sexta-feira, 11 de outubro de 2024

O erro poético

 Os equívocos de vocabulário que são fruto de deliciosos tropeços de interpretação


O erro pode ser fonte de criação e fagulha poética. Até o erro produzido por ignorância ou desinformação. João Saldanha contou em uma crônica a discussão que viu num ônibus entre dois sujeitos. Um deles dizia com veemência:

- Você é um indivíduo sem crepúsculo!

Se eu ouvisse isso, ficaria maravilhado com a finura de percepção poética do litigante. Um indivíduo que não tem crepúsculo é decerto um que não conhece sutilezas, transições... Uma beleza, se bem que Saldanha adverte que o cara na verdade quis dizer "sem escrúpulos".

Não muito diferente do locutor de rádio de Campina Grande que escutei, após a conquista de um título pelo Treze, berrar entusiasmado ao microfone:

- A torcida do Galo está comemorando enfurecida!

Pelo contexto, acho que ele quis dizer "eufórica", mas euforia é assim, às vezes ela se sabota a si mesma.

Em outros erros desse tipo - quando estamos ouvindo, e não falando - a palavra que entendemos mal cria um ruído em nossa mente e nosso primeiro esforço é corrigir o ruído, transformando a palavra que não faz sentido em algo que nos é familiar.

Uma vez eu estava no aeroporto e umas senhoras idosas, visivelmente novatas em voos aéreos, pediam explicações sobre o embarque.

A moça da empresa disse a uma:

- Primeiro, a senhora precisa fazer o check-in - e mostrou um bilhete de embarque que tinha à mão.

A senhora voltou para junto das amigas e disse:

- Ela disse que tem de fazer o chequinho, tem de ir ao balcão e pegar aquele chequinho ali - e macacos me mordam se naquele tempo um bilhete de embarque não tinha o formato de cheque bancário.


Sede de sentido

Philip K. Dick dizia que nossa mente tem sede de sentido, sede de que as coisas tenham significado, de que o inexplicável possa ser explicado, não importa como. Em outra situação, vi duas pessoas novatas tentando acessar um site na Web. Uma delas disse:

- Eles falaram que a gente tem de clicar nesse espaçozinho ali em cima e escrever a URL.

A outra, estranhando:

- A o quê?

- AURL, foi o que disseram.

(URL é "Uniform Resource Locator", aquele endereço começando por "http" que a gente digita para chegar aonde quer chegar.)

A outra, num esforço de tradução, perguntou, intrigada:

- A arruela?... - e fez com os dedos a forma circular do objeto.

E a primeira, visivelmente aliviada, repetiu o gesto e disse:

- Sim! Arruela! É tipo um link!

É desse jeito que acabamos chegando ao destino certo por vias tortas, e mesmo virando à direita ao sair da porta podemos dar a volta ao quarteirão e chegar ao prédio vizinho à nossa esquerda. Tipo assim.


Texto de Bráulio Tavares retirado da revista Língua Portuguesa, Ano 9, número 104, Junho de 2014, Editora Segmento, São Paulo.

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