como o dos filhos da tribo Traoré. Iam atravessar um rio para chegar às terras de Do, quando viram uma velha mendiga.

    - Em nome de Alá, o Todo-Poderoso, me deem um pouco de comida - pediu.

    Eles não tiveram dúvida. Abriram a mochila e dividiram o que tinham. Ela comeu em silêncio. Limpou as mãos e olhou fixamente para eles.

    - Eu sei que vocês vieram caçar o búfalo assassino. Como foram bons comigo, tenho uma coisa a lhes dizer: eu sou o búfalo que vocês estão procurando! Matem-me e vão receber o prêmio prometido pelo rei. Só peço uma coisa.

    - O que é? - perguntaram os dois irmãos.

    - O prêmio é a moça mais linda de Do. Peço que escolham a mais feia de todas.

    Mataram a mulher-búfalo. Ao último suspiro, ela se transformara no horrendo animal. O rei de Do mandou juntar no mercado todas as jovens que havia, algumas de pele macia como o veludo da noite, outras, medrosas como a lua crescente. Iam esquecendo o prometido, quando o irmão mais novo viu uma corcundinha com caroços por todo o corpo. Era tão feia, mas tão feia, que cobria o rosto com um véu de pano grosso.

    - É essa! - disseram ao mesmo tempo.

    O povo de Do teve uma pena enorme dos dois heróis. Eles pegaram Sogolon (assim se chamava ela) pela mão e voltaram para a tribo dos Traoré. Mas qual dos dois se casaria com Sogolon? O babalaô jogou búzios e não encontrou resposta. Resolveram então presenteá-la ao rei de outra tribo mandinga, Naré Maghan. Encontraram-no debaixo de um baobá, à entrada da cidade. Ali sentava toda tarde com seus ministros para atender o povo. Naré Maghan aceitou o estranho presente e mandou marcar as bodas. Nunca se saberá por quê.

    Não demorou a se arrepender. Sogolon não aceitava dormir na mesma cama. Uma noite ele forçou e o corpo dela se encheu de pelos, de cima a baixo. Arranhado, ele se desesperou:

    - Essa mulher não é humana.

    Até que uma noite um djim - anjo da guarda dos muçulmanos - o visitou em sonho. Naré Maghan acordou Sogolon.

    - Meu djim me explicou tudo. Você entrou na minha vida para ser sacrificada aos deuses. Levanta que vou buscar minha faca.

    Sogolon desmaiou de medo. Mais tarde, quando voltou a sí, estava grávida.

    O filho de Sogolon e Naré Maghan se chamou Sundiata Mari Djata. Babalaôs de todo país foram chamados para dizer que futuro teria. Uns não viram nada, outros preferiram calar.

    Sundiata não era feio como a mãe. Mas tinha um problema: com 3 anos não aprendera a andar. Engatinhava pelo palácio como um cãozinho. Tinha também uma fome enorme e os criados começaram a chamá-lo de príncipe-leão. A mãe parecia não se importar com a desgraça mas o rei não escondia as lágrimas:

    - Quem vai me suceder? Nunca houve no mundo um rei de quatro!

    Sogolon engravidou outra vez. Nasceu uma menina, Kolonkan, feia como a mãe. O pobre Naré Maghan perdeu a paciência. Construiu uma cabana no fundo do quintal e mandou para lá a esposa e os dois filhos.

    - Perdão. Não sei onde estava com a cabeça quando aceitei Sogolon em casamento. Não posso deixar o trono para o aleijadinho. E duvido que haja na Terra quem queira casar com minha filha.

    Então, Naré Maghan casou-se com uma belíssima princesa e teve com ela um filho. Era normal e de pernas fortes. Andou ao completar 1 ano de idade. Naré Maghan se sentia orgulhoso e podia morrer descansado.

    Em Niani havia muitas forjas, pequenas e grandes. A maior era a forja real, onde se faziam as armas do reino. O mestre guardava uma vara comprida e muito antiga de ferro. Dizia a tradição que seria rei dos mandingas quem dobrasse, em sonho, o mestre das forjas:

    - Leve a vara para o aleijadinho.

    De manhã, ele bateu na cabana de Sogolon. Sundiata, como sempre, se arrastava pelos cantos. Tinha então 7 anos e nunca ficara de pé. Ele se apoiou nela, rangeram as juntas e as cartilagens. Conseguiu ficar de pé. Com o peso, a vara dobrou-se e virou um arco. Com ele, Sundiata fez a guerra contra os parentes invejosos e os inimigos dos mandingas. Fundou um país, que até hoje se chama Mali. Ele é o Leão de Mali.


Texto de Joel Rufino dos Santos retirado da revista Nova Escola, Abril de 1993. Fundação Victor Civita, Editora Abril.

Oxalá

Oxalá, "O Grande Orixá ou "Rei de Pano Branco" ocupa uma posição incontestável e única entre os deuses iorubás. Ele é a divindade criadora incumbida pelo Ser Supremo de criar a terra sólida, povoá-la e modelar a forma física do homem.


    Oxalá possui outros nomes descritivos de sua natureza e caráter: Obatalá, contração de Oba-ti-o-nla, "o rei que é grande" ou Oba-ti-ala, "o rei em vestes brancas".

    Segundo os mitos, Oxalá foi o primeiro a ser criado por Olodumaré, o deus supremo que o encarregou de criar o mundo com o poder de sugerir e o de realizar. Ele traz consigo a memória de outros tempos, as soluções encontradas no passado para situações semelhantes, merecendo, portanto, o respeito de todos numa sociedade que cultuava seus ancestrais.

    Oxalá representa o conhecimento empírico colocado acima do conhecimento especializado que cada orixá pode apresentar (Ossain, a liturgia; Oxóssi, a caça; Ogum, a metalurgia; Oxum, a maternidade; Iemanjá, a educação, etc.).

    Associado à criação do mundo e da espécie humana, ele se apresenta de duas formas: jovem, como Oxaguian e velho como Oxalufan. Oxaguian é o único orixá funfun que guerreia usando uma espada e um escudo que recebeu de Ogum. Ele sempre evitava ao máximo o confronto, tentando resolver os problemas de outra maneira. Entretanto, se os argumentos não davam resultado, ele entrava na guerra lutando até o final, custasse o que custasse. A guerra, entretanto, não deve ser interpretada ao pé da letra, mas num sentido mais abrangente, como a luta pela sobrevivência.

    Segundo a tradição, Oxalufan com o seu cajado (opaxoro) separou o céu e a Terra, que no início dos tempos se encontravam no mesmo nível de existência. O pássaro que se apresenta pousado em seu cajado é um mensageiro que faz a ligação entre os dois mundos. Muitas vezes, esse orixá é apresentado como um velho, todo curvado e retorcido precisando ser amparado por não poder andar.

    Na Bahia, particularmente, Oxalá é considerado o maior dos orixás e o mais venerado. Seus adeptos usam colares de contas brancas e vestem-se, geralmente, de branco. Sexta-feira é o dia da semana consagrado a ele. O hábito do uso de roupas brancas nesse dia se estende a todos aqueles que frequentam o Candomblé, mesmo aos consagrados a outros orixás.

    Oxalá é sincretizado na Bahia com o Senhor do Bonfim, por ter um grande prestígio e inspirar fervorosa devoção aos habitantes de todas as categorias sociais.


Arquétipo


    O arquétipo de Oxalá é o de pessoas tranquilas, calmas, respeitáveis e dignas de confiança. Sabem argumentar muito bem e conseguem convencer as pessoas devido às suas boas intenções. Embora sejam amáveis e prestativos, não são submissos. Adoram a organização e a limpeza e são perfeccionistas em todas as coisas que fazem. Por usarem o raciocínio na solução de problemas, dificilmente têm explosões emocionais. Geralmente são lentos em suas decisões porque pensam muito antes de agir. Centralizam as coisas em torno de si, o que pode muitas vezes sobrecarregá-los.


Retirado da revista Sexto Sentido Especial: Orixás; Mythos Editora, São Paulo, 2010.

domingo, 6 de fevereiro de 2022

A Sagrada Família

    Essa história aconteceu há 10 mil anos. Naquele tempo, o deserto do Saara não era como hoje - de uma banda a outra, um mundo de areia, pedras e escorpiões. Nem deserto era. A paisagem era verde. Chovia normalmente e muitos rios corriam por lá.

    Um deus que tinha corpo de homem saiu do Saara para a beira do rio Nilo, um rio comprido que nasce no centro da África e vai desembocar no mar Mediterrâneo.

    O deus se chamava Osíris e tinha a pele escura como a maioria dos africanos. Osíris queria ensinar aos moradores do Nilo coisas úteis e decentes: não comer serpentes, cozinhar o pão, fazer tijolos, cobrir o sexo... Era um deus civilizador. Todo povo tem um.

    Junto com Osíris veio Toth, um escriba. A profissão dele era escrever. Toth tinha de anotar a sentença dos que morriam. Osíris tinha uma balança. Num prato botava o coração do morto, no outro, uma pena que simbolizava a Verdade. Se o coração e a pena pesassem igual, o sujeito tinha sido bom. Se o coração fosse mais pesado, tinha sido mau. Toth anotava. Os maus eram devorados por um monstro horrendo. Os bons iam se divertir num campo verde sem fim.

    Sendo esse ofício de Toth, se podia pensar:

    - Era uma criatura fúnebre.

    Engano. Como sabia escrever, inventou as ciências e as artes. Foi também quem deu nome às coisas. Por decisão dele, pedra ficou sendo pedra, raiva ficou sendo raiva, Lua ficou sendo Lua e assim por diante.

    Toth era sozinho, mas Osíris tinha mulher. Se chamava Ísis.

    Moça inteligente e decidida, Ísis ensinou as egípcias a cuidar dos filhos, a limpar móveis e tratar dos jardins. Para protegê-las inventou o casamento. Os rapazes não podiam se aproveitar delas e ir embora.

    Vai a bela Ísis tinha um irmão ambiciosíssimo: Seth. Osíris reinava no Egito do Norte, Seth, no Egito do Sul. Seth inventava picuinhas, a irmã se preocupava, mas Osíris preferia ignorar.

    - Deixa estar. Inveja não é crime.

    Certa manhã, Osíris achou que os egípcios já sabiam demais. Seus médicos curavam laringite, esquistossomose, doenças da vista... Os cirurgiões abriam maxilares para drenar o pus, remendavam cabeças e pernas quebradas... Os dentistas faziam obturações com cimento e pontes de ouro... Cálculos, como o do volume da pirâmide truncada, os matemáticos faziam com os pés nas costas. Decidiu civilizar outras terras. Deu o cetro para Ísis e partiu.

    - Quando voltas? - ela perguntou de olhos molhados.

    - Talvez um dia. Talvez nunca. Centenas de anos se passaram sem nenhum deles envelhecer. É assim no tempo dos mitos.

    Uma tarde, Ísis passeava na beira do Nilo quando passou por sobre sua cabeça uma nuvem de cambaxirras. Era um sinal de que seu marido estava de volta. Ela perfumou o palácio e sentou com as mucamas para esperar.

    Seth, que tinha espiões por toda parte, ficou sabendo. Armou uma emboscada na saída do deserto e capturou Osíris. Fechou o corpo num cofre de ferro que mandava vir da Assíria e jogou no Nilo.

    As lágrimas que derramou Ísis! Aconselhada pelo escriba, começou a procurar o estranho ataúde rio acima. Nada. Teve um sonho: Osíris estava debaixo de uma tamargueira, perto da vila de Biblos, na Fenícia. Era longe, mas, desde menina, não se sabe porquê, acreditava em sonhos que tivessem árvores.

    Ísis passara a infância na Núbia, centro da África. Segundo a tradição, após o dilúvio, Noé teve um filho negro de nome Cam. Cam se mudou para a África e teve dois filhos: Misr, que deu origem aos egípcios, e Çaxe, que deu origem aos núbios (núbios ou cuxitas são a mesma coisa). Pois bem: na Núbia, Ísis aprendera como se penteiam as rainhas e como se ressuscitam os mortos. Para se aproximar da tamargueira, sob a qual Osíris estava enterrado, ela se transformou num gavião. Pousou num galho da árvore e, sem ninguém saber como, engravidou.

    Assim, quando Osíris voltou a viver, tinha um filho. Chamava-se Hórus. Era bem escuro e sua testa brilhava como o Sol, mesmo em dias nublados. Quando Seth tomou conhecimento, não perdeu tempo. Ofereceu uma recompensa e localizou Osíris num pântano do delta do Nilo. Lá as águas tinham um cheiro doce insuportável.

    Dessa vez pediu um machado e retalhou o corpo de Osíris em 14 pedaços e os espalhou ao longo do rio. Não contava com a paciência de Ísis: ela procurou incansavelmente e foi juntando uma por uma as partes do marido. Faltou uma: o pênis.

    Néftis, que tinha sido mulher de Seth e conhecia bem sua maldade, explicou:

    - Não adianta procurar. A essa altura os malditos caranguejos do Nilo o comeram.

    Osíris abriu os olhos e viu as emendas de um corpo que fora belo como um feixe de papiros. Tristíssimo, fitou o deserto de onde viera um dia:

    - Pretendo ser o deus do Inferno. Meu tempo no mundo expirou. Obedeçam meu filho Hórus como se fosse a mim.

    Dessa sagrada família - Osíris, Ísis e Hórus - descendem os faraós construtores das pirâmides, como as de Gizé, de Quéops, de Micherinos...


Texto de Joel Rufino dos Santos publicado na revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril; edição de Março de 1993.

Xangô

Xangô é um orixá de origem iorubá. Como personagem histórico, teria sido o terceiro rei de Oyó. Em muitos mitos ele é apontado como filho de Iemanjá e descrito como jakuta, aquele que briga com as pedras.


Xangô é o deus das pedreiras, das terras áridas e das rochas. Ele possui e energia do fogo, que irradia calor e possibilita a existência da vida. A morte e o frio são contrários à sua essência. O metal a que pertence é o cobre. Sua ferramenta principal é o Oxé ou machado duplo, simbolizando a imparcialidade na hora da justiça. Violento e justiceiro, castiga os ladrões e os mentirosos. O seu símbolo é a balança, que representa a justiça.

Narra a lenda que, certa vez, o reino de Xangô, Oyó, foi atacado de forma violenta. Xangô reagiu e lutou durante semanas contra o inimigo. Ao perceber que a guerra se  tornara um caminho sem volta, decidiu se aconselhar com o deus Orunmilá para evitar sua derrota. O adivinho ordenou que ele subisse numa pedreira onde receberia a iluminação necessária para saber o que deveria ser feito. Quando Xangô chegou ao topo da pedreira, foi tomado de grande fúria e começou a destruir as pedras, com o seu machado, com grande violência. Com isso, grandes raios se formaram e se espalharam pelo reino em línguas de fogo, matando muitos inimigos. Os sobreviventes se renderam e pediram clemência a Xangô. O porta-voz do grupo, atirando-se aos seus pés, pediu perdão e explicou que lutavam não por vontade própria, pois eram forçados a fazê-lo e martirizados por um monarca vizinho que odiava Xangô. Segundo a lenda, Xangô reconheceu nos olhos do guerreiro que ele falava com sinceridade e perdoou a todos, aceitando-os como súditos. Desde então ele foi considerado o orixá justiceiro, que perdoa quando defrontado com a verdade, mas que elimina com seus raios os mentirosos.

Tudo o que se refere ao direito, justiça, demandas judiciais e contratos dizem respeito a Xangô. Como amante da justiça, é imparcial em suas ações. Ele sempre usa toda sua autoridade para resolver as mais difíceis questões.

De acordo com os mitos, Xangô era muito atraente e vaidoso e teve diversas esposas, como Oxum, Obá e Iansã.

O seu culto é muito popular no Brasil. Em Recife, seu nome serve mesmo para designar o conjunto de cultos africanos praticados no Estado de Pernambuco. Seus fiéis na Bahia usam colares de contas vermelhas e brancas, como na África. Quarta-feira é o dia da semana consagrado a ele. No sincretismo, é associado a São Jerônimo, devido à presença das formações rochosas, de um livro e do leão (animal de forte associação com o orixá). Ele também é associado a São Judas Tadeu, devido à presença da imagem do livro e machado e a São João Batista devido à semelhança da sua personalidade com a do orixá.


Arquétipo


O arquétipo de Xangô é o de pessoas eloquentes e sociáveis. Possuem um certo grau de autoritarismo, gostam de dar sempre a última palavra, embora sejam bons ouvintes. Muitas vezes são considerados volúveis, esquecem facilmente suas paixões envolvendo-se em novas aventuras afetivas. O tipo físico lembra sempre uma pedra, uma rocha, com uma certa tendência à obesidade, porém com uma firme estrutura óssea. Seu humor é oscilante, mas são incapazes de conscientemente cometer uma injustiça. Agem com imparcialidade e sabem como ninguém administrar seu patrimônio.


Retirado da revista Sexto Sentido Especial: Orixás; Mythos Editora, São Paulo, 2010.

sábado, 5 de fevereiro de 2022

Repouso e Ação

    Utiliza-te do espairecimento para a renovação das forças. Não te distraias, porém, em demasia, a fim de que o anestésico da acomodação não te afaste das responsabilidades assumidas.

    Recorre ao repouso, quando as energias necessitem de refazimento. Não obstante, equilibra as horas de recuperação, evitando tombares na indolência ou na inutilidade.

    Mantém ativa a tua vida de relações sociais. No entanto, preserva os teus compromissos elevados com as Entidades Superiores com as quais te encontras comprometido.

    Programa férias e horas de lazer após as labutas exaustivas. Entretanto, estabelece o programa de manutenção dos serviços espirituais, de modo a não cederes à tentação da indiferença

    O homem tem necessidade de recuperar as forças que aplica até o seu limite. Apesar disso, com facilidade se transfere para a sonolência e o parasitismo no que diz respeito à sua vida espiritual.

    Há quem reserve horas breves para a experiência do Espírito, buscando  desincumbir-se do mister, qual se pagasse um imposto desagradável, esquecendo-se do bem-estar que se haure na comunhão com a Vida Triunfante.

    Assim, seja qual for o pretexto, nunca te afastes da tarefa espiritual que te ilumina e reconforta, auxiliando-te a armazenar os valiosos tesouros da paz e da alegria no imo do coração.

    Se te sentes cansado ou a ponto de desfalecer em razão dos deveres abraçados, busca a fonte generosa da prece e te reabastecerás, renovando o ânimo e reencorajando-te para o prosseguimento da luta.

    O tédio, a indiferença, a ociosidade respondem por inúmeros problemas da mente, da emoção, da vida.

    O trabalho renova, educa, promove, desde que estabelecido em linhas de harmonia e perseverança.

    (...) E o de natureza espiritual restaura, felicitando o indivíduo.

    Mantém-te, desse modo, ativo e pacificado, levando adiante a responsabilidade que assumiste perante o Pai.

    Parar, nunca!


Texto retirado do livro Momentos de Esperança; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 3ª Edição, 2014.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Os porcos e a roça de mandioca

    De um galho da árvore, o garoto gritou: "Lá vou eu" e saltou. No rio, brincando e espirrando água para todos os lados, estavam outros garotos da aldeia Kamaiurá. O dia já amanhecera e o sol aparecia lentamente na linha do horizonte.

    Na aldeia, algumas pessoas ainda dormiam. A menina Kamavu se espreguiçava na rede, entretida com uma pequena fresta na parede da casa, que deixava entrar um feixe de luz amarelado. Sua mãe estava próxima do fogo preparando um bolo de mandioca chamado beiju. "Hoje vamos na roça arrancar algumas mandiocas", disse a mãe para a menina. "Acabe de acordar e venha comer um pedaço de beiju quentinho." Nas casas kamaiurá, que ficam lá no Parque Indígena do Xingu, come-se beiju o tempo todo: puro, com peixe assado ou ensopado ou com pimenta.

    Pouco depois os meninos voltavam do rio e um grupo de mulheres e crianças saía em direção à roça. As mulheres carregavam cestos vazios que voltariam cheios de mandioca. Antes de se embrenhar pela mata, resolveram passar pelo Posto Leonardo, onde há uma pista de pouso pela qual chegam os aviões trazendo funcionários da Funai, visitantes e remédios. No dia anterior tinham escutado o ronco do avião e as crianças, que estavam no Posto, correram para a aldeia contar da chegada de uma visitante. Alguns adultos tinham ido até o Posto e, à noite, toda a aldeia Kamaiurá já sabia que uma linguista chegara no avião e iria morar alguns meses com eles, para aprender a falar e a escrever a língua dos kamaiurá. Estavam curiosos para saber como era a estrangeira.

    Depois de parar um tempo no Posto e conhecer a visitante, o grupo de mulheres seguiu para a roça, comentando sobre os presentes que ela teria trazido. Lá chegando, ouviram os gritos das crianças: "Os porcos-do-mato comeram a nossa mandioca". Os kamaiurá fazem cercas em volta das roças para impedir que bandos de porcos-do-mato entrem e destruam o que está plantado. Mas desta vez os animais tinham derrubado um pedaço de cerca e comido boa parte das plantas e mandioca.

    As mulheres ficaram enfurecidas. Também, não era para menos. Há vários meses elas estavam trabalhando nessa roça. Primeiro os homens tinham vindo, na estação seca, para derrubar as árvores grandes que, ao tombarem, arrastavam as de menor porte. Eles haviam esperado que as madeiras e as folhas secassem e então atearam fogo. Quando as cinzas, os troncos e o solo esfriaram, as mulheres vieram e plantaram pedaços de mandioca na terra. Essa plantação era feita entre troncos e galhos que haviam sobrado da queimada e antes que começasse a época das chuvas.

    Antigamente os kamaiurá utilizavam machados de pedra e instrumentos de osso e madeira no trabalho da roça. Após o contato com os brancos, este objetos foram pouco a pouco sendo substituídos por instrumentos de metal, como o facão, o machado de ferro e a enxada. Isso facilitou o trabalho na roça, que mesmo assim continua a ser árduo e a exigir muito esforço. Era por isso que as mulheres estavam tão zangadas. Queriam voltar para a aldeia e mandar seus maridos caçarem aqueles porcos comilões.

    Trataram de arrancar as mandiocas que haviam sobrado, enchendo seus cestos. Algumas aproveitaram para pegar um pouco de fumo e algodão que elas também cultivavam. Aquela era uma roça recente e as mulheres continuariam plantando ali por mais alguns anos antes de abrirem uma nova. As mais práticas trataram de arrumar a cerca destruída, para que os porcos não invadissem de novo. Na volta à aldeia, passaram outra vez pelo Posto e contaram a todos o que havia ocorrido. O chefe de posto da Funai, a pedido das mulheres, emprestou espingardas para um grupo de homens, que no final da manhã partiu para a mata em busca dos porcos.

    O sol estava forte por volta do meio-dia e o pátio da aldeia Kamaiurá, deserto. Nem mesmo as crianças se aventuravam a sair de suas casas. Mas, à medida que a tarde chegava, o zunzum das conversas foi crescendo. Na casa da menina Kamavu as mulheres acabavam de decidir que iriam fazer moitará com as mulheres de uma outra casa. Queriam quebrar a monotonia da tarde e esquecer as mandiocas que tinham sido comidas pelos porcos.

    Sem muitos preparativos, cada mulher apanhou um ou dois objetos e se dirigiu para a casa escolhida para fazer o moitará. Entraram todas sem cerimônias e foram logo se sentando no chão. As mulheres da casa visitada se juntaram a elas. Uma visitante iniciou o moitará depositando uma cuia no chão. Esta foi pega e examinada por todas as mulheres da casa. Uma delas se interessou e colocou como oferta um pente. O pente foi então examinado pelas mulheres do outro grupo e retirado do chão. Estava concluída a troca. Um outro objeto era posto para avaliação. O entusiasmo das mulheres crescia com o volume de bens colocados no chão e que circulava pelas suas mãos. A troca só se encerrou quando os artigos trazidos pelas visitantes acabou, e elas então retornaram para suas casas. Mas, a bem da verdade, o moitará ainda não tinha terminado. Agora era a vez das mulheres da casa visitada irem à casa das que haviam iniciado o moitará. Lá começou uma nova rodada de trocas. Alguns homens, que não tinham saído para caçar, acompanhavam de longe a algazarra das mulheres. Eles também realizaram moitará, quando um grupo de homens de uma casa decide trocar coisas em outra casa. Já começa a escurecer quando um grupo de homens entrou no pátio da aldeia. Tinham vagado pela mata seguindo as marcas deixadas pelos porcos. O pai de Kamavu estava contente: tinha conseguido abater um porco, que agora seria repartido entre seus parentes.

    À noite, em volta do fogo, enquanto comiam os beijus preparados com as mandiocas que haviam sobrado com pedaços de carne de porco, homens e mulheres daquela aldeia Kamaiurá comentariam sobre o estrago feito pelos porcos na roça, sobre a caçada da tarde, a chegada da linguista e as trocas realizadas durante o moitará. Tudo isso daria muito o que falar.


História de Luis Donisete Grupioni. Retirado da revista Nova Escola, Dezembro de 1992. Fundação Victor Civita; Editora Abril.

Essa história foi baseada no livro Os Índios de Ipavu, de Carmen Junqueira, Editora Ática, São Paulo, 1978.

Nanã-Buruku

Considerada o orixá mais antigo do mundo, Nanã-Buruku tem ligações com o lado feminino dos criadores da Terra.


    De origem daomeana, Nana foi incorporada há séculos pela mitologia iorubá, quando o povo nagô conquistou o povo da região de Daomé, assimilando sua cultura e incorporando alguns orixás dos dominados à sua mitologia.

    Nanã está associada aos mitos e lendas sobre a criação da Terra, sendo precursora de todos os deuses que têm o poder de gerar vida. Por ser um dos primeiros orixás criados por Olodumaré, é caracterizada como uma anciã ou uma avó.

    Segundo a tradição, ela existe desde tempos remotos anteriores à descoberta do ferro e, por isso, em seus rituais não devem ser utilizados objetos cortantes de metal. Nunca deve ser invocada sem um motivo muito forte, pois é um orixá muito poderoso e de tendência devastadora quando provocado.

    Nanã pode ser considerada o lado feminino dos criadores do mundo, pois é conhecida como a "Grande Senhora" das terras molhadas e fecundas, com a qual foram criados todos os seres. Ela reina na lama - que criou a vida na Terra - nos pântanos e nas águas paradas. Ao mesmo tempo em que dá a vida, faz com que as criaturas retornem ao seu elemento de origem para depois renascerem na terra, representando assim o ciclo da vida e da morte.

    O termo Nanã significa raiz, aquela que se encontra no centro da terra. É considerada uma figura controvertida do panteão africano: em alguns momentos é perigosa e vingativa, em outros se sente relegada a um segundo plano, guardando ressentimento pela situação.

    Narra a lenda que, em sua passagem pela Terra, Nanã desprezou seu filho primogênito com Oxalá, Obaluaê, por ter nascido com diversas doenças de pele, abandonando-o na praia. Iemanjá o encontrou quase morrendo, cuidou dele e o criou como filho. Quando Oxalá soube do que Nanã havia feito, condenou-a a ter mais filhos, que nasceram anormais (Ossain, Oxumarê e Ewá), e ordenou que vivesse num pântano sombrio e escuro.

    Nanã é a deusa do reino da morte, sua guardiã, que recebe os mortos os acalenta e aquece, repetindo a vida intrauterina para um posterior nascimento.

    Nanã Buruku é conhecida no Brasil como a mãe de Obaluaê e é sincretizada com Sant'Ana. Seus colares são de cor branca com listras azuis. Para alguns o seu dia da semana é a segunda-feira, como Obaluaê, e para outros, o sábado. Seus adeptos dançam com dignidade, representando uma senhora idosa e respeitável. Seus movimentos lembram um andar lento e penoso, apoiado num bastão. Os búzios também fazem  parte de seus paramentos, ornando seu cajado, o ibiri. Seus preceitos são extremamente complexos e ricos em detalhes.


Arquétipo


    Nanã Buruku é o arquétipo das pessoas que agem com tranquilidade, respeito, gentileza e dignidade. São pessoas lentas e agem sempre com segurança. Gostam de crianças e as educam com muita mansidão, lembrando a tolerância e paciência das avós. Suas reações sempre são equilibradas e a sabedoria de suas decisões as mantém no caminho da justiça. Não têm muito senso de humor e transformam com facilidade pequenos problemas em grandes dramas. Ao mesmo tempo, têm uma grande capacidade de compreensão do ser humano, pois perdoam e consolam as pessoas de uma forma muito natural.


Texto retirado da revista Sexto Sentido Especial: Orixás; Mythos Editora, São Paulo, 2010.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Obaluaê

 Obaluaê significa "Rei e Dono da Terra" e é um orixá relacionado à terra seca e quente, com o calor que lembra a febre das doenças contagiosas. Seus trajes de palha escondem o segredo da vida e da morte.


    Obaluaê é um orixá da cultura da região de Daomé, que foi assimilado pelos iorubás. Enquanto os orixás iorubanos são extrovertidos, alegres de pequenas falham que os identificam com os seres humanos, os deuses daomeanos estão mais associados a uma visão religiosa, em que existe um distanciamento entre deuses e homens.

    Obaluaê era visto como fonte de perigo e terror, sendo a marca da passagem de doenças epidêmicas, castigos sociais, catástrofes. Era considerado aquele que punia os malfeitores enviando-lhes doenças, como a varíola.

    Obaluaê é a forma jovem do orixá Xapanã, enquanto Omolu é sua forma velha.

    Xapanã é um nome proibido tanto no Candomblé como na Umbanda, não deve ser mencionado pois pode atrair doenças de forma inesperada. Omolu é a forma que mais se popularizou, e acabou sendo confundida não apenas com a forma mais velha de Obaluaê, mas com sua essência genérica.

    O termo Obaluaê é constituído pela contração de Oba-'Iu'aiye, o rei que é senhor da terra e é também chamado Oluwa Aiyê, Senhor da terra. A ela pede licença para o uso da terra. Sua veste é de palha da costa e esconde o segredo da vida e da morte. Todos o temem, por enviar as doenças, muitas vezes, como castigo ou como desígnios divinos para uma renovação da vida, ao mesmo tempo em que pode causar moléstias (lepra, varíola, peste, eczemas, malária, etc.).

    De acordo com antigas lendas, Obaluaê nasceu com o corpo todo coberto de chagas, que ficavam escondidas sob suas vestes de palha. Foi por meio de sua própria força interior que ele conseguiu curar-se e também desvendar os segredos das doenças que atingem os seres.

    Obaluaê está ligado ao elemento terra, e é detentor de seus segredos. Tem ligação com as árvores e com os espíritos que as habitam. Seu santuário fica geralmente fora de casa ou da aldeia.

    No Brasil, Obaluaê é associado a São Lázaro, São Roque e São Sebastião. 

    As pessoas que lhe são consagradas usam dois tipos de colares: de contas marrons com listas pretas ou o Iagidiba, feito de pequenos discos de chifres de búfalo.

    Seus iaôs (filhos de santo) dançam inteiramente vestidos de palha da costa. Na cabeça, usam um capuz da mesmo palha, cujas franjas cobrem o rosto. Dançam curvados para frente, como que atormentados por dores e imitam os tremores da febre.

    Em muitas lendas, Obaluaê é apresentado como um orixá que perdeu uma perna. Desta forma, muitos de seus filhos podem sofrer de algum problema em seus membros inferiores. Segunda-feira é o dia da semana que lhe é consagrado.


Arquétipo


    O arquétipo de Obaluaê é o de pessoas que gostam de exibir seus sofrimentos, tristezas e desgraças. Mesmo quando atingem situações estáveis, podem rejeitá-las por escrúpulos tolos e imaginários. Em algumas situações se empenham no bem-estar dos outros, colocando de lado seus próprios interesses. No entanto, sua característica mais marcante é o convívio com o sofrimento que se manifesta numa tendência de autopunição, transformando traumas emocionais em doenças físicas. Sua maior insatisfação não é contra a vida, mas contra si mesmo. Não são pessoas de levar desaforos para casa e nem têm o hábito de falar pelas costas. Odeiam fofocas e vulgaridades do gênero. A solidão é muito peculiar a essas pessoas, devido à sua própria personalidade.


Texto retirado da revista Sexto Sentido Especial: Orixás; Mythos Editora, São Paulo, 2010.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

A Criação da Humanidade

    Ana Carolina é uma menina inquieta, sempre querendo aprender mais sobre as coisas. "Como?, por quê?, quem? pra quê?" são perguntas que ela vive repetindo. Seu pai não tem muita paciência para ficar respondendo a tantas perguntas. A mãe acredita que ela será uma cientista quando crescer. A professora gosta das perguntas, mas fica brava quando Ana não dá qualquer chance para seus amigos também perguntarem.

    Um dia a professora estava falando sobre a origem do mundo, do universo e das pessoas. E contou a teoria científica do início de todas as coisas: "Uma grande explosão ocorreu no céu e surgiram muitos planetas, astros e estrelas. A Terra, que ardia em brasas, foi resfriando e apareceram os primeiros sinais de vida. Estes foram se tornando complexos e se diferenciando. Milhares de anos depois surgiram os macacos, que foram evoluindo e que teriam dado origem aos homens. Por isso eles são tão parecidos conosco".

    Ana Carolina maravilhada com o que tinha acabado de ouvir, lembrava dos macacos que vira no zoológico e que poderiam ser seus parentes ancestrais. Mal a professora terminou de falar, ela se ergueu e disse que sabia de uma outra história sobre a origem de tudo. Contou que sua avó tinha lido para ela uma história que estava na Bíblia e que era mais ou menos assim: "No início só havia Deus. Então ele resolveu criar o mundo todo com todas as coisas que existem. Fez isto em poucos dias. Aí Deus criou, com barro, o primeiro homem e deu a ele o nome de Adão. Mas Adão vivia triste pelo paraíso e Deus tirou uma costela dele e fez uma mulher para ficar com ele. Era Eva. Eles se casaram e tiveram filhos e então surgiu a humanidade".

    A professora elogiou a prontidão da menina e perguntou se alguém mais sabia sobre outras histórias a respeito da origem  do mundo e das coisas. Lá do fundo da sala, uma outra menina levantou o braço e gritou: "Eu sei, minha mãe me contou uma história bem diferente". A professora logo adivinhou que devia se tratar de uma história sobre os índios, pois a mãe de Juliana era antropóloga. Os antropólogos são pesquisadores que durante vários meses vão morar junto com os índios para aprender suas línguas, suas culturas, suas tradições. Dito e feito: a pequena Juliana se levantou e contou uma história dos índios Waiãpi, que segundo ela moram em várias aldeias lá nas florestas do Amapá, bem perto da fronteira do Brasil com a Guiana Francesa.

    "Minha mãe aprendeu esta história com uma amiga dela que foi morar um tempo junto com os índios Waiãpi. A história é assim: no início o criador, que se chama Ianejar, estava sozinho. Ele não gostava de estar sozinho. Então um dia ele foi apanhar me e resolveu fazer uma mulher. Ele soprou e o mel virou uma mulher. Aí ele falou para a mulher ir na roça e buscar mandioca. O sol foi esquentando e a mulher de mel derreteu. Ianejar estranhou a demora da mulher e foi ver o que tinha acontecido. Chegou na roça e só viu o cesto que ela tinha levado. Então Ianejar foi buscar arumã, que é um tipo de palmeira. Ele soprou e o arumã virou uma mulher. 'Vai lá na roça buscar mandioca', disse Ianejar. A mulher foi, voltou e fez uma bebida com a mandioca ralada, chamada caxiri. Ianejar disse que o caxiri estava azedo e muito ruim. Depois a mulher foi na mata buscar imbaúba e fez duas flautas: uma pequena e a outra grande. Ianejar soprou na flauta grande e saíram muitas pessoas. A mulher de arumã soprou na outra flauta e saíram muitas mulheres. Naquele tempo, não havia pessoas, só Ianejar e sua mulher. Mas depois disso, a Terra ficou cheia de Waiãpi".

    Juliana já estava quase sem fôlego quando terminou de contar a história. Disse que os índios têm muitas histórias que nós não conhecemos e que eles vivem de forma diferente. Disse também que nós podemos aprender muitas coisas com eles e que devemos respeitá-los. Mesmo assim, alguns meninos riram da história de Juliana, mas Ana Carolina estava séria. Ela tinha prestado atenção em tudo. Diferentemente de outras vezes, não veio com o seu "Como?, por quê?, quem?, pra quê?" Quieta e pensativa, tomou uma decisão: queria aprender mais coisas sobre os índios. Afinal de contas, eles fazem parte da nossa mesma humanidade.


História de Luís Donisete Grupioni retirada da revista Nova Escola, Novembro de 1992. Fundação Victor Civita, Editora Abril. 

A história sobre a criação da humanidade dos índios Waiãpi foi baseada no mito contado pelo índio Pao para a antropóloga Dominique T. Gallois em 1977.