quinta-feira, 2 de julho de 2020

O Espelho

(Esboço de uma nova teoria da alma humana)

Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos. A casa ficava no morro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam, através de uma atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo.

Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que falavam; mas, além deles, havia na sala um quinto personagem, calado, pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava de um ou outro resmungo de aprovação. Esse homem tinha a mesma idade dos companheiros, entre quarenta e cinquenta anos, era provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução,e, ao que parece, astuto e cáustico. Não discutia nunca; e defendia-se da abstenção com um paradoxo, dizendo que a discussão era a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial; e acrescentava que os serafins e os querubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição espiritual e eterna. Como desse esta mesma resposta naquela noite, contestou-lha um dos presentes, e desafiou-o a demonstrar o que dizia, se era capaz. Jacobina (assim se chamava ele) refletiu um instante e respondeu:

- Pensando bem, talvez o senhor tenha razão.

Vai senão quando, no meio da noite sucedeu que este casmurro usou da palavra, e não dois ou três minutos, mas trinta ou quarenta. A conversa, em seus meandros, veio a cair na natureza da alma, ponto que dividiu radicalmente os quatro amigos. Cada cabeça, cada sentença; não só o acordo, mas a mesma discussão, tornou-se difícil, senão impossível, pela multiplicidade de questões que se deduziram do tronco principal, e um pouco, talvez pela inconsistência dos pareceres. Um dos argumentadores pediu ao Jacobina alguma opinião, - uma conjetura, ao menos.

- Nem conjetura, nem opinião, redarguiu ele; uma ou outra pode dar lugar a dissentimento, e, como sabem, eu não discuto. Mas, se querem ouvir-me calados, posso contar-lhes um caso de minha vida, em que ressalta a mais clara demonstração acerca da matéria de que se trata. Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas...

- Duas?

- Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... Espantem-se à vontade; podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; - e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira. Shylock, por exemplo. A alma exterior daquele judeu eram os seus ducados; perdê-los equivalia a morrer. "Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é um punhal que me enterras no coração". Vejam bem esta frase; a perda dos ducados, alma exterior, era a morte para ele. Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma...

- Não?

- Não, senhor; muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse Camões que morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell. São almas enérgicas e exclusivas; mas há outras, embora enérgicas, de natureza mudável. Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade, suponhamos. Pela minha parte, conheço uma senhora, - na verdade, gentilíssima - que muda de alma exterior cinco, seis vezes por ano. Durante a estação lírica é a ópera; cessando a estação, a alma exterior substitui-se por outra: um concerto, um baile do Cassino, a Rua do Ouvidor, Petrópolis...

- Perdão; essa senhora quem é?

- Essa senhora é parenta do diabo, e tem o mesmo nome: chama-se Legião... E assim outros muitos casos. Eu mesmo tenho experimentado dessas trocas. Não as relato, porque iria longe; restrinjo-me ao episódio de que lhes falei. Um episódio dos meus vinte e cinco anos...

Os quatro companheiros, ansiosos de ouvir o caso prometido, esqueceram a controvérsia. Santa curiosidade! tu não és só a alma da civilização, és também o pomo da concórdia, fruta divina, de outro sabor que não aquele pomo da mitologia. A sala, até há pouco ruidosa de física e metafísica, é agora um mar morto; todos os olhos estão no Jacobina, que conserta a ponta do charuto, recolhendo as memórias. Eis aqui como ele começou a narração:

- Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da guarda nacional. Não imaginam o acontecimento que isto foi em nossa casa. Minha mãe ficou tão orgulhosa! tão contente! Chamava-me o seu alferes. Primos e tios, foi tudo uma alegria sincera e pura. Na vila, note-se bem, houve alguns despeitados; choro e ranger de dentes, como na Escritura; e o motivo não foi outro senão que o posto tinha muitos candidatos e que estes perderam. Suponho também que uma parte do desgosto foi inteiramente gratuita: nasceu da simples distinção. Lembra-se de alguns rapazes, que se davam comigo, e passaram a olhar-me de revés, durante algum tempo. Em compensação, tive muitas pessoas que ficaram satisfeitas com a nomeação; e a prova é que todo o fardamento me foi dado por amigos... Vai então uma das minhas tias, D. Marcolina, viúva do capitão Peçanha, que morava a muitas léguas da vila, num sítio escuso e solitário, desejou ver-me, e pediu que fosse  ter com ela e levasse a farda. Fui, acompanhado de um pajem, que daí a dias tornou à vila, porque a tia Marcolina, apenas me pilhou no sítio, escreveu a minha mãe dizendo que não me soltava antes de um mês, pelo menos. E abraçava-me! Chamava-me também o seu alferes. Achava-me um rapagão bonito. Como era um tanto patusca chegou a confessar que tinha inveja da moça que houvesse de ser minha mulher. Jurava que em toda a província não havia outro que me pusesse o pé adiante. E sempre alferes; era alferes para cá, alferes para lá, alferes a toda a hora. Eu pedia-lhe que me chamasse Joãozinho, como dantes; e ela abanava a cabeça, bradando que não, que era o "senhor alferes". Um cunhado dela, irmão do finado Peçanha, que ali morava, não me chamava de outra maneira. Era o "senhor alferes", não por gracejo, mas a sério, e à vista dos escravos, que naturalmente forma pelo mesmo caminho. Na mesa tinha eu o melhor lugar, e era o primeiro servido. Não imaginam. Se lhes disser que o entusiasmo da tia Marcolina chegou ao ponto de mandar pôr no meu quarto um grande espelho, obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples... Era um espelho que lhe dera a madrinha, e que esta herdara da mãe, que o comprara a uma das fidalgas vindas em 1808 com a corte de D.João VI. Não sei o que havia nisso de verdade; era a tradição. O espelho estava naturalmente muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro, comido em parte pelo tempo, uns delfins esculpidos nos ângulos superiores da moldura, uns enfeites de madrepérola e outros caprichos do artista. Tudo velho, mas bom...

- Espelho grande?

- Grande. E como foi, como digo, uma enorme fineza, porque o espelho estava na sala; era a melhor peça da casa. Mas não houve forças que a demovessem do propósito; respondia que não fazia falta, que era só por algumas semanas, e finalmente que o "senhor alferes" merecia muito mais. O certo é que todas essas coisas, carinhos, atenções, obséquios, fizeram em mim uma transformação, que o natural sentimento da mocidade ajudou e completou. Imaginam, creio eu?

- Não.

- O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado. Custa-lhes acreditar, não?

- Custa-me até entender, respondeu um dos ouvintes.

- Vai entender. Os fatos explicarão melhor os sentimentos; os fatos são tudo. A melhor definição do amor não vale um beijo de moça namorada, e, se bem me lembro, um filósofo antigo demonstrou o movimento andando. Vamos aos fatos. Vamos ver como, ao tempo em que a consciência do homem se obliterava, a do alferes tornava-se viva e intensa. As dores humanas, as alegrias humanas se eram só isso, mal obtinham de mim uma compaixão apática ou um sorriso de favor. No fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes. Ora, um dia recebeu a tia Marcolina uma notícia grave; uma das filhas, casada com um lavrador residente dali a cinco léguas, estava mal e à morte. Adeus, sobrinho! adeus alferes! Era mãe extremosa, armou logo uma viagem, pediu ao cunhado que fosse com ela, e a mim que tomasse conta do sítio. Creio que, se não fosse a aflição, disporia o contrário; deixaria o cunhado, e iria comigo. Mas o certo é que fiquei só, com os poucos escravos da casa. Confesso-lhes que desde logo senti uma grande opressão, alguma coisa semelhante ao efeito de quatro paredes de um cárcere, subitamente levantadas em torno de mim. Era a alma exterior que se reduzia; estava agora limitada a alguns espíritos boçais. O alferes continuava a dominar a mim, embora a vida fosse menos intensa, e a  consciência mais débil. Os escravos punham uma nota de humildade nas suas cortesias, que de certa maneira compensava a afeição dos parentes e a intimidade doméstica interrompida. Notei mesmo, naquela noite, que eles redobravam de respeito, de alegria, de protestos. Nhô alferes de minuto a minuto. Nhô alferes é muito bonito; nhô alferes há de ser coronel; nhô alferes há de casar com moça bonita, filha de general; um concerto de louvores e profecias, que me deixou extático. Ah! pérfidos! mal podia suspeitar a intenção secreta dos malvados.

- Matá-lo?

- Antes assim fosse.

- Coisa pior?

- Ouçam-me. Na manhã seguinte achei-me só. Os velhacos, seduzidos por outros, ou de movimento próprio, tinham resolvido fugir durante a noite; e assim fizeram. Achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes, diante do terreiro deserto e da roça abandonada. Nenhum fôlego humano. Corri a casa toda, a senzala, tudo, nada, ninguém, um molequinho que fosse. Galos e galinhas tão-somente, um par de mulas, que filosofavam a vida, sacudindo as moscas, e três bois. Os mesmos cães foram levados pelos escravos. Nenhum ente humano. Parece-lhes que isto era melhor do que ter morrido? era pior. Não por medo; juro-lhes que não tinha medo; era um pouco atrevidinho, tanto que não senti nada, durante as primeiras horas. Fiquei triste por causa do dano causado à tia Marcolina; fiquei também um pouco perplexo, não sabendo se devia ir ter com ela, para lhe dar a triste notícia, ou ficar tomando conta da casa. Adotei o segundo alvitre, para não desamparar a casa, e porque, se a minha prima enferma estava mal, eu ia somente aumentar a dor da mãe, sem remédio nenhum; finalmente, esperei que o irmão do tio Peçanha voltasse naquele dia ou no outro, visto que tinha saído havia já trinta e seis horas. Mas a manhã passou sem vestígio dele; e à tarde comecei a sentir uma sensação como de pessoa que houvesse perdido toda a ação nervosa, e não tivesse consciência da ação muscular. O irmão do tio Peçanha não voltou nesse dia, nem no outro, nem em toda aquela semana. Minha solidão tomou proporções enormes. Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com uma obstinação mais cansativa. As horas batiam de século a século, no velho relógio da sala, cuja pêndula, tic-tac, tic-tac, feria-me a alma interior, como um piparote contínuo da eternidade. Quando, muitos anos depois, li uma poesia americana, creio que de Longfellow, e topei com este famoso estribilho: Never, for ever! - For ever, never! confesso-lhes que tive um calafrio; recordei-me daqueles dias medonhos. Era justamente assim que fazia o relógio da tia Marcolina: - Never, for ever! - For ever, never! Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada. E então de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio era o mesmo que de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita ou mais larga. Tic-tac, tic-tac. Ninguém nas salas, na varanda, nos corredores, no terreiro, ninguém em parte nenhuma... Riem-se?

- Sim, parece que tinha um pouco de medo.

- Oh! fora bom se eu pudesse ter medo! viveria. Mas o característico daquela situação é que eu nem sequer podia ter medo, isto é, o medo vulgarmente entendido. Tinha uma sensação inexplicável. Era com um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico. Dormindo, era outra coisa. O sono dava-me alívio, não pela razão comum de ser irmão da morte, mas por outra. Acho que posso explicar assim esse fenômeno: - o sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior. Nos sonhos, fardava-me, orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam alferes; vinha um amigo de nossa casa, e prometia-me o posto de tenente, outro o de capitão ou major; e tudo isso fazia-me viver.Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono, a consciência do meu ser novo e único, - porque a alma interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não tornar... Não tornava. Eu saía fora, a um lado e outro, a ver se descobria algum sinal de regresso. Souer Anne, souer Anne, ne vois-tu rien venir? Nada, coisa nenhuma; tal qual como na lenda francesa. Nada mais do que a poeira da estrada e o capinzal dos morros. Voltava para casa, nervoso, desesperado, estirava-me no canapé da sala. Tic-tac, tic-tac. Levantava-me, passeava, tamborilava nos vidros das janelas, assobiava. Em certa ocasião lembrei-me de escrever alguma coisa, um artigo político, um romance, uma ode; não escolhi nada definitivamente; sentei e  tracei no papel algumas palavras e frases soltas, para intercalar no estilo. Mas o estilo, como a tia Marcolina, deixava-se estar. Souer Anne, souer Anne... Coisa nenhuma. Quando muito via negrejar a tinta e alvejar o papel.

- Mas não comia?

- Comia mal, frutas, farinha, conservas, algumas raízes tostadas ao fogo, mas suportaria tudo alegremente, se não fora a terrível situação moral em que me achava. Recitava versos, discursos, trechos latinos, liras de Gonzaga, oitavas de Camões, décimas, uma antologia em trinta volumes. Às vezes fazia ginástica; outras dava beliscões nas pernas; mas o efeito era só uma sensação física de dor de cansaço, e mais nada. Tudo silêncio, um silêncio vasto, enorme, infinito, apenas sublinhado pelo eterno tic-tac da pêndula. Tic-tac, tic-tac...

- Na verdade, era de enlouquecer.

- Vão ouvir coisa pior. Convém dizer-lhes que, desde que ficara só, não olhara uma só vez para o espelho. Não era abstenção deliberada, não tinha motivo; era um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela casa solitária; e se tal explicação é verdadeira, nada prova melhor a contradição humana, porque no fim de oito dias, deu-me na veneta olhar para o espelho com o fim justamente de achar-me dois. Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra da sombra. A realidade das leis físicas não permite negar que o espelho reproduziu-me textualmente, com os mesmos contornos e feições; assim devia ter sido. Mas tal não foi a sensação. Então tive medo; atribuí o fenômeno à excitação nervosa em que andava; receei ficar mais tempo, e enlouquecer. - Vou-me embora, disse comigo. E levantei o braço com gesto de mau-humor, e ao mesmo tempo de decisão, olhando para o vidro; o gesto lá estava, mas disperso, esgarçado, mutilado... Entrei a vestir-me, murmurando comigo, tossindo sem tosse, sacudindo a roupa com estrépito, afligindo-me a frio com os botões, para dizer alguma coisa. De quando em quando, olhava furtivamente para o espelho; a imagem era a mesma de linhas, a mesma decomposição de contornos... Continuei a vestir-me. Subitamente por uma inspiração inexplicável, por um impulso sem cálculo, lembrou-me... Se forem capazes de adivinhar qual foi a minha ideia...

- Diga.

- Estava a olhar para o vidro, com uma persistência de desesperado, contemplando as próprias feições derramadas e inacabadas, uma nuvem de linhas soltas, informes, quando tive o pensamento... Não, não são capazes de adivinhar.

- Mas, diga, diga.

- Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e... não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho. Imaginai um homem que, pouco a pouco emerge de um letargo, abre os olhos sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas não conhece individualmente uns nem outros; enfim, sabe que este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma cadeira, ali um sofá. Tudo volta ao que era antes do sono. Assim foi comigo. Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria, e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despia-me outra vez. Com este regime pude atravessar mais seis dias de solidão, sem os sentir...

Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha descido as escadas.

Conto O Espelho, de Machado de Assis, retirado do livro Os Melhores Contos de Machado de Assis, 6ª Edição, 1991, Global Editora, seleção de Domício Proença Filho.

Canção da Alma Caiada

Aprendi desde criança
Que é melhor me calar
E dançar conforme a dança
Do que jamais ousar

Mas às vezes pressinto
Que não me enquadro na lei:
Minto sobre o que sinto
E esqueço tudo o que sei.

Só comigo ouso lutar,
Sem me poder vencer:
Tento afogar no mar
O fogo em que quero arder.

De dia caio minh'alma
Só à noite caio em mim
por isso me falta calma
e vivo inquieto assim

Poema de Antônio Cícero musicado por Marina Lima. Seria gravado por Maria Bethânia para o seu LP de 1976 intitulado Pássaro Proibido. A censura não deixou... A música foi desencantada em 1979 e gravada por Zizi Possi em seu 2º LP intitulado Pedaço de Mim.
O texto está no livro Guardar, da Editora Record, lançado em 1996.

Dilema

O que muito me confunde
é que no fundo de mim estou eu
e no fundo de mim estou eu.
No fundo
sei que não sou sem fim
e sou feito de um mundo imenso
imerso num universo
que não é feito de mim.
Mas mesmo isso é controverso
se nos versos de um poema
perverso sai o reverso.
Disperso num tal dilema
o certo é reconhecer:
no fundo de mim
sou sem fundo.

Poema de Antônio Cícero, do livro Guardar, Editora Record, lançado em 1996.

quarta-feira, 1 de julho de 2020

O Navio Negreiro

Tragédia no Mar


'Stamos em pleno mar... Doido no espaço
Brinca o luar - dourada borboleta -
E as vagas após ele correm... cansam
Como turba de infames inquieta.

'Stamos em pleno mar... Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro...
O mar em troca acende as ardentias
- Constelações do líquido tesouro...

'Stamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dois é o céu? Qual o oceano?...

'Stamos em pleno mar... Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares
Como roçam na vaga as andorinhas...

Donde vem?... Onde vai?... Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste Saara os corcéis o pó levantam,
Galopam, voam, mas não deixam traço.

Bem feliz quem ali pode nest'hora
Sentir deste painel a majestade!...
Embaixo - o mar... em cima - o firmamento...
E no mar e no céu - a imensidade!

Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Que música suave ao longe soa!
Meu Deus! Como é sublime um canto ardente
Pelas vagas sem fim boiando à toa!

Homens do mar! Ó rudes marinheiros
Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Crianças que a procela acalentara
No berço destes pélagos profundos!

Esperai! Esperai! deixai que eu beba
Esta selvagem, livre poesia...
Orquestra - é o mar que ruge pela proa,
E o vento que nas cordas assobia...

Por que foges assim, barco ligeiro?
Por que foges do pávido poeta?
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar - doido cometa!

Albatroz! Albatroz! águia do oceano,
Tu, que dorme das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviatã do espaço!
Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas...



Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?...
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!
Cantai! que a noite é divina!
Resvala o brigue à bolina
Como um golfinho veloz.
Presa ao mastro da mezena
Saudosa bandeira acena
Às vagas que deixa após.

Do Espanhol as cantilenas
Requebradas de langor,
Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor.
Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente
- Terra de amor e traição -
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos do Tasso
Junto às lavas do Vulcão!

O Inglês - marinheiro frio,
Que ao nascer no mar se achou - 
(Porque a Inglaterra é um navio,
Que Deus na Mancha ancorou),
Rijo entoa pátrias glórias,
Lembrando orgulhoso histórias
De Nelson e de Aboukir.
O Francês - predestinado -
Canta os louros do passado
E os loureiros do porvir...

Os marinheiros Helenos,
Que a vaga iônia criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses cortou,
Homens que Fídias talhara,
Vão cantando em noite clara
Versos que Homero gemeu...
... Nautas de todas as plagas!
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu...



Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais, inda mais... não pode o olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador.
Mas que vejo eu ali... que quadro de amarguras!
Que cena funeral!... Que tétricas figuras!...
Que cena infame e vil!... Meu Deus!
Meu Deus! Que horror!



Era um sonho dantesco... O tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho,
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar do açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...

Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras, moças... mas nuas, espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs.

E ri-se a orquestra, irônica, estridente...
E de ronda fantástica a serpente
Faz doidas espirais...
Se o velho arqueja... se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...

Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!

Um de raiva delira, outro enlouquece...
Outro, que de martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!

No entanto o capitão manda a manobra
E após, fitando o céu que se desdobra
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!..."

E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doidas espirais!
Qual num sonho dantesco as sombras voam...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!...



Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus...
Ó mar! por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noite! tempestades!
Rolai das imensidade!
Varrei os mares, tufão!...

Quem são estes desgraçados,
Que não encontram em vós,
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são?... Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa musa,
Musa libérrima, audaz!

São os filhos do deserto
Onde a terra esposa a luz.
Onde voa em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados,
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão...
Homens simples, fortes, bravos...
Hoje míseros escravos
Sem ar, sem luz, sem razão...

São mulheres desgraçadas
Como Agar o foi também,
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N'alma - lágrimas e fel.
Como Agar sofrendo tanto
Que nem o leite do pranto
Têm que dar para Ismael...

Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram - crianças lindas,
Viveram - moças gentis...
Passa um dia a caravana
Quando a viagem na cabana
Cisma da noite nos véus...
... Adeus! ó choça do monte!...
...Adeus! palmeiras da fonte!...
... Adeus! amores... adeus!...

Depois o areal extenso...
Depois o oceano de pó...
Depois no horizonte imenso
Desertos... desertos só...
E a fome, o cansaço, a sede...
Ai! quanto infeliz que cede,
E cai p'ra não mais s'erguer!
Vaga um lugar na cadeia,
Mas chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer...

Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d'amplidão...
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...

Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de maldade
Nem são livres p'ra... morrer...
Prende-os a mesma corrente
- Férrea, lúgubre serpente - 
Nas roscas da escravidão.
E assim roubadas à morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoite... Irrisão!...

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus...
Ó mar, por que não apagas 
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! Noite! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!...



E existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e covardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que imprudente na gávea tripudia?!...
Silêncio!... Musa! chora, chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto...

Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra,
E as promessas divinas da esperança...
Tu, que da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança,
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...

Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu na vaga,
Como um íris no pélago profundo!...
... Mas é infâmia de mais... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo...
Andrada! arranca este pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta de teus mares!


Poema de Castro Alves retirado na coletânea Os Melhores Poemas de Castro Alves, seleção de Lêdo Ivo, 4ª Edição, publicado pela Global Editora, em 1988. 

terça-feira, 30 de junho de 2020

Comportamento Geral

Você deve notar que não tem mais tutu
E dizer que não está preocupado
Você deve lutar pela xepa da feira
E dizer que está recompensado
Você deve estampar sempre um ar de alegria
E dizer: "Tudo tem melhorado"
Você deve rezar pelo bem do patrão
E esquecer que está desempregado

Você merece
Você merece
Tudo vai bem, tudo legal
Cerveja, samba e amanhã, seu Zé
Se acabarem o teu carnaval?

Você deve aprender a baixar a cabeça
E dizer sempre: "Muito obrigado!"
São palavras que ainda te deixam dizer
Por ser homem bem disciplinado
Deve, pois, só fazer pelo bem da nação
Tudo aquilo que for ordenado
Pra ganhar um fuscão no juízo final
E diploma de bem-comportado

Você merece
Você merece
Tudo legal, tudo vai mal
Cerveja, samba e amanhã, seu Zé
Se acabarem o teu carnaval?

Você merece
Você merece
Tudo vai mal, tudo legal
Cerveja, samba e amanhã, seu Zé
Se acabarem o teu carnaval

Você merece
Você merece
Tudo vai bem, tudo legal
Cerveja, samba e amanhã, seu Zé
Se acabarem o teu carnaval?

Você merece, você merece
Você merece, você merece
Tudo vai mal, tudo vai bem
Tudo vai bem, tudo vai mal, mas... você merece

Música do CD Planeta Fome, de Elza Soares, lançado em 2019.

Na Contramão do Mundo

Na contramão do mundo
Ideias podemos ouvir
Objetivos claros
Que já não querem discutir
Mentes que não conversam não
Que não concordam entre si
Quero entender a vida
Porque querem mentir
Palavras tão incertas
Querem fazer a guerra
Tão inseguros de si
E matam pra se distrair
Planejam uma vida
Vida individualista
O mundo, uma bola de gude
Que eles querem conduzir
Eu só quero entender porque
Porque querem agir assim
Mas um dia isso acaba
E tudo fora em vão
Querem sujar suas mãos de sangue
Para lograr uma ambição sem fim
Mas um dia isso acaba
E tudo fora em vão
Na contramão do mundo
Querem fazer a guerra
Tão inseguros de si
Que já não querem discutir

Palavras tão incertas
Que não concordam entre si
Quero entender a vida
Que eles querem conduzir
Eu só quero entender porque
Porque querem agir assim
Mas um dia isso acaba
E tudo fora em vão
Querem sujar suas mãos de sangue
Para lograr uma ambição sem fim
Mas um dia isso acaba
E tudo fora em vão

Música de Myrella Nascimento, do seu CD Tempoética, lançado em 2011.

Construção

Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego...
Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público...
Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o sábado...

Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague
Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça desgraça que a gente tem que tossir
Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair
Deus lhe pague...
Pela mulher carpideira, pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir
Deus lhe pague

Música de Chico Buarque que deu título (Construção) ao seu então LP de 1971. Citação de Deus lhe Pague, do mesmo disco...

segunda-feira, 29 de junho de 2020

Ensinar Português?

Comecemos a conversa, a meio caminho entre o sério e o cômico (também trágico), imaginando um diálogo. Alguém chega e pergunta a um professor de Português...
- Ensina-se mesmo Português, esta língua que a gente usa todo o dia?
- É claro, em escolas do primeiro ao terceiro graus. Há aulas de Português, portanto...
- A quem se ensina Português?
- Ora, além de estrangeiros interessados, ensina-se principalmente a brasileiros...
- ... que já falam Português!... Ah! Então eles não falam Português?!
- Bem, claro que falam, desde crianças...
- Ah! Entendi... Existem duas línguas com o mesmo nome "Português", uma nacional, natural, que todo mundo já nasce falando e uma outra, estrangeira, que é preciso ir à escola aprender...
- ... epa, pera aí! Num é bem assim... Desculpe-me, deixe-me começar novamente a frase:um momento, você está equivocado, este assunto não é exatamente como você está colocando.
- Ué, isto que você acabou de me falar está nessa língua estrangeira?
- Claro que não, pô! Você não entendeu?
- Entendi... Soou um pouco estranho, mas até que bonito. Você fala assim na sua casa, também?
- Claro que não, somente em alguns lugares e com algumas pessoas.
- Ah! Então você troca de língua como troca de roupa, às vezes mais chique, outras mais esportivo, outras mais popular...
- Sim, claro! Você não quer que eu vá falar com o Diretor daquela indústria ali, por exemplo, mal vestido e falando de qualquer jeito, não?
- Como assim?
- Ora, se eu vou falar com um cara tão importante, preciso falar corretamente, palavras bonitas e gramaticalmente bem colocadas...
- ... mesmo se você vai lá pra dizer pra ele que os salários estão horríveis, que tá todo mundo passando fome, que enquanto ele viaja de Mercedes, você anda a pé, que a indústria dele joga todo dia esse cheiro de bosta no nariz de todo mundo...
- Ô meu, para né?! Você já tá baixando o nível... É claro que você precisa falar direitinho... Até pra reclamar...
- Ah!... Então é por isso que se ensina Português... Para as pessoas aprenderem a falar direitinho com os patrões!
- Não simplifica, né?! Não é só isso, não.
- Tem mais?
- Claro, por exemplo. Se você não souber falar e escrever direito, corretamente, você não arranja um bom emprego, não consegue passar num concurso, nem uma boa colocação...
- Poxa, agora estou entendendo melhor; pra arranjar um bom emprego a língua que a gente usa não serve...
- Serve sim, mas só pra coisinhas, conversinhas banais, mas pra subir na vida, ganhar bem, não!
- Ah! Entendi. Então esses milhões de desempregados que estão por aí foram despedidos porque não sabiam escrever e falar corretamente! Eles não podem voltar pra escola?
- Ô meu. Lá vem você de novo com questões que não dizem respeito ao ensino de Português... Quando esses caras quiserem novamente emprego, eles vão ter que saber Português...
- Então você poderia abrir um cursinho de Português para desempregados!
- Vê se não goza, vá!
- Agora me lembrei; você é professor de Português, não é?
- Sou.
- Então você sabe Português perfeitamente, não?
- Claro. Tenho diploma, cursos de aperfeiçoamento, trabalhos publicados, etc...
- Ah! Quer dizer que você deve ganhar superbem, não? Fiquei até com vontade de fazer um curso de Letras...
- Bem... Não é bem assim, você sabe, ehr, hum, ahn... O Estado paga mal...
- ... não quero te deixar chateado, mas sabe, o Diretor daquela indústria que você mostrou agorinha, não sabe falar Português nenhum, nem aquele vulgarzinho, nem esse da escola... E ele ganha muito mais que nós todos juntos...
- Pô, você tá um saco hoje. Vamos mudar de assunto...
- ... não querendo te gozar, mas você que sabe tantos tipos de Português, pode arranjar um bom emprego lá. Assim, conforme a categoria da pessoa que vai ser mandada embora, você vai lá e explica pro sujeito na língua dele. Garanto que eles ficarão menos chateados...
- Chega, meu!
- Tá legal. Mas me lembrei de outra coisa. Um vizinho meu foi procurar emprego de office-boy e deram um teste de gramática pra ele, cheio de perguntas sobre orações subordinadas, colocação de pronomes, onde vai a vírgula, os tempos verbais, um monte de coisas, tudo isso pra ganhar metade de um salário mínimo.
- E ele passou?
- Nem sei direito. Parece que tinha uns mil na fila...
- Poxa, então devem ter selecionado só os muito bons! Tá vendo? Se ele tivesse sido meu aluno...
- É mesmo... Sabe que um amigo meu foi contratado numa indústria prum cargo ótimo, com chofer, mordomias, ordenado altíssimo, tudo mais, e nem fez teste de Português?
- Ah... é?
- As únicas coisas que ele teve que demonstrar era que ele ia ser um Diretor bom, obediente e fazer tudo para o bem da empresa...
- ... bem, ele não precisou fazer teste de Português porque decerto só no contrato já perceberam que ele era uma pessoa educada.
- Ah! Então só se fala bem nas boas famílias? ... Que é uma boa família?
- Você sabe, não se faça de bobo! Você, por exemplo, é de uma boa família, todo mundo é educado, leem bastante, têm muita cultura...
- ... têm dinheiro para comprar livros, frequentar faculdades, fazer mil cursinhos...
- ... então, é isso aí uma boa família...
- ... mas os mais ricos são os que menos leem, estudam, só tem tempo para ganhar e gastar...
- ... mas continua sendo uma boa família...
- Então, já sei! Boa família é uma família com dinheiro, bastante dinheiro... que pena... em nosso país há pouquíssimas boas famílias e milhões de péssimas...
- Pô, você não aguenta mesmo levar um papo sério, vem logo ironizando, exagerando, radicalizando... Parece que você ainda é adolescente... Gente imatura é que é assim, rebelde, enxergando só um lado das coisas... Tudo tem seu lado ruim e seu lado bom.
- Bem, tá legal, mas me diga só uma outra coisa. Você dá aulas, ou melhor, vende aulas em duas escolas, uma particular, e outra, estadual. O Português que você ensina é o mesmo, numa e noutra?
- Claro que é, o Português é uma língua só, todo mundo tem que falar igual.
- Quer dizer que os alunos das duas escolas são iguais, aprendem tudo igualzinho?
- Não. É evidente que não! Na escola estadual, onde dou aula à noite, eles vêm cansados, trabalharam o dia inteiro, quase dorme na aula; não têm tempo de ler, estudar, não têm base, vão passando de ano sem saber nada...
- E daí?
- ... eu tenho que dar um curso mais fraco, ensinar menos coisas, dar mais bases e...
- E na escola particular?
- Ah! Lá é diferentes. Eles leem muito mais, já vêm com muitas informações, o curso anda bem, eles falam e escrevem bem...
- ... então suas aulas na escola estadual são mais baratas, você capricha menos, usa menos material e...
- Pera aí, não é isso, não... Eu quero que os meus alunos cheguem até onde estão os alunos ricos, que eles consigam acompanhar o meu curso, que na escola particular tem um nível mais alto...
- Ah! Agora entendi bem... Você acha que a língua dos ricos é melhor e que os alunos mais pobres devem se esforçar para chegar lá, onde estão aqueles, é só falar e escrever; bem, o resto não é necessário...
- Não, não, também é necessário que eles saibam muitas outras coisas sobre a sociedade, a vida, etc, etc... Mas isso não é problema meu... Isso é com o professor de História, de Estudos Sociais.
- Puxa! Já vi que você pode entender muito de Português, mas não entende quase nada de Educação... Nesse ponto, você está no mesmo ponto do seu aluno que não sabe ler...
- Bem. Chega! Não quero mais papo com você hoje; está muito agressivo e complicado...
- Ah!...
- Agora, falando um pouco mais sério...

A língua é produzida socialmente. Isto que dizer que a sua produção e reprodução é fato cotidiano, localizado no tempo e no espaço da vida dos homens: uma questão dentro da vida e da morte, do prazer e do sofrer. Numa sociedade, como a brasileira, que por sua dinâmica econômica e política divide e individualiza as pessoas, isola-as em grupos, distribui a miséria entre a maioria e concentra os privilégios nas mãos de poucos, a língua não poderia deixar de ser, entre outras coisas, também a expressão dessa mesma situação.

Miséria social e miséria da Língua confundem-se e uma engendra a outra, formando o quadro triste da vida brasileira, vale dizer, o quadro deprimente da fala brasileira. A economia desumana praticada no Brasil mata antes de nascer milhares de futuros falantes. A taxa de mortalidade infantil no Brasil é uma das maiores do mundo. A voz de milhares de brasileiros é calada antes mesmo de conseguir dar o primeiro choro. Mas alguns ainda conseguem chegar até os dois anos e aí apropriar-se de um instrumental importante, a Língua, a Linguagem. Para esses, começa uma nova luta. Uma boa parte não terá muito tempo para falar, pois no mercado da miséria, alguns cruzeiros a mais no salário representarão certamente alguns anos a mais de vida. Por exemplo: segundo o IBGE, 1984, para quem ganha até 1 salário mínimo, a esperança de vida é de 54,8 anos, mas para quem ganha mais de 5 salários mínimos, a esperança de vida aumenta para 69,6 anos. Portanto, salários mínimos a mais representam anos de vida a mais.

Vemos que conseguir falar, hoje, já é uma proeza fantástica para a multidão que não desfruta das riquezas econômicas (que ela mesma produz). Agora, a pergunta que se segue é "esses sobreviventes conseguem falar"? Não meramente grunhir uns sons para suprir necessidades básicas, mas falar mesmo, dizer o mundo, suas vidas, seus desejos, prazeres, dizer coisas para transformar coisas, dizer o seu sofrimento e suas causas, dizer o que fazer para mudar, lutar. Pobres falantes! O seu trabalho não tem palavras, tem ferramentas e isolamento. É um trabalho mecânico, infeliz, repetido, ao lado dos companheiros, mas longe deles, sua conversa é como a máquina, a enxada. Em pequenos intervalos permitem-lhe abrir a boca para comer a ração diária que  lhe mal repõe as energias para durar aqueles 30/35 anos que lhe deu a graça de ter nascido do lado errado do rio.

Chegando em casa, esgotado, mal ouve as palavras domésticas ditadas pela TV ou gritadas pelos filhos, o rebanho doméstico, peças de futuras reposições. Se tem sorte, chega cedo, pode ouvir a vida nas novelas, no mundo dos auditórios. Ele, ela, pobretões, podem ouvir. De posse do instrumento Língua, eles não podem usá-lo integralmente. À maioria é permitido ouvir, não falar. O professor do ouvir é a TV, monopólio e concessão do Estado e das empresas privadas. A TV é professora antiga, autoritária, só fala, fala, nunca ouve. O aluno, espectador, é também aquele antigo, passivo, conformado, só ouve. A TV é como uma escolinha, a cada horário corresponde uma série, de acordo com o "desenvolvimento mental do aluno". Quanto mais cedo o horário, mais primária a programação, mas a quantidade dos alunos/espectadores é imensa. Com o subir das séries muda o nível do programa, os espectadores também. E assim, nas últimas séries/programas a evasão é enorme, há poucos alunos. Só que a educação é a inversa da escola, pois aqui se trata de prazer: sobram os que a sociedade já selecionou que podem ouvir e ver qualquer coisa, pois não vão fazer nada, seus estômagos estão tranquilos, sua vida arrumada.

É claro que comer é importante, e no Brasil todos comem. Verdade? Alguns comem muito, outros nada. Ora, ouvir, entendendo, e falar, fazendo-se entender, são habilidades estreitamente ligadas ao desenvolvimento mental, vale dizer, relacionadas à alimentação, principalmente nos primeiros anos de vida. Também nessa área o Brasil é triste. Sua população é, na maioria, mal alimentada, desnutrida, doente. Podendo deduzir, então, que somente uma pequena quantidade de pessoas tem condições naturais de falar, pensar e usufruir de literatura, poesia, textos importantes, teatros, cinema.

E a escola? Muitas vezes ela esquece que a educação é um problema social e encara-o como problema cultural, pedagógico. Sem o menor respeito pelas condições de vida de seus frequentadores impõe-lhes modelos de ensino e conteúdo justamente produzidos para conservação dessa situação injusta, indecente, que esboçamos anteriormente. Sem fazer a crítica verdadeira, histórica, do saber que coloca aos alunos, a escola considera todo e qualquer conteúdo válido, muitas vezes baseado em preconceitos, ignorâncias, verdades incontestáveis, dogmáticas. E assim vemos muitos professores de Português, tragicamente, ensinando análise sintática a crianças mal alimentadas, pálidas, que acabam depois de aulas onde não faltam castigos e broncas, condicionadas a distinguir o sujeito de uma oração. Estas crianças passarão alguns anos na escola sem saber que elas poderão acertar o sujeito da oração mas nunca serão o sujeito das suas próprias histórias. A menos que...

Texto de Milton José de Almeida.

domingo, 28 de junho de 2020

De La Amistad

Y un joven dijo: "Háblanos de la amistad".

Y é respondió:

"Vuestro amigo es la respuesta a vuestras necesidades.

El es el campo que sembráis con amor y cosecháis con agradecimiento.

El es vuestra mesa y el fuego de vuestro hogar.

Porque os acercáis a él con vuestro hambre, y le buscáis sedientos de paz.


Cuando vuestro amigo os manifieste su pensamiento, no temáis el "no" en vuestra cabeza, ni retengáis el "sí".

Y cuando él permanezca en silencio, que vuestro corazón no deje de oír su corazón.

Porque en la amistad, todos los pensamientos, todos los deseos, todas las esperanzas nacen y se comparten con gozo y sin alardes.

Cuando os alejéis de vuestro amigo, no sintáis dolor.

Porque lo que más amáis en él quizá esté más claro en su ausencia, igual que la montaña es más clara desde el llano para el que quiere subirla.

Y no permitáis que haya en la amistad otro interés que el que os lleve a profundizar en el espíritu.

Porque el amor que no busca más que la revelación de su propio misterio no es amor, sino una red tendida que sólo recoge la pesca inútil.


Que lo mejor de vosotros sea para vuestro amigo.

Si ha de conocer el flujo de vuestra marea, que también conozca su reflujo.

Porque, qué amigo sería aquel que tuvierais que buscaros para matar las horas?

Buscadlo para vivir la horas.

Porque existe para colmar vuestra necesidad, no vuestro vacío.

Y haced que en la dulzura de la amistad haya risa e placeres compartidos.

Porque en el rocío de las cosas pequeñas, el corazón encuentra su alborada y se refresca."

Del libro "El Profeta", de Gibrán Jalil Gibrán, traducción de Mauro Armiño. Biblioteca Edaf.