sábado, 26 de setembro de 2020

A Porta de Entrada

O processo de reencarnação tem, no berço, a sua porta de entrada, aureolada pelas bênçãos do amor de Deus.

Aí prosseguem os compromissos e cuidados de todo um projeto que teve início antes da fecundação e que não se acabará quando ocorrer a morte do corpo.

Através desse admirável mecanismo - o do renascimento - o berço passa a ensejar aos recomeçantes da experiência carnal: crescimento intelecto-moral; reparação de faltas que lhes pesam na economia espiritual; refazimento do caminho, antes percorrido com insensatez; edificação de propósitos superiores no mundo íntimo; esquecimento do mal, a fim de adaptar-se ao bem; aprendizado das leis de amor que lhe vigem no imo, ainda desconsideradas; aproximação dos adversários para a ampliação da comunidade fraternal; conquista da família-provação ou missão, de acordo com os títulos de enobrecimento ou de débito que se possuam; testes de paciência, de modo a compreender-se a grandeza do tempo sem limite; desdobramento de recursos que jazem adormecidos, e que, diante dos ensinamentos humanos, desatam ramos carregados com os tesouros de sabedoria e de luz...

A porta de entrada é a resposta da Vida, em misericórdia aos náufragos da vida.

O espírito foi criado pelo Amor para a  glória estelar.

O trânsito pelas vias do progresso enseja-lhe a explosão de todos os germes que lhe dormem, inatos, aguardando o momento para a fecundação.

Cabe ao homem inteligente investir no berço os seus mais valiosos esforços, de maneira a formar uma família equilibrada e sábia.

Esta representa a célula fundamental do organismo social, que se torna a consequência natural desse conglomerado de unidades que se necessitam...

Em tal cometimento, o amor, o conhecimento das suas finalidades, a responsabilidade e o respeito entre os seus membros tornam-se de vital importância para que sejam logrados os objetivos para os quais é constituída.

Mais do que o lugar para a permuta de hormônios e prazeres, de ternuras e afetos dos cônjuges, é o reduto-santuário-escola para os filhos, que devem tornar-se a meta primeira da união conjugal.

Quando o lar se engrandece com a presença dos filhos, a família educada no bem, e esclarecida, programa, por automatismo, a sociedade e o futuro melhor da Humanidade...

Para que se consigam os resultados opimos, a educação desempenha papel de primacial importância, conscientizando os indivíduos sobre as razões pelas quais se encontram na Terra e preparando-os para  as realizações do lar, da família, seu pequeno mundo, preparatório do Mundo Maior.

Em uma manjedoura, que soube honrar, Jesus encontrou a porta de entrada para conquistar os corações e cantar as glórias do Pai, ensinando o inconfundível poema do amor que liberta e felicita.

Santifica, deste modo, essa porta, a fim de que esplenda, rica de luz, mimetizando, com a majestade da sua realização, todos quantos por ela passem em direção à vida física.

Enobrece o berço hoje, para que, antes do túmulo, amanhã, a criatura em jornada te bendiga.

Recorda, por fim, que, se o berço é a  excelente porta de entrada para a reencarnação, o túmulo é a porta de saída, pela desencarnação, após o que a tua consciência e a Divina Justiça te chamarão a contas.


Texto retirado do livro Momentos de Coragem; Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 2014, 8ª Edição.

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Árvore dos Amigos

 Existem pessoas em nossas vidas que nos deixam felizes pelo simples fato de terem cruzado o nosso caminho. Algumas percorrem ao nosso lado, vendo muitas luas passarem, mas outras apenas vemos entre um passo e outro.

A todas elas chamamos de amigo. Há muitos tipos de amigos, talvez cada folha de uma árvore caracterize um deles. O primeiro que nasce do broto é o amigo pai e a amiga mãe que mostram o que é ver a vida. Depois vem o amigo irmão, com quem dividimos o nosso espaço para que ele floresça como nós. Passamos a conhecer toda a família de folhas, a qual respeitamos e desejamos o bem.

Mas, o destino nos apresenta outros amigos do peito, do coração, aqueles que são sinceros e verdadeiros, sabem quando não estamos bem e o que nos faz feliz...

Às vezes, um desses amigos do peito instala em nosso coração e, então, é chamado de amigo namorado, que dá brilho aos nossos olhos, música aos nossos lábios e pulos aos nossos pés. Mas há também aqueles amigos por um tempo, talvez umas férias, um dia ou uma hora... Eles costumam colocar muitos sorrisos em nossa face durante o tempo em que estamos por perto.

Falando em perto, encontramos aqueles que, ao contrário, não estão tão perto assim... Não podemos nos esquecer dos amigos distantes, aqueles que ficam nas pontas dos galhos, mas quando o vento sopra, sempre aparecem novamente entre uma folha ou outra.

O tempo passa, o verão se vai, o outono se aproxima e perdemos algumas de nossas folhas, algumas nascem na primavera, e outros permanecem por muitas estações. Mas o que nos deixa mais feliz é que as folhas que caíram continuam por perto alimentando a nossa raiz com alegria e lembranças dos momentos maravilhosos que cruzou o nosso caminho.

Desejo a vocês, folhas da minha árvore, Paz, Amor, Saúde, Sucesso, Prosperidade... Hoje e  sempre, porque simplesmente cada pessoa que passa em nossa vida é única e sempre deixa um pouco de si... E leva um pouco de nós! Há os que levam muito, mas não há os que não deixam nada. Esta é a maior responsabilidade de nossa vida, é a prova evidente de que duas almas não se encontram por acaso...


Autoria desconhecida...

domingo, 20 de setembro de 2020

A Loucura da Violência

 Entre as expressões do primarismo, no mercado das paixões humanas, destaca-se com realce a violência, espalhando angústia e dor.

Remanescente dos instintos agressivos, ela estiola as mais formosas florações da vida, estabelecendo o caos.

Em onda volumosa arrasa, deixando destroços por onde passa, alucinada.

Na raiz da violência encontra-se a falta de desenvolvimento do senso moral, que o Espírito aprimora através da educação, do exercício dos valores éticos, da amplitude de consciência.

Atavismo cruel, demora de ser transformada em ação edificante, em face das suas vinculações com os reflexos instintivos do período animal, que se prolonga, perturbadores.

Não apenas gera aflição, quando desencadeada, como também provoca reações equivalentes em sucessão quase incontrolável, arrebatando tudo quanto se lhe opões no percurso destrutivo.

Todo o empenho em favor da preservação dos valores morais deve ser colocado a serviço da paz, como antídoto à força devastadora da violência.

Pequenos exercícios de autocontrole terminam por criar hábitos de não violência.

Disciplinas mentais e silêncios fortalecidos pela confiança em Deus geram a harmonia que impede a instalação desse desequilíbrio.

Atividades de amor, visando ao bem e ao progresso da criatura humana e da sociedade, constituem patamar de resistência às investidas dessa agressividade.

Reflexões em torno dos deveres morais produzem a conscientização do bem, gerando o clima que preserva os sentimentos da fraternidade.

A violência é adversária do processo de evolução, fomentadora da loucura. Quem lhe tomba nas garras exaure-se, e, sem forças, termina no abismo do autoaniquilamento ou do assassínio...

A violência disfarça-se no lar, quando os cônjuges não respeitam os espaços, os direitos que lhes cabem reciprocamente.

Quando os filhos se sentem preteridos por falsos valores do trabalho, do dinheiro, do poder...

Na sociedade, quando os preços escorcham os necessitados.

Quando os interesses pessoais extrapolam os seus limites e perturbam os outros.

Quando a comodidade e os prazeres de alguns agridem os compromissos e os comportamentos alheios.

Quando as injustiças sociais estiolam os fracos a benefício dos fortes aparentes.

Quando os sentimentos inferiores da maledicência, da calúnia, da inveja, da traição, do suborno de qualquer tipo, da hipocrisia disseminam suas infelizes sementes.

Quando os pendores asselvajados não encontram orientação.

Quando as ilusões e fugas, os vícios e aliciamentos levam à drogas, ao sexo desvairado, às ambições absurdas, explodindo nas ruas do mundo e invadindo os lares.

Quando os governantes perdem a dignidade e estimulam a prevalência da ignorância, provocando guerras nacionais e internacionais...

A violência, de qualquer natureza, é atraso moral, síndrome do primitivismo humano remanescente.

O homem e a mulher estão fadados à paz, à glória estelar.

Assim, liberta-se daqueles remanescentes agressivos que terminam insuflando-te reações infelizes.

Se te compraz ainda mantê-los, tem a  coragem de te violentares, superando-os ou domando-os, e contribuirás para o apressar do progresso humano.

Como não te é lícito conivir com o erro, ensina pela retidão os mecanismos da felicidade, evitando a ira, a cólera, o ódio.

A ira é fagulha que ateia o fogo da violência. A cólera é combustível que a mantém, e o ódio é labareda que a amplia.

Pensa em Jesus, e, em qualquer circunstância, interroga-te como Ele agiria, se estivesse no teu lugar. Tentando-o, lograrás imitá-lO, fazendo como Ele, sem nenhuma violência.


Texto retirado do livro Momentos Enriquecedores; Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 2ª Edição, 2015.

terça-feira, 15 de setembro de 2020

A Presença

 Quando entrou pela alameda de pedregulhos e parou o carro defronte do hotel, o casal de velhos que passeava pelo gramado afastou-se rapidamente e ficou espiando de longe. O velho porteiro que o atendeu no balcão de recepção também teve um movimento de recuo. Ele pousou a mala no chão e pediu um apartamento. Por quanto tempo? Não estava bem certo, talvez uns vinte dias. Ou mais. O velho examinou-o da cabeça aos pés. Forçou o sorriso paternal, disfarçando o espanto com uma cordialidade exagerada, mas o jovem queria um apartamento? Ali, naquele hotel?! Mas era um hotel só de velhos, quase todos moradores fixos antiquíssimos, que graça um hotel desses podia ter para um jovem? Depois das nove da noite, silêncio absoluto porque todos dormiam cedíssimo. E a comida tão insípida, sem gordura, sem sal, com pratos sem nenhuma imaginação dentro de dietas rigorosas - pois não eram velhos? E velhos têm problemas de saúde, tantas doenças reais e imaginárias, artritismo, bronquite crônica, asma, pressão alta, flebite, enfisema pulmonar... Sem falar nas doenças mais dramáticas, ocioso enumerar tudo. A própria velhice já era uma doença. Um jovem assim saudável passar suas férias num hotel tão frio quanto um hospital? Nos hospitais ao menos havia uma esperança, os pacientes saírem curados, mas a  doença da velhice era sem cura e com a agravante de piorar com o tempo. Injusto oferecer-lhe esse quadro de decadência que apesar de mascarada (os hóspedes pertenciam à burguesia) era por demais deprimente. O prazer com que a juventude se vê refletida num espelho! mas a velhice ali concentrada chegava a ser tão cruel que os espelhos acabaram por ser afastados. Na última reforma, foram removidos os que apresentavam sinais mais acentuados de decomposição nas manchas porosas e bordas amarelecidas, contraídas sob o cristal como um fino papel queimando brandamente. Com esses, foram levados também os espelhos maiores da sala de refeições e que ainda estavam em bom estado. A substituição nunca foi providenciada e nem se voltou a falar no assunto, mas seria preciso? Era evidente o alívio dos hóspedes livres daquelas testemunhas geladas, captando-os em todos os ângulos: mais do que suficientes os espelhos menores dos banheiros, apenas o essencial para uma barba, um penteado. Um irrisório carmim. E a quantidade de espelhos na inauguração do hotel! (Estaria o jovem com disposição para ouvir mais?) Bem, tinha sido há cinquenta anos. Nessa época, não passava de um rapazola que ajudava a carregar a bagagem. As famílias chegavam com os carros pejados de malas, caixas, pajens, crianças, bicicletas. Nas longas temporadas de verão, a piscina (que ainda se conservava apesar dos rachões) ficava fervilhante. As danças até de madrugada. O jogo. E as competições na quadra de tênis, as cavalgadas pelo campo, o hotel dispunha de ótimos cavalos. Charretes. Mas aos poucos os hóspedes mais velhos foram dominando à medida que os mais jovens começaram a rarear, não sabia explicar o motivo, o fato é que a transformação - embora lenta - fora definitiva. Um museu-mausoléu. Que jovem podia se sentir bem num hotel assim? Se ele prosseguisse pela mesma estrada por onde viera, alguns quilômetros adiante encontraria um hotel excelente, tinha várias setas indicando o caminho, ficava num bosque bastante aprazível. E pelo que ouvira contar, o ambiente era alegre. Jovial.

Ele tirou os documentos do bolso da jaqueta de couro e colocou-os no mármore do balcão: queria apartamento nesse hotel e só não insistiria se o regulamento tivesse uma cláusula que proibisse um jovem de vinte e cinco anos de hospedar-se ali.

O velho porteiro passou as pontas dos dedos vacilantes na gola puída do uniforme pardo. Já não sorria quando examinou os documentos do recém-chegado. Devolveu-os. Os olhos de um azul-pálido estavam frios. Talvez não tivesse sido suficientemente claro, talvez, mas o fato é que se ele não se importava com a presença dos velhos, era bem provável que os velhos se importassem (e quanto) com a sua presença. Tão fácil de entender, como um jovem assim sagaz não entenderia? Os velhos formavam uma comunidade com seus usos, seus costumes. Uniram-se e a antiga fragilidade, tão agredida além daqueles portões, foi se transformando numa força. Num sistema. Eram seres obstinados. Na secreta luta para garantir a sobrevivência, perderam a memória do mundo que os rejeitara e se não eram felizes, pelo menos conseguiram isso, a segurança. O direito de morrer em paz. No segundo andar do hotel, por exemplo, vivia uma atriz de revista que fora muito famosa. Muito amada. Reduzida agora a um simples destroço, fechara-se na sua concha, apavorada com a curiosidade do público, com o realismo da imprensa ávida por fotografá-la na sua solidão, mas o que vocês querem de mim? ela gritou ao repórter que conseguiu apanhá-la numa cilada e publicar a foto com a manchete que a fez chorar dois dias. Quando o elevador quebrou, só ela, que ainda andava com certa agilidade, continuou no segundo andar, os outros foram transferidos para o primeiro por causa da escada. Nesse andar morava um antigo ídolo de atletismo que chegara a duas olimpíadas. Vivia numa cadeira de rodas. E como não lia jornais nem ligava a televisão (quem quisesse, tinha seu televisor particular) conseguira esquecer que a corrida com a tocha acesa prosseguia gloriosa sem ele. Esqueceu, assim como foi esquecido. As medalhas e troféus que nos primeiros anos de invalidez não podia nem ver estavam agora expostos na estante de seu quarto, às vezes os olhava mas sem a antiga emoção, integrados na sua senilidade como o saco de água quente ou a cadeira. O vizinho era um comerciante esclerosado que em poucos anos regredira à juventude, depois à adolescência e agora estava ficando criança de novo. Mas uma criança que era protegida até pelo mais neurastênico dos hóspedes, um homossexual que morava com um gato velhíssimo. Tivera na mocidade uma experiência trágica: quando o amigo tentou matá-lo, todos ficaram sabendo o que desesperadamente procurara esconder, ambos tinham família e eram conhecidíssimos. Hoje, é claro, ninguém se importava com isso mas naquele tempo foi só rejeição. Sofrimento. Reencontrara um certo equilíbrio naquele hotel, vendo as gêmeas da paciência abrir o leque do baralho no taciturno exercício do silêncio. Ouvindo a gorda solteirona do bandolim tocar pontualmente aos sábados. Relendo na pequena biblioteca (escassos volumes já gastos) Os Três Mosqueteiros. Ou O Conde de Monte Cristo. Uma tênue cinza baixara sobre suas cabeças. Sobre seus guardados. Agora chegara um jovem para ficar. Para lembrar (e com que veemência) o que todos já tinham perdido, beleza, amor. Um jovem com dentes, músculos e sexo - perfeito como um deus, não, não precisava rir, antiga medida de todas as coisas. Essa medida eles esqueceram. Com sua simples presença, iria revolver tudo: a revolução da memória. E passara o tempo das revoluções, ninguém queria renovar mas conservar. Assegurar essa sobrevida, o que já significava um verdadeiro heroísmo, os mais fracos tinham morrido todos. Restaram esses, empenhados numa luta terrível porque dissimulada, eram dissimulados - será que estava sendo claro? Não eram bons.

Ele acendeu o cigarro e ofereceu outro ao porteiro que agradeceu, não podia fumar. Olhou o lustre com longos pingentes de cristal em formato de lágrimas pesadas de poeira. Sorriu enquanto apontava na direção do pequeno elevador dourado e redondo, "mas é lindo, parece uma gaiola!" Abriu o zíper da jaqueta de couro, fazia calor. O porteiro inclinou-se sobre o grosso caderno de registro, molhou a caneta no tinteiro mas ficou com a mão parada no ar. Arqueou as sobrancelhas fatigadas: será que o amigo não percebia que ia ser um importuno? Um intruso? Representava o direito do avesso. Ou o avesso desse direito? O problema é que ele, um simples porteiro, não podia sequer defendê-lo se a comunidade decidisse sutilmente pela sua exclusão. Por mais tolos que esses velhos pudessem parecer, guardavam o segredo de uma sabedoria que se afiava na pedra da morte. Era preciso lembrar que usariam de todos os recursos para que as regras do jogo fossem cumpridas: até onde poderia chegar o ódio por aquele que viera humilhá-los, irônico, provocativo, tumultuando a partida? O jovem se animara com a ideia da piscina. Mas se nessa mesma piscina coalhada de folhas aparecesse uma manhã seu belo corpo boiando, tão desligado quanto as folhas? Eles fechariam depressa a porta devido à correnteza de vento, os velhos não gostam de vento. E voltariam satisfeitos aos seus assuntos. Ao seu joguinho dos domingos, aquele loto tão alegre, os cartões sendo cobertos com grãos de milho enquanto o anunciador (nenhum estranho por perto?) vai cantando os números com as brincadeiras de costume, sempre as mesmas porque eles se divertem com as repetições, como as crianças: número vinte e dois, dois patinhos na lagoa? Quarenta e quatro, bico de pato! Número três, gato escocês! Tão brincalhões esses velhinhos...

O jovem riu, tirou os óculos escuros e sua fisionomia se acendeu, tinha palhetas douradas no fundo das pupilas. Por acaso o porteiro lia romance policial? Os romances da velhinha inglesa, não? Ah, preferia palavras cruzadas. Apanhou a mala. Se possível, um apartamento no segundo andar. O jantar era às sete, não? Ótimo, tinha tempo para dar umas boas braçadas, a tarde estava uma delícia. Nenhuma importância se a piscina estava abandonada, a água não era corrente? Pediria apenas que lhe levassem um pouco de gelo, gostava de bebericar na piscina. Não, não precisava de uísque, trouxera sua marca.

Uma velhinha de gargantilha lilás cruzou o saguão na sua cadeira de rodas empurrada por uma calma enfermeira de touca: ia gesticulando, brava, deixando escapar resmungos por entre as gengivas duras enquanto a outra seguia atrás, voltando-se para os lados e sorrindo, poor, poor darling! Hoje está meio irritada mas também, com oitenta e nove anos!... Poor, poor darling! O recém-chegado fez uma profunda reverência na direção de ambas e voltou-se para o porteiro que mostrava num sorriso constrangido a dentadura opaca. Quer dizer que insistia mesmo em ficar? Bem, tinha um apartamento bastante ensolarado no segundo andar, dando para a piscina. "Espero que o senhor fique satisfeito", acrescentou enquanto fazia sinal para um velho de avental até os joelhos, por favor, podia conduzir o novo hóspede? Em largas passadas o jovem galgou os degraus de veludo vermelho e foi esperar o empregado lá em cima, segurando a mala que em vão o velho tentou levar. Quando entrou no apartamento seguido pelo empregado com seu molho de chaves, aspirou com uma expressão de prazer o esmaecido perfume que parecia vir dos móveis antiquados, lavanda? E perguntou enquanto abria a mala se por ali não havia fantasmas, sempre sonhara com um hotel de fantasmas. Os fantasmas somos nós, respondeu-lhe o velho e ele riu alto. Tirou a garrafa de uísque. Ligou o toca-discos.

Quando subiu no trampolim, notou um vulto que espiava através da cortina rendada de uma das janelas. Baixou o olhar divertido para a água de um verde profundo, onde as folhas boiavam num ondulado calmo. Abriu os braços. Saltou. Enquanto nadava de costas, entreviu uma cabeça branca na fresta de uma janela do primeiro andar. Logo apareceu outra cabeça (de um homem?) que ficou um pouco atrás, na sombra. Chegou-lhe vagamente o fiapo triturado de uma discussão antes que a janela se fechasse com força. Ele deitou-se no banco de pedra e ali ficou de braços pendentes, a tanga vermelha escorrendo água, os olhos cerrados. Passou cariciosamente as pontas dos dedos no peito onde os pelos dourados de sol já começavam a secar. Riu silenciosamente enquanto apanhava o copo que deixara no chão: seus movimentos se fragmentava em câmera lenta, calculados. No jantar, antes mesmo de provar a comida, despejou o sal, o molho inglês, a pimenta e bateu palmas vigorosas para os três velhos músicos - um pianista, um violinista e o careca do rabecão - que tocaram antigas peças que alguns hóspedes (poucos desceram para o jantar) ouviram imperturbáveis. Achou um certo amargor na goiabada com queijo.

Ao se deitar, depois de ter tomado o chá-de-estrada servido às vinte e uma hora, ele já não se sentia bem.


Conto de Lygia Fagundes Telles retirado do livro Mistérios, Editora Nova Fronteira, 4ª edição, 1981.

sábado, 12 de setembro de 2020

A Presença de Deus

 Em plena glória da Criação o homem vê,  ouve, sente, pensa e, não poucas vezes, dá-se conta da presença de Deus.

Busca-O na dor, roga-Lhe auxílio quando se lhe debilitam as forças, suplica-Lhe soluções para os problemas que engendra, e tomba na revolta caso não seja atendido no que deseja e conforme aspira. A sua imaturidade psicológica supõe-nO um ser com pendores protecionistas e com paixões humanas, capaz de conceder privilégios a uns em detrimento de outros, simultaneamente portador de caprichos que se exteriorizam em indiferença pelas criaturas como desforços e vinganças ao encontrar-se contrariado...

A concepção antropomórfica permanece, ressumando a ideia de um Deus aos homens semelhante.

Normalmente ficam de lado, nos programas de reflexões, os pensamentos e análises sobre a Divindade.

Aqueles que a aceitam fazem-no por automatismo; aqueloutros que a negam não se preocupam em reconsiderar os conceitos. Dizem-se brigados, há muito tempo, decepcionados. Outros, porém, desistem de meditar em torno da questão, porque se creem incapazes de qualquer entendimento.

Nessas diversas posturas mentais defrontamos a acomodação e a indiferença. Para quem assim se comporta, Deus é uma questão para oportunamente, para depois...

Alguns indivíduos, que se acreditam intelectualizados, afirmam que já superaram o tema e não têm necessidade de Deus: são autossuficientes. Outros, apegam-se-Lhe com uma fé ingênua, atávica, e não podem passar sem chamar-Lhe o nome, em dependência irracional.

Deus, porém, está em tudo e mantém o Universo.

Desde as leis soberanas que governam o Cosmo até aqueloutras que agregam e especificam as micropartículas.

Mais de duzentos bilhões de astros na Via Láctea voluteiam ante a grandeza de cem milhões, aproximadamente, de galáxias, movendo-se no infinito do tempo e do espaço, sustentadas pelo equilíbrio em toda parte vigente.

Universos paralelos, quasares, buracos negros desafiam as mentes humanas, que somente agora os detectam, misteriosos, portadores de informações que surpreendem as mais audaciosas concepções sobre a sua origem e a da vida universal.

Mergulhando na incomensurável grandeza da Criação, o homem aceita o fato consumado sem mais amplas e profundas análises.

Se a mente, porém, se detém a considerar o que a rodeia, não pode sopitar considerações e passa a identificar mais proximamente a presença de Deus:

No extraordinário mecanismo do instinto dos animais e na habilidade específica de cada um para a reprodução e a sobrevivência.

Na assimilação clorofiliana dos vegetais e mecanismos que levam uma débil raiz e fender uma pedra ou lhe permitem transformar húmus e água em perfume, açúcar e madeira.

No sistema ecológico de preservação da vida e nas multifárias espécies que lhe constituem o harmônico e precioso conjunto.

Na gigantesca força que, periodicamente, irrompe no planeta, reestruturando-o, acomodando-lhe camadas ou canalizando correntes aéreas, a exteriorizarem-se em calamidades, tais as erupções vulcânicas, os terremotos, os maremotos, os furacões.

Na previdência que envolveu o orbe com as camadas de oxigênio e ozônio, a fim de que a vida pudesse manifestar-se e manter-se.

Em milhares de razões que estão diante dos olhos e dos demais sentidos, falando sobre Deus...

Por outro lado, a reflexão em torno da extraordinária maquinaria eletrônica do cérebro com os seus bilhões de neurônios; das glândulas de secreção endócrinas; dos conjuntos circulatório e respiratório, o primeiro, autorreparador, substituindo capilares e protegendo os cortes com fibrina, mediante coágulos-tampão; do aparelho digestivo com a peculiaridade da enzima ptialina iniciando, na boca, o milagre da transformação dos alimentos; dos demais órgãos dos sentidos e toda a gama das percepções paranormais, facultam que a presença de Deus se faça captada, sentida e vivida.

Todavia, se alguma dificuldade te surge para entendê-lO, ama-O, entregando-Lhe o coração e a vida, conforme lecionou Jesus com ternura e emoção ao denominá-lO Nosso Pai.


Texto retirado do livro Momentos de Iluminação. Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis. Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 4ª Edição, 2015.

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Apenas Sorria!

Muitas pessoas conhecem O Pequeno Príncipe, um bonito livro escrito por Antoine de Saint-Exupéry. É um livro fantástico e lendário, que funciona tanto como história infantil quanto fábula que leva os adultos à reflexão. Porém, poucos conhecem os outros escritos, novelas e contos de Saint-Exupéry.

Ele foi um piloto de guerra que lutou contra os nazistas e foi morto em combate. Antes da Segunda Guerra Mundial, lutou na guerra civil espanhola contra os fascistas. Escreveu uma história fascinante sobre essa experiência intitulada "O sorriso". É esta história que eu gostaria de compartilhar com vocês agora. Não está claro se ele tencionava escrever uma história autobiográfica ou uma história de ficção. Prefiro acreditar na primeira hipótese.

Segundo sua história, ele foi capturado pelo inimigo e lançado numa cela de prisão. Estava certo de que, pelos olhares desdenhosos e pelo tratamento rude que recebeu de seus carcereiros, seria executado no dia seguinte. A partir daqui, contarei a história conforme me lembro, com minhas próprias palavras.

"Eu tinha a certeza de que seria morto. Fiquei terrivelmente nervoso e  perturbado. Remexi em meus bolsos para ver se havia algum cigarro que tivesse escapado à revista. Encontrei um e, por causa de minhas mãos trêmulas, mal podia levá-lo aos lábios. Mas eu não tinha fósforos; estes eles haviam levado.

Olhei através das grades para meu carcereiro. Ele não respondeu ao meu olhar. Afinal, não se estabelece contato visual com uma coisa, um cadáver. Eu gritei para ele: 'Tem fogo, por favor?' Ele olhou para mim, encolheu os ombros e veio até onde eu estava para acender meu cigarro. Ao se aproximar e acender o fósforo, seus olhos inadvertidamente se cruzaram com os meus. Naquele momento eu sorri. Não sei por que fiz isso. Talvez por nervosismo, talvez porque quando se está realmente perto de alguém, é muito difícil não sorrir. Em todo o caso, eu sorri. Naquele instante foi como se uma faísca saltasse no espaço entre nossos dois corações, nossas duas almas. Sei que ele não queria, mas meu sorriso saltou por entre as grades e gerou um sorriso em seus lábios também. Ele acendeu meu cigarro, mas permaneceu perto, olhando-me diretamente nos olhos e continuando a sorrir.

Continuei sorrindo para ele, agora consciente da pessoa e não apenas do carcereiro. E seu olhar para mim também parecia ter uma nova dimensão!

- Você tem filhos?, ele perguntou.

- Sim, aqui, aqui. Tirei minha carteira e procurei nervosamente as fotografias de minha família. Ele também puxou as fotos de seus "niños" e começou a falar sobre seus planos para eles. Meus olhos se encheram de lágrimas. Eu disse que temia nunca mais ver minha família novamente, nunca ter a chance de vê-los crescer. Lágrimas também afloraram em seus olhos.

De repente, sem qualquer outra palavra, ele destrancou minha cela e silenciosamente me conduziu para fora. Uma vez fora da prisão, conduziu-me silenciosamente por estradas secundárias, para fora da cidade. Lá, nos limites da cidade, ele me libertou, e sem nenhuma outra palavra, voltou em direção à cidade.

'Minha vida foi salva por um sorriso'."

Sim, o sorriso - a conexão verdadeira, espontânea e natural entre as pessoas. Conto esta história porque aprendi com ela. Realmente acredito que se nós nos reconhecêssemos como pessoas, desconsiderando nossos títulos, cargos, status, não teríamos inimigos. Não poderíamos ter ódio, inveja ou medo. A história de Saint-Exupéry fala daquele momento mágico em que duas almas se reconhecem.

Um sorriso genuíno dirigido a outra pessoa diz um bocado de coisas. Diz: "Eu o aceito como você é, de maneira incondicional." Quando você sorri para uma outra pessoa, ela se sente valiosa, importante e digna. Sente-se melhor em relação a si mesma. E o que custa a você é um simples sorriso, uma expressão de autêntica cordialidade.

Vamos, sorria!

Texto de Daniel Carvalho Luz retirado do livro Insight, DVS Editora, 2001.

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Como uma rainha de Micenas

Tendo falecido a esposa muito amada, desejou que partisse para a última viagem com o fausto de uma rainha. Rodeou-lhe o pescoço de gargantilhas e colares que desciam sobre o peito ocultando as vestes. Encheu-lhe de anéis os dedos que não mais dobrariam falanges. E brincos, pulseiras, enfeites cobriram aquele corpo agora mais resplandecente do que em vida. Depois, para que nada lhe faltasse na longa travessia, depositou ao seu redor jarros, pratos, taças, talheres do mais puro ouro, sem esquecer pentes e um espelho para a sua vaidade.

A ideia de aparta-se da esposa para sempre era-lhe, porém, insuportável. Querendo-a pelo menos ao alcance da sua saudade, mandou construir no canto mais frondoso do jardim uma capela, em cuja cripta de pórfiro abrigou o esquife, separado dele apenas por um portãozinho de ferro batido.

E disposto a enfrentar o luto interminável, começou o aprendizado de uma nova vida em que a voz amada não ecoaria.

Talvez justamente devido a esse silêncio, cedo surpreendeu-se com a rapidez com que aprendia. A vida parecia-lhe de fato mais nova a cada dia. Nem bem um ano tinha-se esgotado, quando lhe ocorreu que, como ele tanto havia avançado, também a esposa teria a essa altura cumprido parte de sua viagem. Pelo que já não lhe seriam necessárias algumas das coisas que consigo levara para uso simbólico. Em ranger de ferros, entrou na cripta e selecionou uns poucos pratos, um frasco, sem dúvida devidamente usados no além.

Desse modo, foi sucessivamente recolhendo os objetos de ouro que, gastos pela defunta e já sem serventia para ela, afiguravam-se como muito proveitosos para si. Um garfo hoje, uma taça amanhã, um pente agora, um jarro depois, acabou enfim chegando às joias pessoais.

Na semiescuridão da cripta, pulseiras e adereços brilhavam frouxamente, folgados os anéis nos dedos descarnados, pousada ainda a tiara sobre a fronte. Joias demais, pensou ele contrito. Sem dúvida, nada condizentes com uma mulher que, onde quer que se encontrasse, estaria entrando na velhice. Assim pensando, retirou as mais pesadas. Voltando tempos depois para buscar as menos comprometedoras. E por último as insignificantes. Até chegar ao despojamento total.

No esquife, agora, restava apenas o espelho de ouro. Mas de que serve um espelho para uma mulher simples e velha, já despida de vaidades? perguntou-se.

Tendo pronta a resposta, pegou o espelho pelo cabo, e saiu sem fechar o portão atrás de si.

Conto de Marina Colasanti retirado do livro Contos de Amor Rasgados, Editora Rocco, 1986.

segunda-feira, 31 de agosto de 2020

A história de Sadkó

Há muito, muito tempo, na bela cidade de Nóvgorod, à beira do lago Ilmen, viviam muitos comerciantes e mercadores, que levavam vida opulenta, de comemorações, festins e banquetes, nos quais se regalavam e se entretinham com música, cantos e danças, em contínua ostentação de riqueza e prosperidade.

Naquela época, vivia na mesma cidade um jovem de nome Sadkó, pobre e sozinho no mundo, cuja única riqueza era o seu talento musical e sua gusli, harpa de vinte e três cordas, das quais sabia tirar as mais belas e encantadoras melodias. Por isso, Sadkó era muito requisitado para as festas dos ricaços, que gostavam de ouvi-lo e sempre o recompensavam com algumas delícias das suas mesas e algumas moedas dos seus bolsos com o que ele ia levando a vida despreocupado.

Mas chegou um tempo em que os convites começaram a rarear, e um dia cessaram de todo. Sadkó esperou uma semana inteira, mas os inconstantes senhores pareciam tê-lo esquecido, e o pobre moço, sentindo-se abandonado pela sorte, foi curtir sua tristeza à beira do lago plácido, onde se pôs a tocar a sua gusli, para tentar esquecer as mágoas.

Porém, coisa estranha: assim que ele começou a dedilhar seu instrumento, o lago, sempre tão sereno, começou a ficar agitado. As águas se encrespavam em ondas cada vez mais violentas, como se um vento fortíssimo as tangesse, embora o ar estivesse calmo. Sadkó parou de tocar e voltou para a sua casinha, na esperança de receber novo convite para se apresentar em algum banquete ou casamento.

Mas outra semana transcorreu sem nenhum convite, e Sadkó, abatido, retornou à margem do lago, tentando, apesar do medo, abafar com música e tristeza. E de novo, assim que vibraram as cordas da sua gusli, o lago começou a se agitar como se estivesse fervendo, em ondas ainda maiores do que na primeira vez.

Assustado, Sadkó voltou para a cidade, pensando que, quem sabe agora, os ricos mercadores se lembrariam dele. Mas nada disse aconteceu, e algum tempo depois, desanimado, Sadkó foi outra vez para a beira do lago, tentado também pela curiosidade, não obstante o temor que sentia. E desta vez, assim que ele começou a tanger a sua harpa, aconteceu o inesperado: a superfície do lago se rompeu, e, diante dos olhos atônitos do moço, emergiu majestoso o Rei das Águas, que se dirigiu ao rapaz com palavras benevolentes:

- Sadkó - disse a imponente figura -, não tenhas medo. Eu ouvi a tua música, e ela me agradou, tão bela e suave, e desejo recompensar-te pelo prazer que me deste. Volta agora à cidade de Nóvgorod e espera que os mercadores te convidem de novo. Isso ocorrerá logo, e quando te chamarem, tu irás, e lhes dirás que sabes que neste lago existem peixes com escamas e nadadeiras de ouro. E quando eles duvidarem das tuas palavras, tu lhes proporás uma aposta: dirás que apostas a tua própria cabeça, se não conseguires provar o que dizes. Mas se o conseguires, eles terão de te dar três armazéns dos mais ricos tecidos do mercado, em troca de cada peixe daqueles que tiveres pescado.

Sadkó arregalou os olhos, incrédulo e assustado. Mas o Rei das Águas continuou:

- Nada receies, Sadkó. Eles aceitarão a aposta, pois não acreditarão nas tuas palavras, e tu a ganharás, pois quando vieres ao lago com a tua rede de seda, que tu próprio deverás tecer, eu colocarei nela três belos peixes de escamas e nadadeiras de ouro. Adeus, Sadkó.

E o majestoso Rei das Águas desapareceu nas profundezas do lago e Sadkó voltou à cidade, cheio de esperança. E tudo aconteceu como o Rei das Águas lhe havia prometido. No dia seguinte, Sadkó foi convidado para tocar num banquete, e lá, após algumas taças de vinho, ele se vangloriou perante os mercadores de que seria capaz de pescar no lago Ilmen peixes com escamas e nadadeiras de ouro. Os ricos senhores zombaram dele, mas quando ele insistiu, e apostou sua própria cabeça contra três armazéns dos mais preciosos tecidos da cidade em troca de cada um dos peixes pescados, eles aceitaram a aposta. E, no dia seguinte, acompanharam Sadkó, que durante a noite tecera a sua rede de seda, até as margens do lago Ilmen.

Sadkó lançou a rede, com o coração aos pulos, e logo a puxou, sentindo-a pesada - e eis que dentro dela se debatiam, faiscando, três belos peixes de escamas e nadadeiras de ouro!

Sadkó ganhara a aposta e era agora um homem rico - na verdade, o homem mais rico de Nóvgorod, pois era dono de nove armazéns dos mais belos e preciosos tecidos de todo o principado. E Sadkó começou a levar uma vida de rei. Casou-se com uma linda donzela e foi morar num palácio deslumbrante, teve filhos e filhas. E tornou-se dono e proprietário de uma frota de trinta navios mercantes, que singravam os verdes mares, trazendo as mais finas mercadorias - joias, tapetes, peles, tecidos, perfumes - de todas as partes do mundo.

Mas, à medida que foi ficando mais rico, Sadkó foi ficando também cada vez mais cheio de si, mais cheio de soberba e orgulho, e mais insensível, e até se divertia em arruinar os outros mercadores e comerciantes com a sua concorrência insustentável.

E o tempo foi passando. Até que, certa vez, quando Sadkó voltava de uma das suas viagens para terras distantes, a bordo do navio-capitânia da sua bela frota, viu de repente o mar, até então sereno, encapelar-se furiosamente debaixo de uma tempestade de violência nunca vista. Os navios dançavam como cascas de nozes sobre as ondas revoltas, e a turbulência era tal que parecia querer afundar todos os trinta navios; o perigo era real e iminente.

E súbito Sadkó se deu conta de que nunca agradecera ao Rei das Águas o favor que este lhe prestara. Disse então aos seus marinheiros que achava que o Rei das Águas estava zangado, e que exigia o pagamento de um tributo. E mandou atirar ao mar um grande barril cheio de prata. Mas o mar não se acalmou, e Sadkó mandou atirar nas ondas um grande tonel cheio de ouro. Porém, o mar continuava a se agitar, furioso, e Sadkó pressentiu que o Rei das Águas exigia um sacrifício humano.

Então Sadkó mandou que seus homens tirassem a sorte, e a sorte caiu para ele mesmo. Por três vezes eles jogaram a sorte, e nas três vezes caiu para Sadkó o sacrifício a ser feito. Era o seu destino inexorável, e Sadkó então deixou ordens para distribuir os seus bens em quatro partes: uma parte para as igrejas, outra parte para os pobres, a terceira para a sua esposa e filhos, e a quarta para os seus companheiros de viagem. E, levando apenas as ricas roupas no seu corpo e a sua inseparável harpa gusli, Sadkó se despediu dos companheiros e se atirou às ondas revoltas do mar encapelado, pensando que ia morrer.

E perdeu os sentidos. Mas quando voltou a si, viu-se no fundo do mar, diante dos portões abertos do palácio do Rei das Águas, que veio ao seu encontro para recebê-lo. E a majestosa figura lhe disse que, depois de tanto tempo, ficara com saudade dos maviosos sons da sua harpa gusli e queria que Sadkó tocasse para ele - por isso o trouxera para o seu palácio.

Sadkó então tocou para o Rei das Águas, e o Rei das Águas, entusiasmado, começou a dançar. E dançava tão freneticamente que na superfície de todos os mares as águas se agitavam e desencadeavam ondas e vagalhões enormes. Tempestades violentas afundavam os navios nos sete mares e causavam grandes desgraças e catástrofes no mundo inteiro. E Sadkó não podia parar de tocar, e o Rei das Águas dançava cada vez mais e mais.

E então, após três dias e três noites nesse terror, de repente Sadkó sentiu a mão de um ancião de barbas grisalhas tocar no seu ombro, e este sussurrou ao seu ouvido:

- Para de tocar, Sadkó, quebra as cordas do teu instrumento e diz ao Rei das Águas que a gusli não tem conserto. Só assim ele para de dançar, e cessarão os naufrágios e as desgraças que estão assolando os mares por causa desta dança selvagem.

Sadkó se deu conta, subitamente, do que estava acontecendo, viu os navios afundados e as pessoas mortas, as viúvas e os órfãos, e, obedecendo ao conselho do ancião, fez um esforço sobre-humano e parou de tocar, e rompeu as cordas da sua preciosa harpa. E a dança enlouquecida do Rei das Águas teve fim, e a paz e a calma voltaram aos sete mares.

O Rei das Águas, satisfeito e apaziguado, ainda convidou Sadkó a ficar na sua corte, e até lhe ofereceu a mão de uma das suas filhas em casamento. Mas Sadkó disse que tinha esposa e filhos em terra, e então, depois de um festivo banquete de despedida, ele caiu num sono profundo.

Quando Sadkó despertou, no dia seguinte, viu-se deitado à beira do lago Ilmen, perto de Nóvgorod. E, com grande surpresa, viu seus trinta navios chegando inteiros a terra firme.

Os marinheiros, ao verem-no ali, incólume, se espantaram muito, pois pensavam que ele tivesse morrido afogado quando se atirara ao mar revolto durante aquela borrasca...

Foi tudo como uma magia - mas aconteceu mesmo. E Sadkó voltou ao seu palácio, onde ofereceu uma grande festa de retorno, e dali em diante deixou a soberba e o orgulho e viveu uma vida moderada e caridosa, no seio da sua família, benquisto e respeitado por toda a cidade de Nóvgorod.

Texto retirado do livro Sete Contos Russos, recontados por Tatiana Belinky, Companhia das Letrinhas, 3ª Edição, 1997.

domingo, 30 de agosto de 2020

O Prazer de Ler

Ler pode ser uma fonte de alegria. "Pode ser". Nem sempre é. Livros são iguais a comida. Há os pratos refinados, como o cailles au sarcophage, especialidade de Babette, que começam por dar prazer ao corpo e terminam por dar alegria à alma. E há as gororobas, malcozidas, empelotadas, salgadas, engorduradas, que além de produzir vômito e diarreias no corpo produzem perturbações semelhantes na alma. Assim também os livros.

Ler é uma virtude gastronômica: requer uma educação da sensibilidade, uma arte de discriminar os gostos. O chef prova os pratos que prepara antes de servi-los. O leitor cuidadoso, de forma semelhante, "prova" um pequeno canapé do livro, antes de se entregar à leitura.

Ler sem gostar é prova de doidice. Pelo menos, é o que Adélia Prado pensa: " A televisão está mostrando o hospício, a doida falando: 'Quero voltar pra casa de portão azul'. Quem fala assim não pode ser doido não. Mais doido pra mim é quem fala como o Ednaldo: 'Tou lendo um livro muito ruim, mas vou até o fim...' "

Contra os professores de literatura que gostam de ser durões e argumentam que há muito livro duro de roer (a própria expressão está dizendo: nem é de comer; é de roer; objeto apropriado à dieta de ratos e castores) que tem de ser roído de qualquer forma (vai cair na prova, no vestibular), eu cito Borges. Ele conta que, quando foi professor de literatura na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires, recusava-se a dar bibliografia a seus alunos. "Não é preciso bibliografia. Afinal Shakespeare desconhecia completamente a bibliografia shakespeariana." E lhe perguntava: "Por que vocês não estudam diretamente os textos? Se tais textos lhe agradam, ótimo. Caso contrário, não continuem, pois a leitura obrigatória é uma coisa tão absurda quanto falar em felicidade obrigatória".

Quando minha filha começou a fazer suas primeiras incursões no campo da literatura adulta (desde muito cedo eu a introduzi aos prazeres da literatura infantil), ela teve de ler, como tarefa de casa, o livro de Stendhal O vermelho e o negro (1830). Trata-se de um desses livros duros de roer, tradução do francês, que provocou as mais variadas convulsões estomacais-cerebrais não só em minha filha como também em seus colegas de classe, sobrando as perturbações para os pais, que tinham de vir em socorro dos filhos desamparados, obrigados a comer à força aquela terrível refeição de jiló cozido e nabo cru. Escrevi para o jovem professor (os professores jovens são terríveis; eles ainda não se desembaraçaram do cipoal de teorias aprendidas na universidade, têm sempre muita coisa a provar, e acreditam demais no que pensam saber) falando de meu amor à literatura, de meu desejo de que minha filha aprendesse o prazer da leitura, citei Borges e sugeri que havia uma infinidade de outros livros que seriam de paladar delicioso aos adolescentes: excelentes aperitivos para quem está começando. Ele me respondeu, imperturbável, que seu objetivo era desenvolver uma consciência crítica e que os alunos teriam mesmo de mastigar, engolir e digerir o jiló cozido e o nabo cru. E assim foi.

Percebi que ele era professor. Traduzido em nossa linguagem gastronômica: ele não era um cozinheiro; era um dieticista. É preciso que se saiba que cozinheiros e dieticistas, embora ambos envolvidos em cozinhar, são inimigos radicais. Parece que estão fazendo a mesma coisa. Mas o que um faz nada tem a ver com o que o outro faz. Os dieticistas estão interessados em alimentar de maneira científica aqueles que comem. Medem vitaminas, proteínas, carboidratos, sais minerais, colesterol. Para eles isso é a substância da refeição. Os temperos, cheiros e sabores, eles os usam como disfarces, a fim de que a coisa seja comida. Sua presença é indispensável em hospitais, e ali se encontram como auxiliares dos médicos e enfermeiras. Os cozinheiros, ao contrário, não estão interessados em alimentar. Estão interessados em produzir prazer e felicidade. Temperos, cheiros e sabores, para eles, não são disfarces: são a própria coisa. A culinária é o kama-sutra da boca, o livro dos prazeres da boca. Cozinheiros são auxiliares dos amantes. A comida que sai das mãos do dieticista é uma coisa de necessidade. A comida que sai das mãos do cozinheiro é uma coisa de amor.

Ele era um professor de literatura. Não era um escritor. (Eis aqui uma dialética complicada: de um lado o escritor, aquele que escreve, que faz a coisa; do outro aquele que não faz a coisa, mas faz ciência daquilo que o outro fez: o pianista e o crítico, o filósofo e o professor de filosofia.)

Literatura a fim de produzir consciência crítica. Quem escreve não escreve a fim de. Para aquele que cria, sua obra é um fim em si mesmo. A literatura não tem objetivos além de si mesma. O prazer da leitura é seu próprio fim. Creio que foi Monet quem se queixou  daqueles que perguntavam sobre o sentido de seus quadros. E disse algo parecido com: "Não pintei quadros para que tivessem sentido. Pintei quadros para que aqueles que os vissem achassem bonitos". A literatura não tem objetivos pedagógicos. Não tem por objetivo a comunicação de ideias. Ela não é uma forma indireta de inculcar verdades que poderiam ser comunicadas de maneira direta em livros de ciência ou filosofia. Um escritor não escreve para comunicar saberes. Escreve para comunicar sabores. O escritor escreve para que o leitor tenha o prazer da leitura. O texto tem de dar provas de que me deseja, dizia Barthes. O texto me deseja? Coisa gastronômica: o prato tem de ser uma provocação do desejo. A prova de que o texto me deseja está no prazer que ele produz em mim. Quando sou forçado a interromper a leitura, fico triste. Essa é a prova do prazer que o texto me causa. Que professor se atreveria a perguntar, numa prova: "Você fica triste quando para de ler o livro?"

É possível, nas escolas, dar informações sobre a literatura. Mas não é possível ensinar a amá-la. Paul Goodman, um controvertido pensador norte-americano, diz: "Nunca ouvi de qualquer método, escolástico ou outro qualquer, para ensinar a literatura (humanities) que não terminasse por matá-la. Parece que a sobrevivência do gosto pela literatura tem dependido de milagres aleatórios que estão ficando cada vez menos frequentes".

Concordo com ele. São raros, raríssimos, aqueles que pelo estudo escolar das coisas relativas à literatura tenham sido levados a amar a leitura. A razão para isso é simples: tudo, em nossas escolas, está orientado no sentido de testar saberes. A questão do amor pelo objeto - seja a geografia, a história, as ciências - é estranha aos nossos objetivos educacionais. Não admira que, passados os vestibulares, quase tudo seja esquecido e os livros sejam esquecidos nas estantes. Às escolas e aos pais pouco importa o prazer que o aluno possa ter. O que importa é o boletim.

Ler pode ser uma fonte de alegria. Por isso mesmo tenho dó das crianças e dos adolescentes que, depois de muito sofrer nas aulas de gramática, análise sintática e escolas literárias, saem das escolas sem ter sido iniciados nos polimórficos gozos da leitura. É como se lhes faltassem órgãos de prazer. São castrados. Não podem penetrar no campo de prazer que é o livro nem sentir o prazer de ser penetrados por ele. Sabem ler, mas são analfabetos. Porque, como dizia Mário Quintana, analfabeto é precisamente aquele que, sabendo ler, não lê.

Texto de Rubem Alves retirado do livro Entre a ciência e a sapiência - o dilema da educação, Edições Loyola, 7ª Edição, 2002.

sábado, 29 de agosto de 2020

Valor da Meditação

Ao principiante desabituado, parece difícil a saudável tarefa de meditação.

Certamente que todo labor em começo, passado o entusiasmo inicial, se apresenta de complexo prosseguimento.

Acostumado à variedade de pensamentos, especialmente os vulgares, que se alternam com celeridade, substituindo-se de modo contínuo, é perfeitamente natural que a fixação de uma ideia edificante se apresente como verdadeiro desafio.

Indispensável, para o êxito do tentante, a motivação, cuja carga emocional canaliza com segurança o interesse do candidato.

O profano que tem as suas atrações nas questões mortais para o Espírito, mais estimulado pelas sensações do que pelas emoções, após algumas tentativas infrutíferas, desiste da meditação, decepcionado.

Crê ser impossível consegui-la.

No inconsciente está a evadir-se da experiência nova, saudoso dos hábitos fortes a que se acostumara.

Bastaria, no entanto, que porfiasse no treinamento e os resultados o surpreenderiam agradavelmente.

Nunca, em qualquer outro tempo, o homem experimentou tanta necessidade de meditação quanto ocorre em nossos dias.

A luta pela sobrevivência, mais exaustiva e violenta, requer caracteres calmos e disciplinados, a fim de não sucumbirem ante os fatores que comprimem a vontade ou a levem a explosões temperamentais danosas.

A meditação dulcifica a aspereza da luta, harmonizando o intelecto com o sentimento e acalmando o homem.

Não será, porém, por efeito de uma ou outra experiência mágica, de cujos resultados imediatos se beneficiará o indivíduo, antes, através de expressivo esforço.

A disciplina, a frequência do exercício, o conteúdo de que se reveste a temática, são essenciais ao êxito do empreendimento.

Toma de uma página do Evangelho de Jesus, lê pausadamente, digerindo-lhe o significado, e concentra-te nela, fixando-a.

Retira todo o superior contingente de informações e reflexiona em cada mensagem que se te revele.

Insiste em evocar-lhe a forma, o sentido e como te poderá ser útil.

Analisa-a, sem pressa, após o que, medita em torno do seu conjunto, por fim, no Espírito que te apresenta.

Habitua-te a este pequeno mister e estarás iniciando a meditação que te levará à paz de consciência e à alegria de viver.

Meditando com regularidade, age com inteireza moral, sem afronta ao programa interior, assim evitando conflitos e confrontos entre o que constróis na área psíquica com aquilo que realizas no campo físico.

Mesmo que disponhas de pouco tempo, utiliza-o para a meditação, descobrindo, logo depois, que, assim agindo, o tens dilatando, benéfico.

A meditação abrir-te-á as portas para a perfeita união com Deus, que a oração te facultará.

Texto retirado do livro Momentos de Esperança. Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador,  3ª edição, 2014.