24 novembro 2025

O Vampiro de Curitiba

Ai, me dá vontade até de morrer. Veja, a boquinha dela está pedindo beijo - beijo de virgem é mordida de bicho-cabeludo. Você grita vinte e quatro horas e desmaia feliz. É uma que molha o lábio com a ponta da língua para ficar mais excitante. Por que Deus fez da mulher o suspiro do moço e o sumidouro do velho? Não é justo para um pecador como eu. Ai, eu morro só de olhar para ela, imagine então se. Não imagine, arara bêbada. São onze da manhã, não sobrevivo até à noite. Se fosse me chegando, quem não quer nada - ai, querida, é uma folha seca ao vento - e encostasse bem devagar na safadinha. Acho que morreria: fecho os olhos e me derreto de gozo. Não quero do mundo mais que duas ou três só para mim. Aqui diante dela, pode que se encante com o meu bigodinho. Desgraçada! Fez que não me enxergou: eis uma borboleta acima de minha cabecinha doida. Olha através de mim e lê o cartaz de cinema no muro. Sou eu nuvem ou folha seca ao vento? Maldita feiticeira, queimá-la viva, em fogo lento. Piedade não tem no coração negro de ameixa. Não sabe o que é gemer de amor. Bom seria pendurá-la cabeça para baixo, esvaída em sangue.

Se não quer, por que exibe as graças em vez de esconder? Hei de chupar a carótida de uma por uma. Até lá enxugo os meus conhaques. Por causa de uma cadelinha como essa que aí vai rebolando-se inteira. Quieto no seu canto, ela que começou. Ninguém diga seu taradinho. No fundo de cada filho de família dorme um vampiro - não sinta gosto de sangue. Eunuco, ai quem me dera. Castrado aos cinco anos. Morda a língua, seu desgraçado. Um anjo pode dizer amém! Muito sofredor ver moça bonita - e são tantas. Perdoe a  indiscrição, querida, deixa o recheio do sonho para as formigas? Ó, você permite, minha flor? Só um pouquinho, um beijinho só. Mais um, só mais um. Outro mais. Não vai doer, se doer eu caia duro a seus pés. Por Deus do céu não lhe faça mal - o nome de guerra é Nelsinho, o Delicado.

Olhos velados que suplicam e fogem ao surpreender no óculo o lampejo do crime? Com elas usar de agradinho e doçura. Ser gentilíssimo. A impaciência é que me perde, a quantas afugentei com gesto precipitado? Culpa minha não é. Elas fizeram o que sou - oco de pau podre, onde floresce aranha, cobra, escorpião. Sempre se enfeitando, se pintando, se adorando no espelhinho da bolsa. Se não é para deixar assanhado um pobre cristão por que então? Olhe as filhas da cidade, como elas crescem: não trabalham nem fiam, bem que estão gordinhas. Essa é uma das lascivas que gostam de se coçar. Ouça o risco da unha na meia de seda. Que me arranhasse o corpo inteiro, vertendo sangue do peito. Aqui jaz Nelsinho, o que se finou de ataque. Gênio do espelho, existe em Curitiba alguém mais aflito do que eu?

Não olhe, infeliz! Não olhe que você está perdido. É das tais que se divertem a seduzir o adolescente. Toda de preto, meia preta, upa lá lá. Órfã ou viúva? Marido enterrado, o véu esconde as espinhas que, noite para o dia, irrompem no rosto - o sarampo da viuvez em flor. Furiosa, recolhe o leiteiro e o padeiro. Muita noite revolve-se na cama de casal, abana-se com leque recebendo a valeriana. Outra, com a roupa da cozinheira, à caça de soldado pela rua. Ela está de preto, a quarentena do nojo. Repare na saia curta, distrai-se a repuxá-la no joelho. Ah, o joelho... Redondinho de curva mais doce que o pêssego maduro. Ai, ser a liga roxa que aperta a coxa fosforescente de brancura. Ai, o sapato que machuca o pé. E, sapato, ser esmagado pela dona do pezinho e morrer gemendo. Como um gato!

Veja, parou um carro. Ela vai descer. Colocar-me em posição. Ai, querida, não faça isso: eu vi tudo. Disfarce, vem o marido, raça de cornudo. Atrai o pobre rapaz que se deite com a mulher. Contenta-se em espiar ao lado da cama - acho que ficaria inibido. No fundo, herói de bons sentimentos. Aquele tipo do bar, aconteceu com ele. Esse aí um dos tais? Puxa, que olhar feroz. Alguns preferem o rapaz, seria capaz de? Deus me livre beijar outro homem, ainda mais de bigode e catinga de cigarro? Na pontinha da língua a mulher filtra o mel que embebeda o colibri e enraivece o vampiro.

Cedo a casadinha vai às compras. Ah, pintada de ouro, vestida de pluma, pena e arminho - rasgando com os dentes, deixá-la com os cabelos do corpo. Ó bracinho nu e rechonchudo - se não quer por que mostra em vez de esconder? -, com uma agulha desenho tatuagem obscena. Tem piedade, Senhor, são tantas, eu tão sozinho.

Ali vai uma normalista. Uma das tais disfarçada? Se eu desse com o famoso bordel. Todas de azul e branco - ó mãe do céu - desfilando com meia preta e liga roxa no salão de espelhos. Não faça isso, querida, entro em levitação: força dos vinte anos. Olhe, suspenso nove centímetros do chão, desferia voo não fora o lastro da pombinha do amor. Meu Deus, fique velho depressa. Feche o olho, conte um, dois, três e, ao abri-lo, ancião de barba branca. Não se iluda, arara bêbada. Nem o patriarca merece confiança, logo mais com a ducha fria, a cantárida, o anel mágico - conheci cada pai de família.

Atropelado por um carro, se a polícia achasse no bolso esta coleção de retratos? Linchado como tarado, a vergonha da cidade. Meu padrinho nunca perdoaria: o menino que marcava com miolo de pão a trilha na floresta. Ora uma foto na revista do dentista. Ora na carta a uma viuvinha de sétimo dia. Imagine o susto, a vergonha fingida, as horas de delírio na alcova - à palavra alcova um nó na garganta.

Toda família tem uma virgem abrasada no quarto. Não me engana, a safadinha: banho de assento, três ladainhas e vai para a janela, olho arregalado no primeiro varão. Lá envelhece, cotovelo na almofada, a solteirona na sua tina de formol.

Por que a mão no bolso, querida? Mão cabeluda de lobisomem. Não olhe agora. Cara feia, está perdido. Tarde demais, já vi a loira: milharal ondulante ao peso das espigas maduras. Oxigenada, a sobrancelha preta - como não roer unha? Por ti serei maior que o motociclista do Globo da Morte. Deixa estar, quer bonitão de bigodinho. Ora, bigodinho eu tenho. Não sou bonito, mas sou simpático, isso não vale nada? Uma vergonha na minha idade. Lá vou eu atrás dela, quando menino era a bandinha do Trio Rio Branco.

Desdenhosa, o passo resoluto espirra faísca das pedras. A própria égua de Átila - onde pisa, a grama já não cresce. No braço não sente a baba do meu olho? Se existe força do pensamento, na nuca os sete beijos da paixão.

Vai longe. Não cheirou na rosa a cinza do coração da andorinha. A loira, tonta, abandona-se na mesma hora. Ó morcego, ó andorinha, ó mosca! Mãe do céu, até as moscas instrumento do prazer - de quantas arranquei as asas? Brado aos céus: como não ter espinha na cara?

Eu vos desprezo, virgens incrédulas. A todas poderia desfrutar - nem uma baixou sobre mim o olho estrábico de luxuria. Ah, eu bode imundo e chifrudo, rastejariam e beijavam a cola peluda. Tão bom, só posso morrer. Calma, rapaz: admirando as pirâmides marchadoras de Quéops, Quéfren e Miquerinos, quem se importa com o sangue dos escravos? Me acuda, ó Deus. Não a vergonha, Senhor, chorar no meio da rua. Pobre rapaz na danação dos vinte anos. Carregar vidro de sanguessugas e, na hora do perigo, pregá-las na nuca?

Se o cego não vê a fumaça e não fuma, ó Deus, enterra-me no olho a tua agulha de fogo. Não mais cão sarnento atormentado pelas pulgas, que dá voltas para morder o rabo. Em despedida - ó curvas, ó delícias - concede-me a mulherinha que aí vai. Em troca da última fêmea pulo no braseiro - os pés em carne viva. Ai, vontade de morrer até. A boquinha dela pedindo beijo - beijo de virgem é mordida de bicho-cabeludo. Você grita vinte e quatro hora e desmaia feliz.


Conto de Dalton Trevisan retirado do livro O Vampiro de Curitiba, Editora Record, 14ª Edição, Rio de Janeiro, 1994.

23 novembro 2025

Entrevistas Telefônicas

Antigamente, o repórter envergava a sua melhor roupa, lançava um olhar às unhas e à barba, examinava o dinheiro do bolso, e lá ia com o fotógrafo à busca de sua entrevista. Pensava no que ia perguntar. Estabelecia um plano, um esquema. Examinava o seu caderno de apontamentos. Riscava. Acrescentava. Creio que alguns ensaiariam mesmo a maneira de abordar o assunto. Pesariam as palavras. Para cada pessoa há uma espécie de diálogo. Cada diálogo tem seu vocabulário. O repórter, só com a escola da experiência, com seu senso de responsabilidade e a sua vontade de acertar, comparecia respeitosamente diante do seu entrevistado. E, no fim da conversa, prontificava-se a mandar-lhe o seu trabalho, antes de publicá-lo, para alguma correção necessária.

Um repórter assim parece criatura paleontológica. Mas alguns ainda estão vivos, pela vizinhança. Talvez apenas estejam aposentados ou tenham mudado de profissão, pois os tempos mudaram completamente.

Como os meios de transporte se tornaram impossíveis; e como todos somos tão ocupados que ninguém nos encontra com facilidade; como, além disso, nos tornamos tão inteligentes que podemos concentrar numa simples frase uma ideia sublime, capaz de desvendar mistérios, de transformar o mundo e mesmo atingir o universo em seus fundamentos, a reportagem pode ser feita com muito mais facilidade mediante uma ligação telefônica.

Assim, estamos nós mergulhados numa leitura inadiável, com o pensamento comprometido numa direção, e a voz mais gentil deste mundo pergunta-nos muito obsequiosamente se vamos ou não vamos ganhar o campeonato de futebol; o que pensamos dos amores de Elizabeth Taylor; quem deve ser indicado o homem do ano; se iremos à Luz no ano que vem; se as crianças devem ou não assistir a programas de televisão; se somos a favor ou contra a eutanásia; qual é a senhora mais elegante do mundo; se os mortos devem ser enterrados ou cremados; se a Princesa Soraia poderá vir a ser uma boa artista de cinema; se o melhor meio de ir para Niterói será a ponte ou o túnel; se as escolas devem ter um, dois ou três turnos; qual é a melhor maneira de acabar com o analfabetismo; se o morro do Querosene cai ou deve ser derrubado; se acreditamos que os macacos tenham possibilidade de falar; se os autômatos seriam uma solução para a falta de empregados; qual seria o maior poeta do mundo e quem deve ganhar o Prêmio Nobel; se haverá guerra no Oriente, e quando; se existem barras de ouro nos muros das casas de Ouro Preto; se o carnaval está mesmo acabando ou ainda vai durar alguns anos; se os homens sabem amar melhor que as mulheres ou vice-versa.

Então, nós, da nossa modéstia, na certeza de não sermos nem enciclopedistas, nem adivinhos, nem mesmo observadores internacionais, tropeçamos diante da voz tão amável. Como podemos responder? Quem sabe? É difícil dizer...

Mas a voz não é muito exigente. Uma palavra basta. Sim ou não... Qualquer coisa... Apenas para satisfazer a curiosidade dos leitores...

E então, que fazemos? Porque não se deve ser como uma porta fechada a quem bate e chama por nós, respondemos ao acaso. (Salvo os privilegiados, com presença de espírito, onisciência e genialidade telefônica.)

Mas na semana seguinte os amigos e conhecidos nos felicitam efusivamente. Estivemos formidáveis. Brilhantíssimos. Estupendos. É exatamente assim que eles pensam. E que clareza de resposta! Nítida. Concisa. Perfeita.

E temos até receio de ficar melancólicos. Como nos podemos confessar humilhados com essa perfeição?


Crônica de Cecília Meireles retirada do livro Ilusões do Mundo, Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1976.

A Galeria

Entro por um dos lados da galeria, mas não são as primeiras lojas as que mais me interessam, embora se trate de bons restaurantes, com suas vidraças forradas de cortininhas franzidas, por trás das quais bem me lembro do apuro das claras toalhas e dos brilhantes cristais.

Vejo a bela vitrina das modas; detenho-me a contemplar os brocados orientais, esse primor de tecelagem, com figuras, cenas, paisagens, que aparecem e desaparecem ora com fios de seda branca, ora em fios de seda cor de ouro. (Que mão se atreve a cortar um pano destes? Que obra de arte pode essa mão criar que seja superior a essa obra de arte?)

Vejo a pastelaria com sua variedade de pães, bolos, biscoitos, todas as combinações que os homens engendraram sobre o trigo e a simples e primitiva necessidade de se alimentarem. (Houve um homem, na minha raça, que se descobria diante do trigo ceifado. Alguém atreveu-se a perguntar-lhe, certa vez, por que assim fazia. E ele, reverente e sóbrio, respondeu-lhe, com o sucinto falar de seu tempo: "Porque o trigo é sagrado: sem ele não se celebra.")

Vejo a pequena loja de objetos vários; bolsinhas de petit-point, broches de porcelana, colheres de prata, lenços de seda, caixinhas; o dono da loja está sempre no mesmo lugar, sentado da mesma maneira, lendo um jornal (que espero não seja o mesmo), com a mesma expressão no rosto sereno. Entra-se para comprar qualquer coisa, ele atende, embrulha, dá o troco, volta para o mesmo lugar, continua a ler o que estava lendo, e é como se não tivesse acontecido nada. (Pensando bem, acontece alguma coisa em tais ocasiões, entre vendedor e comprador? Algum dos dois fica mais feliz? Ou tudo são ilusões trocadas, pequeno jogo que aprendemos e vamos repetindo, neste mundo de modestos deslumbramentos e precárias rotinas?) Enfim, o dono da loja senta-se da mesma maneira, retoma o seu jornal e é como se nada daquilo lhe pertencesse, nem se importasse que aparecesse qualquer freguês.

Mais adiante, ao contrário, é a loja surpreendente de um jovem cheio de entusiasmo e agitação. O que se vende? Vende-se tudo quanto a fantasia humana é capaz de inventar, e especialmente artigos para cotillon, curiosidades para dias de festa; chapeuzinhos de papel, charutos que parecem acesos, cartolinhas que apertadas de certo modo fazem saltar lá de dentro um coelhinho branco, binóculos que não medem mais de uns dois centímetros - sem falar em vistas transparentes sobre assuntos que podem ser dos mais inocentes, como o Monte Branco, até os mais perigosos, impróprios para menores e senhoras, e que estão separadas em outra caixa, para uma freguesia especial.

E assim prossegue a tranquila galeria. Uns param diante da vitrina de artigos fotográficos: - Que máquinas, que tripés! - inclinam-se, agacham-se, acocoram-se, enviam a todas aquelas peças olhares perpendiculares, transversais e creio que até mesmo elíticos; olhares que veem do outro lado das coisas e o interior das próprias coisas, que desmontam, aparafusam, atarraxam esses segredos mecânicos, engenhosos e sutis. E tudo para quê? Para fotografar este mundo, as pessoas e os objetos deste mundo, como se tudo devesse ser fixado, tudo merecesse perdurar, tudo tivesse uma parte de valor inesquecível; enfim, o seu instante divino e imortal.

Ah! Muita coisa se aprende, a caminhar por uma galeria de lojas tão diversas, de proprietários tão diferentes, e por onde os passantes - tão civilizados - são umas sombras silenciosas que, diante de cada vitrina, procuram compreensão, comunicação, interpretação entre os desejos que levam consigo e as múltiplas sugestões que aos seus olhos se apresentam.

No fim de tudo, e quando já é noite, no salãozinho à meia-luz, um pianista martela no seu piano verde monótonos ritmos intermináveis, a cujo som as belas senhoras jantam, pensativas, sem que se possa adivinhar o que, a cada uma, possa dizer cada nota.


Crônica de Cecília Meireles retirada do livro Ilusões do Mundo, Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1976.

22 novembro 2025

Compensação

Hoje eu queria apenas abrir um álbum de fotografias, onde não houvesse gente de olhos duros e mãos aduncas. Onde umas boas senhoras pousassem no papel com delicadeza, não para sobreviverem eternamente, mas para mandarem seus retratos às amigas com finas letras de "sincera afeição". Um álbum onde aparecessem uns bons velhotes que não faziam negociatas, que não sabiam multiplicar dinheiro, que usavam roupas desajeitadas, sofriam de reumatismo, liam Virgílio e Horácio, e não tinham medo dos fantasmas do porão. De lá de dentro de seus retratos essas sombras estariam dizendo: "Meus filhos, nada disso vale a pena..." (E saberíamos que falavam de parentes sôfregos, ávidos de partilhas, uns querendo herdar as terras do morro; outros, a mata; outros, a várzea - todos vivendo já do testamento, antes mesmo da extrema-unção...) Hoje eu queria ficar folheando este álbum, onde não desejaria encontrar aqueles herdeiros.

Hoje eu queria ler uns livros que não falam de gente, mas só de bichos, de plantas, de pedras: um livro que me levasse por essas solidões da Natureza, sem vozes humanas, sem discursos, boatos, mentiras, calúnias, falsidades, elogios, celebrações...

Hoje eu queria apenas ver uma flor abrir-se, desmanchar-se, viver sua existência, autêntica, integral, do nascimento à morte, muito breve, sem borboletas nem abelhas de permeio. Uma existência total, no seu mistério. (E antes da flor? - Não sei.) (E depois da flor? - Não sei.) Esta ignorância humana. Este silêncio do universo. A sabedoria.

Hoje eu queria estar entre as nuvens, na velocidade das nuvens, na sua fragilidades, na sua docilidade de serem e deixarem de ser. Livremente. Sem interesse próprio. Confiante. À mercê da vida. Sem nenhum sonho de durarem um pouco mais, de ficarem no céu até o ano 2000, de terem emprego público, férias, abono de Natal, montepio, prêmio de loteria, discurso à beira do túmulo, nome em placa de rua, busto no jardim... (Ó nuvens prodigiosas, criaturas efêmeras que estais tão alto e não pretendeis nada, e sois capazes de obscurecer o sol e de fazer frutificar a terra, e não tendes vaidade nenhuma nem apego a esses acasos!) Hoje eu queria andar lá em cima nas nuvens, com as nuvens, pelas nuvens, para as nuvens...

Hoje eu queria estar no deserto amarelo, sem beduíno, camelo ou rebanho de cabras: no puro deserto amarelo onde só reina o vento grandioso que leva tudo, que não precisa nem de água, nem de areia, nem de flor, nem de pedra, nem de gente. O vento solitário que vai para longe de mãos vazias.

Hoje eu queria ser esse vento.


Crônica de Cecília Meireles retirada do livro Escolha o Seu Sonho, Editora Record,  21ª edição, Rio de Janeiro, 1998.

Capacete da Esperança (94)

 "Tendo por capacete a esperança na salvação." - Paulo. (I TESSALONICENSES, 5:8.)


O Capacete é a defesa da cabeça em que a vida situa a sede de manifestação do pensamento e Paulo não podia lembrar outro símbolo mais adequado à vestidura do cérebro cristão, além do capacete da esperança na salvação.

Se o sentimento, muitas vezes, está sujeito aos ataques da cólera violenta, o raciocínio, em muitas ocasiões, sofre o assédio do desânimo, à frente da luta pela vitória do bem, que não pode esmorecer em tempo algum.

Raios anestesiantes são desfechados sobre o ânimo dos aprendizes por todas as forças contrárias ao Evangelho salvador.

A exigência de todos e a indiferença de muitos procuram cristalizar a energia do discípulo, dispersando-lhe os impulsos nobres ou neutralizando-lhe os ideais de renovação.

Contudo, é imprescindível esperar sempre o desenvolvimento dos princípios latentes do bem, ainda mesmo quando o mal transitório estenda raízes em todas as direções.

É necessário esperar o fortalecimento do fraco, à maneira do lavrador que não perde a confiança nos grelos tenros; aguardar a alegria e a coragem dos tristes, com a mesma expectativa do floricultor que conta com revelações de perfume e beleza no jardim cheio de ramos nus.

É imperioso reconhecer, todavia, que a serenidade do cristão nunca representa atitude inoperante, por agir e melhorar continuamente pessoas, coisas e situações, em todas as particularidades do caminho.

Por isso mesmo, talvez, o apóstolo não se refere à touca protetora.

Chapéu, quase sempre, indica passeio, descanso, lazer, quando não defina convenção no traje exterior, de acordo com a moda estabelecida.

Capacete, porém, é indumentária de luta, esforço, defensiva.

E o discípulo de Jesus é um combatente efetivo contra o mal, que não dispõe de muito tempo para cogitar de si mesmo, nem pode exigir demasiado repouso, quando sabe que o próprio Mestre permanece em trabalho ativo e edificante.

Resguardemos, pois, o nosso pensamento com o capacete da esperança fiel e prossigamos para a vitória suprema do bem.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

21 novembro 2025

Sonho de menino analfabeto

 O chão foi meu quadro-negro;

gravetos, o meu giz. (Paulo Freire)


Quero aprender a ler e a escrever logo.

Quero sentar no chão do meu quintal e, com prego ou graveto, escrever um montão de palavras bem bonitas. No chão, já desenho melhor do que no caderno.

Quero escrever um dia nomes de gente muito amada; de minha mãe; de meu pai, dos meus irmãos, de meu avô, de minha avó, dos meus tios e primos.

Quero escrever nomes de países sonhados, de brinquedos perdidos ou quebrados. Nomes de todos os bichos e coisas que já tive e perdi por aí.

Quero escrever como quem sonha e pode dar nome a tudo. Só que nomes escritos, pois já não me interessam os falados.

Vou me lembrar dos amigos todos, dos parentes todos, até daqueles que já sumiram deste mundo e moram agora no céu.

Desenhar um coração, eu já sei. Fazer uma flecha cortando o coração, também já sei. Agora faltam duas coisas: arrumar minha primeira namorada e aprender a escrever, no coração dividido, os nomes meu e dela.

Quando eu souber escrever, vai ser tudo diferente... Posso escrever todos os meus sonhos, todas as minhas alegrias e também as minhas tristezas. Sonho escrito deve durar mais. Tristeza escrita deve se apagar dentro da gente e ficar inteirinha no papel.

Daqui a um ano, vou deixar só de rabiscar bolinhas e montanhas. Vou deixar de colorir coisas chatas, que já vêm desenhadas pra gente. Vou aprender a escrever e a desenhar tudo o que vejo no mundo: gente, flor, bicho, casa e coisas.

Acho que quem escreve pode ser meio dono deste mundo...


Conto de Elias José retirado do livro O Furta-Sonos e Outras Histórias, Coleção Era Uma Vez, Atual Editora, 4ª Edição, São Paulo, 1991.

O Dono da Bola

A coisa mais joia, mais maravilha das maravilhas, a maior sensação é ser dono da bola de futebol. Uma bola de capotão, durinha, feita de couro, com partes brancas e outras negras. Uma bola de verdade, não essas feitas de meia velha, que grudam no chão. Bola bonita e firme pra gente chutar e chutar, até fazer gol.

E a molecada da rua, vendo a bola, fica sempre com muita inveja. E agrada que agrada a gente.

Quem tem uma bola assim de verdade vira rei. Vira príncipe. Vira tudo o que quiser. Basta falar "quero", e todo mundo obedece, com medo de não entrar no futebol.

Quero uma bola lindona, de couro puro, durinha, branca e preta.

Já ando cheio de chutar bola de meia velha. De chutar tudo o que vejo e que tem forma arredondada ou oval. De chutar lima, limão, laranja, manga, mamão e até bolinhas de papel.

Quero uma bola de verdade, bem minha. Não quero mais saber de bola de couro que só more nos meus sonhos.

Quando tiver minha bola, ninguém vai poder comigo. Vou ser o moleque mais feliz e mais respeitado e mais amado de minha rua. Quem tem uma bola de couro, uma bola durinha, de verdade, branca e preta, não precisa de mais nada...


Conto de Elias José retirado do livro O Furta-Sonos e Outras Histórias, Coleção Era Uma Vez, Atual Editora, 4ª Edição, São Paulo, 1991.

20 novembro 2025

Fazendo cabeças para quem vai nascer

Com as próprias mãos, Oxalá amassou o barro e com ele modelou os bonecos aos quais deu a vida com o sopro de Olorum, transformando-os em seres humanos. Mas isso também não foi nada fácil. O Criador fracassou várias vezes antes de chegar à matéria-prima mais adequada para a modelagem dos humanos.

Primeiro os fez de ar, mas eles se desvaneciam, sem consistência. Com água também não funcionou: as criaturas lhe escorriam por entre os dedos, caíam num jorro e se infiltravam no solo.

Oxalá achou que tinha que dar mais solidez ao ser humano e tentou fazê-lo de pau. Agora sim, os novos seres se mantinham firmes e não lhe escapavam das mãos. Só que ficaram duros demais, quase nem podiam se mexer.

E assim Oxalá foi experimentando tudo quanto era material que lhe parecia apropriado. De ferro, os modelos do ser humano ficaram pesados demais. De massa de inhame ficaram leves, mas muito moles.

Adetutu ficou tentada a sugerir a Oxalá que pedisse ajuda a Exu, mas decidiu não se meter na Criação. Exu insistia em seu ouvido:

"Diga a ele para me pedir ajuda, diga."

Ela preferiu ficar quieta. Mas Oxalá, talvez ciente da conversa de Exu com Adetutu, chamou o imrão e lhe deu de presente um galo preto bem gordo para reforçar a oferenda anterior.

Passoi-se algum tempo e nada aconteceu. Frustrado e com medo do fracasso, Oxalá se sentou às margens de um lago para descansar e refletir.

Nanã, que habitava o fundo daquelas águas, veio em socorro de Oxalá. Quando Nanã saiu do lago, a visão de seu corpo feito de lama iluminou a mente de Oxalá.

"Você, que é a mais antiga de nós, se move tão bem com seu corpo de lama. E como é bela!", ele disse. "De lama poderia ser também o corpo dos humanos."

Adetutu imaginou seu corpo feito de lama e avaliou que não ficara nada mau.

Nanã disse:

"Pode usar a lama e fazer quantos humanos quiser. Mas se um dia não tiver mais um bom uso para suas criaturas e decidir se desfazer delas, terá que me devolver a matéria-prima."

"Feito", concordou Oxalá, satisfeito com o trato, achando que nunca teria de devolver nada a Nanã.

Então, com uma porção de barro do fundo do lago, Oxalá modelou sua criatura e lhe deu vida. Fez corpo, cabeça e membros. Recheou com o coração, os pulmões, as tripas e os demais componentes que preenchem a barriga. Fez dois modelos iguais. Num, pôs pênis e testículos; no outro, ovário útero e vagina, e seios cheios de leite. Para que a criatura dotada de pênis penetrasse a criatura dotada de vagina, e suas sementes se misturassem e produzissem outras criaturas, sem mais trabalho para Oxalá, que poderia descansar.

Caprichou o quanto pôde. Só esqueceu de pôr alguma coisa dentro da cabeça.

Dotados de vida, os seres, que foram chamados homem e mulher, não pensavam, não agiam, nem mesmo se interessavam um pelo outro. Bela reprodução!, pensou Oxalá, desolado.

Foi consultar o adivinho Ifá para saber onde errara.

Seguia acompanhado de Adetutu, que segurava sua mão e procurava encorajá-lo.

O resultado da consulta ao oráculo foi bastante promissor. Disse Ifá:

"Está tudo certo, meu irmão. Você apenas esqueceu de dar a cada ser humano um destino, as vontades e o raciocínio próprio. Basta completar sua obra, e ela funcionará."

"Ah, bom!", reagiu Oxalá, aliviado.

Oxalá pagou a Ifá duas porções de azeite e dezesseis fileiras de búzios pela adivinhação, despediu-se e, depois de deixar na encruzilhada mais um agradinho para Exu, foi à casa de outro irmão, o oleiro Ajalá.

Combinaram que a partir de então, para cada homem ou mulher, Ajalá forneceria o recheio do crânio, que conteria o destino e a personalidade de cada um.

Assim foi feito.

Bastou que as criaturas recebessem o que está dentro da cabeça para saírem pelo mundo como seres humanos prontos para a vida.

De seu palácio. Olorum sorriu para Oxalá, agradecido, e se retirou para seus aposentos.

Oxalá estava cansado, muito cansado, mas a obra, enfim, estava feita.

Antes de voltar para casa, deu a Adetutu um caracol, que ela guardou na sua sacolinha de segredos.

E desde então os homens se multiplicaram e tomaram conta da Terra. Hoje são seus senhores. E Oxalá pôde descansar.

A labuta do oleiro Ajalá, entretanto, prossegue até os dias de hoje: antes de nascer, cada ser humano deve passar na olaria de Ajalá e escolher uma cabeça para si. O trabalho de Ajalá não cessa, sempre é preciso fazer novas cabeças. Nunca para de nascer gente.

Ajalá faz as cabeças de barro e depois as cozinha no forno. Nem sempre a tarefa é bem-sucedida. Ajalá às vezes bebe demais e erra o ponto, de modo que algumas cabeças saem meio cruas, outras cozidas demais, quando não tortas, ocas, malformadas. Na pressa de nascer, os seres humanos pegam qualquer cabeça. Pobre de quem nasce com uma cabeça daquelas...

Adetutu, ao se lembrar desse pormenor, chacoalhou bem sua cabeça, querendo se certificar de que era boa. "Louca eu não sou", ela concluiu, satisfeita.

Teve pena de Ajalá. Tanta trabalheira, e quase ninguém se lembrava dele, poucos lhe faziam festa. Adetutu tinha aprendido que Iemanjá cuidava das cabeças. Alguém lhe dissera: "Ajalá faz, Iemanjá conserta". Então ela se lembrou da história.

Houve um tempo em que Iemanjá foi casada com Oxalá. Ela tinha uma missão muito bem definida: tomar conta de Oxalá e de sua casa. Devia cuidar para que nada lhe faltasse, dando-lhe o carinho e as honras merecidos por aquele que havia criado a humanidade. Afinal, eram os homens que alimentavam os deuses, e seu Criador merecia um lugar muito importante entre os orixás.

Iemanjá achava que a missão não lhe dava o prestígio merecido. Cuidar de Oxalá era um encargo honroso, mas para ela isso era pouco, queria uma tarefa grandiosa, em que pudesse usar de poderes que os demais invejassem. Oxalá era o pai de todos os seres humanos, não era? Então, sendo casada com ele, ela era a mãe. Queria honra maior? Ela queria. Queria ser chamada de mãe, sim, mas que fosse por seu próprio mérito, e não por ser casada com o Criador.

Enquanto cozinhava para Oxalá, preparava seu banho, alvejava suas túnicas brancas, Iemanjá falava sem parar. Queria tanto fazer alguma coisa de grande, ter uma missão que a tornasse indispensável, estar verdadeiramente à altura de Oxalá, o Grande Orixá.

Tanto falou no ouvido de Oxalá, tanto reclamou, que ele enlouqueceu.

E agora? Iemanjá se assustou. O que diriam os outros? Em vez de cuidar de Oxalá, ela o fizera adoecer. Certamente seria castigada, nunca teria os poderes que almejava. 

Iemanjá tratou de curar a cabeça de Oxalá. Com a ajuda de Exu a Ossaim, que sabia tudo sobre o poder curativo das plantas, Iemanjá preparou banhos e unguentos para a cabeça de Oxalá, fez oferendas, cuidou para que ele repousasse num ambiente todo branco, limpo e silencioso, rezou. Em pouco tempo Oxalá ficou bom da loucura, sarou.

Olorum gostou de resultado e ordenou que, a partir de então, Iemanjá cuidasse da cabeça de todos os homens e mulheres. Demonstrara ter talento para isso. Muitos tinham a cabeça malformada e precisavam de ajuda.

Agora sim. Os humanos sabiam que Iemanjá tinha força para ajudar os loucos, os deprimidos, os de mente fraca. E como de louco todo mundo tem um pouco, não houve quem deixasse de adorar Iemanjá. Presentes e festas nunca lhe faltaram. Os humanos dançavam para ela e a chamavam de Mãe das Cabeças, Mãe da Humanidade.

Adetutu agradeceu a Iemanjá por manter sua cabeça em bom estado. Apesar de todo o sofrimento a que estava submetida desde que os caçadores de escravos a tinham raptado, apesar de toda a incerteza que povoava os seus dias, Adetutu se mantinha lúcida e esperançosa. Iemanjá ficou feliz por ter sido lembrada, e deu um peixinho de prata a Adetutu, que o guardou na sacolinha. Pensou como eram tantas as histórias de Iemanjá. E continuou a sonhar com a Criação.


Conto de Reginaldo Prandi retirado do livro A Criação do Mundo - Contos e Lendas Afro-brasileiros, Editora Cia. das Letras / Editora Schwarcz, São Paulo, 2009.

Tem início a maior criação da criação

Ao acordar, Oxalá não podia acreditar no que seus olhos viam. Estava tudo mudado. O mundo agora existia!

Onde antes não havia nada, viam-se campos, rios, mares. Plantas de todas as formas e tamanhos forravam o chão da Terra, peixes enchiam os mares de formas e movimentos, bandos de pássaros animavam os ares em revoadas coloridas e sonoras. A luz estava em todos os lugares. O Sol, no firmamento, iluminava o dia. E depois do dia vinha a noite, e com ela o escuro, quebrado pelo clarão da Lua e pelo cintilar das estrelas. Oxalá se comoveu com tanta beleza e se aqueceu no calor do universo recém-nascido.

De repente se deu conta: quem era o responsável por aquilo tudo, se ele dormira nas últimas horas? Procurou o saco da Criação e não o achou. Mais que depressa, Oxalá tratou de voltar à casa de Olorum. No caminho, ao passar pela encruzilhada, deu de cara com Exu terminando sua refeição, lambendo os beiços de prazer. Zombeteiro, Exu disse:

"Os inhames que ganhei de Odudua estavam soberbos. E você, meu caro irmão mais velho, apreciou o vinho-de-palma?"

Oxalá não precisou ouvir mais nada: fora passado para trás. Enganado por seu próprio orgulho e presunção.

Adetutu sentiu pena de Oxalá e resolveu lhe fazer companhia no caminho para o palácio de Olorum. Mas não lhe deu atenção, estava deprimido demais. Ou será que ele não percebia que ela estava ali, será que ela ainda não existia? Pensou a menina.

Na casa de Olorum, Oxalá foi duramente repreendido.

"Nunca mais beberá vinho-de-palma nem comerá nada que se extraia da palmeira de dendê", determinou o Ser Supremo, como castigo. "Nem você, nem nenhum de seus descendentes."

Oxalá estava arrasado, evidentemente, e não ousava olhar o Pai nos olhos. O Ser Supremo então disse:

"Ainda falta o mais importante no mundo. Eu pus na sua cabeça a semente de uma ideia que não pus no saco da Criação. Apesar de tudo, você é meu primogênito e há de ser lembrado como Oxalá, o Grande Orixá."

Oxalá sentiu que alguma coisa se mexia em sua cabeça. Então o Pai lhe disse:

"Vá e crie."

Oxalá partiu com destino ao mundo.

Olorum mandou chamar Exu e ordenou:

"Acompanhe seu irmão mais velho. Espero que desta vez ele não beba. E você, nada de trapaças."

Oxalá tratou de passar bem longe do dendezeiro. Compenetrado, sempre lembrando que dessa vez devia tentar ser humilde, Oxalá depositara na primeira encruzilhada, como presente para Exu, um cabrito, quatro galos, cebolas, azeite de dendê, sal, pimenta e noz-de-cola e outra de água fresca. Um verdadeiro banquete dos deuses, que Exu adorou.

Adetutu sentia que suas pernas e braços, seus pés e mãos, todas as partes de seu corpo, enfim, eram apertadas por várias mãos vigorosas, como se alguém a estivesse modelando, ajustando aqui, dando forma ali. Depois sentiu no rosto o calor de um sopro e ouviu palavras de ordem que a chamavam para a vida.

Oxalá estava criando o ser humano.


Conto de Reginaldo Prandi retirado do livro A Criação do Mundo - Contos e Lendas Afro-brasileiros, Editora Cia. das Letras / Editora Schwarcz, São Paulo, 2009.

19 novembro 2025

O bem se paga com o bem

A onça caiu numa armadilha preparada pelos caçadores e, por mais que tentasse escapar, ficou prisioneira. Resignara-se a morrer, quando viu passar um homem. Chamou-o e lhe pediu que a libertasse.

- Deus me livre! - disse o transeunte. - Se você ficar solta, vai me devorar.

A onça jurou que seria eternamente agradecida, e o homem desatou as cordas que seguravam a tampa do alçapão e ajudou a onça a deixar a cova. Logo que esta se encontrou livre, agarrou seu salvador por um braço, dizendo:

- Agora você é meu jantar.

Debalde o homem pediu e rogou. A onça, finalmente, decidiu:

- Vamos combinar uma coisa. Ouvirei a sentença de três animais. Se a maioria for favorável ao meu desejo, eu o como.

O homem aceitou e saíram os dois. Encontraram um cavalo, velho, doente, abandonado. A onça narrou o caso. O cavalo disse:

- Quando eu era moço e forte, trabalhei e ajudei o homem a enriquecer. Qual foi o meu pagamento? Largaram-me aqui para morrer, sem um auxílio. O Bem só se paga com o Mal.

Adiante depararam-se com um boi. Consultado, opinou pela razão da onça. Contou sua vida de serviços ao homem e, quando julgava que ia ser recompensado, soube que fora vendido para ser morto e retalhado pelo açougueiro. O Bem só se paga com o Mal.

O homem triste, acompanhava a onça que lambia o beiço, quando viram um macaco. Chamaram o macaco e pediram seu parecer. O macaco começou a rir. E saltava, fazendo caretas e rindo. A onça ia-se zangando:

- Por que tanta risada, camarada macaco?

- Não é fazendo pouco - explicou o macaco -, é que eu não acredito que o homem caísse na armadilha que ele mesmo preparou.

- Ele não caiu. Quem caiu fui eu - contava a onça.

- Foi você? Então como é que esse homem fraquinho pôde libertar um bicho tão grande e forte como a camarada onça?

A onça, despeitada pelo macaco julgá-la mentirosa, foi até o alçapão e saltou para o fundo do fosso, gritando lá de baixo:

- Está vendo? Foi assim!

Mais que depressa o macaco empurrou o engradado de varas pesadas que fazia de tampa e a onça tornou a ficar prisioneira.

- Camarada onça - sentenciou o macaco -, o Bem só se paga com o Bem. E você fez o Mal, receba o Mal.


Conto de Luís da Câmara Cascudo retirado do livro Contos Tradicionais do Brasil, Coleção Literatura em Minha Casa, Volume 5, Tradição Popular, Global Editora, São Paulo, 2003.