segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Mitologia dos Orixás - Prólogo

Um dia, em terras africanas dos povos iorubás, um mensageiro chamado Exu andava de aldeia em aldeia à procura de solução para terríveis problemas que na ocasião afligiam a todos, tantos os homens como os orixás. Conta o mito que Exu foi aconselhado a ouvir do povo todas as histórias que falassem dos dramas vividos pelos seres humanos, pelas próprias divindades, assim como por animais e outros seres que dividem a Terra com o homem. Histórias que falassem da ventura e do sofrimento, das lutas vencidas e perdidas, das glórias alcançadas e dos insucessos sofridos, das dificuldades na luta pela manutenção da saúde contra os ataques da doença e da morte. Todas as narrativas a respeito dos fatos do cotidiano, por menos importantes que pudessem parecer, tinham que ser devidamente consideradas. Exu deveria estar atento também aos relatos sobre as providências tomadas e as oferendas feitas aos deuses para se chegar a um final feliz em cada desafio enfrentado. Assim fez ele, reunindo 301 histórias, o que significa, de acordo com o sistema de enumeração dos antigos iorubás, que Exu juntou um número incontável de histórias. Realizada essa pacientíssima missão, orixá mensageiro tinha diante de si todo o conhecimento necessário para o desvendamento dos mistérios sobre a origem e o governo do mundo dos homens e da natureza, sobre o desenrolar do destino dos homens, mulheres e crianças e sobre os caminhos de cada um na luta cotidiana contra os infortúnios que a todo momento ameaçam cada um de nós, ou seja, a pobreza, a perda dos bens materiais e de posições sociais, a derrota em face do adversário traiçoeiro, a infertilidade, a doença, a morte.

Conta-se que todo esse saber foi dado a um adivinho de nome Orunmilá, também chamado Ifá, que o transmitiu aos seus seguidores,  os sacerdotes do oráculo de Ifá, que são chamados babalaôs ou pais do segredo. Durante a iniciação a que é submetido para o exercício da atividade oracular, o babalaô aprende essas histórias primordiais que relatam fatos do passado que se repetem a cada dia na vida dos homens e mulheres. Para os iorubás antigos, nada é novidade, tudo o que acontece já teria acontecido antes. Identificar no passado mítico o acontecimento que ocorre no presente é a chave da decifração oracular. Os mitos dessa tradição oral estão organizados em dezesseis capítulos, cada um subdividido em dezesseis partes, tudo paciente e meticulosamente decorado, já que a escrita não fazia parte, até bem pouco tempo atrás, da cultura dos povos de língua iorubá. Acredita-se que um determinado segmento de um determinado capítulos mítico, que é chamado odu, contém a história capaz de identificar tanto o problema trazido pelo consulente como sua solução, seu remédio mágico, que envolve sempre a realização de algum sacrifício votivo aos deuses, os orixás. O babalaô precisa saber em qual dos capítulos e em que parte encontra-se a história que fala dos problemas do seu consulente. Ele acredita que as soluções estão lá e então joga os dezesseis búzios, ou outro instrumento de adivinhação, que lhe indica qual é o odu e, dentro deste, qual é o mito que procura. Acredita-se que Exu é o mensageiro responsável pela comunicação entre o adivinho e Orunmilá, o deus do oráculo, que é quem dá a resposta, e pelo transporte das oferendas ao mundo dos orixás.

Essa arte da adivinhação sobrevive na África, entre os iorubás seguidores da religião tradicional dos orixás, e na América, entre os participantes do candomblé brasileiro e da santeira cubana, principalmente. Na África e em Cuba, o oráculo é prerrogativa dos babalaôs, e, no Brasil, onde os babalaôs se extinguiram, dos pais é mães-de-santo. Aqui, pouco a pouco a adivinhação praticada no candomblé no jogo de búzios foi sendo simplificada e o corpo de mitos foi sendo desligado da prática divinatória, preservando-se, contudo, os nomes dos odus, as previsões e os ebós ou oferendas propiciatórias, além do nome dos orixás que eram os protagonistas das histórias originais de cada odu. O próprio orixá Orunmilá foi sendo esquecido, passando Exu a ocupar o papel central na prática oracular do jogo de búzios. Os mitos, entretanto, continuaram presentes nas explicações da Criação, na composição dos atributos dos orixás, na justificativa religiosa dos tabus, que são muito presentes no cotidiano do candomblé, no sentido das danças rituais etc. Tudo porém muito difuso, embutido nos ritos, sem organização alguma.

A partir da década de 1960 conheceram significativo reavivamento religiões tradicionais, entre elas as religiões dos orixás constituídas na América, verificando-se grande expansão do candomblé, que da Bahia se alastrou por todo o território brasileiro, e da santeria cubana, agora também cultivada nos Estados Unidos, sobretudo entre os imigrantes hispano-americanos. Isso fez proliferar as publicações sobre as religiões dos orixás. Textos oraculares, coletâneas de mitos e de fórmulas rituais colhidos na África, em Cuba e no Brasil têm sido publicados por pesquisadores e sacerdotes, geralmente de modo fragmentado e pouco sistematizado. Essas publicações, científicas ou religiosas, foram se tornando mais e mais procuradas, tanto pelos pesquisadores como pelos seguidores das religiões dos orixás, denominados entre nós de o povo-de-santo. A recente expansão do candomblé no Brasil envolveu forte adesão de segmentos sociais diferentes daqueles em que se originou no Brasil a religião dos orixás, com a inclusão de adeptos não necessariamente de origem negra e que são provenientes de camadas sociais com maior escolaridade e habituadas à ideia da informação pelo livro. Esse novo segmento, que em geral associa culturalmente religião com a palavra escrita, encontrou nos mitos explicações e sentidos para práticas e concepções do candomblé, descobrindo que o mito está impregnado nos objetos rituais, nas cantigas, nas cores e desenhos das roupas e colares, nos rituais secretos de iniciação, nas danças e na própria arquitetura dos templos e, marcadamente, nos arquétipos ou modelos de comportamento do filho-de-santo, que recordam no cotidiano as características e aventuras míticas do orixá do qual se crê descender o filho humano. Isso reforçou o crescimento e a diversificação de um mercado livreiro sobre os orixás, de modo que a transmissão oral do conhecimento religioso, que caracteriza o candomblé, foi aos poucos incorporando o uso do texto escrito.


Prólogo do livro Mitologia dos Orixás, de Reginaldo Prandi, Editora Companhia das Letras, 8ª Edição, 2006.

domingo, 9 de agosto de 2020

Madalena (Entra em beco sai em beco)

Fui passear na roça
Encontrei Madalena
Sentada numa pedra
Comendo farinha seca
Olhando a produção agrícola
E a pecuária

Madalena chorava
Sua mãe consolava
Dizendo assim
Pobre não tem valor
Pobre é sofredor
E quem ajuda é Senhor do Bonfim

Entra em beco sai em beco
Há um recurso, Madalena
Entra em beco sai em beco
Há uma santa com seu nome

Entra em beco sai em beco
Vai na próxima capela
E acende uma vela
Pra não passar fome

Música de Isidoro gravada por Gilberto Gil em seu CD Parabolicamará, gravado em 1991.

O Rio Severino

Um tísico à míngua espera a tarde inteira
Pela assistência que não vem

Mas vem de tudo nágua suja, escura e espessa deste
Rio Severino, morte e vida vêm

Mas quem não tem abc não pode entender hiv
Nem cobrir, evitar ou ferver

O rio é um rosário cujas contas são cidades
À espera de um Deus que dê
Quem possa lhes dizer

Me diz o que é que você tem
A quem se pode recorrer
Me diz o que é que você tem

É muita gente ingrata reclamando de barriga d'água cheia
São maus cidadãos

É essa gente analfabeta interessada em denegrir
A boa imagem da nossa nação

És tu Brasil, ó pátria amada, idolatrada por quem tem
Acesso fácil a todos os teus bens

Enquanto o resto se agarra no rosário, e sofre e reza
À espera de um Deus que não vem

O que é que você tem
Me diz o que é que você tem
O que é que eu posso te dizer?
Me diz o que é que você tem

Música de Herbert Vianna gravada no CD Severino, dos Paralamas do Sucesso, de 1994.

Severino e seu chapéu

 Pois ele tinha um chapéu.

Muita gente tem um chapéu, a até tem muita gente que não tem chapéu, mas Severino tinha um chapéu fantástico.

Cada dinheirinho que Severino ganhava, lá na feira de Maceió, era reservado, em grande parte, para o seu chapéu.

E nas festas de fim de ano, Severino se apresentava e cantava, batendo com os pés. As fitas esvoaçavam... e a cabeça de Severino usava, com grande pompa, orgulho e distinção, o seu chapéu.

No início, o chapéu era mais comum, meio igual aos outros. Mas o tempo foi passando, e Severino economizava para o chapéu.

Na verdade, Severino continuava muito pobre, vendendo docinhos na feira. Vez por outra, levava umas blusas de rendendê, tecidas por Madalena, sua mulher. As blusas faziam sucesso, sobretudo para as gringas turistas do Rio e de São Paulo.

Madalena reclamava:

- Eu faço renda para enfeitar o chapéu de Severino! Às vezes passamos necessidade, que vida de pobre é isso... Mas podia ser mais fácil, se não fosse o chapéu! Tudo o que ganho vai pro chapéu!

Severino tomava um trago, tomava outro, mais um, que era pra esquentar do frio, ou pra esfriar do calor. Depois, ia ensaiar pra festa.

Maceió foi deixando de ser um lugar desconhecido, virou atração turística. Madalena vendia que vendia rendas, as mãos doídas, os olhos cansados de prestar atenção dos fios.

Ganhava-se um dinheirinho a mais. Severino, por causa do chapéu, guardava toda sobrinha e comprava espelhos, contas, vidrilhos.

As danças de fim de ano viraram de ano inteiro, pra turista ver, enquanto comia sururu. E Severino, com seu grupo, fitas, cores e o chapéu de Severino, que tinha um feitio de igreja, capelinha de espelhos.

No final, todo turista tinha que ir ver o chapéu de Severino, ali, no meio dos outros chapéus-capelinhas, os palhaços, o compasso de fitas e cores. O chapéu de Severino já não era capela, era uma igreja, uma catedral. Pois Severino, tudo que ganhava, metade era pra pinga, metade pro chapéu... e Madalena que não se arrependesse de ter casado com ele, o mais famoso chapéu de Maceió!

O nome da dança? E isso interessa? Era folclore, chapéu e Severino, espelhando.

- Espelho, espelho meu, existe no mundo um chapéu-catedral mais reluzente do que o meu?

E o chapéu de Severino virou cartaz de turismo.

Naquele dia, pra comemorar, Severino, em frente do cartaz, bebeu uma garrafa inteira. Será que foi uma inteira? E qual o tamanho da garrafa? E eu sei? Só sei que Severino abusou, caiu e dormiu, bem debaixo de um coqueiro.

Na manhã seguinte, quando acordou, deu por falta do chapéu.

- Um ladrão levou meu chapéu!

Nunca houve tristeza maior em toda Maceió! Ninguém achou o chapéu de Severino, que continuou a beber, a beber... a acabou se metendo num caminhão pro sul, largando Madalena, que fazia rendas.

Severino prometeu:

- Madalena, vou trabalhar no Rio de Janeiro; lá eu ganho um sustento melhor, depois a gente arruma a vida, volto a construir um chapéu. Disseram que no Rio tem pagamento melhor. Vou trabalhar de ajudante de pedreiro, que disso sei um pouquinho e o motorista do caminhão garantiu.

Mas no Rio não foi tão fácil. Até que Severino arranjou o  emprego e trabalhava em obras. A cachaça ajudava a esquecer.

Severino contou do seu chapéu para os colegas. Mas riram, zombaram. Aí Severino encheu a cara, bebeu, saiu pela avenida Rio Branco, virou para a direita, deu com a igreja da Candelária. Estava toda iluminada. Severino entrou e caiu de joelhos:

- Obrigado, Jesus Cristinho!

Depois, Severino olhou em volta e disse para as paredes douradas da igreja:

- Puxa, chapeuzinho, como você cresceu! Benza-o Deus!


Conto de Sylvia Orthof retirado do livro Papos de Anjo, Editora Record, 1987.

sábado, 8 de agosto de 2020

Sol Sublime

Estivesse o homem entregue à própria sorte, e a existência, na Terra, seria insuportável.

Os liames com o passado de onde procede retê-lo-iam no primitivismo.

As imposições atávicas dificultar-lhe-iam vencer os degraus mais difíceis da escala da evolução, e motivo algum lucilaria na sua mente produzindo estímulo para o esforço.

Os passos iniciais são sempre mais demorados e de logro mais complicado.

À medida que se firmam os pés ensejando a verticalidade, mais fáceis se tornam as tentativas de êxito para a marcha.

O Amor de Deus faculta que os anjos guardiães, responsáveis pela evolução do seres, inspirem e emulem os homens ao crescimento, favorecendo o desabrochar das potencialidades que dormem latentes em todos.

Eles velam com carinho e geram recursos que podem ser movimentados para a ascensão.

Cada conquista faculta mais longos horizontes a vencer.

Ampliando-se o raio de ação, mais se agigantam as possibilidades de desenvolvimento.

À frente de todas as experiências vitoriosas, estão esses Guias incansáveis, estimulando-os.

Nunca te consideres, portanto, em abandono, a sós, esquecido.

Quando as dificuldades te advierem, compreende que estás sob avaliação para seres promovido.

Enfrentando enfermidade ou incompreensão, logica sobre o Amor do Pai e alegra-te com a experiência de fixação de forças morais nos painéis da alma.

Sofrendo os aguilhões dos processos degenerativos que as enfermidades produzem, considera que o corpo é somente veste transitória, mas tu és vida imperecível.

Todo triunfo se assenta sobre as lutas ganhas e as dificuldades superadas.

A raiz da árvore gigante e florida permanece frágil no seu extremo, perfurando o solo e nutrindo-se.

A água deixa as impurezas, espremidas nos poros das pedras pelas quais se coa.

Assim também são os mecanismos da evolução para conosco.

Solidão é palavra absurda para quem ama, e queixa de abandono representa desconhecimento das Leis da Vida.

Busca sintonizar com os teus Guias Espirituais e galgarás sucessivos patamares do progresso e da paz.

Jesus prometeu-nos que nos não deixaria a sós, e, mesmo desde antes de se nos desvelar, sempre esteve e permanece conosco, na condição de Sol sublime, atraindo-nos na Sua direção.


Texto retirado do livro Momentos de Harmonia, Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis. Livraria Espírita Alvorada Editora, 3ª Edição, 2014.

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Eis a Primavera

 João saiu do hospital para morrer em casa - e gritou três meses antes de morrer. Para não gastar, a mulher nem uma vez chamou o médico. Não lhe deu injeção de morfina, a receita azul na gaveta. Ele sonhava com a primavera para sarar do reumatismo, nos dedos amarelos contava os dias.

Não fosse a umidade do ar... - gemia para o irmão nas compridas horas da noite.

Já não tinha posição na cama: as costas uma ferida só. Paralisado da cintura para baixo, obrava-se sem querer. A filha tapava o nariz com dois dedos e fugia para o quintal:

- Ai, que fedor... Meu Deus, que nojo!

Com a desculpa que não podiam vê-lo sofrer, mulher e filha mal entravam no quarto. O irmão Pedro é que o assistia, aliviando as dores com analgésico, aplicando a sonda, trocando o pijama e os lençóis. Afofava o travesseiro, suspendia o corpinho tão leve, sentava-o na cama:

- Assim está melhor?

Chorando no sorriso, a voz trêmula como um ramo de onde o pássaro desferiu voo:

- Agora a dor se mudou...

Vigiava aflito a janela:

- Quantos dias faltam? Com o sol eu fico bom.

Pele e osso, pescocinho fino, olho queimando de febre lá no fundo. Na evocação do filho morto, havia trinta anos:

- Muito engraçado, o camaradinha - e batia fracamente na testa com a mão fechada. - Com um aninho fazia continência. Até hoje não me conformo.

A saudade do camaradinha acordava-lhe duas grandes lágrimas. No espelho da penteadeira surpreendia o vulto esquivo da filha.

- Essa menina nunca me deu um copo d'água.

Quando o irmão se levantava:

- Fique mais um pouco.

Ali da porta a sua querida Maria:

- Um egoísta. Não deixa os outros descansar.

Ao parente que sugeriu uma injeção para os gritos:

- Não sabe que tem aquela doença? Desenganado três vezes. Nada que fazer.

Na ausência do cunhado, esqueciam-no lá no quarto, mulher e filha muito distraídas. Horas depois, quando a dona abria a porta com o dedo no nariz:

- É que eu me apurei - ele se desculpava, envergonhado. - Doente não merece viver.

A filha, essa, de longe sempre se abanando:

- Ai, como fede!

Terceiro mês o irmão passou a dormir no quarto. Ao lavar-lhe a dentadura, boquinha murcha, o retrato da mãe defunta? Nem podia sorver o café.

- Só de ruim é que não engole - resmungava a mulher.

Negou-lhe a morfina até o último dia: ele morre, a família fica. Tingiu de preto o vestido mais velho, o enterro seria de terceira.

Ao pé da janela, uma corruíra trinava alegrinha na boca do dia e na doçura do canto, ele cochilava meia hora bem pequena. Batia a eterna continência, balbuciava no delírio:

- Com quem eu briguei?

- Me conte, meu velho.

- Com Deus - e agitou a mãozinha descarnada. - Tanto não devia judiar de mim.

Fechando os olhos, sentiu a folha que bulia na laranjeira, o pé furtivo do cachorro na calçada, o pingo da torneira no zinco da cozinha - e o alarido no peito de rua barulhenta às seis da tarde. Se a mulher costurava na sala, ele ouvia os furos da agulha no pano.

- Muito acabadinho, o pobre? - lá fora uma vizinha indagava da outra.

Na última noite, cochichou ao irmão:

- Depois que eu... Não deixe que ela me beije!

Ainda uma vez a continência do camaradinha, olho branco em busca da luz perdida, e o irmão enxugava-lhe na testa o suor da agonia.

Mais tarde a mulher abriu a janela para arejar o quarto.

- Eis o sol, meu velho - e o irmão bateu as pálpebras, ofuscado.

Era o primeiro dia de primavera.


Conto de Dalton Trevisan retirado do livro O Conto Brasileiro Contemporâneo. Vários autores, organização de Alfredo Bosi. Editora Cultrix.

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

O Grande Passeio

Era uma velha sequinha que, doce e obstinada, não parecia compreender que estava só no mundo. Os olhos lacrimejavam sempre, as mãos repousavam sobre o vestido preto e opaco, velho documento de sua vida. No tecido já endurecido encontravam-se pequenas crostas de pão coladas pela baba que lhe ressurgia agora em lembrança do berço. Lá estava uma nódoa amarelada, de um ovo que comera há duas semanas. E as marcas dos lugares onde dormia. Achava sempre onde dormir, casa de um, casa de outro. Quando lhe perguntavam o nome, dizia com a voz purificada pela fraqueza e por longuíssimos anos de boa educação:

- Mocinha.

As pessoas sorriam. Contente pelo interesse despertado, explicava:

- Nome, nome mesmo, é Margarida.

O corpo era pequeno, escuro, embora ela tivesse sido alta e clara. Tivera pai, mãe, marido, dois filhos. Todos aos poucos tinham morrido. Só ela restara com os olhos sujos e expectantes quase cobertos por um tênue veludo branco. Quando lhe davam alguma esmola davam-lhe pouca, pois ela era pequena e realmente não precisava comer muito. Quando lhe davam cama para dormir davam-lhe estreita e dura porque Margarida fora aos poucos perdendo volume. Ela também não agradecia muito: sorria e balançava a cabeça.

Dormia agora, não se sabia mais por que motivo, no quarto dos fundos de uma casa grande, numa rua larga cheia de árvores, em Botafogo. A família achava graça em Mocinha mas esquecia-se dela a maior parte do tempo. É que também se tratava de uma velha misteriosa. Levantava-se de madrugada, arrumava sua cama de anão e disparava lépida como se a casa estivesse pegando fogo. Ninguém sabia por onde andava. Um dia uma das moças da casa perguntou-lhe o que andava fazendo. Respondeu com um sorriso gentil:

- Passeando.

Acharam graça que uma velha, vivendo de caridade, andasse a passear. Mas era verdade. Mocinha nascera no Maranhão, onde sempre vivera. Viera para o Rio não há muito, com uma senhora muito boa que pretendia interná-la num asilo, mas depois não pudera ser: a senhora viajara para Minas e dera algum dinheiro para Mocinha se arrumar no Rio. E a velha passeava para ficar conhecendo a cidade. Bastava aliás uma pessoa sentar-se num banco de uma praça e já via o Rio de Janeiro.

Sua vida corria assim sem atropelos, quando a família da casa de Botafogo um dia surpreendeu-se de tê-la em casa há tanto tempo, e achou que assim também era demais. De algum modo tinham razão. Todos lá eram muito ocupados, de vez em quando surgiam casamentos, festas, noivados, visitas. E quando passavam atarefados pela velha, ficavam surpreendidos como se fossem interrompidos, abordados com uma pancadinha no ombro: "olha!" Sobretudo uma das moças da casa sentia um mal-estar irritado, a velha enervava-a sem motivo. Sobretudo o sorriso permanente, embora a moça compreendesse tratar-se de um riso inofensivo. Talvez por falta de tempo, ninguém falou no assunto. Mas logo que alguém cogitou de mandá-la morar em Petrópolis, na casa da cunhada alemã, houve uma adesão mais animada do que uma velha poderia provocar.

Quando, pois, o filho da casa foi com a namorada e as duas irmãs passar um fim-de-semana em Petrópolis, levou a velha no carro.

Por que Mocinha não dormiu na noite anterior? À ideia de uma viagem, no corpo endurecido o coração desenferrujava todo seco e descompassado, como se ela tivesse engolido uma pílula grande sem água. Em certos momentos nem podia respirar. Passou a noite falando, às vezes alto. A excitação do passeio prometido e a mudança de vida de repente aclaravam-lhe algumas ideias. Lembrou-se de coisas que dias antes juraria nunca terem existido. A começar pelo filho atropelado, morto debaixo de um bonde no Maranhão - se ele tivesse vivido no tráfego do Rio de Janeiro, aí mesmo é que morria atropelado. Lembrou-se dos cabelos do filho, das roupas dele. Lembrou-se da xícara que Maria Rosa quebrara e de como ela gritara com Maria Rosa. Se soubesse que a filha morreria de parto, é claro que não precisaria gritar. E lembrou-se do marido. Só relembrava o marido em mangas de camisa. Mas, não era possível, estava certa de que ele ia à repartição com o uniforme de contínuo, ia a festas de paletó, sem falar que não poderia ter ido ao enterro do filho e da filha em mangas de camisa. A procura do paletó do marido ainda mais cansou a velha que se virava com leveza na cama. De repente descobriu que a cama era dura.

- Que cama dura, disse bem alto no meio da noite.

É que se sensibilizara toda. Partes do corpo de que não tinha consciência há longo tempo reclamavam agora a sua atenção. E de súbito - mas que fome furiosa! Alucinada, levantou-se, desamarrou a pequena trouxa, tirou um pedaço de pão com manteiga ressecada que guardara secretamente há dois dias. Comeu o pão como um rato, arranhando até o sangue os lugares da boca onde só havia gengiva. E com a  comida, cada vez mais se reanimava. Conseguiu, embora fugazmente, ter a visão do marido se despedindo para ir ao trabalho. Só depois que a lembrança se desvaneceu, viu que esquecera de observar se ele estava ou não em mangas de camisa. Deitou-se de novo, coçando-se toda ardente. Passou o resto da noite nesse jogo de ver por um instante e depois não conseguir ver mais. De madrugada adormeceu.

E pela primeira vez foi preciso acordá-la. Ainda no escuro, a moça veio chamá-la, de lenço amarrado na cabeça e já de maleta na mão. Inesperadamente Mocinha pediu uns instantes para pentear os cabelos. As mãos trêmulas seguravam o pente quebrado. Ela se penteava, ela se penteava. Nunca fora mulher de ir passear sem antes pentear bem os cabelos.

Quando enfim se aproximou do automóvel, o rapaz e as moças se surpreenderam com seu ar alegre e com os passos rápidos. "Tem mais saúde do que eu!", brincou o rapaz. À moça da casa ocorreu: "E eu que até tinha pena dela."

Mocinha sentou-se junto da janela do carro, um pouco apertada pelas duas irmãs acomodadas no mesmo banco. Nada dizia, sorria. Mas quando o automóvel deu a primeira arrancada, jogando-a para trás, sentiu dor no peito. Não era só por alegria, era um dilaceramento. O rapaz virou-se para trás:

- Não vá enjoar, vovó!

As moças riram, principalmente a que se sentara na frente, a que de vez em quando encostava a cabeça no ombro do rapaz. Por cortesia, a velha quis responder, mas não pôde. Quis sorrir, não conseguiu. Olhou para todos, com olhos lacrimejantes, o que os outros já sabiam que não significava chorar. Qualquer coisa em seu rosto amorteceu um pouco a alegria da moça da casa e deu-lhe um ar obstinado.

A viagem foi muito bonita.

As moças estavam contentes, Mocinha agora já recomeçava a sorrir. E, embora o coração batesse muito, tudo estava melhor. Passaram por um cemitério, passaram por um armazém, árvore, duas mulheres, um soldado, gato! letras - tudo engolido pela velocidade.

Quando Mocinha acordou não sabia mais onde estava. A estrada já havia amanhecido totalmente: era estreita e perigosa. A boca da velha ardia, os pés e as mãos distanciavam-se gelados do resto do corpo. As moças falavam, a da frente apoiara a cabeça no ombro do rapaz. Os embrulhos despencavam a todo instante.

Então a cabeça de Mocinha começou a trabalhar. O marido apareceu-lhe de paletó - achei, achei! o paletó estava pendurado o tempo todo no cabide. Lembrou-se do nome da amiga de Maria Rosa, daquela que morava defronte: Elvira, e a mãe de Elvira até aleijada. As lembranças quase lhe arrancavam uma exclamação. Então ela movia os lábios devagar e dizia baixo algumas palavras.

As moças falavam:

- Ah, obrigada, um presente desses eu rejeito!

Foi quando Mocinha começou finalmente a não entender. Que fazia ela no carro? como conhecera seu marido e onde? como é que a mãe de Maria Rosa e Rafael, a própria mãe deles, estava no automóvel com aquela gente? Logo depois acostumou-se de novo.

O rapaz disse para as irmãs:

- Acho melhor não pararmos defronte, para evitar histórias. Ela salta do carro, a gente ensina aonde é, ela vai sozinha e dá o recado de que é para ficar.

Uma das moças da casa perturbou-se: receava que o irmão, com uma incompreensão típica de homem, falasse demais diante da namorada. Eles não visitavam mais o irmão de Petrópolis, e muito menos a cunhada.

- É sim, interrompeu-o a tempo antes que ele falasse demais. Olha, Mocinha, você entra por aquele beco e não há como errar: na casa de tijolo vermelho, você pergunta por Arnaldo, meu irmão, ouviu? Arnaldo. Diz que lá em casa você não podia mais ficar, diz que na casa de Arnaldo tem lugar e que você até pode vigiar um pouco o garoto, viu...

Mocinha desceu do automóvel, e durante um tempo ainda ficou de pé mas pairando entontecida sobre rodas. O vento fresco soprava-lhe a saia comprida por entre as pernas.

Arnaldo não estava. Mocinha entrou na saleta onde a dona da casa, com um pano contra pó amarrado na cabeça, tomava café. Um menino louro - decerto aquele que Mocinha deveria vigiar - estava sentado diante de um prato de tomates e cebolas e comia sonolento, enquanto as pernas brancas e sardentas balançavam-se sob a mesa. A alemã encheu-lhe o prato de mingau de aveia, empurrou-lhe na mesa pão torrado com manteiga. As moscas zuniam. Mocinha estava fraca. Se bebesse um pouco de café quente talvez passasse o frio no corpo.

A mulher alemã examinava-a de vez em quando em silêncio: não acreditara na história da recomendação da cunhada, embora "de lá" tudo fosse de se esperar. Mas talvez a velha tivesse ouvido de alguém o endereço, até num bonde, por acaso, isso às vezes acontecia, bastava abrir um jornal e ver que acontecia. É que aquela história não estava nada bem contada, e a velha tinha um ar sabido, nem sequer escondia o sorriso. O melhor seria não deixá-la sozinha na  saleta, com o armário cheio de louça nova.

- Preciso antes tomar café, disse-lhe. Depois que meu marido chegar, veremos o que se pode fazer.

Mocinha não entendeu muito bem,  pois ela falava como gringa. Mas entendeu que era para continuar sentada. O cheiro de café dava-lhe vontade, e uma vertigem que escurecia a sala toda. Os lábios ardiam secos e o coração batia todo independente. Café, café, olhava ela sorrindo e lacrimejando. A seus pés o cachorro mordia a própria pata, rosnando. A empregada, também meio gringa, alta, de pescoço muito fino e seios grandes, a empregada trouxe um prato de queijo branco e mole. Sem uma palavra, a mãe esmagou bastante queijo no pão torrado e empurrou-o para o lado do filho. O menino comeu tudo e, com a barriga grande, agarrou um palito e levantou-se:

- Mãe, cem cruzeiros.

- Não. Para quê?

- Chocolate.

- Não. Amanhã é que é domingo.

Uma pequena luz iluminou Mocinha: domingo? que fazia naquela casa em véspera de domingo? Nunca saberia dizer. Mas bem que gostaria de tomar conta daquele menino. Sempre gostara de criança loura: todo menino louro se parecia com o Menino Jesus. O que fazia naquela casa? Mandavam-na à toa de um lado para outro, mas ela contaria tudo, iam ver. Sorriu encabulada: não contaria era nada, pois o que queria mesmo era café.

A dona da casa gritou para dentro, e a empregada indiferente trouxe um prato fundo, cheio de papa escura. Gringos comiam muito de manhã, isso Mocinha vira mesmo no Maranhão. A dona da casa, com seu ar sem brincadeiras porque gringo em Petrópolis era tão sério como no Maranhão, a dona da casa tirou uma colherada de queijo branco, triturou-o com o garfo e misturou-o à papa. Para dizer a verdade, porcaria mesmo de gringo. Pôs-se então a comer, absorta, com o mesmo ar de fastio que os gringos do Maranhão têm. Mocinha olhava. O cachorro rosnava às pulgas.

Afinal, Arnaldo apareceu em pleno sol, a cristaleira brilhando. Ele não era louro. Falou em voz baixa com a mulher, e depois de demorada confabulação, informou firme e curioso para Mocinha:

- Não pode ser não, aqui não tem lugar não.

E como a velha não protestasse e continuasse a sorrir, ele falou mais alto:

- Não tem lugar não, ouviu?

Mas Mocinha continuava sentada. Arnaldo ensaiou um gesto. Olhou para as duas mulheres na sala e vagamente sentiu o cômico do contraste. A esposa esticada e vermelha. E mais adiante a velha murcha e escura, com uma sucessão de peles secas penduradas nos ombros. Diante do sorriso malicioso da velha, ele se impacientou:

- E agora estou muito ocupado! Eu lhe dou dinheiro e você toma o trem para o Rio, ouviu? volta para a casa de minha mãe, chega lá e diz: casa de Arnaldo não é asilo, viu? aqui não tem lugar. Diz assim: casa de Arnaldo não é asilo não, viu!

Mocinha pegou no dinheiro e dirigiu-se à porta. Quando Arnaldo já ia se sentar para comer, Mocinha reapareceu:

- Obrigada, Deus lhe ajude.

Na rua, de novo pensou em Maria Rosa, Rafael, o marido. Não sentia a menor saudade. Mas lembrava-se. Dirigiu-se para a estrada, afastando-se cada vez mais da estação. Sorriu como se pregasse uma peça a alguém: em vez de voltar logo, ia antes passear um pouco. Um homem passou. Então uma coisa muito curiosa, e sem nenhum interesse, foi iluminada: quando ela era ainda uma mulher, os homens. Não conseguia ter uma imagem precisa das figuras dos homens, mas viu a si própria com blusas claras e cabelos compridos. A sede voltou-lhe, queimando a garganta. O sol ardia, faiscava em cada seixo branco. A estrada de Petrópolis é bonita.

No chafariz de pedra negra e molhada, em plena estrada, uma preta descalça enchia uma lata de água.

Mocinha ficou parada, espreitando. Viu depois a preta reunir as mãos em concha e beber.

Quando a estrada ficou de novo vazia, Mocinha adiantou-se como se saísse de um esconderijo e aproximou-se sorrateira do chafariz. Os fios de água escorreram geladíssimos por dentro das mangas até os cotovelos, pequenas gotas brilharam suspensas nos cabelos.

Saciada, espantada, continuou a passear com os olhos mais abertos, em atenção às voltas violentas que a água pesada dava no estômago, acordando pequenos reflexos pelo resto do corpo como luzes.

A estrada subia muito. A estrada era mais bonita que o Rio de Janeiro, e subia muito. Mocinha sentou-se numa pedra que havia junto de uma árvore, para poder apreciar. O céu estava altíssimo, sem nenhuma nuvem. E tinha muito passarinho que voava do abismo para a estrada. A estrada branca de sol se estendia sobre um abismo verde. Então, como estava cansada, a velha encostou a cabeça no tronco da árvore e morreu.

Conto de Clarice Lispector retirado do livro Felicidade Clandestina, Editora Nova Fronteira, 3ª Edição, 1981.

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

A Moça Tecelã

Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear.

Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor de luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte.

Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava.

Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.

Mas se durante muitos dias o vento e  o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza.

Assim, jogando a lançadeira de um lado para o outro e batendo os grandes pentes do tear para a frente e para trás, a moça passava seus dias.

Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranquila.

Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.

Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou como seria bom ter um marido ao lado.

Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe daria companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponta dos sapatos, quando bateram à porta.

Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando na sua vida.

Aquela noite, deitada contra o ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade.

E feliz foi, por algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque, descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.

- Uma casa melhor é necessária, - disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer.

Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente. - Por que ter casa, se podemos ter palácio? - perguntou. Sem querer resposta, imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates de prata.

Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira.

Afinal, o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.

- É para que ninguém saiba do tapete, - disse. E antes de trancar a porta à chave advertiu: - Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!

Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.

E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou como seria bom estar sozinha de novo.

Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.

Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois desteceu os criados e o palácio e  todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela.

A noite acabava quando o marido, estranhando a cama dura, acordou, e espantado olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu.

Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte.

Conto de Marina Colasanti retirado do livro Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento, Editora Nórdica, 5ª Edição, 1985.

terça-feira, 4 de agosto de 2020

As Formigas

Quando minha prima e eu descemos do táxi, já era quase noite. Ficamos imóveis diante do velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um deles vazado por uma pedrada. Descansei a mala no chão e apertei o braço da prima.

- É sinistro.

Ela me impeliu na direção da porta. Tínhamos outra escolha? Nenhuma pensão nas redondezas oferecia um preço melhor a duas pobres estudantes com liberdade de usar o fogareiro no quarto, a dona nos avisara por telefone que podíamos fazer refeições ligeiras com a condição de não provocar incêndio. Subimos a escada velhíssima, cheirando a creolina.

- Pelo menos não vi sinal de barata - disse minha prima.

A dona era uma velha balofa, de peruca mais negra do que a asa da graúna. Vestia um desbotado pijama de seda japonesa e tinha as unhas aduncas recobertas por uma crosta de esmalte vermelho-escuro, descascado nas pontas encardidas. Acendeu um charutinho.

- É você que estuda medicina? - perguntou soprando a fumaça na minha direção.

- Estudo direito. Medicina é ela.

A mulher nos examinou com indiferença. Devia estar pensando em outra coisa quando soltou uma baforada tão densa que precisei desviar a cara. A saleta era escura, atulhada de móveis velhos, desparelhados. No sofá de palhinha furada no assento, duas almofadas que pareciam ter sido feitas com os restos de um antigo vestido, os bordados salpicados de vidrilho.

- Vou mostrar o quarto, fica no sótão - disse ela em meio a um acesso de tosse. Fez um sinal para que a seguíssemos. - O inquilino antes de vocês também estudava medicina, tinha um caixotinho de ossos que esqueceu aqui, estava sempre mexendo neles.

Minha prima voltou-se:

- Um caixote de ossos?

A mulher não respondeu, concentrada no esforço de subir a estreita escada de caracol que ia dar no quarto. Acendeu a luz. O quarto não podia ser menor, com o teto em declive tão acentuado que nesse trecho teríamos que entrar de gatinhas. Duas camas, dois armários e uma cadeira de palhinha pintada de dourado. No ângulo onde o teto quase se encontrava com o assoalho, estava um caixotinho coberto com um pedaço de plástico. Minha prima largou a mala e, pondo-se de joelhos, puxou o caixotinho pela alça de corda. Levantou o plástico. Parecia fascinada.

- Mas que ossos tão miudinhos! São de criança?

- Ele disse que eram de adulto. De um anão.

- De um anão? É mesmo, a gente vê que já estão formados... Mas que maravilha, é raro à beça esqueleto de anão. E tão limpo, olha aí - admirou-se ela. Trouxe na ponta dos dedos um pequeno crânio de uma brancura de cal. - Tão perfeito, todos os dentinhos!

- Eu ia jogar tudo no lixo, mas se você se interessa pode ficar com ele. O banheiro é aqui ao lado, só vocês é que vão usar, tenho o meu lá embaixo. Banho quente extra. Telefone também. Café das sete às nove, deixo a mesa posta na cozinha com a garrafa térmica, fechem bem a garrafa - recomendou coçando a cabeça. A peruca se deslocou ligeiramente. Soltou uma baforada final: - Não deixem a porta aberta senão meu gato foge.

Ficamos nos olhando e rindo enquanto ouvíamos o barulho dos seus chinelos de salto na escada. E a tosse encatarrada.

Esvaziei a mala, dependurei a blusa amarrotada num cabide que enfiei num vão da veneziana, prendi na parede com durex, uma gravura de Grassman e sentei meu urso de pelúcia em cima do travesseiro. Fiquei vendo minha prima subir na cadeira, desatarraxar a lâmpada fraquíssima que pendia de um fio solitário no meio do teto e no lugar atarraxar uma lâmpada de duzentas velas que tirou da sacola. O quarto ficou mais alegre. Em compensação, agora a gente podia ver que a roupa de cama não era tão alva assim, alva era a pequena tíbia que ela tirou de dentro do caixotinho. Examinou-a. Tirou uma vértebra e olhou pelo buraco tão reduzido como o aro de um anel. Guardou-as com a delicadeza com que se amontoam ovos numa caixa.

- Um anão. Raríssimo, entende? E acho que não falta nenhum ossinho, vou trazer as ligaduras, quero ver se no fim da semana começo a montar ele.

Abrimos uma lata de sardinha que comemos com pão, minha prima tinha sempre alguma lata escondida, costumava estudar até de madrugada e depois fazia sua ceia. Quando acabou o pão, abriu um pacote de bolacha maria.

- De onde vem esse cheiro? - perguntei farejando. Fui até o caixotinho, voltei, cheirei o assoalho. - Você não está sentindo um cheiro meio ardido?

- É de bolor. A casa inteira cheira assim - ela disse. E puxou o caixotinho para debaixo da cama.

No sonho, um anão louro de colete xadrez e cabelo repartido no meio entrou no quarto fumando charuto. Sentou-se na cama da minha prima, cruzou as perninhas e ali ficou sério, vendo-a dormir. Eu quis gritar, tem um anão no quarto! mas acordei antes. A luz estava acesa. Ajoelhada no chão, ainda vestida, minha prima olhava fixamente algum ponto no assoalho.

- Que é que você está fazendo aí? - perguntei.

- Essas formigas. Apareceram de repente, já enturmadas. Tão decididas, está vendo?

Levantei e dei com as formigas pequenas e ruivas que entravam em trilha espessa pela fresta debaixo da porta, atravessaram o quarto, subiam pela parede do caixotinho de ossos e desembocavam lá dentro, disciplinadas como um exército em marcha exemplar.

- São milhares, nunca vi tanta formiga assim. E não tem trilha de volta, só de ida - estranhei.

- Só de ida.

Contei-lhe meu pesadelo com o anão sentado em sua cama.

- Está debaixo dela - disse minha prima e puxou para fora o caixotinho. Levantou o plástico. - Preto de formiga. Me dá o vidro de álcool.

- Deve ter sobrado alguma coisa aí nesses ossos e elas descobriram, formiga descobre tudo. Se eu fosse você, levava isso lá pra fora.

- Mas os ossos estão completamente limpos, eu já disse. Não ficou nem um fiapo de cartilagem, limpíssimos. Queria saber o que essas bandidas vêm fuçar aqui.

Respingou fartamente o álcool em todo o caixote. Em seguida, calçou os sapatos e como uma equilibrista andando no fio de arame, foi pisando firme, um pé diante do outro na trilha de formigas. Foi e voltou duas vezes. Apagou o cigarro. Puxou a cadeira. E ficou olhando dentro do caixotinho.

- Esquisito. Muito esquisito.

- O quê?

- Me lembro que botei o crânio em cima da pilha, me lembro que até calcei com a omoplatas para não rolar. E agora ele está aí no chão do caixote, com uma omoplata de cada lado. Por acaso você mexeu aqui?

- Deus me livre, tenho nojo de osso. Ainda mais de anão.

Ela cobriu o caixotinho com o plástico, empurrou-o com o pé e levou o fogareiro para a mesa, era a hora do seu chá. No chão, a trilha de formigas mortas era agora uma fita escura que encolheu. Uma formiguinha que escapou da matança passou perto do meu pé, já ia esmagá-la quando vi que levava as mãos à cabeça, como uma pessoa desesperada. Deixei-a sumir numa fresta do assoalho.

Voltei a sonhar aflitivamente mas dessa vez foi o antigo pesadelo em torno dos exames, o professor fazendo uma pergunta atrás da outra e eu muda diante do único ponto que não tinha estudado. Às seis horas o despertador disparou veementemente. Travei a campainha. Minha prima dormia com a cabeça coberta. No banheiro, olhei com atenção para as paredes, para o chão de cimento, à procura delas. Não vi nenhuma. Voltei pisando na ponta dos pés e então entreabri as folhas da veneziana. O cheiro suspeito da noite tinha desaparecido. Olhei para o chão: desaparecera também a trilha do exército massacrado. Espiei debaixo da cama e não vi o menor movimento de formigas no caixotinho coberto.

Quando cheguei por volta das sete da noite, minha prima já estava no quarto. Achei-a tão abatida que carreguei no sal da omelete, tinha a pressão baixa. Comemos num silêncio voraz. Então me lembrei:

- E as formigas?

- Até agora, nenhuma.

- Você varreu as mortas?

Ela ficou me olhando.

- Não varri nada, estava exausta. Não foi você que varreu?

- Eu?! Quando acordei, não tinha nem sinal de formiga nesse chão, estava certa que antes de deitar você juntou tudo... Mas então quem?!

Ela apertou os olhos estrábicos, ficava estrábica quando se preocupava.

- Muito esquisito mesmo. Esquisitíssimo.

Fui buscar o tablete de chocolate e perto da porta senti de novo o cheiro, mas seria bolor? Não me parecia um cheiro assim inocente, quis chamar a atenção de minha prima para esse aspecto mas estava tão deprimida que achei melhor ficar quieta. Espargi água-de-colônia flor de maçã por todo o quarto (e se ele cheirasse como pomar?) e fui deitar cedo. Tive o segundo tipo de sonho que competia nas repetições com o sonho da prova oral: nele, eu marcava encontro com dois namorados ao mesmo tempo. E no mesmo lugar. Chegava o primeiro e minha aflição era levá-lo embora dali antes que chegasse o segundo. O segundo, desta vez, era o anão. Quando só restou o oco de silêncio e sombra, a voz da minha prima me fisgou e me trouxe para a superfície. Abri os olhos com esforço. Ela estava sentada na beira da minha cama, de pijama e completamente estrábica.

- Elas voltaram.

- Quem?

- As formigas. Só atacam de noite, antes da madrugada. Estão todas aí de novo.

A trilha da véspera, intensa, fechada, seguia o antigo percurso da porta até o caixotinho de ossos por onde subia na mesma formação até desformigar lá dentro. Sem caminho de volta.

- E os ossos?

Ela se enrolou no cobertor, estava tremendo.

- Aí é que está o mistério. Aconteceu uma coisa, não entendo mais nada! Acordei pra fazer pipi, devia ser umas três horas. Na volta senti que no quarto tinha algo mais, está me entendendo? Olhei pro chão e vi a fila dura de formiga, você lembra? não tinha nenhuma quando chegamos. Fui ver o caixotinho, todas trançando lá dentro, lógico, mas não foi isso o que quase me fez cair pra trás, tem uma coisa mais grave: é que os ossos estão mesmo mudando de posição, eu já desconfiava mas agora estou certa, pouco a pouco eles estão... estão se organizando.

- Como, organizando?

Ela ficou pensativa. Comecei a tremer de frio, peguei uma ponta do seu cobertor. Cobri meu urso com o lençol.

Você lembra, o crânio entre as omoplatas, não deixei ele assim. Agora é a coluna vertebral que já está quase formada, uma vértebra atrás da outra, cada ossinho tomando seu lugar, alguém do ramo está montando o esqueleto, mais um pouco e... Venha ver!

- Credo, não quero ver nada. Estão colando o anão, é isso?

Ficamos olhando a trilha rapidíssima, tão apertada que nela não caberia sequer um grão de poeira. Pulei-a com o maior cuidado quando fui esquentar o chá. Uma formiguinha desgarrada (a mesma daquela noite?) sacudia a cabeça entre as mãos. Comecei a rir e tanto que, se o chão não estivesse ocupado, rolaria por ali de tanto rir. Dormimos juntas na minha cama. Ela dormia ainda quando saí para a primeira aula. No chão, nem sombra de formiga, mortas e vivas, desapareciam com a luz do dia.

Voltei tarde essa noite, um colega tinha se casado e teve festa. Vim animada, com vontade de cantar, passei da conta. Só na escada é que me lembrei: o anão. Minha prima arrastara a mesa para a porta e estudava com o bule, fumegando no fogareiro.

- Hoje não vou dormir, quero ficar de vigia - ela avisou.

O assoalho ainda estava limpo. Me abracei ao urso.

- Estou com medo.

Ela foi buscar uma pílula para atenuar minha ressaca, me fez engolir a pílula com um gole de chá e ajudou a me despir.

- Fico vigiando, pode dormir sossegada. Por  enquanto não apareceu nenhuma, não está na hora delas, é daqui a pouco que começa. Examinei com a lupa debaixo da porta, sabe que não consigo descobrir de onde brotam?

Tombei na cama, acho que nem respondi. No topo da escada o anão me agarrou pelos pulsos e rodopiou comigo até o quarto, acorda, acorda! Demorei para reconhecer minha prima que me segurava pelos cotovelos. Estava lívida. E vesga.

- Voltaram - ela disse.

Apertei entre as mãos a cabeça dolorida.

- Estão aí?

Ela falava num tom miúdo como se uma formiguinha falasse com sua voz.

- Acabei dormindo em cima da mesa, estava exausta. Quando acordei, a trilha já estava em plena. Então, fui ver o caixotinho, aconteceu o que eu esperava...

- Que foi? Fala depressa, o que foi?

Ela firmou o olhar oblíquo no caixotinho debaixo da cama.

- Estão mesmo montando ele. E rapidamente, entende? O esqueleto está inteiro, só falta o fêmur. E os ossinhos da mão esquerda, fazem isso num instante. Vamos embora daqui.

- Você está falando sério?

- Vamos embora, já arrumei as malas.

A mesa estava limpa e vazios os armários escancarados.

- Mas sair assim, de madrugada? Podemos sair assim?

- Imediatamente, melhor não esperar que a bruxa acorde. Vamos, levanta.

- E para onde a gente vai?

- Não interessa, depois a gente vê. Vamos, vista isto, temos que sair antes que o anão fique pronto.

Olhei de longe a trilha: nunca elas me pareceram tão rápidas. Calcei os sapatos, descolei a gravura da parede, enfiei o urso no bolso da japona e fomos arrastando as malas pelas escadas, mais intenso o cheiro que vinha do quarto, deixamos a porta aberta. Foi o gato que miou comprido ou foi um grito?

No céu, as últimas estrelas já empalideciam. Quando encarei a casa, só a janela vazada nos via, o outro olho era penumbra.

Conto de Lygia Fagundes Telles retirado do livro Mistérios, Editora Nova Fronteira, 4ª Edição, 1981.

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Ângela RoRo

Há quem diga que Ângela RoRo não existiria sem Maysa. Pode ser. Dos olhos verdes abissais à voz rouca que lhe emprestou o sobrenome artístico, esta Ângela (que, como  outra grande cantora, também é Maria) guarda em comum com Maysa o gosto pela densidade, pelos climas noturnos, por aquilo que na longa e nobre linhagem das cantoras-compositoras brasileiras convenciounou-se chamar "dor-de-cotovelo". Só que em RoRo, ao contrário de Maysa e, por exemplo, Dolores Duran, essa dor frequentemente vem marcada por um humor irônico e até debochado.

A verdade é que Ângela RoRo concentra em seu trabalho várias tendências - do samba-canção ao blues, do rock and roll ao bolero. Surgindo como um furacão em 1979, seu primeiro disco logo se impôs na maré de novas cantoras da mesma época. E que surgiam - geração pós-tropicalista, portanto aberta a todas as influências - também como consequência do movimento feminista dos anos 60-70, quando muitas mulheres trocavam a pia pela máquina de escrever. Ou pelo violão. Impossível ver Ângela RoRo dissociada desse fenômeno. Nas muitas entrevistas polêmicas que deu, sua voz é inconfundível. Tanto pela rouquidão quanto pelas coisas - atrevidas, sempre - que diz. Uma artista e uma pessoa sem engodos.

Cantando músicas de outros compositores ("Escândalo", de Caetano Veloso, que é a cara dela, ou o clássico "Demais", de Aloysio de Oliveira e Tom Jobim) ou suas próprias, essa Ângela irreverente e jamais inconsequente é, antes de mais nada, muito particular. Tanto que, nos últimos anos, preferiu continuar solitariamente o próprio caminho a aventurar-se por outros talvez mais gratificantes mas, com certeza, muito mais descartáveis. Ela não é das que passam com facilidade.

Referência fundamental às novas cantoras-compositoras que surgem a cada dia, Ângela RoRo traz consigo o mesmo segredo de Billie Holiday: impossível ouvi-la sem um copo de uísque (real ou imaginário), sem a  lembrança de algum amor perdido. Nas fogueiras da paixão em que sempre ardeu, em meio a difíceis sabedorias, a obra e a vida de Ângela RoRo têm aprendido que, apesar de todas as quedas, viver pode ser uma coisa bela. De uma beleza cegante, só concedida aos que - como ela - têm a coragem de  jogar-se nas aventuras do amor. Que, também pouco importa, pode ser real ou ilusório.

A essa voz e seus graves profundos, quase sempre basta apenas um piano. Mas de quem a ouve, exige muito mais: que o amor tenha doído, alguma vez, em algum momento. Para esses amorosos desorientados de fim de século é que Ângela RoRo canta. Nada mais adequado como trilha sonora de um tempo em que, embora as mãos toquem-se cada vez menos, a cada um de nós só resta mesmo é viver. Como ela, sem engodos.

Texto de Caio Fernando Abreu que está na contracapa da coletânea Personalidade (versão LP) lançada em 1991.