segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Mitologia Grega (Prefácio do Volume 2)

Se estudarmos as religiões universais desde os primórdios dos tempos históricos, veremos que todas elas, como o hinduísmo, o judaísmo, o cristianismo, o islamismo, estiveram intimamente relacionadas com os sistemas econômicos em que se inseriram. A conclusão poderia se estender à religião dos gregos. Mas, antes de abordar o mito grego, examinemos um dos ângulos do cristianismo.

Quando, na Renascença, Lutero se volta contra Roma, isso acontece na época em que os métodos de produção estavam passando por uma profunda transformação. A divergência teológica entre Lutero e Roma, fundamentalmente, consistia em que a fé bastava, por si só, para a salvação. As obras não importavam. No inconsciente coletivo do mundo anglo-saxão, que estava na vanguarda daquelas transformações, esse mandamento aparece de forma mais explícita: "basta seres eficiente, não importa de que maneira, para te salvares", ou melhor, não importam os meios, basta a eficiência. Esta concepção permeou todo o sistema de produção de riqueza que se instalou na Europa e que veio a ser adotado pelas grandes democracias do Ocidente.

No caso do hinduísmo, vemos uma religião milenar, um sistema de castas hierarquizadas, no qual, ao homem das castas menos elevadas se acena com a recompensa de renascer em casta superior se em vida tiver meditado e cumprido os preceitos que lhe são prescritos, até chegar à união com a totalidade, o Brahman.

O caso do islamismo é assemelhado. Numa sociedade em que a poliginia é lei, o casamento consistia em um privilégio. Dispõe o Corão que um homem poderá ter tantas esposas quanto puder sustentar. Daí resulta um grande excedente de homens não poder sustentar mulher alguma; e a lei islâmica lhes promete belas huris na outra vida, se nesta se sacrificarem à Jihad, isto é, à Guerra Santa. E o islamismo se espraiou pelo mundo, num vasto e duradouro império.

Quando nos detemos sobre o mito grego, diversas analogias se tornam evidentes. O mito de início serviu aos eupátridas. A composição do mundo dos deuses é hierarquizada, favorece aos deuses em detrimento das deusas e se apóia em um sistema de valores. Zeus todo-poderoso tem o direito de vida e morte sobre tudo e sobre todos. Sua mulher Hera, reprimida, busca sempre compensar-se pela infindável série de transgressões conjugais que se permitem ao marido cosmocrata e onipotente. A distância entre o homem e os deuses, quando transposta, é punida com severidade. No mito de Prometeu iremos ver o herói condenado a ter o fígado diariamente devorado por um abutre, e diariamente renascido para perpetuação do suplício, por haver ousado favorecer os mortais com seu arrojo. Assim se mantiveram estruturadas, por longo tempo, a religião e a sociedade grega.

Em todas as épocas, porém, houve movimentos contrário aos sistemas estratificados das religiões tradicionais, e a Grécia também assistiu a tais reações. O orfismo e o dionisismo, os Mistérios de Elêusis, constituem bons exemplos. Tais correntes ofereciam a todos, igualitariamente - até aos deserdados - a comunhão com o divino. Mas não nos deteremos em seus lineamentos, tão magnificamente analisados por Junito Brandão nos capítulos que dedica a Orfeu e Dioniso, porque, como aponta o Autor, eles acabaram sendo cooptados pela religião oficial. Foi notável o que ocorreu com o culto de Dioniso, que terminou "apolinizado", pois a vivência do êxtase ameaçava a sociedade racional.

Mas os Mistérios de Elêusis distava apenas vinte quilômetros de Atenas, mas Deméter e sua filha Perséfone levaram séculos para chegar até a Pólis, onde imperavam os eupátridas e o legalismo de Apolo. Quando mais não fosse, tratava-se de um culto desestabilizador e suspeito, que exaltava a figura da mulher em contraposição ao domínio do homem. Os Mistérios abriram-se democraticamente a todos, até mesmo aos escravos, desde que falassem grego, pudessem entender e repetir as palavras sagradas e não estivessem condenados por homicídio. O Estado terminou por tolerar as práticas dos Mistérios, pois Deméter e Perséfone, afinal, eram responsáveis pelas sementes, e destas dependiam os frutos e o bem-estar da coletividade.

Não haverá exagero em afirmar-se que os Mistérios de Elêusis foram um reflexo, no campo religioso, da democracia que então ensaiava os seus primeiros passos. E esta, de par com o emergente pensamento filosófico e científico - outra contribuição dos helenos para o aprimoramento do homem - viria a constituir um dos pilares em que se fundamenta a sociedade contemporânea.


Texto de Rose Marie Muraro retirado do livro Mitologia Grega, de Junito de Souza Brandão, Volume 1, Editora Vozes, 18ª Edição, 2004.

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