quinta-feira, 10 de maio de 2012

Tô Fazendo Falta

            Álvaro Socci/Cláudio Matta/Lucca Ferreira


Ontem te encontrei
Você estava tão bonito
Demais
Parecia até que nada
Aconteceu

Jeito de quem está feliz
De quem está de bem com a vida
Sei lá
Mas alguma coisa não me convenceu

E ainda faz de conta
Que não está nem aí pra mim
Mas você não me engana
Sei que você ainda tá a fim
Me diz pra que fazer assim

Você pode ter um tempo pra pensar
E uma eternidade pra se arrepender
Tá na cara
Dá pra ver no seu olhar
Tô fazendo muita falta pra você

É loucura não ouvir o coração
Desse jeito a gente pede pra sofrer
Eu não quero te ver na solidão
Tô fazendo muita falta pra você

Música do CD Joanna 20 anos ao vivo, lançado em 1999.

domingo, 6 de maio de 2012

A Primeira Só

                    Marina Colasanti

Era linda, era filha, era única. Filha de rei. Mas de que adiantava ser princesa se não tinha com quem brincar?

Sozinha no palácio chorava e chorava. Não queria saber de bonecas, não queria saber de brinquedos. Queria uma amiga para gostar.

De noite o rei ouvia os soluços da filha. De que adianta a coroa se a filha da gente chora à noite? Decidiu acabar com tanta tristeza. Chamou o vidraceiro, chamou o moldureiro. E em segredo mandou fazer o maior espelho do reino. E em silêncio mandou colocar o espelho ao pé da cama da filha que dormia.

Quando a princesa acordou, já não estava sozinha. Uma menina linda e única olhava surpresa para ela, os cabelos ainda desfeitos do sono. Rápido saltaram as duas da cama. Rápido chegaram perto e ficaram se encontrando. Uma sorriu e deu bom-dia. A outra deu bom-dia sorrindo.

- Engraçado, - pensou uma - a outra é canhota.

E riram as duas.

Riram muito depois. Felizes juntas, felizes iguais. A brincadeira de uma era a graça da outra. O salto de uma era o pulo da outra. E quando uma estava cansada, a outra dormia.

O rei, encantado com tanta alegria, mandou fazer brinquedos novos, que entregou à filha numa cesta. Bichos, bonecas, casinhas, e uma bola de ouro. A bola no fundo da cesta. Porém tão brilhante, que foi o primeiro brinquedo que escolheram.

Rolaram com ela no tapete, lançaram na cama, atiraram para o alto. Mas quando a princesa resolveu jogá-la nas mãos da amiga, a bola estilhaçou jogo e amizade.

Uma moldura vazia, cacos de espelho no chão.

A tristeza pesou nos olhos da única filha do rei. Abaixou a cabeça para chorar. A lágrima inchou, já ia cair, quando a princesa viu o rosto que amava. Não um só rosto de amiga, mas tantos rostos de tantas amigas. Não na lágrima que logo caiu, mas nos cacos todos que cobriam o chão.

- Engraçado, são canhotas - pensou.

E riram.

Riram por algum tempo depois. Era diferente brincar com tantas amigas. Agora podia escolher. Um dia escolheu uma, e logo se cansou. No dia seguinte preferiu outra, e esqueceu dela em seguida. Depois outra e mais outra, até achar que todas eram poucas. Então pegou uma, jogou contra a parede e fez duas. Cansou das duas, pisou com o sapato e fez quatro. Não achou mais graça nas quatro, quebrou com martelo e fez oito. Irritou-se com as oito, partiu com a pedra e fez doze.

Mas se duas eram menores do que uma, quatro eram menores que duas, oito menores do que quatro, doze menores do que oito.

Menores, cada vez menores.

Tão menores que não cabiam mais em si, pedaços de amigas com as quais não se podia brincar. Um olho, um sorriso, um lado de nariz. Depois, nem isso, pó brilhante de amigas espalhado pelo chão.

Sozinha outra vez a filha do rei.

Chorava? Nem sei.

Não queria saber das bonecas, não queria saber dos brinquedos.

Saiu do palácio e foi correr no jardim para cansar a tristeza.

Correu, correu, e a tristeza continuava com ela. Correu pelo bosque, correu pelo prado. Parou à beira do lago.

No reflexo da água a amiga esperava por ela.

Mas a princesa não queria mais uma única amiga, queria tantas, queria todas, aquelas que tinha tido e as novas que encontraria. Soprou na água. A amiga encrespou-se mas continuou sendo uma. Atirou-lhe uma pedra. A amiga abriu-se em círculos, mas continuou sendo uma.

Então a linda filha do rei atirou-se na água de braços abertos, estilhaçando o espelho em tantos cacos, tantas amigas que foram afundando com ela, sumindo nas pequenas ondas com que o lago arrumava sua superfície.

conto do livro Uma Ideia Toda Azul. 

sábado, 5 de maio de 2012

Preciso de Você

                Márcio Greyck


Cansado, vejo a vida passar
Meu lugar ao sol já cansei de esperar
O tempo faz promessas e eu vou
Ando à toa, eu sei
Pois me falta você
Porque todo mundo precisa de alguém
E eu preciso é de você
Pra comigo andar
E para me entender
Eu preciso é de você
Pra continuar
E pra não me perder
Entenda, é preciso saber
Sem motivação é difícil viver
A vida me ensinou a querer
Um motivo só 
E eu vou lhe dizer
Porque todo mundo precisa de alguém
E eu preciso de você
Pra comigo andar
E para me entender
Eu preciso é de você
Pra continuar
E pra não me perder
Porque todo mundo precisa de alguém
E eu preciso é de você
Pra comigo andar
E para me entender
Eu preciso é de você
Pra continuar
E pra não me perder.

Canção do CD Agora, de Verônica Sabino, gravado em 2002.

Minha Herança: Uma Flor

                            Vanessa da Mata


Achei você no meu jardim entristecido
Coração partido
Bichinho arredio
Peguei você pra mim
Como a um bandido
Cheio de vícios
E fiz assim, fiz assim:

Reguei com tanta paciência
Podei as dores, as mágoas, doenças
Que nem as folhas secas vão embora
Eu trabalhei

Fiz tudo, todo o meu destino
Eu dividi, ensinei de pouquinho
Gostar de si,
Ter esperança e persistência sempre

A minha herança pra você é uma flor
Um sino, uma canção, um sonho
Nenhuma arma ou uma pedra eu deixarei
A minha herança pra você é o amor
Capaz de fazê-lo tranquilo, pleno
Reconhecendo no mundo o que há em si

E hoje nos lembramos sem nenhuma tristeza
Dos foras que a vida nos deu
Ela com certeza
Estava juntando você e eu

Achei você no meu jardim

Música do CD Sim, gravado em 2007 por Vanessa Da Mata.

Preciso do seu sorriso

               João Silva/Enok Virgulino




Preciso desse teu amor
Ai, amor, mas como preciso
Não posso mais viver
Sem teus beijos
Teu sorriso

Não posso ficar sem você
Pois viver sem você
É viver pra chorar

Fala, meu amor
Diga, meu amor
Que não vai judiar comigo

Espera, meu amor
Fica, meu amor
Então me leva pra morar contigo

E onde quer que você vá
Seja onde for
Me leva
Me leva

Diz, amor, que eu vou
Me leva, me leva
Seja como for seu mundo, se você
Me levam eu vou

Gravação novíssima da cantora Mariana Aydar com participação especial de Dominguinhos. Faz parte do repertório de seu mais recente CD, o terceiro, intitulado Cavaleiro Selvagem Aqui Te Sigo, de 2011.

Amor da minha vida

                  Raul Sampaio/Benil Santos


Amor da minha vida
Tão longe estás de mim
Meus olhos te procuram
Ânsias me torturam
Sofro tanto assim
Meus dias são tão tristes
As noites muito mais
E desde que partiste
A amargura existe 
Me roubando a minha paz

Ó luz dos olhos meus,
Metade do meu ser
Que amarga diferença
Sem tua presença
Nesse meu viver

Amor da minha vida
Estou na solidão
Trocaste por saudade
A felicidade do meu coração.

Música antiga do repertório de Luiz Gonzaga e regravada em 2008 por Zizi Possi com um arranjo muito bonito e diferente...

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Cantoria

                  Ivan Lins/Vitor Martins


Nossa cantoria
Nosso coração
Nosso bloco 
Nossa folia
Contra a solidão

Nossa teimosia
Nossa louvação
Nosso fogo
Nossa magia
Contra a escuridão

Somos aroeira
Madeira dura de se cortar
Mesmo depois de morta ela brota
Só pra desafiar

Somos a correnteza
Que começa num gotejar
Mesmo que se represe ela segue
E vai transbordar o mar

Música antiga da dupla Ivan Lins/Vitor Martins e resgatada pelo trio feminino Folia de 3 em um CD intitulado Pessoa Rara, dedicado à obra do músico.

Retrato da Vida

                Dominguinhos/Djavan

Esse matagal sem fim
Essa estrada, esse rio seco
Essa dor que mora em mim
Não descansa e nem dorme cedo
O retrato da minha vida
É amar em segredo

Não quer saber de mim
E eu vivendo da sua vida
Deus no céu e você aqui
A esperança é quem me abriga

Esses campos não tardam em florir
Já se espera uma boa colheita
E tudo parece seguir
Fazendo a vida tão direita

Mas e você o que faz
Que não repara no chão
Por onde tem que passar
E pisa em meu coração

O seu beijo em meu destino
Era tudo o que eu queria
Ser seu homem, seu menino
O ser amado de todo dia

Composição do CD de estreia do trio feminino Amaranto, intitulado Retrato de Vida, apenas com composições de Djavan. Foi lançado em 2000.

Non, je ne regrette rien

                  Michel Vaucaire/Charles Dumont


Non, rien de rien
Non, je ne regrette rien
Ni le bien quön m'a fait
Ni le mal, tout ça m'este bien égal

Non, rien de rien
Non, je ne regrette rien
C'est payer, balayer, oublier
Je m'ai fous du passé

Avec mes souvenirs
J'ai allumé le feu
Mes chagrins, mes plaisirs
Je n'ai plus besoin d'eux

Balayés mes amours
Avec leurs trémolos
Je repars a zéro...

Non, rien de rien
Non, je ne regrette rien
Car ma vie, car me joies
Pour aujourd'hui
Ça commence avec toi

Não! Nada de nada
Não! Eu não lamento nada
Nem o bem que me fizeram,
Nem o mal, isso tudo me é igual!

Não! Nada de nada
Não! Eu não lamento nada
Está pago, varrido, esquecido
Não me importa o passado.

Com minhas lembranças,
Acendi o fogo,
Minhas mágoas, meus prazeres,
Não preciso mais deles.

Varridos os amores,
E todos os seus tremores
Varridos para sempre
Recomeço do zero

Não! Nada de nada
Não! Não lamento nada
Nem o bem que me fizeram
Nem o mal, isso tudo me é igual

Não! Nada de nada
Não! Não lamento nada
Pois minha vida,
Pois minhas alegrias
Hoje, começam com você!


Gravação original feita por Edith Piaf. Segundo consta, a música foi composta em 1956 e gravada por ela em 10 de novembro de 1960.
Cássia Eller fez uma emocionante releitura em seu CD Acústico MTV de 2001.

domingo, 29 de abril de 2012

Mãe

                  Domingos Pellegrini Jr.




O filho chegou estremecendo as tábuas do assoalho. Respira forte; cheiro de abobrinha cozida, fritura, sabão de coco; a camisa azul suada, os sapatos chocos; mas a mãe repara: não choveu - em que madrugadas foi o filho buscar chuva? No útero dela,, o avental úmido; na cara dele, a barba de três dias. Ele vai até o tanque no fundo do quintal, afasta os tinhorões, lava a cara, a nuca, os cabelos; a mãe desconfia: espantando sono, espantando temores. E fica vendo que fica no vento, magro e duro, fitando algum horizonte pralém dos lençóis no varal.

Quando a mãe chama - Vem almoçar, meu filho - ele não vem logo; ela engana a aflição espantando dos pratos uma poeira, tão fina que não existiria se o filho não continuasse mirando muito além dos lençóis molhados.

- Vem, meu filho, vem - e a cachorra continua estirada com as tetas nos ladrilhos. Já vou, mãe, já vou. A ninhada desmamou, as tetas da cachorra estão descansadas, a cachorra está descansada; os filhotes estão no mundo com garras e dentes.

- Vai esfriar na mesa, meu filho.
- Já vou, mãe, já disse que já vou.

Mas o que é que esse menino tanto vê nesse varal, o que é que tanto lê nesses lençóis, meu Deus do céu? Só pode ser coisa desses livros, esses livros que ele traz e esconde lá em cima do guarda-roupa, lê, devolve, traz outros, lê, devolve e nunca termina de pensar.

Abobrinha, arroz, feijão; e carne moída.

O filho mastiga os pensamentos de boca bem fechada; e a mãe não pode abrir a boca do filho e arrancar essas pedras; e sabe que ele vai cuspir de repente as palavras, retas, vão ficar encravadas na parede e sempre que ela olhar, pelo resto da vida, vai ver a decisão do filho ali do lado de São Jorge matando o dragão, eternamente repetindo entre as moscas e as lagartixas:

- Mãe, vou sumir.

Não mata sua mãe, meu filho - ela quase mas não diz; sabe que o filho não é ruim, não há de ser, não pode ser - e por que seria? É bonito, tem saúde, não desgosta de trabalho nem passou fome um dia que fosse na vida: então que motivo pode ter pra essa raiva tão contra tudo?

- Por que, meu filho, que te falta?
- Pra mim, nada, mas não sou só eu no mundo, mãe.

Ela fica só balançando a cabeça, o prato ainda vazio. Ele molha miolo de pão no caldo de carne, joga no chão e a cachorra disputa com o último filhote que nenhum vizinho pediu. O filhote avança, a cachorra rosna e ameaça, ele não recua, ela morde, ele vai se encolher num canto, ela come depressa. A mãe fica olhando e balançando a cabeça.

- Não entendo, meu filho. Por que tanta preocupação com os outros?

- A gente não é cachorro, mãe - ele passa outro pedaço de pão no prato, joga para o filhote.

Ela levanta os olhos do prato, vê a ponta de um livro lá em cima do guarda-roupa. Suspira como se tivesse comido muito, começa a tirar a mesa e leva também o prato limpo, de tão acostumada a lavar dois pratos.

Depois uma nuvem cinza acompanha o filho enquanto mexe nas gavetas, junta as calças e camisas, e a mãe sabe em cada uma onde está cada cerzido, e que botões precisam ser reforçados; e se arrasta com agulha e linha atrás do filho estremecendo a casa de gaveta em gaveta: - Minha certidão de nascimento, mãe, cadê?

- Aqui, meu filho, aqui, mas pra quê? - ela abre a boca mas a pergunta não sai, fica ecoando da garganta até as varizes. - Pra que de repente a certidão de nascimento se tem tantos outros documentos?

Mas ela sabe em que canto de fundo de gaveta está o papel, e pega com tanto cuidado como se pudesse quebrar; mas ele rasga - e pergunta também das fotos.

- Preciso sumir mesmo, mãe, sem deixar nada pra trás. Pro meu próprio bem.

Ela entrega o maço de fotos amarrado com cadarços - Do seu primeiro par de sapatos, meu filho, mas é pro seu próprio bem...

Ele revê as fotos uma por uma, rasga umas, devolve as de menino e ela fica olhando com olhos perdidos no tempo. Mesmo de costas enchendo a mala, ele sente o cheiro de aflição e de sabão de coco da mãe; e se apressa: esse cheiro cresce e pesa nas costas; e enfia a escova de dentes entre meias e cuecas. A mãe então senta com o peso das fotos no colo, e com a confirmação de todos os pressentimentos: é verdade, o filho vai sair fugido; só podem ser os livros, as companhias, essas madrugadas fora de casa, as unhas sujas de tinta e os olhos secos de sono.

Sente um cansaço de se afundar no chão, mas não consegue ficar sentada; zonzeia pela casa atrás do filho e as tábuas rangem, rangem mais ainda porque o filho nada fala, embrulha pão com queijo; e os chinelos da mãe se martirizam das tábuas para os ladrilhos, dos ladrilhos para as tábuas, procurando se achar entre a sala e a cozinha. Mas, de repente, em quatro passos o filho alcança a porta da frente, a mão na maçaneta destampa a casa para o vento. E ele pega a mala depressa, a outra mão larga a maçaneta e abraça - Até, mãe - mas ela sempre sentirá a mão do filho quando pegar na maçaneta; e enquanto ele desaparece entre os alecrins, o vento vem e vai com a voz dele, vai e vem - Eu volto, mãe.

- Deus queira, meu filho - ela fala tão baixinho que nem se escuta. O filho não olha para trás e ela não fecha a porta, fica na varanda com o vento e o cheiro dos alecrins, muito tempo na varanda com o cheiro suado e azul dos alecrins.

Agora experimenta descruzar as mãos sobre a garganta, nem se lembra quando foi que colocou as mãos ali; tinha vontade de chorar mas não chorou, apertou a garganta e assim ficou até agora. Agora consegue andar na varanda e reparar em quem passa, uns ladeira abaixo, outros ladeira acima na direção do filho. E todo dia nessa hora acostuma olhar a rua, principalmente rua acima por onde o filho partiu quando as azaléias ainda não tinham florido. Agora rega o antúrio e não mais se preocupa em cortar as folhas secas, o tempo há de fazer tudo que deve ser feito. Depois entra e, da ponta do corredor, vê o filho lá na pia do banheiro, curvado com a cara respingando e esticando a mão pra toalha. Agora ela já passa pela porta do quarto e vê o filho sentado na beira da cama, a cabeça enfiada no livro porque está anoitecendo; e dá uma tristeza de ver o filho lendo assim porque estraga a vista.


Depois ela ouve um estalo como se fosse mas não é a maçaneta; continua tirando os chinelos e calçando os sapatos, foi só uma tábua que estalou com o calor. Agora já está entregando na pensão os lençóis lavados e passados, uma pilha tão alta nos braços que mal consegue ver por onde anda; deixa tudo junto com um suspiro e fica esfregando a dor nas costas e amolecendo os braços endurecidos; e  respondendo que não, ainda não tem notícia nenhuma do filho, a arrumadeira sempre pergunta, ela sempre responde do mesmo jeito, e assim, nessa hora parece sempre um dia repetido. Mas não: o filho pode até ter voltado, pode estar em casa esperando a janta, então ela diz que tem de voltar logo.


Vai costurar com o rádio ligado e quase não ouve quando batem na porta os dois que, agora, já estão revistando a casa e perguntando. A senhora não tem mesmo notícia nenhuma dele? Nem uma fotografia?


E agora ela acompanha os dois homens na noite, as mãos cruzadas sobre o útero.


Agora sentada, o olhar perdido num cinzeiro duma escrivaninha, escuta mais perguntas, repete respostas,  trançando e apertando os dedos. Repete que o filho é bom, podem acreditar, nunca foi farrista, nunca foi briguento, um primor de moço, só vendo. Os homens riem, dizem que ela não conhece o próprio filho, que ele é um perigo pra todas as famílias. Ela balança a cabeça como se uma mola disparasse no pescoço, não, não, não, não é possível, devem estar confundindo com algum outro, outra mãe, outro filho; pois o dela até o dinheiro que ganhava com tanto sacrifício, coitado, queria dar todo em casa; de modo que só pode ser confusão, ela conhece bem o filho. Mas dizem que não, que conhecem melhor; e não querem falatório, querem respostas, disparam as perguntas uma atrás da outra. Quem ia em casa. Com quem ele andava. Nomes. Fotografias. Conhece este? E este, já viu alguma vez?


Ela olha através das fotos, só repete que não, não e não. Mas ele saía à noite? Viajava? Trazia livros? Embrulhos? Falou de algum endereço alguma vez? Tinha arma?


Não, não. Não, de jeito nenhum, não conhecem o filho dela, só podem estar confundindo com outro.


Os homens dão murros na mesa, ela não se assusta. Essa dona é escolada, dizem, essa velha esconde leite; mas ela diz que não, não sabe de nada do que estão perguntando, só sabe que o filho era e decerto continua sendo bom. Vê fotos dos amigos dele e repete que não, nunca viu nenhum, só podem  mesmo estar confundindo com outro, e isso vai enervando tanto os homens que acendem um cigarro no outro, ela tosse na sala enfumaçada.


Quando vê, tem um amigo do filho ali na frente dela, a cara inchada de apanhar; mas nem precisa apanhar mais pra dizer que sim, que reconhece essa mulher como mãe do - e diz um outro nome; ela levanta da cadeira: - Não falei? Estão confundindo meu filho com outro - mas recebe um safanão e cai sentada de novo.


- Senta aí, sua cadela, e só responde o que for perguntado.


E ela continua respondendo não, não e não e, quando perguntam se nunca tinha ouvido o nome de guerra do filho, responde que só podem estar confundindo com outro, o filho dela não é de guerra, é um moço bom. Então perguntam de novo se ela não conhece mesmo o amigo dele, ali de cara inchada e olhar no chão. - Hem, conhece ou não conhece, sua cadela? - e ela responde mais uma vez  que não; pode até ter conhecido mas é muito esquecida, e aproveita pra dizer baixinho que estão mesmo confundindo, não é uma cadela, não é uma cadela não, senhor.