terça-feira, 14 de novembro de 2023

Com os olhos para o céu

Astronomia no Brasil está em expansão e abre campo de pesquisa para futuros profissionais


As pessoas que estudam as estrelas são mais do que a visão romântica de cientistas solitários observando os céus com uma luneta. Também não são os esquisitões que muitos acreditam. Na verdade, os astrônomos são, essencialmente, indivíduos com um amor especial pelo espaço e pelos livros.

A astronomia se destaca das demais ciências pela constante renovação. Teorias espaciais estão sempre em revisão e há constantes fatos novos a serem verificados. No Brasil, a área tem avançado muito recentemente. O país participa de dois consórcios internacionais de construção e utilização de supertelescópios, o Gemini e o Soar (sigla em inglês para "Pesquisa Astrofísica do Sul"). Isso aumentará bastante o campo de pesquisa de nossos cientistas.

Além do trabalho de observação de dados, os astrônomos também podem se dedicar à pesquisa teórica, por meio do estudo de modelos, e à instrumentação, cuidando dos diversos equipamentos utilizados, como telescópios e lunetas.

Quem quer trabalhar na área tem duas opções. A primeira é fazer o único curso de graduação em astronomia do Brasil, na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), que existe desde 1958 no Observatório do Valongo. A outra, é fazer um curso de física comum, mas com habilitação em astronomia, como o que existe na USP (Universidade de São Paulo). A grande diferença entre as duas opções é que na primeira o aluno já tem um contato mais próximo com a área desde cedo. "A habilitação não tem o conteúdo tão forte de astronomia", afirma a coordenadora de graduação da UFRJ, Sueli Aparecida Guirlens. Jane Gregório-Hetem, da USP, concorda. "Nosso objetivo principal é formar físicos. Quem quer ser astrônomo vai precisar fazer um mestrado e um doutorado", diz.

Partir para uma pós-graduação é obrigatório também para quem tem a graduação na área se a pessoa quiser se dedicar à pesquisa científica. "Para seguir na vida acadêmica é preciso estudar por mais sete anos após a graduação", explica Guirlens. Além dessa opção, os astrônomos também podem trabalhar com divulgação científica, em planetários e escolas, e em empresas particulares, como a Embratel.


Texto de Marília Juste retirado da Revista Galileu, Janeiro 2004, nº 150, Editora Globo, São Paulo.

Grato pela Compreensão

Obrigado, thank you, gracías, grazie. As diferentes palavras e expressões utilizadas ao redor do mundo para agradecer indicam diferentes graus de gratidão. Saber o que cada agradecimento significa ao pé da letra pode ser uma forma de compreender como os povos lidam com esse sentimento


A preocupação pela etimologia é um dos legados do pensamento medieval. Quando S. Isidoro de Sevilha escreve, em torno do ano 600, a primeira enciclopédia da história, ela é precisamente os 20 livros das Etimologias. Lá se diz que, sem a etimologia, não se conhece a realidade e, com ela, mais rapidamente atinamos com a força expressiva das palavras.

Exageros medievais à parte, o fato é que as palavras têm um potencial expressivo muito maior do que nós - tão familiar e automático é o uso que delas fazemos - possamos imaginar. Quando a filosofia se volta para a linguagem comum, não está praticando um procedimento periférico, mas atingindo algo de muito essencial, pertencente ao próprio núcleo da reflexão filosófica.

Não é de estranhar, portanto, que num clássico medieval como Tomás de Aquino encontremos uma filosofia comprometida com a linguagem; no século 13, quando estão se consolidando as línguas nacionais.

Relacionemos o pensamento de Tomás com as formas de gratidão em diversas línguas: thanks, gracias, obrigado, etc. Essas formas remetem a aspectos e níveis diferentes de agradecimento: o próprio Tomás chama a tenção para o fato de que nossas palavras só alcançam fragmentariamente (divisim) a realidade, que, além de complexa, supera em muito nossa capacidade intelectual. E é diferente o gancho, o aspecto, o caminho pelo qual cada língua acessa uma determinada realidade: o mesmo objeto que me protege contra a água ("guarda-chuva") produz uma sombrinha (umbrella).

Daí que, diz Tomás na Suma Teológica, "línguas diferentes expressam a mesma realidade de modo diverso." E, prossegue, referindo-se à gratidão: "A gratidão se compõe de diversos graus. O primeiro consiste em reconhecer (ut recognoscat) o benefício recebido; o segundo, em louvar e dar graças (ut gratias agat); o terceiro, em retribuir (ut retribuat) de acordo com suas possibilidades e segundo as circunstâncias mais oportunas de tempo e lugar" (II-II, 107, 2, c).


Graus de Gratidão


Assim, há línguas que expressam a multifacética realidade da gratidão, tomando-a no nível 1: o do reconhecimento do agraciado. Aliás "reconhecimento" é mesmo um sinônimo de gratidão. Etimologicamente, na língua inglesa to thank (agradecer) e to think (pensar) são a mesma palavra. Ao definir a etimologia de thank o Oxford English Dictionary é claro: "The primary sense was therefore thought". E, do  mesmo modo, em alemão, zu danken (agradecer) é originariamente zu denken (pensar).

Muito compreensível. Só é agradecido quem pensa, pondera, considera a liberalidade do benfeitor. Quando isto não acontece, surge a justíssima queixa: "Que falta de consideração!". E fórmulas agressivas de falta de gratidão como: "você não fez mais do que a sua obrigação!" (ministerium tuum est) são já bastante antigas.

Tomás também faz notar que o máximo negativo é a negação do ínfimo positivo (a última à direita de quem sobe é a primeira à esquerda de quem desce...) e, portanto, falta de reconhecimento, o ignorar, é a suprema ingratidão.

Já a formulação latina de gratidão, gratias ago, que se projetou no italiano, no castelhano (grazie, gracias) e no francês (merci, mercê, derivado de merces, salário, que tomou no latim tardio o sentido de "favor", "graça") é relativamente complexa. S. Tomás diz (I-II, 110, 1) que seu núcleo, "graça" comporta três dimensões:

1) obter graça, cair na graça, no favor, no amor de alguém que, portanto, nos faz um benefício;

2) graça indica também dom, algo não devido, gratuitamente dado, sem mérito por parte do beneficiado;

3) a retribuição, "fazer graças", por parte do beneficiado.


No tratado De Malo (9,1), acrescenta-se um quarto significado de gratias agere: o de louvor; quem considera que o bem recebido procede de outro, deve louvar.

Nas expressões de gratidãp aqui expostas - em inglês, alemão, francês, espanhol, italiano e latim - ressalta-se o caráter profundíssimo de nossa forma: "obrigado" (infelizmente, nestes últimos anos, no Brasil, "obrigado" vem sendo substituído pelo insosso "valeu!"). A formulação portuguesa, tão encantadora e singular, é a única a situar-se, claramente, no nível 3, o mais profundo da gratidão: o do vínculo (ob-ligatus), da obrigação, do dever de retribuir.


"Raridade"


Podemos, ainda, analisar a riqueza de sugestões que se encerra na forma japonesa. Arigatô remete aos seguintes significados primitivos: "a existência é difícil", "é difícil viver", "raridade", "excelência (excelência da raridade)". Esses dois últimos sentidos são claros: num mundo em que cada um só pensa em si, a excelência e a raridade salientam-se como característica do favor. Mas, "dificuldade de existir" e "dificuldade de viver", à primeira vista, nada teriam que ver com o agradecimento. No entanto, S. Tomás ensina (II-II, 106, 6) que a gratidão deve - ao menos na intenção - superar o favor recebido. E que há dívidas por natureza insaldáveis: de um homem em relação a outro, seu benfeitor, e sobretudo em relação a Deus.

Nessas situações de dívida impagável - tão frequentes para a sensibilidade de quem é justo - o homem agradecido, obrigado a retribuir, sente-se embaraçado e faz tudo o que está a seu alcance, tendendo a transbordar-se num excessum que se sabe sempre insuficiente.

Arigatô aponta assim para o terceiro grau de gratidão, significando a consciência de quão difícil se torna a existência (a partir do momento em que se recebeu tal favor, imerecido e, portanto, se ficou no dever de retribuir, sempre impossível de cumprir...)


Texto de Jean Lauand retirado da edição especial Etimologia 2011, da Revista Língua Portuguesa, Editora Segmento, São Paulo, 2011.

segunda-feira, 13 de novembro de 2023

O amor à perversão

"Erotismo" e "Pornografia" dividem opiniões e preferências; limite entre os conceitos é tênue, com significados dúbios


Amor e sexo costumam gerar confusão. Não só no dia-a-dia, mas também no boca-a-boca. Quando o desejo é comunicado em palavras, fica sujeito a um vasto campo de significações e interpretações.

Fato é que erótico vem do grego, eroticos, que por sua vez faz menção a Eros, deus do amor na mitologia greco-romana. No Vocabulário Etimológico, Ortográfico e Prosódico das Palavras Portuguesas Derivadas da Língua Grega, de Ramiz Galvão, "erótico" se restringe àquilo que se refere ao amor, do deus Eros. Com o decorrer do tempo, a palavra passou a agregar outros sentidos.

Bem diferente é a origem de "pornografia". Também grega, a palavra é a junção de outras duas: porné, obscenidade, e graphêin, que equivale ao verbo descrever. Ao pé da letra, seria a expressão da obscenidade. Tem estreita relação com a prostituição. Porni, na Grécia do século V, era a prostituta de rua, de categoria mais baixa e, em geral, escrava. Pornis é da mesma família dos vocábulos porneuô (ser prostituta) e pernêmi (vender, expor), lembra Luiz Costa Pereira Júnior, em Com a Língua de Fora (Editora Angra).

A lógica da comercialização da mulher mantém, portanto, relação com a palavra que hoje serve para classificar livros, revistas, filmes e obras de arte com cenas de atos sexuais explícitos.

Como classificar, então, obras como Couple, de Picasso, em que uma penetração explícita ocupa a atenção no quadro? Erótico? Pornográfico? Desde que o primeiro libertino desvirginou a parede de uma caverna com desenhos obscenos, há 5 mil anos, a expressão erótica ganhou status estético. Ora mais, ora menos, porque as épocas mudam, variam os costumes e o crítico de plantão.


Definições nada definitivas


Márcia Denser, autora de O Prazer é Todo Meu (1984) e Diana Caçadora (1986), ambos com contos eróticos, diz que o termo "pornografia" mantém até hoje a ideia da pessoa vista como objeto. Para ela, a pornografia se apropria de imagens que reforçam a submissão feminina. Uma delas é a da mulher de joelhos, em posição inferior à figura masculina.

- O pornográfico reforça a tradição, o que já está aí. Representa um retrocesso.

A pornografia também acumulou significações ao longo do tempo. Trata tanto de um material (fotos, filmes, revistas, livros etc) capaz de explorar os apetites sexuais como de um ataque ao recato, à exploração pública da sexualidade, afirma Francisco Borba, no Dicionário Unesp do Português Contemporâneo.

Márcia diz que vê uma diferença clara entre pornografia e erotismo. Elaborou até uma lista de elementos que distinguem os dois gêneros.

- No discurso erótico, há uma primazia estética, sendo esse o seu principal critério de julgamento. Essa arte, portanto, valoriza o belo, o sublime.

Segundo ela, a pornografia não se preocupa tanto com o caráter estético, além de explicitar o objeto a que está fazendo referência. O erotismo, por sua vez, usaria a relação sexual para tratar de outros assuntos.

- A mensagem não acaba no sexo, ao contrário do que acontece com o material pornográfico.

Outra diferença fundamental seria que, no texto erótico, as relações amorosas são consensuais. Se alguém não está de acordo com a prática, o envolvimento entre as partes passa a ter caráter violento, o que, segundo Márcia, configura uma perversão.

- Se não há consenso, o que era  erotismo vira pornografia, que se ocupa em explorar a dialética "dominação versus submissão" e tem o objetivo  claro de excitar o leitor.


Expressão erótica


A distinção entre os dois gêneros não se faz tão clara para a psicanalista Miriam Chnaiderman, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sades Sapientiae, ensaísta e diretora de curtas-metragens, como Artesãos da Morte (2001). Mas atribui a cada termo uma função. A grande diferença entre um e outro estaria na noção de arte, ausente no discurso pornográfico. Ela diz que, na pornografia, o observado é transformado em objeto por quem o está contemplando.

- Não há grandes possibilidades de criação, de voo, de construção. Por isso, na arte erótica atua o olhar, enquanto na pornografia atua a visão, a função fisiológica do olho.

O erotismo, por sua vez, estaria na base de toda criação artística, diz a diretora. De acordo com ela, a sexualidade é a característica mais singular do ser humano e mais difícil de ser reproduzida.

- O erótico é aquilo que traz possibilidades múltiplas, desordenando lugares de ser. Freud traz essa possibilidade de leitura do erótico quando reverte a noção de corpo biológico para corpo-prazer. Ele, então, transforma o corpo anatômico em erógeno.


Defesa do pornô


Xico Sá, jornalista, editor e escritor, acaba de lançar Catecismo de devoções, intimidades e Pornografias pela sua Editora do Bispo. É um manifesto a favor do hedonismo.

- É pornografia do início ao fim - explica o autor.

Ele diz que a classificação dos textos em erótico e pornográfico obedece mais a critérios morais do que a estéticos.

- O erotismo é considerado mais puro, por isso aceito socialmente. A pornografia é pensada como diabólica, portanto, condenável.

O cearense aponta que há muito preconceito com o gênero pornográfico, definido por ele como a arte de escrever com o corpo, "tão verdadeira, tão visceral, que quase não se distingue uma coisa da outra".

Miriam Chnaiderman concorda que há um tabu em torno do tema, mas diz que é necessário quebrar a ideia de que tudo o que é pornográfico é feio.


Transgressão e expressão


Xico, no entanto, diverge da psicóloga quando afirma que a pornografia é, sim, uma manifestação artística. Sua assertiva encontra respaldo em uma das definições do dicionário Michaelis: "arte ou literatura  obscena". Erotismo é definido pelo mesmo dicionário como "indução ou tentativa de indução de sentimentos, mediante sugestão, simbolismo ou alusão, por uma obra de arte".

Sobre o suposto caráter reacionário da pornografia, Xico Sá diz que, ao contrário, ela liberta, pois permite radicalizações na linguagem mais convencional. Nesse sentido, o jornalista considera transgressor o texto pornográfico. Ele cita como exemplo Hilda Hirst, "uma mulher que se utiliza das palavras de forma libertária". O texto e a arte eróticos, segundo Sá, não teriam o mesmo arrojo estético do pornográfico.

- Lembra aquelas revistas masculinas que eram censuradas? Era tudo muito caricato, bonzinho, sem graça.

A linguagem erótica é vista pelo autor de Catecismo de Devoções como envergonhada, careta e artificial.

Miriam, por sua vez, diz que tanto a pornografia quanto o erotismo são potencialmente transgressivos, e reforça a ideia de que, não raro, se confundem.

- Falam que a pornografia privilegia a narrativa no tempo presente, mas os textos e filmes eróticos estão cada vez mais se atendo à descrição das vivências em tempo real.

No curta Gilete Azul (2003), a diretora retrata a artista plástica Nazareth Pacheco, que mostra do sofrimento do corpo por objetos cortantes. Miriam acha o trabalho de Nazareth uma analogia do caráter revolucionário da linguagem erótica.

- Ao mesmo tempo em que fala da dor, trabalha com elementos da sexualidade feminina.


Ponto G da questão


Ao largo das grandes definições, no varejo as diferenças entre o erótico e o pornográfico, entre o que se considera arte ou mera sacanagem, nunca são claras. Acima das dicotomias, talvez a questão ainda seja a exposta por José Paulo Paes em Poesia Erótica Traduzida.

- A poesia serve para  excitar? - pergunta Paes no prefácio ao seu livro.

Para José Paulo Paes, a pornografia é a que quer provocar excitação sexual. A erótica tenta impedir que o tempo dilua na memória um momento tão efêmero quanto o do prazer.

- A arte existe porque a vida não basta.

A erótica, resume Paes, quer reviver no plano do imaginário o essencial do que se viveu e ao que se aspirou no plano real. A pornografia mostra tudo, descreve tudo, ao gosto do freguês. A erótica pinça o momento mais importante, flagra o efêmero instante do êxtase e luta contra o esquecimento e a morte, contra tudo que apague o prazer.  


Texto de Eliane Scardovelli retirado da Revista Língua Portuguesa Especial - Sexo & Linguagem, Editora Segmento, São Paulo, Ano I, Junho 2006.

domingo, 12 de novembro de 2023

Objeto Sexual

Batizar coisas do mundo como sendo feminino ou masculino está longe de ser casual e atua sobre a perspectiva que os falantes adotam no seu dia-a-dia


As coisas têm sexo? A faca é feminino e o garfo é masculino? Por que "manhã", "tarde" e "noite" são femininas e "dia" masculino? O sol é figura máscula e alua, delicada como uma donzela? A bondade é mulheril, como a sinceridade e a virtude, ao passo que o ódio, o desprezo, o vício têm bigode e voz grossa?

Evidentemente, essas e outras realidade são assexuadas, mas a associação entre gênero masculino e sexo masculino e entre gênero feminino e sexo feminino encontra-se tão arraigada em vários idiomas que, pensando no caso do sol, chega-se ao ponto de algumas narrativas imemoriais relacionarem o desaparecimento do sol atrás do horizonte à morte de heróis viris como Sansão e Hércules. O próprio Cristo é visto como o Sol da verdade, o homem que redime a humanidade (ao passo que sua Mãe é a Lua, cujo brilho depende do Sol).

Até onde tal distribuição de gêneros é arbitrária ou casual? Em que medida é fruto da nossa capacidade de interpretar e recriar o inanimado, emprestando-lhe características humanas?

Rodrigues Lapa, em seu Estilística da Língua Portuguesa, atenta para o fato de que, a par do masculino, criaram-se formas femininas para seres insexuados: saco-saca, poço-poça, barco-barca, cesto-cesta... Observa o autor que, "de um modo geral, o masculino representa maior grandeza no sentido do comprimento, o feminino maior grandeza no sentido da largura". De modo que a saca, em comparação com o saco, seria mais larga e comprida, útil como bolsa de compras. Ao contrário de poço, a poça seria uma depressão pouco profunda. A barca seria uma embarcação de fundo raso em contraste com o barco. E assim por diante.

Essa hipótese baseia-se em outra suposição. A de que, na civilização portuguesa, o homem seria visto como figura alta e esbelta, e a forma física feminina seria mais baixa e larga. Daí que as realidades masculinas ou femininas  guardassem semelhanças com o perfil corporal de varões e mulheres. A explicação, porém, não recobre todas as situações. A problemática em análise é mais complexa e misteriosa.


Diálogo de línguas


Outro ponto intrigante nessa complexa repartição de gênero é que as diferentes línguas nem sempre coincidem na hora de classificar a "sexualidade" daquilo que não tem sexualidade. Morte é feminina em latim, francês, espanhol e português, e por isso José Saramago, no romance As Intermitências da Morte, apresenta-a como uma mulher que chega a ter relações sexuais com um homem.

Por outro lado, a morte é masculina no grego antigo (thánatos) e em alemão (der Tod). O título de um livro de Colin Dexter, Death is Now my Neighbour, recebeu em terras alemãs a tradução Der Tod is Mein Nachbar, literalmente: "o morte é o meu vizinho", lembrando que Nachbar é o vizinho-homem e Nachbarin, a vizinha-mulher.

Se em princípio nada parece justificar a ligação de realidades não-humanas com a masculinidade ou a feminilidade (não me refiro aos animais e plantas), sentimo-nos inclinados, no entanto, dependendo da nossa cultura e do nosso idioma, a assumir como "natural" o fato de, por exemplo, o mar ser entidade masculina, em português, e feminina, em francês - la mer. "O mar está zangado", costumamos dizer, e visualizamos um homem nervoso, inquieto. E a poeta Olga Savary declarou: "Mar é o nome do meu macho."

Na língua francesa, porém, Júlio Verne escreveu em Um Capitão de Quinze Anos: "la mer était plus furieuse encore", fúria feminina, mulher espumando de raiva. E o ator Jean Reno, comentando em entrevista sua experiência no filme Imensidão Azul, de Luc Besson, faz o comentário tipicamente francês: "Mar é uma mulher que olha para você..."

Essa diferença com relação ao sexo do mar, no nível poético, mas também psicologicamente falando, levaria um homem francês, a dizer que mergulhou no mar-mulher, e uma mulher brasileira a afirmar que a mar-homem a invadiu... A propósito, se falar e criar imagens são ações mais ou menos simultâneas, seria um exercício artístico interessante trabalhar outras dissonâncias de gênero entre português e francês. A noite é masculina: le soir. O medo é feminino: la peur. A cama é masculina: le lit. O quarto é feminino: la chambre. A ponte é masculina: le pont. O calor é feminino: la chaleur.

Os falantes do inglês, mais pragmáticos, ou talvez mais realistas, não masculinizam nem feminizam o mundo ao seu redor. Deixam que a realidade seja interpretada, nesse aspecto, pela sensibilidade individual. Assim, voltando ao mar uma vez mais, são admissíveis em inglês as duas possibilidades: "the sea is a woman in love" (como no verso de uma poeta norte-americana iniciante), ou "the sea is a man".

Ainda sobre o mar, é curioso, como nos conta Eduardo Galeano em O Livro dos Abraços, que os pescadores de língua espanhola, contrariando o uso recomendado pelo dicionário ("el mar"), prefiram falar, e os poetas Antônio Machado e Rubén Darío adotavam o mesmo arcaísmo, "la mar", pois experimentaram na própria pele que ela, com suas ondas e seus mistérios, é mulher...


Ressonâncias cotidianas


Embora, do ponto de vista estritamente gramatical, as formas do masculino ou do feminino nem sempre se achem tão vinculadas assim à polaridade dos sexos - haja vista os substantivos sobrecomuns, com "a testemunha" e o "carrasco": por vezes o carrasco é a mulher, por vezes o homem é a testemunha -, é inegável que, nos muitos casos dos seres insexuados, a associação entre gênero e imaginária sexualidade tem sua ressonância na arte, na religião, no falar cotidiano.

No falar cotidiano, a humanização (e sexualização) das coisas quase passa despercebida, mas é sinal inequívoco de que, como seres criativos, projetamos na realidade nossa imagem e semelhança, ainda que em culturas diferentes diferenças se verifiquem nessa projeção.

As consequências dessas discrepâncias linguísticas, simples que sejam, expressam e atuam sobre a cosmovisão dos falantes. Leite é masculino em português e feminino em espanhol: la leche. O que permite especular que no leite feminino está mais visível a sua dimensão de leite materno, de alimento primeiro, ligado ao amor e à doação de vida. A expressão espanhola "tener mala leche" indica a ideia de que os maus sentimentos e o mau caráter de uma pessoa provêm "do berço", por assim dizer.

Já no leite masculino vem ao primeiro plano o leite como produto, como alimento rico, nutritivo e universal, e como base para outros alimentos: queijo, manteiga etc. O brasileirismo "esconder o leite" refere-se a omitir informações valiosas, particularmente a existência de posses e bens que o interessado oculta para preservar sua intimidade.

Um último exemplo. Se o sol é masculino para nós, e evoca imagens de força e heroísmo, para os alemães é feminino (die Sonne) e é visto como mãe de outros planetas, destacando-se seu caráter gerador e protetor. Se a lua é feminina para nós, simbolizando a mulher (Catulo da Paixão Cearense escreveu: "A Lua é mulher, Senhores!/ E, sendo mulher, encanta!/ Mas, sendo mulher, varia!"), para os alemães é masculina (der Mond), e daí que a considerem o amigo dos apaixonados insones.

A rigor, seres destituídos de sexualidade deveriam ser classificados como neutros, mas a realidade é que a herança recolhida pelos idiomas indo-europeus inclui diferenciá-los por sua suposta sexualidade. Saber lidar com essa herança pode proporcionar prazerosas descobertas antropológicas e poéticas.


Texto Gabriel Perissé retirado da Revista Língua Portuguesa Especial - Sexo & Linguagem, Editora Segmento, São Paulo, Ano I, Junho 2006.

sábado, 11 de novembro de 2023

A fala que só pensa naquilo

Adoração secular ao macho marcou a cultura ocidental e está cravada na origem de muitas palavras e formas de expressão cotidianas


A linguagem pode confinar os papéis sexuais. O mero uso da palavra homem como sinônimo da espécie teria, dizem os linguistas, sua cota de exclusão. "Homem" nomeia a humanidade. "Mulher", só um tipo de sexo. Há um controle masculino da linguagem. Como ele se expressa?

Muito da linguagem cotidiana enfatiza o órgão sexual masculino, por exemplo. A vida é um "jogo duro". Se você for eficiente, "mata a pau". Se mostra firmeza, "dá com o pau". Algo nos "torra o saco" ou é um "chute no saco", pois, ao ser praticado por outro, nos incomoda: o enunciador é da primeira pessoa ("nós", "eu"). Já a enunciação "puxa o saco" refere-se à terceira pessoa (o bajulador). O enunciador é, nos dois casos, passivo ("o meu saco é o alvo") e sempre o mesmo, mas a posição de onde se fala muda, partidária do macho que enuncia.

As condições de existência de um enunciado que exala  masculinidade muda com as épocas e culturas. A ênfase masculina na Antiguidade grega não é a mesma da era do Viagra, nem a afirmação do homem pela linguagem tem o mesmo significado na tradição árabe, nórdica ou brasileira. Mas um idioma cristaliza o modo mais comum de pensar de uma comunidade ao longo do tempo. É uma construção que dada cultura sedimenta, até o ponto de não se saber mais o real vínculo de palavras e sintaxes com o pensar dominante.

A potência fecundante foi uma determinante cultural da Antiguidade. A reafirmação do falo era uma meta em vários campos de cultura e linguagem, como a egípcia, a grega e a romana. Ao órgão viril se dedicava sincera adoração. Intuía-se que a divindade era responsável pelo sucesso conjugal, pela fecundidade e fartura da natureza. A vida em campos e florestas, fontes, hortas e jardins dependia dos humores, potências e prazeres da natureza.


Potência antiga


O termo grego phallós (que passou para o latim como phallus, membro viril) nomeava o estandarte religioso usado nas festas a Dionísio, o deus do vinho. Estátuas de Hermes com ereção decoravam as fachadas de casas, e sátiros com genitais enfeitavam vasos e taças. Uma das kômos (procissões jocosas) gregas, tradição religiosa que deu origem à palavra "comédia", era escoltada pela escultura de um falo. No século 2º da nossa era, kaulós (tubo) era palavra-padrão para pênis (a metáfora do pênis como "pau" é antiga: kaulós é matriz do português "caule").

Vítima do invejoso irmão Tífon, príncipe Osíris é morto e esquartejado. Sua mulher Ísis reúne os restos do marido, mas não acha as partes pudentas. A elas Ísis presta tributo. Quando a viúva morre, os egípcios incorporam o casal às suas divindades. A representação do falo de Osíris era levada em solenidades e cerimônias, símbolo das energias sexuais. Como tal, passou a ser considerado como imagem do Sol, princípio do fogo e poder gerador e fecundo do Universo.

"Alterada e difundida entre os fenícios, a adoração a Osíris espalhou-se pelos moabitas [Rute, da Bíblia, era moabita, uma estrangeira em Israel] e madianitas", dizem M. Barre e César Famin em Museu Secreto de Nápoles (1934). Em sua adoração, chamavam o falo de Belfegor (deus nu), cujo equivalente mifeletzeth chegou a ser traduzido como "priapo". Venerada depois pelos lavradores e pastores de Lampsaco (na costa asiática, hoje Lâpseki, na Turquia), sob o nome de Priapus, ganhou a cultura greco-romana como filho de Afrodite e Dionísio. A deusa da procriação e da beleza se unira ao deus da vida. Veio Priapus. Feio, fofoqueiro, sexualmente disforme, barrigudo, Priapus cresce malvisto no Olimpo e termina exilado na Terra.

É deus fértil e viril, com falo monumental e ereto. Era proteção contra a esterilidade de colheitas e pessoas. As mulheres penduravam falos de bronze ou pedra no pescoço e usavam amuletos fálicos (vem daí o símbolo da figa). Monumentos fálicos (os obeliscos) tomavam as vias públicas.

Com o triunfo do Cristianismo e a aniquilação dos rituais pagãos, a adoração ao falo decaiu, mas antigos ritos libidinosos ficaram no DNA de muitas palavras. O falo deixou de ser um dado religioso, mas virou um conceito linguístico e cultural, não só biológico.

A linguagem cotidiana, ainda hoje, expressa inveja do pênis, do falo como objeto de culto e do homem como signo do que há de viril, fecundo e positivo no mundo.

Hoje, muito do que está relacionado ao tamanho (ao mais, ao maior) tem um valor para o universo masculino e outro para o feminino. "Pistolão" é o poderoso. "Pistoleira", a prostituta. "Homem público" é o político; "mulher pública, a prostituta. "Homem da rua" é sinônimo de "vagabundo". Já "mulher da rua" é a meretriz, também "vagabunda". "Peitudo" é homem de coragem, mas seu feminino é pejorativo. Ter o pé grande é masculino, mas na mulher denegre a lésbica, o não-homem que se passa por tal, o sapatão.


Geração Viagra


Os especialistas sabem que o homem ocidental sofreu com as configurações discursivas das últimas décadas, como o feminismo, por exemplo. Convive-se mais do que há 50 anos com práticas discursivas menos ligadas ao patriarcalismo convencional. A própria representação do homem mudou.

Mas para homem e mulher, continua traumático encarar outo ser do sexo oposto como ser humano diferente, não pior. A tentação de confortar-se mutuamente ao denegrir o sexo oposto (uma prática masculina de séculos) ainda é uma tônica mesmo no universo feminino.

Reproduz-se, na linguagem, a hierarquia imposta: se "todo homem é igual", "só pensa naquilo", "o que é do homem o bicho não come", "com a dona patroa não se brinca", "homem não faz amizade com mulher", "mulher só consegue ser amigo de gay", sentenças generalizadoras, por si mesmo carregadas de preconceito, pois abafam as nuanças, as possibilidades de comportamentos não gramaticalizados pelo senso comum, a diversidade da mente e das sensações humanas.

O discurso masculinizante rearticula-se, com isso, incorporando o outro, mas ao mesmo tempo subordinando-o. A mulher é quem pega no pé do parceiro, é natural também que o homem cace todo rabo de saia. Nada é assim tão "natural" à "essência" do homem ou da mulher. A linguagem é ao mesmo tempo expressão, veículo, lembrança do lugar que uma cultura idealizou para o macho, mas também projeta aquilo que ele é e se propõe ser, cada vez que um homem fala ou se expressa.


Texto de Luiz Costa Pereira Júnior retirado da Revista Língua Portuguesa Especial - Sexo & Linguagem, Editora Segmento, São Paulo, Ano I, Junho 2006.

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

O Mundo Trans

Conheça um pouco mais a respeito das complexas classificações de gênero que não se enquadram na norma heterossexual


Travesti, transexual, transgênero e crossdressing são algumas das muitas categorias utilizadas para se remeter às pessoas que procuram transitar entre gêneros, adotando uma performance de gênero que não se enquadra na norma heterossexual. Diante dessas complexas classificações é importante lembrar a diferença classificatória apontada por Jorge Leite Jr. (2008) entre o Brasil e países estrangeiros em relação aos termos travestis e transexuais. No Brasil, tanto no vocabulário médico e jurídico quanto na cultura popular e de massas, travesti é aquela que adota o gênero feminino, sofre intervenções hormonais e cirúrgicas para feminilizar seu corpo, adota as vestimentas e nomes femininos e não deseja a cirurgia de transgenitalização. As transexuais femininas, por sua vez,  seriam aquelas que sentem um enorme desconforto e sofrimento com seu órgão sexual desejando realizar a cirurgia de transgenitalização.

Em outros países como Estados Unidos, França e Itália, no entanto, essa condição seria descrita como transexualismo secundário em termos de classificações médicas. Por fim, o travestismo transvéstico do DESM (Manual de Doenças Mentais) e o travestismo fetichista do CID (Classificação Internacional de Doenças) podem ser relacionados no contexto brasileiro com os chamados "crossdressers", sendo um grupo que independente da orientação sexual realiza uma montagem do feminino ocasionalmente.

Também podemos citar o uso da categoria guarda-chuva "transgender", categoria êmica norte-ameicana que pretende agregar e descrever a multiplicidade de expressões identitárias das pessoas que transitam entre os gêneros. David Valentine (2007) aponta que a categoria criada na década de 1990 foi apropriada pelos movimentos sociais e pelo Estado na construção de políticas públicas norte-americanas, mas que torna invisível a variabilidade de expressões classificatórias acionadas na prática das pessoas ao distinguir sexualidade de gênero.

Nas etnografias recentes, sobre a temática das diferenças entre travestis e transexuais no Brasil, vem sendo descrita que essas categorias podem assumir na prática das pessoas que as utilizam. Nesse sentido, uma pessoa apesar de não desejar a cirurgia de transgenitalização pode se descrever como transexual com a finalidade de afastar de si o estigma da categoria travesti; dentro dessa mesma lógica uma pessoas que realizou a cirurgia ou deseja realizá-la pode se autodenominar de travesti. Assim, ao analisar a bibliografia recente sobre as identidades trans, verificamos o quanto estas são contextuais e políticas, podendo os indivíduos acioná-los de modo estratégico e situacional, como indicado pelos trabalhos de David Valentine (2007) nos Estados Unidos, Jorge Leite Jr (2008) e Bruno Barbosa (2010) no Brasil.


GENEALOGIA DAS CATEGORIAS


Segundo Leite Jr (2008), as classificações dos indivíduos que não se enquadram nos padrões de gênero possuem uma história específica, conectando-se aos contextos sociais e culturais de uma dado período, o que não exclui a possibilidade de haver controvérsias e disputas discursivas em cada um desses momentos históricos. O autor ao realizar uma genealogia das categorias referentes à ambiguidade sexual identificou uma apropriação do sabe-poder médico discursivamente sobre esses corpos, na qual pelos manuais internacionais de doenças associaram determinados indivíduos às "perversões" sexuais, enquanto outros a doenças mentais que necessitam de tratamento.

Nesse sentido, como observado por Barbosa (2010), na sua etnografia sobre a diferença entre travestis e transexuais, na prática desses atores ocorre uma polarização de discursos entre as que se identificam como transexuais ou "transex", e que querem se afastar do estigma da prostituição e da marginalidade conectando-se a uma categoria médica, e uma militância travesti preocupada justamente ema acusá-las de doentes e de pouca  consciência política de sua condição comum. Essas autoidentificações assumem uma variabilidade e uma situacionalidade, que em certos contextos se referem aos vários marcadores da diferença que servem como parâmetro para o constructo de uma feminilidade verdadeira e legítima em disputa. Por exemplo, uma pessoa que se autodeclara transexual pode não ser reconhecida como tal pelas colegas, pois apresenta uma construção da feminilidade que não é legítima em termos de padrões de beleza construídos a partir de marcadores de classe social, gênero e raça.

Hoje em dia existe um debate polarizado em torno da despatologização das identidades trans, pois se de um lado é necessário reconhecer os transgêneros como sujeitos autônomos e normais, por outro lado, a via tradicional do diagnóstico médico tem facilitado o acesso a recursos financeiros que permitem a transformação corporal. (Butler, 2009). Diante da militância desse segmento que advoga pela despatologização no DSM-V, foi retirada a concepção de doença presente no diagnóstico "de transtornos de identidade de gênero", colocando a noção de "disforia de gênero", isto é, a angústia de que sofre uma pessoa que não se encontra identificada com o seu sexo masculino ou feminino.

No evento realizado no CEPROOM (Centro de Promoção da Mulher Marginalizada) no Itatinga, no dia 26 de junho de 2014, sobre as "identidades trans e o papel da defensoria", Vanessa Alves Vieira, defensora especializada em ações judiciais dentro dessa temática afirmou que a diferenciação das categorias transexuais e travestis tem sido úteis apenas para negar direitos ao invés de oferecê-los. Essa defensora afirmou em sua fala, dirigida às pessoas "trans" e aos defensores presentes no evento, que dentre as maiores problemáticas enfrentadas hoje em dia quanto à saúde desse grupo está a necessidade de um laudo psiquiátrico com o diagnóstico de transexualismo, excluindo as que se identificam como travestis do acesso a cirurgias de mudanças corporais no Sistema Único de Saúde (SUS), além do laudo ser um mecanismo de poder que autoriza os profissionais da saúde a estabelecer quem possui ou não uma identificação de gênero legítima. No sistema jurídico, por sua vez, Vanessa A. Vieira constatou que os juízes compreendem em sua maioria a necessidade de cirurgia de transgenitalização ou laudo psicológico que ateste a transexualidade para a mudança de nome, apesar de não haver nenhum marco legal que regule nesse sentido a retificação de registro.

Diante das problemáticas apresentadas acima, a dizer a noção de patologia e de desvio inerente aos termos travestis e transexuais, as categorias "cis" e "trans" atualmente têm ganhado espaço nesse universo classificatório, especialmente entre a militância do chamado transfeminismo, considerando que as categorias existentes transmitem uma noção de patologia, como a de transexual, ou são estigmatizadas como a de travesti.

É interessante apresentar a controvérsia mobilizada pelo reality show "RuPaul'sDragRace", ao se defrontar com as disputas identitárias e consequentemente políticas do movimento "transgender" nos EUA. O movimento organizado de mulheres "trans" nos Estados Unidos reagiu contra atrações do programa, que utilizavam terminologias consideradas pejorativas para descrever as pessoas que transitam entre os gêneros nesse contexto cultural como "shemale" ou "tranny", termos que segundo as porta-vozes dessa militância desumanizam as pessoas "trans". Dentre essas polêmicas podemos citar o uso do termo "shemale" em um dos jogos do programa, que tinha como objetivo fazer as participantes diferenciar mulheres "trans" de mulheres "cis". O programa retirou o quadro do ar, sendo que a controvérsia denunciou uma questão de fundo político mobilizada pelo discurso desse segmento do movimento LGBT, a de que o programa de drag queen ao mostrar homens vestindo-se de mulheres eventualmente e usando uma linguagem pejorativa poderia deslegitimar as demandas por acesso a educação, saúde, trabalho e combate à transfobia frente ao público leigo no assunto que não compreende os desafios diários de ser uma pessoa transexual.

Como conclusão desse artigo, podemos afirmar que as classificações de gênero que não se enquadram na matriz heterossexual compõem um vocabulário complexo, pois são produzidas dentro de contextos culturais específicos e possuem enquanto identidades um caráter político, sendo mobilizadas de acordo com as circunstâncias e estratégicas dos atores, seja para oferecer uma feminilidade legítima ou pela atuação de certos segmentos militantes reivindicando reconhecimento para suas demandas.


Texto de Maria Isabel Zanzotti de Oliveira retirado da Revista Sociologia, Editora Escala, São Paulo, Ano VI, Edição 58, Maio/Junho 2015.

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Gênero em Perspectiva

As reflexões sobre as noções de gênero, sexo e sexualidade tiveram início no século passado no campo das Ciências Humanas, com autores do porte de Simone de Beauvoir e Gayle Rubin


Para sintetizar as teorias que buscaram dar conta das reflexões sobre sexo, gênero e sexualidade, é necessário antes de tudo afastar possíveis confusões entre as três noções. Grosso modo, afirma-se amplamente que o sexo está para o gênero assim como a natureza para a cultura. Isso quer dizer que o sexo é visto a partir de características anatômicas, biológicas e físicas enquanto o gênero constituiria algo do plano das construções socioculturais, variando através da história e de contextos regionais. Porém, como procurarei demonstrar, essas fronteiras entre natureza e cultura foram ao longo do tempo vastamente borradas, transformando a natureza como objeto de conhecimento também em um produto de cultura e, dessa forma, passível de mudanças tanto em sua compreensão quanto como uma base moldável pelos indivíduos.

Assim, o corpo inicialmente natural adquire também a possibilidade de ser compreendido como objeto sob a ação de processos culturais, políticos e técnicos. Enquanto isso, a sexualidade - não raramente confundida com sexo e gênero - diria respeito tão somente às práticas eróticas e sexuais entre os indivíduos, classificadas em nossa sociedade por termos como heterossexuais, homossexuais, bissexuais etc. Vale salientar, contudo, que sexualidade não diz respeito necessariamente a uma orientação sexual fixa e que, dessa forma, práticas eróticas/sexuais podem envolver diferentes parceiros conforme a orientação do desejo, para além das classificações acima mencionadas. No entanto, essa compreensão infelizmente não é verificada no senso comum, sendo muito corriqueiro presenciar pessoas trans sendo ofendidas a partir de palavras impregnadas de significado, tais como "bicha", "viado", "sapatão", etc.

Um ponto inaugural nas discussões está sinalizado pela publicação de "As técnicas do corpo", do antropólogo e sociólogo francês Marcel Mauss. Mauss (2003), ainda na primeira metade da década de 1930, foi responsável por traçar a noção de técnicas corporais, tornando o corpo e os hábitos corporais de cada sociedade objetos de maior reflexão. Para ele, a maneira como nos servimos de nossos corpos não se alimentaria apenas de fatores biológicos, mas de elementos psicológicos e sociais. Nesse sentido, homens e mulheres adquiriam por "imitação prestigiosa", como a criança que imita o adulto, técnicas corporais que se diferenciariam singularmente conforme o sexo sob o qual estariam demarcados. Assim, por exemplo, crianças têm educações diferentes, assim como são estimuladas a desempenhar atividades distintas, e até hoje permanecemos censurando a menina que se senta com as pernas abertas ao passo que fazemos o mesmo com os meninos. Embora não percamos muito tempo refletindo sobre o tema, há certamente atitudes permitidas e não permitidas, naturais e não naturais, e com valores marcadamente distintos conforme o corpo que as protagoniza.


CONCEITO DE GÊNERO


Após esse primeiro flerte de Mauss com uma reflexão sobre a educação cultural dos corpos, as Ciências Sociais observaram ainda nas próximas décadas uma multiplicidade de problematizações que, se não tratavam especificamente da construção das diferenças sexuais, davam ao menos algumas pistas de que essas diferenças estariam presentes nos mais diversos contextos estudados, assim como se manifestando de maneiras variadas. Porém, foi somente com a antropóloga americana Gayle Rubin, em 1975, que vimos pela primeira vez a utilização do conceito de "gênero" na Antropologia. Rubin (1975) é também responsável pelo conceito de sistema sexo/gênero, no qual arranjos histórica e socialmente determinados criam convenções em torno do masculino e do feminino, do chamado sexo biológico, da identidade de gênero etc. Para a autora, além do tabu do incesto, sobre o qual a Antropologia se deteve longamente por anos, lidaríamos também com o tabu da homossexualidade, pois em diversas sociedades arranjos sexuais não compostos por um homem e uma mulher seriam impensáveis.

No Brasil, assim como em outros países, os estudos de gênero vão começar a se desenhar paralelamente à segunda onda do feminismo, em meados da década de 1960 na Europa e nos Estados Unidos e na década seguinte no Brasil. Esses movimentos formularam a crítica da subordinação histórica de mulheres a homens, assim como questionaram a naturalização de diferenças entre homens e mulheres e, por consequência, os papéis sociais atribuídos a cada um.

Décadas mais tarde, em 1990, o historiador Thomas Laqueur, notadamente influenciado pelo não menos digno de nota Michel Foucault, vai problematizar a construção da diferença sexual ao longo dos séculos. Assim, apresenta desde o modelo de sexo único, em que o corpo da mulher seria apenas uma versão invertida e imperfeita do corpo do homem e menos importante em uma escala hierárquica, até o modelo de dois sexos, em que o corpo da mulher seria o oposto incomensurável do corpo do homem. Para Laqueur (2001), a diferença sexual seria construída situacionalmente ao longo da história, mantendo estreitas relações com conjunturas tanto epistemológicas quanto políticas. O historiador é responsável por mostrar como as diferenças biológicas - em um primeiro momento fixas - são também determinadas pelo contexto histórico e cultural no qual o conhecimento sobre as mesmas é produzido. Nesse sentido, o sexo biológico não estaria tão distante do gênero entendido como categoria meramente cultural. A anatomia seria também fruto de perspectivas historicamente situadas, e, por consequência, passível de questionamento.

Ainda na década de 1990, é necessário a produção da filósofa Judith Butler, para a qual tanto sexo biológico quanto gênero seriam matéria para a teoria social. Isto é, estariam plenamente borradas as linhas que colocam gênero e cultura de um lado e sexo e natureza de outro. A autora nos ajuda a retomar de maneira mais precisa a questão da coerência entre sexo, gênero e desejo sexual. Embora o binarismo de gênero (masculino/feminino) não dê conta da complexidade da realidade, espera-se que na existência de um pênis o indivíduo seja, portanto, um homem, e por  consequência sinta atração por mulheres. Nesse sistema regulador, não caberiam outras práticas e tampouco outros gêneros.


OS HOMENS COMO OBJETO DE ESTUDO


Feita essa breve menção a reflexões dentro e fora dos estudos de gênero, parece necessário pontuar ainda algumas questões. O conceito de gênero não diz respeito apenas a mulheres, embora possamos dizer que o início e a maior parte das produções sobre gênero tenham focalizado temas relacionados a mulheres. A historiadora Maria Luiza Heilborn e o antropólogo Sérgio Carrara (1998) sugerem, com base na crítica feminista da década de 1970, que, embora intocados como objeto de investigação, os homens figuraram desde que podemos nos lembrar como o referente implícito dos discursos e como representantes universais da espécie humana. Talvez por isso o apelo de Nathalie Davis, citado por Joan Scott (1995), tenha sido ignorado por tanto tempo. Para Davis, homens e mulheres seriam importantes objetos de reflexão, e por isso "não deveríamos trabalhar unicamente sobre o sexo oprimido, do mesmo jeito que um historiador das classes não pode ficar seu olhar unicamente sobre os camponeses" (Scott, 1995).

Assim, homens e masculinidades permaneceram, por muito tempo, ausentes, enquanto objetos de pesquisa, tendo adquirido esses status apenas com o trabalho de sociólogos como a australiana Raewyn Connell, na época ainda conhecida como Robert W. Connell, que pelo menos desde a década de 1980 se preocupou com o tema, tendo cunhado com colaboradores o conceito de masculinidade hegemônica, além de ser autora de Masculinities, um dos principais referenciais teóricos para pensar masculindades. Além de Connell, vale mencionar A Dominação Masculina do sociólogo francês Pierre Bourdieu, do final da década de 1990, assim como Daniel Welzer-Lang, outro sociólogo francês cuja produção sobre masculinidades data do final da década de 1980. Outros nomes que não podemos deixar de citar, por exemplo, são os de Miguel Vale de Almeida, em Portugal, e Benedito Medrado, no Brasil. Há também autoras se ocupando do tema, mas em menor escala, o que aponta para uma rígida separação de temas conforme o lugar social do pesquisador, também marcado pelo gênero.

As masculinidades vão timidamente adquirindo espaço em um campo de conhecimento em que feminilidades, masculinidades e outras experiências se produzem em relação e muitas vezes a partir do contraste. Não é possível deixar de mencionar que essas relações são também penetradas por outros marcadores, tais como cor, raça, classe e geração, que sem dúvida produzem feminilidades e masculinidades particulares. Além disso, a emergência de um campo que se questiona sobre as masculinidades demonstra, parafraseando Simone de Beauvoir, que assim como não nascemos mulheres, também não nascemos homens.

Assim, finalizo convidando o leitor a analisar com mais atenção suas próprias referências e práticas antes de censurar aqueles que não se encaixam em expectativas de gênero predeterminadas. Como salienta o antropólogo Miguel Vale de Almeida (1996), masculinidades e feminilidades não são mais do que metáforas de poder e de capacidade de ação. Nesse sentido, podem ser acessadas tanto por homens quanto por mulheres, embora esse acesso seja limitado conforme o que se espera em cada sociedade. Em todo caso, as parcelas de poder e capacidade de ação estão claramente distribuídas de maneira desigual e assimétrica. Resta-nos desnaturalizar o que foi dado como certo e estimular a produção de uma sociedade menos aprisionada em convenções e discursos hierarquizantes.


Texto de Isabela Venturoza retirado da Revista Sociologia, Editora Escala, São Paulo, Ano VI, Edição 58, Maio/Junho 2015.

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Identidade Gay e os preconceitos que cerceiam a tolerância

 Para Foucault e Deleuze, a subserviência aos modelos preestabelecidos pelos próprios homossexuais são obstáculos para a pluralidade


Nesta época de luta pelos direitos dos homossexuais, em que tantas conquistas fazem-se notar, a ponto dos preconceitos serem considerados antiquados e muitos atestarem que tem ocorrido uma evolução no que tange ao olhar da sociedade em relação aos gays, cabe uma pergunta delicada: vencidos os embates externos (contra preconceituosos, homofóbicos e dogmáticos), o que dizer então dos inimigos internos? A luta dos homossexuais seria apenas contra entidades "lá fora"? Conquistaram os militantes uma assim dita "identidade gay"? Muitas opiniões sobre este assunto são possíveis. E o que nos diriam estes que são dois dos mais importantes filósofos franceses da pós-modernidade: Michel Foucault e Gilles Deleuze?

A partir das perspectivas assimiladas ao longo da obra foucaultiano-deleuziana, podemos dizer que ninguém "nasce" homem, mas sim que todos nos tornamos homens, numa busca constante. A dita virilidade masculina representa o investimento numa rede relacional: busca-se o reconhecimento da masculinidade. Esta virilidade é uma ética, uma constante inquietude de si. Ao contrário do que pregam alguns militantes gays, o sexo não nasce feito. Nem mesmo "nasce-se gay", na medida em que a singularidade homossexual, como toda e qualquer singularidade humana, demanda contínua construção, desconstrução, reconstrução. Não se trata, portanto, de lutar por uma identidade no sentido de "ser idêntico a", ou seja, "seguir um modelo pré-estabelecido". O pensamento de Foucault e Deleuze opõe-se à ideia de seguir modelos, sejam eles quais forem, o que termina conduzindo a uma dolorosa liberdade: a liberdade de um contínuo criar, de responsabilizar-se por si mesmo, fazendo de si uma obra de arte singular e única. Um total contraponto à ideia de seguir um modelo dito "idêntico".

É importante salientar que, se o sexo é definido como uma divisão entre gêneros, todo sexo e toda sexualidade é heterossexual, no sentido de que "hetero" significa "diferente", ou seja, todo relacionamento sexual entabulado com um ser diferente de mim, seja ele um homem ou uma mulher, será hetero, pois o sujeito faz-se homem na medida em que faz do outro um outro. Essa divisão, existente no imaginário masculino, está longe de ser igualitária, ao contrário, é hierarquizada. Através do ato sexual, os sujeitos são inscritos numa hierarquia, territórios são demarcados, corpos e sujeitos são heterossexualizados: eu sou o homem, você é a mulher.

A partir das descrições históricas do pensador Paul Veyne, ao relatar os hábitos sexuais dos antigos gregos, podemos afirmar que até mesmo as ditas relações "homo" da antiguidade estavam longe de serem "relações entre iguais". Elas eram heterossexuais, na medida em que o homem mais velho, o erastes, exercia sobre o efebo impúbere, ou eromenos, um poder, e uma hierarquia era estabelecida. Uma relação "homo", na antiguidade ou na modernidade, num sentido semântico do termo, envolveria dois sujeitos que fossem considerados iguais (sejam eles machos ou fêmeas), sem hierarquia de subjugador e subjugado. Seria isso possível, ou mesmo real, no chamado "mundo gay"?

A que parece, o discurso heteronormativo, também chamado de "matriz hegemônica de inteligibilidade", tem o poder de penetrar até mesmo o universo gay, atravessando todas as relações e adequando tudo o que encontra a uma lógica hegemônica. A mesma misoginia, que cria o discurso homofóbico, sobrevive nessa divisão tão solidamente estruturada por discursos culturais dentro dos guetos gays, criando até nos relacionamentos mais íntimos barreiras identitárias poderosíssimas. A intolerância, pretensamente apontada pelos militantes gays no que eles chamam de "totalitarismo heternormativo", parece ser uma pálida sombra se comparada à intolerância que subjaz ao próprio gueto homossexual sob os mais diversos aspectos que serão expostos ao longo deste artigo: o ódio aos travestis, o desprezo aos sexualmente passivos, o horror aos afeminados, como se "ser gay" significasse necessariamente seguir um modelo identitário pré-formado: ser homossexual é possível, contanto que o sujeito siga a cartilha. A cartilha dita que todos sejam másculos e comportem-se bem. Não se trata, obviamente, de uma cartilha escrita, mas fica patente no discurso presente tanto entre heterossexuais quanto homossexuais, em que se vaticina que "ser gay é possível, contanto que o cara seja macho e se dê ao respeito".

Vale questionar: existe, de fato, um exemplo de tolerância? Houve tal exemplo em algum momento da história humana que poderia ser seguido como um modelo?

É assaz comum, no que concerne aos argumentos de alguns militantes gays acerca da homossexualidade, referir-se ingenuamente, à antiga Grécia como um exemplo espectacular de civilização tolerante para com a prática homoerótica, considerando a civilização judaico-cristã como "atrasada" em relação à realidade homossexual. A partir desta comparação histórica, evoca-se a ideia de um relativismo moral e questionam-se as bases do preconceito moderno. Todavia, os militantes parecem ignorar que, no que tange à antiga Grécia, termos interdições tão claras quanto as interdições atuais. muito embora sejam interdições diferentes. Conforme discorre Foucault ao longo da sua obra, não é interessante tomarmos outra época como um modelo, pois não há um valor exemplar em um período que não seja o nosso próprio. Deleuze valida esta afirmação, ao sustentar em sua obra Conversações que Foucault detestava retornos: falamos do que vivemos. A história não diz o que somos, não estabelece a nossa identidade, diz apenas aquilo que estamos em vias de diferir. Paul Veyne emite um pensamento similar em O Último Foucault e sua Moral, ao dizer que o que se opõe ao tempo, assim como à eternidade, é a nossa atualidade.

Para fazer uma "arqueologia gay", portanto, não é necessariamente voltar-se para o passado. Deleuze aponta em Conversações para uma arqueologia do presente, em que tomamos as coisas para extrair delas as suas visibilidades. Não se trata, em absoluto, de procurar um modelo dito ideal que sirva como norma moral para os gays, mas - retomando Nietzsche - descobrir como a operação artística da vontade de potência permite a invenção de novas possibilidades de vida: um "ser gay" que se constrói, inventa-se, um "ser" enquanto verbo atuante um nosso tempo, jamais como substantivo-modelo de uma época passada.

Deste modo, respondemos desde já a pergunta explicitada nos parágrafos anteriores: segundo Foucault, Deleuze e Veyne, não se trata de seguir um modelo, muito menos um modelo grego antigo, mas de criar um modo de vida gay que admita a pluralidade, um modo que se recrie continuamente, de forma íntegra e autocrítica, buscando maneiras de sabotar qualquer espécie de normatividade. Esta é uma proposta mais revolucionária do que talvez imaginemos, quando falamos em "respeito as diferenças".

Vale ressaltar que Foucault jamais apresenta uma resposta, uma solução, nem aponta um caminho que possa ser considerado como "certo" para as problemáticas gays. Esta resposta cada um deve encontrar por si mesmo, num ativismo pessoal, numa militância do sujeito. Até mesmo porque, de acordo com o olhar foucaultiano, não existe escolha certa, e sim uma escolha entre perigos, onde devemos buscar dos males o menor. Sim, Foucault é pessimista em sua visão, mas jamais apático. Seu pessimismo deriva da consciência de que toda escolha é perigosa, e acarreta em efeitos colaterais inevitáveis. Não existe "caminho melhor" e "caminho pior", para Foucault, e sim caminhos com problemas diferentes, com perigos diferentes, em que o perigo principal deve ser identificado.

É curioso observar que as críticas de muitos homossexuais, alguns deles inclusive militantes da causa gay, acerca da afeminação de gays mostrados na TV, não é muito diferente das críticas que um homem afeminado sofreria na antiga Grécia. É extremamente comum, nos tempos modernos a afirmação "eu sou gay, mas não sou afemindado e detesto afeminados". Além disso, salienta-se o fato de que o termo pejorativo "bicha passiva" é amplamente utilizado pelos próprios homossexuais para se referir a outros com sinal de evidente desprezo. Nada disso é muito novo e quem enxerga a antiga Grécia como um paraíso da diversidade gay, equivoca-se profundamente. De acordo com Paul Veyne, em sua obra A Homossexualidade em Roma, um homófilo passivo (diatithemenos) era alvo de desprezo e rejeição, sobretudo por parte do exército. Veyne conta que, certa feita, um homossexual passivo foi poupado de ser decapitado, porque o imperador não queria que a lâmina do gládio do carrasco fosse conspurcada por tão "aviltante criatura". A afeminação masculina era vista pelos antigos greco-romanos como algo desprezível. De modo análogo, muito embora por razões diferentes, os homossexuais modernos parecem sofrer da mesma aversão à passividade sexual masculina.

Fica evidente que existe um modelo normativo entre os próprios homossexuais, modelo que se pauta em regras e em "modos de ser" que, longe de criar sujeitos criativos, cria aquilo que Foucault chama de "clones", ao referir-se aos homens de aparência similar nas paradas gays (na época de Foucault, homens com fartos bigodes e óculos Ray-ban; modernamente, homens anabolizados e preferencialmente depilados). Na entrevista "A amizade como modo de vida", concedida ao jornal Gai Pied em abril de 1981, Foucault usa o termo "clones bigodudos" para referir-se a estes homens "todos iguais". Estes "clones", ao contrário de criarem a obra de arte de suas próprias existências, compraram o modelo pré-existente, pré-fabricado, com uma identidade de plástico, uma identidade que busca o idêntico: o modelo, o molde, o "deve ser".

Os movimentos de militância gay demonstraram, por vezes diversas, uma inclinação totalitária. Ao invés de proteger os homossexuais, lutando pelos justos direitos civis, tais movimentos, algumas vezes pareceram mais empenhados e ocupados em destruir radicalmente tudo o que, na sociedade, na cultura ou em sujeitos particulares, explicite discordância. A ideologia torna-se uma arma policial delirante que tenta proibir toda divergência de opinião, toda repulsa espontânea, todo pensamento que a desagrade e até mesmo as piadas, que fazem sentido dentro do contexto de uma comédia, peça ou novela. O que não faltam são ameaças de processo contra autores que, desejando fazer comédia, criaram um personagem caricato, cômico e gay.

Ao eliminar toda diferença, o que sobra? Uma montanha intransponível de concordância e subserviência à cartilha politicamente correta (e politicamente tirânica). As próprias atitudes públicas de alguns dos ditos "representantes dos gays" evidenciam isso. Tais representantes, munidos da mais intensa disposição de perseguir qualquer opinião que contrarie a deles, dizem falar em nome dos gays, mas o que isso significa? Não podemos nos furtar a citar o que Deleuze, em Conversações (p.110) chama de "indignidade de falar pelos outros". Transportando esta fala para o presente assunto, ousamos perguntar: como é possível que uma militância que critica a existência de personagens gays afeminados em novelas e espetáculos se diga porta-voz de todos os gays? Definitivamente, isso não é possível. Estes, no máximo, falam em nome de um tipo específico de gay - especificamente o gay que não fere as suscetibilidades dos heterossexuais, comportando-se de um modo domesticado, padronizado, que permita que os homossexuais sejam vistos "como pessoas de respeito" - uma priorização à moral, mas não uma ética.

A dignidade de não falar pelos outros deveria ser parte do intelectual, para Deleuze, que denuncia em Conversações (p.110): sempre que alguém diz "ninguém pode negar", "todo mundo há de reconhecer que", eis uma mentira ou um slogan. A proposta deleuziana-foucaultiana é a de que cada um fale em seu próprio nome. Não devemos falar em termos de valores universais, mas em nome de nossa própria competência e situação. Se o grupo não é multivocal, onde está a ética? Guatarri, com quem Deleuze trabalhou por diversas vezes, enfatizaria a ideia de "transversalidade", por oposição aos grupos hierarquizados, onde temos um que fala em nome de todos os outros.

Vale salientar também a apropriação, por parte de algumas militâncias gays, de termos que são usados com o evidente intuito de exercer poder, de subjugar. "Homofobia" é um bom exemplo moderno. Este termo foi introduzido pelo psiquiatra George Weinberg, no livro Society and the Healthy Homosexual (New York, St, Martin's Press, 1972) para designar o complexo emocional que, no seu entender, seria a causa da violência criminosa contra homossexuais. Observamos, contudo, uma apropriação deste termo pelas militâncias gays, que passaram a acusar de "homofobia" uma série de fatos, atos e discursos de uma maneira exagerada que nos faz pensar: não seria, na verdade, uma forma de demonstrar poder? Uma forma clara de tentar intimidar todos aqueles que pensam diferente destes militantes? À luz do que estudamos sobre relações de poder em Foucault e Deleuze, ousamos dizer que sim.

No livro A History of Homophobia, o ensaísta Rictor Norton, um apologista da homossexualidade, é bem franco sob esse aspecto: "Com muita frequência, a palavra "homofobia" é apenas uma metáfora política usada para punir". Sob este ponto de vista, o exagero é evidenciado quando os militantes acusam de "homofobia" toda e qualquer pessoa que não pregue a cartilha da militância e repita, tal qual foi determinado pelo alto comando de algumas ONGs e instituições, o que pode e o que não pode ser expresso como opinião a respeito da vida homossexual.

Usar o mesmo termo ("homofobia") para definir um skinhead, espancador de homossexuais e uma pessoa que diz ser contra o casamento gay por motivos religiosos parece ser uma forma injusta e cruel de nivelamento, e mais que isso: uma tentativa explícita de censurar a opinião das pessoas. De onde nos permitimos pensar: a militância gay luta efetivamente pelos direitos dos homossexuais, ou não passa de uma forma de exercer poder e ditar regras? Não seria a militância gay apenas mais uma fórmula ideológica e projeto de poder? Para Veyne, por exemplo, segundo Yolanda Glória Gamboa Muñoz em Escolher a Montanha (p.41), a ideologia é um estilo nobre, porém vago, que idealiza as práticas, dissimulando os contornos das práticas reais: o que se faz e o que se diz. Conforme cita Muñoz a respeito de Veyne: "Por isso, em certo momento, ele poderá afirmar que 'a ideologia não existe'" (Escolher a Montanha, p.41, 2005).

Não obstante às declaradas intenções libertadoras da militância gay, um olhar mais apurado não deixa escapar uma ideologia normatizadora, que norteia tal militância. Um militante da causa gay certa feita comentou, em entrevista o seguinte:

"(...) que morreu de vergonha quando a família de seu namorado assistia à novela e "apareceram as bichas velhas, desmunhecando, fazendo tiranias e baixarias". "Essa é a imagem que o povo tem da gente, e lutamos para que nos vejam como somos, homens que gostam de homens e não malucas desvairadas caricatas". Acusado de 'fundamentalista', por querer processar o autor de televisão, X responde perguntando: 'Defender nossa dignidade é fundamentalismo GLBT?'"

Este discurso deixa claro, de forma deveras impressionante, que a fala militante neste caso prevê regras de conduta, modelos de comportamento e normatizações para o "ser homossexual" ("ser" enquanto verbo e não substantivo, vale salientar). Fica evidente, na fala deste dito representante da causa gay, que um sujeito pode ser homossexual, contanto que não seja uma "maluca desvairada e caricata" (leia-se: afeminado) e, ao que parece, ser "velho" é também um demérito, e não uma condição natural e inevitável da biologia. Tal discurso não dá espaço para a invenção da homossexualidade a partir de um ativismo constante e autoquestionador, conforme nos propõe Foucault. Existe, para este tipo de militante, uma forma ideal de ser homossexual, uma forma que, justamente por ser idealizada, exclui terminantemente uma realidade: efetivamente, existem homens homossexuais afeminados, quer gostem disso ou não os gays descolados, modernos e másculos. É importante salientar que a vergonha que o sujeito disse sentir está atrelada ao olhar dos heterossexuais sobre a cena: ele não sente vergonha por ver a cena, ele sente vergonha quando a família (heterossexual) a assiste, ou seja, ainda necessita da aprovação do status quo heterossexual do qual ele diz ser liberto. "Lutar para que nos vejam como somos" só faz sentido se esta luta incluir, conforme salienta Foucault, a diversidade e também a liberdade criativa para que nos inventemos continuamente, criando novas formas de relações e de "ser". Qualquer tentativa de uniformização não passa de trocar um modelo de regras por outro: no caso, troca-se o modelo normativo heterossexual por um modelo normativo homossexual completamente infectado pela misoginia e pelo machismo. E o que  significaria "nos ver como somos?", afinal de contas a pluralidade prevê incontáveis "jeitos de ser", alguns inclusive que nem foram inventados ainda. O discurso militante subentende que existe um "como somos" universalmente válido para os gays do norte, do sul, do leste e do oeste.

Em sua entrevista intitulada "De l'amitié comme mode de vie", concedida a R.de Ceccaty, J. Danet e J. le Bitoux para o jornal Gai Pied, em abril de 1981, Foucault chama a atenção para o problema da construção da identidade homossexual. O problema, segundo Foucault, não reside no questionamento "quem sou eu?" (autoconhecimento), e sim na seguinte questão: quais relações podem ser estabelecidas, inventadas, multiplicadas e moduladas através da homossexualidade? Foucault, aqui, enfatiza a importância do "cuidar de si" e sobre o mero "autoconhecimento". Que se destaque aqui a importância do termo "invenção", ponto chave para o entendimento do pensamento foucaultiano. A prioridade não está numa descoberta de "quem sou", e sim uma responsabilidade ética de inventar-se, reinventar-se, como num devir-gay. A vida como uma obra de arte.

Deleuze, no que diz respeito à concepção da vida como uma obra de arte, salienta que a constituição dos estilos de vida (podemos aqui nos referir aos estilos de vida gay) não é somente estética, é também uma ética, por oposição à moral. Deleuze detalha esta diferença em sua entrevista a Didier Eribon:

"(...) A diferença é esta: a moral se apresenta como um conjunto de regras coercitivas de um tipo especial, que consiste em julgar ações e intenções referindo-as a valores  transcendentes (é certo, é errado...); a ética é um conjunto de regras facultativas que avaliam o que fazemos, o que dizemos, em função dos modos de existência que isso implica." (Deleuze, "A vida como obra de arte", entrevista concedida ao jornal Le Nouvel Observateur, em agosto de 1986.

A partir desta diferenciação entre ética e moral, não nos passa despercebido, diante da ação e ideias dos gays, que eles - tanto quanto qualquer heterossexual - parecem estabelecer uma moral, um manual de regras de como os gays devem se e se portar, de que é certo ser um gay deste modo, mas é errado ser de outro modo (ser afeminado; ser espalhafatoso). Isso fica evidente nos preconceitos existentes dentro dos próprios guetos, e na repulsa a manifestações estéticas femininas dento dos meios e paradas gays hipermasculinizadas. O discurso militante enfatiza continuamente "que os gays devem ser vistos como pessoas de respeito". Mas o que isso significa? Qual é a "vontade" de verdade suposta por um discurso que se impõe como "verdadeiro" e que esse discurso só pode ocultar?

Podemos ir além: não seriam os guetos gays verdadeiros internatos, meios de confinamento? Os próprios homossexuais parecem "se internar", na medida em que consideram, para usar um termo coloquial, "uma queimação de filme" a demonstração de afeto homoerótico fora dos lugares que não sejam considerados "apropriados".


Texto de Alexey Dodsworth Magnavita retirado da Revista Ciência & Vida FILOSOFIA, nº 22, Ano 2008, Editora Nova Escala, São Paulo.

domingo, 5 de novembro de 2023

De macacos para homens suados

Fundamental na regulagem térmica do corpo, a transpiração ajudou na evolução


Com o planeta passando por mudanças climáticas que o tornarão mais quente, o estudo do suor voltou a ter peso. Uma das descobertas mais recentes dá conta de que a transpiração contribuiu para a própria evolução do ser humano. "Geralmente se diz que os cérebros grandes tornaram possível a nossa evolução de macaco a humano. Mas eles nunca poderiam ter se desenvolvido se não tivéssemos uma pele excepcionalmente suarenta", disse a antropóloga Nina G. Jablonski, da Universidade Estadual da Pensilvânia, em entrevista ao jornal "The New York Times".

Autora do livro "Skin: A Natural History" (Pele: Uma História Natural, sem tradução em português), Nina explica: A transpiração regula o calor. Quando os ancestrais humanos foram para as savanas africanas, passaram a correr longas distâncias em pleno sol tropical. Os músculos em grande atividade esquentam o corpo (por isso suamos tanto ao fazer exercícios, para resfriar). Um cérebro maior necessitava de um resfriamento melhor. Os indivíduos com cérebro grande e maior número de glândulas sudoríparas - e consequentemente menos pelos - estavam melhor adaptados a esse ambiente. Para possibilitar essa adequação, o corpo conta com um sistema aparentemente paradoxal que retira líquido por meio dos poros para diminuir a temperatura. Para que ele vire vapor, é preciso energia térmica, que é extraída do corpo na transpiração. Ao expulsar calor, o corpo acaba se resfriando.

Hoje um ser humano tem em média 2,6 milhões de glândulas sudoríparas, mas há quem tenha até 4 milhões. Há dois tipos delas, o que explica a diferença entre o cheiro do suor do corpo e aquele específico das axilas. As glândulas écrinas - responsáveis por secreções incolores e inodoras, compostas por 99% de água - estão em todo o corpo; já as apócrinas ficam nas axilas e nas áreas anal e genital, embora a genitália externa não tenha glândulas. O suor é constituído basicamente de água e cloreto de sódio (sal de cozinha), mas o que sai das glândulas apócrinas inclui proteínas e ácidos graxos (que, metabolizados por bactérias, causam o odor que se tenta combater com desodorantes).

E por que uns suam mais que outros? Segundo o médico Craig Crandall, especialista em termo-regulação da Universidade do Texas, idade, sexo, genética, peso e forma do corpo têm seu papel. O "termostato" do corpo é uma região do cérebro chamada hipotálamo. Para funcionar corretamente, a temperatura oscila em torno de 37°C ao longo do dia (menos pela manhã, mais à tarde). Basta passar um pouco disso para atingir o estado de febre - que costuma ser letal a partir de 43-44°C. Na menopausa, mulheres que sentem ondas de calor estão sofrendo o efeito desse "termostato" desregulado.

Por falar em ondas de calor, elas têm matado grande número de idosos, especialmente na Europa. A partir dos 60 anos, o ser humano começa a suar menos. Seus cérebros podem não estar enviando os comandos à glândulas. A dilatação dos vasos sanguíneos também ajuda a eliminar calor, mas pessoas de idade têm veias e artérias menos elásticas. Vários remédios também podem afetar a transpiração, como relaxantes musculares ou pílulas para dormir. E pessoas idosas em geral usam mais medicamentos.

A coisa piora com a umidade. Com o ar saturado de água, a evaporação do suor diminui. Uma vítima de insolação para de suar, por motivo desconhecido. Pode ser que as células nervosas superaquecidas parem de enviar sinais para o corpo suar. Ou o estresse térmico pode liberar substâncias que aumentam a temperatura - como se o corpo tentasse combater uma infecção por meio da febre.

Consumidores de cocaína também podem "desligar" o termostato cerebral. Um estudo de Crandall e colegas na revista médica. "Annals of Internal Medicine" mostrou que a droga afeta a capacidade de o corpo regular a temperatura. A pessoa que fez uso da droga não sente quando está ficando perigosamente quente. Achava-se que o problema vinha da maior agitação e atividade muscular, mas a droga de fato causa diminuição da transpiração e da dilatação dos vasos sanguíneos.

Para estudar o suor, os cientistas Robert Farrington, John e Desikan Bharathan, do Laboratório Nacional de Energia Renovável, EUA, até já construíram um aliado: Adam, o manequim capaz de suar. Eles colaboraram com Heather Paul, Grant Bue e Luis Trevino, do Centro  Espacial Johnson, da Nasa, para testar roupas de astronauta no boneco. Adam tem sensores de temperatura, poros e um reservatório de líquido. Foi projetado para testar a eficiência do ar-condicionado de automóveis, mas pode ajudar a compreender a nossa evolução.


Texto de Ricardo Bonalume Neto retirado do Revista Galileu, Outubro 2007, nº 195, Editora Globo, São Paulo.

Remédios são venenos

A humanidade vem sendo enganada há milhares de anos por feiticeiros, curandeiros e charlatães com suas poções, extratos, pílulas e outros métodos de "cura". A ideia de que algo exterior ao organismo pode curar uma "doença" revela todo o desconhecimento sobre a natureza da saúde. Os remédios usados por curandeiros e pela medicina tradicional não passam de ilusões. A razão é simples: o princípio de que os remédios "curam" é falso. Remédios não curam ninguém, só adoecem. E as doenças não deveriam ser curadas porque são a própria cura - já que a recuperação da saúde é um processo fisiológico natural que não pode ser substituído por qualquer meio externo.

Curar-se é tão natural quanto a reprodução, a digestão e o crescimento. O que se convencionou chamar de "doença", tal como a febre, a dor, a inflamação e a infecção, é, na maioria das vezes, um processo de eliminação de toxinas e de reparação realizado pelo organismo para recuperar a saúde. O processo de cura é sempre desagradável. E isso é perfeito e natural. Não podemos ser recompensados pelos nossos erros. Quando alguém respira ar poluído, come alimento impróprio, ingere álcool, remédios, fica irritado, preocupado, ou seja, ataca sua saúde, certamente adoecerá. Após semanas, meses ou anos, os resultados serão reumatismos, infecções, câncer etc. Ninguém adoece sem motivo. Se há um efeito, há uma causa. E a causa é sempre um ambiente inadequado à vida e maus hábitos. Ora, quando se procura curar por meio de um remédio se está tentando eliminar o sintoma sem eliminar a causa. É uma tentativa charlatanesca de anular a "lei da causa e efeito". Se alguém ingeriu álcool e está bêbado, somente parando de ingerir álcool poderá curar-se. Os remédios apenas suprimem o sintoma, a reação orgânica benéfica de autocura. Os remédios contém princípios ativos que, na verdade, são venenos ativos: provocam efeitos colaterais e reações adversas que são sinais de envenenamento.

Tudo o que não é alimento é veneno. Se queremos sobreviver e ter saúde, devemos somente ingerir alimentos - e não remédios. O que o organismo não pode  digerir e assimilar precisa ser eliminado. Quando algumas dessas substâncias se combinam quimicamente com as células, essas terminam morrendo. Todos os remédios, sem exceção, são venenos. A grande maioria das doenças modernas são doenças iatrogênicas, isto é, frutos da ingestão de remédios que aparecem anos após o "tratamento" com essas substâncias.

Os remédios fazem tão mal às pessoas saudáveis quanto fazem aos doentes - já que as mesmas leis válidas para uma pessoa saudável também valem para os doentes. Eles não deixam de ser venenos simplesmente porque foram receitados e sempre fazem mal, não importa a quantidade. Quando alguém diz que o remédio atua sobre o organismo não entende que, na verdade, ele não está curando ninguém. Esses efeitos são decorrentes da reação do corpo a essas substâncias. Não é o remédio que é anti-inflamatório ou anticancerígeno. Quem inflama e desinflama, quem produz um tumor e reabsorve esse tumor é o organismo. O corpo não é suicida. Ele faz o melhor para manter a vida e a saúde. Tomar remédio para eliminar um sintoma é interromper um processo natural e saudável de cura que, mais tarde, o organismo precisará retomar.

As mortes com sofrimento decorrem da prática de drogar o doente. A velha e confiável aspirina é um veneno mortal e está proibida na Inglaterra para quem tem até 16 anos - já destruiu a saúde de milhares de crianças em todo o mundo. O Interferon, que, na década de 80, era anunciado como a "cura do câncer", foi mais um fracasso; a talidomida, testada por mais de três anos, aleijou milhares. Isso para não falar dos antibióticos, que acabam com nossa imunidade e, como diz o próprio nome, são "antivida".

A maioria dos remédios que estavam em uso há 20 anos já não são usados porque são "ineficientes". Não há esperança de que a cura de alguma doença apareça dos remédios. A saúde não é fruto de remédios, vacinas ou qualquer outra substância externa ao corpo. Ela é fruto de bons hábitos de vida e de um ambiente amigável. Os remédios geram muita riqueza para seus fabricantes, mas escravizam e matam seus usuários. Nada substitui o poder curativo exclusivo do organismo. Os remédios são a herança tardia dos caldeirões dos feiticeiros e curandeiros disfarçada de prática científica.


Texto de Fernando Travi retirado da Revista Superinteressante, Janeiro 2003, Edição 184, Editora Abril, São Paulo.