domingo, 3 de abril de 2022

O amor, tatuagem da escrita

    "A palavra escrita é como uma tatuagem", afirmou Lygia Fagundes Telles, em 1968, num frio inverno curitibano, à estudante que então eu era. E acrescentou, depois de um gole de café fumegante, "escrever é um ato de amor". Duplamente amoroso, portanto, é o gesto que compôs esses contos*, o gesto de uma escritura do amor.

    O amor serve, como proclamou Sócrates, para "engendrar uma multidão de belos e magníficos discursos" (Banquete). E também, como poderemos constatar com esta coletânea*, para gerar uma reflexão. O amor que enfeixa esses contos constitui um desafio para o leitor, pois compreende a variada gama do afeto humano como investimento poético. O sentimento pelo outro e o sentimento pela escrita encontram-se aqui confundidos, marcando o espírito com os sentidos do corpo e da fala.

    O tema amor exigiu que a vocação poética da autora esmiuçasse as almas de suas personagens sem cansaço, cobrando-lhes a vida na letra. E exige que o leitor seja testemunha do embate aflitivo em que vive o amoroso, obscurecido pela paixão, já que o amor está excluído da lógica, mas iluminado pelo discurso que o define. Disposto no inferno, enfim, que o amoroso habita na tradição literária ocidental, principalmente a partir do Werther, de Goethe ("Nós somos nossos próprios demônios, nós nos expulsamos do nosso paraíso."). Amor feito de sonho e realização, amargura e destruição, ganho e perda, alegria e luto -  convulsões expostas numa tessitura poética econômica e de linguagem eficaz, em que os elementos simbólicos ora desabam pesadamente sobre o leitor, ora envolvem-no com a leveza da ternura.

    Para Lygia Fagundes Telles, a ficção é uma prática de questionamento dos limites da verdade aparente. Seus contos especulam a superfície do real, arranham-lhe o contorno em busca do âmago dos sentimentos. Sua percepção aguçada, multifacetada lente que, como um caleidoscópio, constrói e destrói num mesmo movimento a conturbada corrente da consciência, desvela o comportamento humano à saciedade do signo. Mesmo que para tanto tenha de violar cruelmente a intimidade do pensamento ou afagar docemente o mais obscuro desejo. Importa a transparência do jogo narrativo que o leitor, enfeitiçado, acompanha.

    Sai-se de seus contos com uma sensação de inquietação, um estranhamento causado pelo comprometimento da narrativa com a realidade da consciência desvelada, posta às avessas na pele do texto. O acontecimento discursivo é o  acontecimento da consciência; na trama, pouco a pouco vão ganhando contorno os obscuros meandros do pensamento, o interminável enredamento de associações, como borboletas capturadas em teias de aranha. O passado fantasia o encadeamento do presente, o presente é carregado de transcendência, tudo exposto nos tensos nervos dos signos. A palavra é a consciência da vida se construindo, já que, como afirmou Clarice Lispector, "atrás do pensamento não há palavras: é-se" (Água Viva).

    Em cada texto, a condução narrativa de Lygia Fagundes Telles pouco a pouco vai atingindo o centro de uma realidade que se desfolha continuamente, verdade fugidia, como fugidios são os sentimentos. As vidas se torcem e retorcem como fios de um bordado infindo, enredadas nos referentes concretos que depois vão se mostrando como símbolos do desejo e da vontade (as cerejas ornamentais num decote, a chave, um saxofone, a estrutura da bolha de sabão, um colar de falsas pérolas ), balizas para a compreensão da estrutura factual, objetos conceituais, revelações de uma inferioridade que se expõe a contragosto, surpreendendo o instante de convulsão das personagens e desafiando sua realidade.

    Saímos desses contos maravilhosos com a agilidade linguística com que a autora esgarça os véus que cobrem a intimidade dos sentimentos e com a capacidade que tem sua linguagem de nos tatuar indelevelmente.


Texto de Sônia Régis, professora de Semiótica e Literatura da FAAP e da PUC de São Paulo. Posfácio do livro Oito Contos de Amor, de Lygia Fagundes Telles, Editora Ática, 1996.

sábado, 2 de abril de 2022

Desdobramento Espiritual

    O sono fisiológico, muito propriamente denominado como um estado de morte, por propiciar o torpor das faculdades pensantes e fazer desaparecer a aparente realidade do mundo objetivo, faculta ao Espírito um parcial desdobramento, no qual se movimenta além dos limites corporais.

    Conforme as suas inclinações, desejos e hábitos, tão logo sente afrouxarem-se os liames perispirituais, o Espírito desloca-se para os lugares onde encontra respostas para as necessidade cultivadas.

    Mediante automatismos de sintonia da faixa vibratória na qual se localiza durante  o estado de lucidez física, transfere-se sem qualquer esforço para outra equivalente, graças ao clima psíquico no qual se compraz.

    Normalmente, nesse estado, encontra-se com Entidades que fazem parte do seu conúbio habitual, com elas se comprazendo, ou temendo-as, de acordo com o estado evolutivo que lhes seja peculiar.

    Da mesma forma, vai conduzido por esses comensais da sua simpatia à regiões nas quais se homiziam com outros semelhantes, ou agem no bem, afeiçoados ao programa da solidariedade e do progresso da Humanidade, conforme a evolução dos mesmos.

    Ao retornar ao corpo, nos neurônios cerebrais, na área da memória, são impressas as cenas vividas ou vistas, decorrentes dos pesadelos, sonhos e fenômenos mediúnicos transcendentes, podendo ou não recordar-se, de acordo com o estado de desprendimento em que vive.

    Sem qualquer dúvida, durante o sono fisiológico, natural ou provocado, especialmente na ocorrência do primeiro, o ser espiritual participa da vida estuante e causal, de onde todos procedemos e para a qual todos retornamos.

    A vivência diária, geradora da psicosfera própria a cada um,  faculta a sintonia equivalente, graças à qual o desprendimento ocorre com naturalidade, submisso ao mecanismo das ocorrências afins.

    O apóstolo Paulo, em decorrência dos seus extraordinários sacrifícios pela causa do Cristo, não poucas vezes foi arrebatado ao terceiro céu, região superior de onde hauria a inspiração e as forças para o ministério e apostolado.

    Maomé, em parcial desprendimento, foi conduzido a uma Esfera Superior, a fim de confirmar a imortalidade da alma, de onde retornou, transformado.

    Afonso de Liguori, enquanto dormia, em Arienzo, deslocou-se em Espírito até Roma, assistindo à desencarnação do Papa Clemente XIV.

    Dante Alighieri conheceu as regiões inferiores conduzido por Virgílio e vislumbrou as paisagens celestes sob o amparo de Beatriz.

    Voltaire, em momento de lúcido desdobramento pelo sono fisiológico, compôs todo um canto de sua obra Henriade.

    Tartini, igualmente em desdobramento parcial do corpo, escreveu a emocionante Sinfonia do diabo.

    Eurípedes Barsanulfo, o apóstolo sacramentano, deslocando-se com facilidade enquanto o organismo repousava, socorria doentes, gestantes e necessitados...

    É expressivo o número de médiuns que, em desdobramento espiritual, atuam conscientemente, participando de experiências extracorpóreas, ou cooperando com os mentores em tarefas socorristas, ou aprendendo comportamento, ou iluminando-se pelo conhecimento, de cujas experiências volvem com plena lucidez.

    Não é indispensável que a consciência do fenômeno permaneça como condição essencial para a ocorrência.

    O conhecimento dos mecanismos da vida espiritual, o exercício de desapego às paixões mais grosseiras, a preparação mental antes do repouso através da oração, a irrestrita confiança no amor de Deus e a entrega tranquila aos próprios Guias Espirituais, permitem que as horas de sono se transformem em realizações edificantes para si mesmo e para o seu próximo.

    Cultivada, mediante os recursos da moral salutar, da dedicação ao bem, essa faculdade psíquica enseja abençoado intercâmbio mediúnico, graças ao qual se ampliam os horizontes da vida, embora a permanência na roupagem carnal.


Texto retirado do livro Momentos de Esperança; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 3ª Edição, 2014.

quinta-feira, 31 de março de 2022

O Boato

    O salsicheiro Nhô Zeca era um homem feliz. Trabalhava muito e gostava tanto do seu trabalho que só trabalhava cantando assim: "Tiroliroleca, eu sou o Nhô Zeca/ Tiroliroliça, eu encho linguiça/ Tirolirolom, meu trabalho é bom/ Tirolirolima, canto e faço rima".

    A única coisa que perturbava a felicidade de Nhô Zeca era seu vizinho Nhô Juca, falastrão e fofoqueiro. Esse Nhô Juca também gostava de encher, mas não era salsicha nem linguiça e sim, a paciência do bom Nhô Zeca. Com suas fofocas intermináveis, interrompia-lhe o trabalho e a alegre cantoria. Até que um certo dia, na véspera do 1º de maio, quando o salsicheiro tinha mais trabalho do que de costume, ele perdeu a paciência e decidiu se livrar do vizinho importuno, nem que fosse só por um dia. Então, quando Nhô Juca entrou, Nhô Zeca deixou-o falar um pouco e de repente bateu com a mão na testa:

    - Ó, Nhô Juca, desculpa se te interrompo, mas eu quase ia me esquecendo de contar uma coisa muito importante: eu soube que lá na praça do mercado estão distribuindo cestas básicas de graça para as pessoas nascidas nesta aldeia, como tu, Nhô Juca!

    - Cestas básicas de graça! Oba!, gritou Nhô Juca, já se voltando para correr. Obrigado pela informação, Nhô Zeca.

    - De nada, os amigos são para isso, gritou Nhô Zeca no encalço do vizinho, que logo sumiu de vista.

    Nhô Zeca, satisfeito por ter-se livrado do outro pelo menos por aquele dia, voltou ao trabalho, cantando sua musiquinha. O trabalho rendia, as salsichas e as linguiças se sucediam, suculentas e rechonchudas. Nhô Zeca entretido, nem sentia o tempo passar. E até se esqueceu do chato do vizinho, quando, de repente, viu passar um homem todo esbaforido, correndo a toda. Logo depois uma mulher também passou correndo e, em seguida, outro homem e mais outro, todos muito apressados e afobados. Até que Nhô Zeca não resistiu à curiosidade e segurou pelo braço um gorducho que corria, bufando:

    - Desculpa, amigo, mas o que está acontecendo para tanta gente assim, na mesma direção?

    - Como, arfou o gorducho, enxugando o suor da testa, tua não sabias? Lá na praça do mercado estão distribuindo cestas básicas de graça! Vou correndo, senão elas acabam!

    - Cestas básicas de graça?!, espantou-se Nhô Zeca. Eu é que não vou perdeu uma boca-livre dessas. As salsichas que me esperem!

    E Nhô Zeca, esquecendo-se até de fechar a porta, disparou para a praça do mercado, correndo a bom correr. E caindo no engodo do boato que ele próprio inventara, soltara e deixara se espalhar pela boca do fofoqueiro Nhô Juca!


Conto de Tatiana Belinky retirado da revista Nova Escola, Maio de 1997. Fundação Victor Civita. Editora Abril.

quarta-feira, 30 de março de 2022

Três Conselhos

    Um passarinho caiu na rede, mas, quando o caçador o pegou na mão, a avezinha  começou a falar, com voz humana, implorando que a soltasse:

    - Não me mates, homem! Solta-me, deixa-me voar! Em troca da minha liberdade, eu te darei três conselhos preciosos, de muito valor!

    - Que conselhos um pobre passarinho como tu pode dar a um homem como eu?, riu o caçador. Mas estou curioso. Fala, passarinho. Se eu gostar dos teus conselhos, prometo deixar-te voar embora.

    - Ouve, então, com atenção, disse o passarinho. O primeiro conselho é: "Não lamentes nunca, homem, coisa alguma que passou." O segundo é: "Nunca te esforces para procurar fazer voltar as coisas que já se foram." E o terceiro é: "Nunca creias em coisas incríveis, pois milagres não existem."

    - Teus conselhos me parecem bons, passarinho, disse o caçador, pensativo.

    - Então solta-me agora, como prometeste, disse o passarinho. E trata de seguir os meus bons conselhos.

    - O prometido é devido, disse o caçador, abrindo a mão. Voa, passarinho. E trata de não cair em outra arapuca!

    O passarinho saiu voando e logo pousou num ramo alto da árvore mais próxima, de onde se dirigiu ao caçador, todo contente:

    - Tu és um tolo, caçador, bobeaste. Sabias que perdeste uma fortuna ao me deixar escapar? Se me matasses, ias ficar rico, porque dentro da minha barriguinha se oculta um tesouro, um diamante raríssimo, três vezes maior do que eu!

    Desapontado e aborrecido, o caçador lamentou:

    - Esse passarinho esperto me enganou, zombou de mim.

    Com voz doce, mudando de tom, continuou:

    - Volta aqui, passarinho. Vem ficar comigo. Eu te tratarei tão bem! Vais morar numa gaiola de ouro, com balanço, para te embalares e cantares. Volta para mim, passarinho.

    - Nada feito, retrucou o passarinho. Pensa bem como és bobo, homem! Nem bem acabaste de ouvir os meus conselhos, no mesmo instante os esqueceste. Primeiro, mal me soltaste, já lamentas o que passou. Em seguida já estás tentando fazer voltar o que se foi. E ainda acreditaste na balela que te contei, de que no meu buchinho está escondido um diamante precioso, três vezes maior do que eu. De nada te serviram os meus conselhos, caçador! Trata de lembrar-te deles daqui em diante! Adeus, homem tolo.

    E o passarinho saiu voando, feliz da vida, enquanto o caçador lá ficou, lamentando sua burrice.


História de origem remota, de que existem versões em vários países, recontada por Tatiana Belinky. Retirada da revista Nova Escola, Abril de 1997. Fundação Victor Civita. Editora Abril.

terça-feira, 29 de março de 2022

O homem que não sabia nem ler

    Um menino andando na rua encontrou um homem sentado na calçada. O menino ia da escola para casa. O homem descansava depois de um dia duro de trabalho.

    - Moço, que horas são?, perguntou o menino.

    O homem disse que não tinha relógio e, para falar a verdade, nem sabia ver as horas.

    O menino não entendeu.

    O homem explicou:

    - Não sei para que servem aquele ponteirão e aquele ponteirinho.

    Eles giram, giram e giram, mas não consigo entender direito como funciona.

    - Mas é tão fácil!, espantou-se o menino. O ponteirinho marca as horas e o ponteirão marca os minutos. Por exemplo: se o ponteirinho está no dez e o ponteirão está no cinco, isso quer dizer que são 10 horas e 25 minutos.

    O sujeito balançou os ombros.

    - Mas qual é o dez e qual é o cinco? Não sei ter os números.

    O homem tinha idade para ser pai do menino.

    - O senhor não conhece os números?

    - Nem os números e nem as letras.

    - O senhor não sabe ler?

    - Nem ler, nem escrever.

    O menino espiou aquela pessoa sentada na calçada.

    - Às vezes na rua, disse o homem, olhando as letras dos cartazes, eu pergunto: o que será que elas dizem? Outras vezes, na banca, fico admirando as revistas, os jornais... queria tanto poder ler as notícias, entender o que se passa no mundo, ler os letreiros dos ônibus e saber para onde eles vão...

    O homem suspirou.

    - Queria tanto ir para baixo de uma árvore, abrir um livro e ler uma história...

    Um automóvel entrou na curva soltando uma fumaça preta.

    - Eu não sou daqui, continuou o sujeito. Minha cidade fica depois da serra, pegando a estrada, passando a outra serra e depois a outra, lá longe, perto do mar.

    E seus olhos brilharam tristes.

    - Às vezes, fico me lembrando de casa, de minha mãe, meu pai, meus irmãos...

    O menino procurou um lugar para sentar.

    - Você sabe escrever?, quis saber o homem.

    O menino estufou o peito:

    - Já sou quase da terceira série!

    O outro sorriu:

    - Tenho uma noiva lá na minha terra. Ela é uma princesa. A coisa mais linda do mundo. Um dia a gente vai casar...

    Examinou o menino:

    - Escreve uma carta pra mim?

    Dizendo sim com a cabeça, o menino tirou um caderno e uma caneta esferográfica do fundo da mochila.

    O homem foi falando. O vento soprava morno. O homem contou que a cidade era grande. Contou que estava sozinho. Contou que sentia medo. Contou que quase tinha juntado um dinheirinho, que estava morto de saudade e que no fim do ano, se Deus ajudasse, pegava o ônibus e voltava para casa.

    O menino escreveu tudo com letra caprichada, dobrou o papel e entregou ao homem.

    A Lua havia surgido sem ninguém perceber.

    O menino precisava ir embora.

    O homem apertou a mão do menino.


Conto de Ricardo Azevedo retirado da Revista Nova Escola, Março de 1997. Fundação Victor Civita, Editora Abril.

segunda-feira, 28 de março de 2022

Contanabos, o senhor das montanhas

    Entre a Silésia e a Boêmia estende-se uma enorme cadeia de montanhas em cujo interior vive o poderoso Espírito das Rochas, o afamado Contanabos. Esse príncipe dos espíritos da terra possui na superfície terrestre apenas um espaço reduzido, de algumas milhas de extensão, cercado pela serra pedregosa. mas em profundidade seu domínio é enorme e desce por milhas e milhas até o centro da Terra. Ele, o Contanabos, reina sobre as minas de metais e as jazidas de pedras preciosas, manda nos vulcões e em todos os espíritos das entranhas da terra e das montanhas. Tem também o poder de transfigurar-se no que lhe der vontade: pode aparecer em forma de homem ou de animal, grande ou pequeno, anão diminuto ou monstro assustador.

    De vez em quando gosta de afastar-se dos seus domínios das profundezas e de subir, para observar os míseros e medrosos seres humanos, à custa dos quais se diverte, ora de maneira cruel e zombeteira, ora demonstrando-lhes, disfarçado de várias formas, benevolência e generosidade. Porque o soberano das montanhas, o gigante Contanabos, tem gênio variável e instável, ora calmo, ora turbulento, ora malvado, ora bondoso, ora frio e insensível, ora caloroso e carinhoso, cheio de contradições, mas sempre surpreendente.

    Há séculos e séculos, contam-se dele as mais estranhas histórias, engraçadas umas, outras apavorantes. Ninguém sabe seu nome verdadeiro, mas foi por causa de uma de suas aventuras, acontecida há centenas de anos, que recebeu do povo da região o apelido de Contanabos. Ele detesta essa alcunha, porque ganhou-a num episódio de que tem vergonha, acontecido na única vez em que tentou ser realmente humano.

    É uma longa história, mas por enquanto basta contar que, há muito, muito tempo, numa das vezes em que o Espírito das Rochas subiu à superfície da terra, ele se apaixonou por uma formosa princesa. Então, transformando-se num belo príncipe, raptou-a e levou-a para seu palácio subterrâneo, onde queria casar-se com ela. Mas ela já era noiva de um príncipe do reino vizinho e não queria saber de casamento com seu raptor, por mais belo, rico e poderoso que ele fosse. Para livrar-se dele, astutamente o enganou dizendo que se casaria, se numa só noite ele contasse todos os nabos mágicos da sua enorme horta - sem errar, nem mesmo por um. Se errasse um que fosse - para mais ou para menos - ela não se casaria com ele.

    O Espírito das Rochas concordou com a condição, que julgou fácil e pôs-se logo a contar os nabos, o que fez até rapidamente. Mas toda vez que conferia a contagem, dava uma diferença e ele passou a noite inteira contando e recontando os nabos.

    Enquanto isso, a esperta princesa, usando um dos nabos mágicos que ele lhe dera para satisfazer suas vontades, transformou-o em fogoso corcel e fugiu do reino subterrâneo, deixando o poderoso Espírito das Rochas a ver navios. Foi assim que ele acabou ganhando o ridículo apelido de nabos ou, simplesmente, Contanabos.


Mito popular alemão recontado por Tatiana Belinky. Retirado da revista Nova Escola, Dezembro de 1996. Fundação Victor Civita. Editora Abril.

domingo, 27 de março de 2022

Os Viajantes e o Monstro

    Um rapaz ganhou de seu pai uma arma e saiu pelo mundo. Andou, andou, até que encontrou um sonhador. Passaram a ser dois, viajando juntos. De manhã, o sonhador disse: 

    - Sonhei com um ladrão que seguia conosco.

    E assim foi. Encontraram um construtor de barcos e passaram a ser quatro, viajando juntos. Na outra manhã, o sonhador disse:

    - Sonhei com um colador de coisas quebradas que viajava conosco.

    E assim foi. Encontraram um colador e passaram a ser cinco, viajando juntos. Na outra manhã, o sonhador disse:

    - Sonhei com um soba que nos prendia e punha na cadeia.

    Nós podemos não saber o que é um soba. Mas os quiocos sabem muito bem que é um chefe de aldeia, muito importante e com muitos poderes, uma espécie de rei. Por isso, os viajantes nem se espantaram quando chegaram a uma aldeia e o soba disse ao rapaz da arma:

    - Teu pai roubou minha filha! Ou você me devolve a moça, ou ficam todos sendo meus escravos!

    Prendeu todos eles e mandou espancá-los. De manhã, o sonhador disse:

    - Sonhei que é verdade o que ele diz: teu pai roubou mesmo a moça e a vendeu a um monstro, lá no mar. Sonhei que nós a encontrávamos, mas o monstro era muito feroz e quebrava nosso barco todo. Aí eu acordei.

    O rapaz chamou o soba e disse:

    - Sabemos onde está tua filha. Se nos soltares, vamos buscá-la.

    O soba então prometeu que, se a trouxessem, daria a eles o sobado. E eles partiram.

    Andaram, andaram, andaram e dormiram. De manhã, o sonhador disse:

    - Sonhei que chegávamos a uma aldeia com muitas moças. Uma delas estava fazendo cestos em forma de cone, cheios de desenhos. Essa era a filha do soba.

    E o ladrão respondeu:

    - Deixa que eu roubo.

    Os outros se esconderam no mato, bem na beira do mar. O construtor de barcos começou a trabalhar e o ladrão entrou na aldeia. Chegou perto da moça e, conversa vai, conversa vem, foi falando no pai dela, na mãe dela, e a moça logo viu que ele vinha salvá-la. Na primeira chance, fugiu com ele para o mato. Entraram no barco, que já estava pronto e partiram todos. Quando o monstro percebeu, ficou furioso e partiu o barco deles em pedacinhos. O rapaz da arma deu um tiro e arrancou a cabeça do monstro. Mas ele tinha várias, era só botar uma nova. Enquanto fazia a troca, o colador de coisas quebradas consertou o barco e os fugitivos se afastaram. Daí a pouco, o monstro se aproximou outra vez: novo tiro, nova troca de cabeças, novo conserto de barco. De cada vez, a aldeia do soba ficava mais perto. Até que eles conseguiram chegar e o monstro viu que não adiantava insistir. Ninguém conseguia vencer os cinco amigos.

    O soba cumpriu a palavra. Deu o sobado ao rapaz e deu também a filha em casamento. Os outros casaram e ficaram sendo ajudantes do soba, porque nessas coisas de sobado - garantem os quiocos - é sempre muito útil ter a ajuda de um sonhador, um ladrão, um construtor e um consertador.


Conto tradicional dos quiocos, um povo angolano recontado por Ana Maria Machado. Retirado do revista Nova Escola, Novembro de 1996. Fundação Victor Civita, Editora Abril.

sábado, 26 de março de 2022

Libertação de Consciência

    Não aguardemos que o aplauso do mundo coroe as nossas expectativas.

    Não esperemos que as alegrias nos adornem de louros ou que uma coroa de luz desça sobre a nossa cabeça vestindo-nos de festa.

    Quem elegeu Jesus, não pode ignorar a cruz da renúncia.

    Quem O busca, não pode desdenhar a estrada áspera do Gólgota.

    Quem com Ele se afina, não pode esquecer que, Sol de primeira grandeza como é, desceu à sombra da noite, para ser o porto de segurança luminosa, no qual atracaremos a barca de nosso destino.

    Jesus é o nosso máximo ideal humano, Modelo e Guia seguro.

    Aquele que travou contato com a Sua palavra nunca mais O esquece.

    Quem com Ele se identifica, perdeu o direito à opção, porque a sua, passa a tornar-se a opção d'Ele, sem o que, a vida não tem sentido.

    Não é esta a primeira vez que nos identificamos com o Seu verbo libertador. Abandoná-lo é infidelidade, que O troca pelos ouropéis e utopias do mundo, de breve duração.

    Não é esta a nossa experiência única no santuário da fé, que abraçamos desde a treva medieval, erguendo monumentos ao prazer, distantes da convivência com a dor.

    Voltamos à mesma grei, para podermos, com o Pensamento Divino vibrando em nós, lograr uma perfeita identificação.

    Lucigênitos, procedemos do Divino Foco, para o qual marchamos.

    Seja, pois, a nossa caminhada assinalada pelas pegadas de claridade na Terra, a fim de que, aquele que venha após os nossos passos, encontre as setas apontando o caminho.

    Jesus não nos prometeu os júbilos vazios dos tóxicos da ilusão. Não nos brindou com promessas vãs, que nos destacassem no cenário transitório da Terra. Antes, asseverou, que verteríamos o pranto que precede à plenitude, e teríamos a tristeza e a solidão que antecedem à glória solar.

    Não seja, pois, de surpreender que, muitas vezes, a dificuldade e o opróbrio, o problema e a solidão caracterizem a nossa marcha. Não seja de surpreender, portanto, que nos vejamos em solidão com Ele, já que as Suas, serão as mãos que nos enxugarão o pranto, enquanto nos dirá suavemente: - Aqui estou!

    Perseveremos juntos, cantando o hino da alegria plena na ação que liberta consciências, na atividade que nos irmana e no amor que nos felicita.


Texto retirado do livro Momentos Enriquecedores; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 2ª Edição, 2015.

sexta-feira, 25 de março de 2022

Como os Campos

    Preparavam-se aqueles jovens estudiosos para a vida adulta, acompanhando um sábio e ouvindo seus ensinamentos. Porém, como fizesse cada dia mais frio com o adiantar-se do outono, dele se aproximaram e perguntaram:

    - Senhor, como devemos vestir-nos?

    - Vistam-se como os campos, respondeu o sábio. Os jovens então subiram até uma colina e durante dias olharam para os campos. Depois dirigiram-se à cidade, onde compraram tecidos de muitas cores e fios de muitas fibras. Levando cestas carregadas, voltaram para junto do sábio.

    Sob o seu olhar abriram os rolos das sedas, desdobraram as peças de damasco e cortaram quadrados de veludos e os emendaram com retângulos de cetim. Aos poucos, foram recriando em longas vestes os campos arados, o vivo verde dos campos em primavera, o pintalgado da germinação. E entremearam fios de ouro no amarelo dos trigais, fios de prata no alagado das chuvas, até chegarem ao branco brilhante da neve. As vestes suntuosas estendiam-se como mantos. O sábio nada disse.

    Só um jovem pequenino não havia feito sua roupa. Esperava que o algodão estivesse em flor para colhê-lo. E, quando teve os tufos, os fiou. E, quando teve os fios, os teceu. Depois vestiu sua roupa branca e foi para o campo trabalhar.

    Arou e plantou. Muitas e muitas vezes sujou-se de terra. E manchou-se do sumo das frutas e da seiva das plantas. A roupa já não era branca, embora ele a lavasse no regato. Plantou e colheu. A roupa rasgou-se, o tecido puiu-se. O jovem pequenino emendou os rasgões com fios de lã, costurou remendos onde o pano cedia. E, quando a neve veio, prendeu em sua roupa mangas mais grossas para se aquecer.

    Agora a roupa do jovem pequeno era de tantos pedaços que ninguém poderia dizer como havia começado. E estando ele lá fora uma manhã, com os pés afundados na terra para receber a primavera, um pássaro o confundiu com o campo e veio pousar-se no seu ombro. Ciscou de leve entre os fios, sacudiu as penas. Depois levantou a cabeça e começou a cantar.

    Ao longe, o sábio, que tudo olhava, sorriu.


Conto de Marina Colasanti pertencente ao livro inédito Longe Como O Meu Querer, vencedor da primeira edição do Prêmio Latinoamericano de Literatura Infantil Y Juvenil Norma - Fundalectura de que participaram 141 obras de 13 países, em maio. Retirado da Revista Nova Escola. Outubro de 1996. Fundação Victor Civita. Editora Abril.

O livro de Marina Colasanti foi lançado em 1997 pela Editora Ática na Série Sinal Aberto.

quinta-feira, 24 de março de 2022

Moisés salvo das águas

    Há muitos anos e muitos séculos, quando o povo judeu era escravo no Egito, chegou uma época em que o soberano, chamado faraó, temendo que esse povo se tornasse numeroso demais e ameaçasse se revoltar, decretou que todas as crianças do sexo masculino nascidas de mãe judia fossem afogadas no Rio Nilo. E houve muito luto, pranto e tristeza nas famílias judias, obrigadas a sacrificar seus bebês meninos.

    Mas quando o casal Yoschabed e Amram teve seu terceiro filho, um lindo menino, a mãe, depois de resistir à cruel ordem do faraó e conseguir escondê-lo durante três meses, acabou tendo de livrar-se dele, para que toda a família não fosse sacrificada. Então, em desespero de causa, ela calafetou com betume uma cestinha de vime, colocou dentro dela o bebezinho e mandou que sua filha Míriam a levasse até o rio, com o irmãozinho dentro, pusesse a cesta na água entre os juncos e ficasse escondida, para ver o que aconteceria. A menina assim fez e, oculta entre os juncos, ficou observando.

    Pouco depois, chegou à margem do rio, conversando e rindo, a princesa egípcia, filha do faraó. Ela ouviu o choro da criancinha dentro da cesta e, aproximando-se, viu o menino bonito e forte ali abandonado. Encantada e compadecida, percebendo que se tratava de uma das crianças judias condenadas à morte por afogamento, a princesa disse que queria ficar com ela e levá-la consigo para o palácio.

    Ouvindo isso, Míriam se encheu de coragem, saiu do seu esconderijo e, dirigindo-se respeitosamente à princesa, disse que conhecia uma mulher judia que acabara de perder seu filhinho e que poderia alimentar esse menino, até ele crescer um pouco e poder ser levado ao palácio do faraó. Pediu, então, licença para buscar essa mulher. A princesa, contente, concordou. Imediatamente Míriam foi correndo buscar sua própria mãe e levou-a à presença da princesa. Yoschabed, trêmula de emoção, ouviu a princesa dizer que lhe confiava a criança para ela amamentar e cuidar até que estivesse em condições de ser levada para o palácio, onde ela mesma, a princesa, iria criá-la e educá-la como se fosse seu filho - um príncipe egípcio. Disse ainda que iria chamá-lo de Moisés, já que o tinha tirado das águas.

    Rindo e chorando de felicidade, Yoschabed, a mãe, e Míriam, a irmã, levaram o pequeno Moisés de volta para casa, onde puderam ficar com ele durante alguns anos. Foi o suficiente para Moisés ficar conhecendo seu próprio povo e lembrar-se dele mesmo após ser levado ao palácio do rei, onde foi criado, de fato, como um verdadeiro príncipe egípcio. Um príncipe que viria a ser um grande líder e libertador do povo judeu da escravidão do Egito.


Conto de Tatiana Belinky adaptado da Bíblia, Êxodo 2. Revista Nova Escola, Setembro de 1996. Fundação Victor Civita, Editora Abril.