Neste ano em que se comemora o centenário de nascimento de Guimarães Rosa e o centenário da morte de Machado de Assis, inúmeras aproximações têm sido feitas entre um e outro e há quem, insanamente, se ponha a discutir qual deles foi o maior.
Seja por isto ou porque numa mesma semana uma televisão chamou-me para falar sobre Rosa e num colégio pediram-me para palestrar sobre O Alienista, de Machado, comecei a pensar, por exemplo, em como ambos trataram a questão da razão e da loucura. Vocês se lembram de que Machado em O Alienista narra a história do cientista, que, residindo na pequena Itaguaí, ao examinar detidamente a questão da loucura, começou a perceber que havia mais loucos na cidade do que parecia à primeira vista. E quanto mais definia o que era loucura, mais loucos descobria. De tal modo que acabou colocando quase a cidade inteira no asilo.
Intrigado com suas próprias conclusões, partiu para nova experiência: já que a maioria era louca, então os sãos é que eram uma anomalia, portanto, estes deveriam ser recolhidos ao asilo e os loucos postos na rua. Ou seja, experimentou a verdade pelo avesso. Enfim, numa terceira etapa de sua pesquisa o médico humildemente concluiu que as suas duas teorias anteriores estavam erradas. Ele deveria deixar os loucos e os sãos viverem suas vidas e ele é que se internou no asilo convencido de que não sabia nada.
Guimarães, que em muitas de suas histórias tem loucos como personagens, em A Terceira Margem do Rio, narra que um barqueiro, certo dia, cansou-se das duas margens do rio e da vida, e resolveu se instalar com sua canoa ilhada no meio do próprio rio. A família respeitou a sandice do velho dando-lhe o direito de ir viver na real e imaginária terceira margem do rio.
Não há quem não tenha se defrontado com os limites da razão e da loucura, da verdade e da mentira, do certo e do errado. E há uma afinidade entre os grandes escritores: eles, que aparentemente sabem tudo, como diria um personagem de Rosa, sabem que não sabem coisíssima nenhuma. Sabem, isto sim, que existe a loucura da sabedoria e a sabedoria da loucura.
Se eu fosse filósofo, matemático ou estudante de lógica tentaria dar uma contribuição aos estudos literários, demonstrando como Machado e Rosa trabalham a confluência entre a razão e a loucura, e como "a terceira margem do rio" pode ser estudada não só pela matemática, mas pela lógica matemática. O pensamento clássico, com Aristóteles, dizia que A é A e B é B, ou seja, razão é razão, loucura é loucura. Exatamente como o cientista de O Alienista na primeira fase de suas pesquisas ou exatamente como qualquer pessoa normalmente diante de um rio, achando que ele só tem duas margens visíveis.
Mas a vida vai mostrando que não se pode excluir uma terceira via, aquilo que a filosofia chama de "terceiro excluído". Sobre ser autoritário, afirmar que A não é B e B não é A, empobrece a realidade. Machado tenta sempre mostrar os diversos pontos de vista das questões, fugindo de afirmações absolutas. É possível, por exemplo, mostrar que em sua obra há um modelo básico: da inicial duplicidade (A x B) e chega-se à integração (A e B).
E quem pegar os quatro prefácios que Guimarães Rosa escreveu para Tutameia, vai ter uma verdadeira aula de filosofia. Já o subtítulo do livro é revelador: Terceiras Estórias. Ele havia publicado um anterior, Primeiras Estórias. Nunca publicou um Segundas Estórias. Pois nesse livro que, em vez de um, tem quatro prefácios disseminados entre os contos, se observa que ele teoriza ironicamente sobre a relatividade do conhecimento, o absurdo e aquilo que chama de "nada residual". Ele vai brincar com coisas sérias dizendo que o "nada" é "um balão sem pele...", ou que a "rede é uma porção de buracos, amarrados por barbante". Enfim, vai indagando: "O copo com água pela metade: está meio cheio, ou meio vazio?"
Como se vê, há mais coisas entre os números 1 e 2 (A e B) do que supõe nossa analfabética aritmética. Aliás, ele diz: "Entre Abel e Caim, pulou-se um irmão começado por B". Assim, tanto Rosa quanto Machado parecem nos dizer que entre as margens do nosso saber e ignorância o que há mesmo é a "travessia".
Texto de Affonso Romano de Sant'anna retirado do Caderno C do Correio Braziliense, Brasília, domingo, 29 de junho de 2008.
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