domingo, 6 de fevereiro de 2011

Recado ao Senhor 903

                                    Rubem Braga


                          Vizinho -
                          Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a visita do zelador, que me mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho em emu apartamento. Recebi depois a sua própria visita pessoal - devia ser meia-noite - e a sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou desolado com tudo isso, e lhe dou inteira razão. O regulamento do prédio é explícito e, se não o fosse, o  senhor ainda teria so seu lado a Lei e a Polícia. Quem trabalha o dia inteiro tem direito ao repouso noturno e é impossível repousar no 903 quando há vozes, passos e músicas no 1003. Ou melhor: é impossível ao 903 dormir quando o 1003 se agita; pois como não sei o seu nome nem o senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois números, dois números empilhados entre dezenas de outros. Eu, 1003, me limito, a Leste pelo 1005, a Oeste pelo 1001, ao Sul pelo Oceano Atlântico, ao Norte pelo 1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo 903 - que é o senhor. Todos esses números são comportados e silenciosos, apenas eu e o Oceano Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis; nós dois apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua. Prometo sinceramente adotar, depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago azul. Prometo. Quem vier à minha casa (perdão: ao meu número) será convidado a se retirar às 21:45 e explicarei: o 903 precisa repousar das 22 às 7 pois às 8:15 deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará até o 527 de outra rua, onde ele trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinho, está numerada totalmente. E reconheço que ela só pode ser tolerável quando um número não incomoda outro número, mas o respeita, ficando dentro dos limites de seus algarismos. Peço-lhe desculpas - e prometo silêncio.
                            ... Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e dissesse: " Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou " e o outro respondesse: " entra vizinho, e come de meu pão e bebe de meu vinho. Aqui estamos para bailar e cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela ".
                            E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e amigas do vizinho entoando canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz.

Vida Toda Linguagem

                          A vida e a linguagem são inseparáveis. Você sabe: vivemos entre as palavras, fazemos a vida com as palavras. Não há registro de nenhuma sociedade humana que se organize sem linguagem. As palavras atravessam praticamente todas as dimensões de nossa existência, desde os mais secretos sinais dos nossos sonhos até as situações mais objetivas do trabalho cotidiano. Inumeráveis redes de comunicação verbal tecem nossa história, cada dia. Pensamos para falar, falamos para pensar. Por isso, as palavras: para comunicar o vivido e o por viver, para resgatar a memória como também para enunciar desejos, as esperanças, as várias formas de se fecundar o presente e gestar o futuro. O que vivemos. O que amamos. O que sofremos. Existe também o não dito. Não é possível, dizer tudo, ainda que desejasse. Muitas vezes, é difícil dizer algo. Em muitos momentos, lutamos com as palavras - para esclarecer e organizar as nossas próprias ideias, assim como para a travessia de comunicação com os outros. Para que a nossa existência faça sentido. Para que o outro nos reconheça. E também para reconhecer o outro. A nossa voz. As outras vozes. E, apesar de todos os esmagamentos e de todas as desfigurações, vamos praticando as nossas palavras. Somos - todos - capazes de linguagem. Pensamos e falamos as relações da vida cotidiana. De algum modo, fazemos ouvir a nossa voz, ainda que timidamente, ainda que precariamente. Mas, ao escrever, muitas vezes, inumeráveis vezes, não conseguimos expressar nossas ideias, as nossas emoções, nossas palavras!

domingo, 30 de janeiro de 2011

Reinvenção

                  Cecília Meireles

A vida só é possível
reinventada.

Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas...
Ah! tudo bolhas
que vêm de fundas piscinas
de ilusionismo... - mais nada.

Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.

Não te encontro, não te alcanço...
Só - no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só - na treva,
fico: recebida e dada.

Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

Poema Só Para Jaime Ovalle

                              Manuel Bandeira

Quando hoje acordei, ainda fazia escuro
(Embora a manhã já estivesse avançada).
Chovia.
Chovia uma triste chuva de resignação
Como contraste e consolo ao calor tempestuoso da noite.
Então me levantei,
Bebi o café que eu mesmo preparei,
Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei pensando...
- Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei.

O Menino Louco

                     Mário Quintana

Eu te paguei minha pesada moeda,
Poesia...
Ó teus espelhos deformantes e límpidos
Como a água! Sim, desde menino,
Meus olhos se abriam insones como flores no escuro
Até que, longe, no horizonte, eu via
A Lua vindo, esbelta como um lírio...
Às vezes numa túnica de Infanta
Sonâmbula... Às vezes virginalmente nua...
E era branca como as nozes que os esquilos
descascam na mata...
Pura como um punhal de sacrifício...
(Em meus lábios queimava-se, ignorada, a palavra mágica!)

Desejo

                   Garcia Lorca

Só o teu coração quente,
e nada mais.

Meu paraíso um campo
sem rouxinol
nem liras,
com um rio discreto
e uma fontezinha.

Sem a espera do vento
sobre a fronde,
nem a estrela que quer
ser folha.

Uma enorme luz
que fosse
pirilampo
de outra,
num campo de
olhadas partidas.

Um repouso claro
e ali nossos beijos,
lunares sonoros
do eco,
se abririam muito longe.

E teu coração quente,
nada mais.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Abre Alas

                       Ivan Lins/Vitor Martins

Abre alas pra minha folia
Já está chegando a hora
Abre alas pra minha bandeira
Já está chegando a hora

Apare teus sonhos que a vida tem dono
Ela vem te cobrar
A vida não era assim, não era assim
Não corra o risco de ficar alegre
Pra nunca chorar
A gente não era assim, não era assim

Abre alas...

Encoste esta porta
Que a nossa conversa não pode vazar
A vida não era assim, não era assim
Bandeira arriada
Folia guardada pra não se usar
A festa não era assim, não era assim

Abre alas...


música gravada pelo Quarteto Em Cy em 1975 em plena época de repressão do regime militar; uma letra bem contundente para aquele período...

Imorais

                  Christiaan Oyens/Zélia Duncan

Os imorais
Falam de nós
Do nosso gosto
Nosso encontro
Da nossa voz
Os imorais
Se chocam
Por nós
Nosso brilho
Nosso estilo
Nossos lençóis
Os imorais
Sorriram pra nós
Fingiram trégua
Fizeram média
Venderam paz
Mas um dia, eu sei
A casa cai
E então
A moral da história
Vai estar sempre na glória
De fazermos o que nos satisfaz


faixa do CD Acesso de Zélia Duncan gravado em 1998.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Eu Sei, Mas Não Devia

                               Marina Colasanti

                  Eu sei que a gente se acostuma, mas não devia.
                  A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque se acostuma a não ter vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E à medida que se acostuma, esquece o ar, esquece o sol, esquece a amplidão.
                A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá tempo para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
               A gente se acostuma a abrir o jornal e ler sobre a guerra. E aceitando a guerra aceita os mortos
e que haja números para os mortos. E aceitando os números aceita acreditar nas negociações de paz. E aceitando as negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.
               A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
               A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho para ganhar mais dinheiro para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
               A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
               A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado, o cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. A contaminação da água do mar. A lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
               A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir e ainda fica contente porque tem sempre o sono atrasado.
              A gente se acostuma para não ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar sangramentos, feridas, para esquivar-se da faca, da baioneta, para poupar o peito.
              A gente se acostuma para poupar a vida, que aos poucos se gasta de tanto acostumar e se perde de si mesma.

Metade

                          Oswaldo Montenegro


Que a força do medo que tenho
Não me impeça de ver o que anseio

Que a morte de tudo em que acredito
Não me tape os ouvidos e a boca
Porque metade de mim é o que eu grito
Mas a outra metade é silêncio.

Que a música que ouço ao longe
Seja linda ainda que tristeza
Que a mulher que eu amo seja pra sempre amada
Mesmo que distante
Porque metade de mim é partida
Mas a outra metade é saudade.

Que as palavras que eu falo
Não sejam ouvidas como prece e nem repetidas com fervor
Apenas respeitadas
Como a única coisa que resta a um homem inundado de sentimentos
Porque metade de mim é o que ouço
Mas a outra metade é o que calo.

Que essa minha vontade de ir embora
Se transforme da calma e na paz que eu mereço
Que essa tensão que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada
Porque metade de mim é o que penso
Mas a outra metade é um vulcão.

Que o medo da solidão se afaste
E que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável.

Que o espelho reflita em meu rosto um doce sorriso
Que eu me lembro ter dado na infância
Porque metade de mim é a lembrança do que fui
A outra metade eu não sei.

Que não seja preciso mais do que uma simples alegria
Pra me fazer aquietar o espírito
E que o teu silêncio me fale cada vez mais
Porque metade de mim é abrigo
Mas a outra metade é cansaço.

Que a arte nos aponte uma resposta
Mesmo que ela não saiba
E que ninguém a tente complicar
Porque é preciso simplicidade pra fazê-la florescer
Porque metade de mim é a platéia
E a outra metade é canção.

E que a minha loucura seja perdoada
Porque metade de mim é amor
E a outra metade também.