domingo, 22 de outubro de 2023

O gênio maldito

Negro, boêmio, rebelde, alcoólico, pobre, anarquista, insano. Essas são as credenciais do visionário Lima Barreto, autor de Triste Fim de Policarpo Quaresma, que o Brasil teima em esquecer.


Em 2017 falaram dele. Esteve em todos os grandes cadernos de literatura ou culturais. Menos por sua obra que pela grandeza do evento que o homenageava, a Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) de 2017. De repente, o negro, boêmio, rebelde, alcoólico, pobre, anarquista, internado duas vezes em um manicômio, ganhava o status que sempre mereceu: o de grande escritor brasileiro.

Mas passou. Próximo de completar dois anos quase ninguém mais fala em Lima Barreto. O esquecimento parece uma constante quando o assunto é esse escritor, que com o tom formal do Parnasianismo, antes de os modernistas darem o tom, a partir de 1922.

Neto de escravos e filho de pais livres, nascido no dia 13 de maio de 1881, na mesma data em que sete anos depois a Lei Áurea colocaria um fim na escravidão, Lima abordou o tema a partir de sua própria experiência. Sua obra, nesse sentido, é extremamente autobiográfica.

Affonso de Henriques de Lima Barreto teve uma infância conturbada: a mãe, uma negra livre, morreu quando ele tinha sete anos, a isso seguiu-se a demência do pai, e, segundo um de seus mais célebres biógrafos, Francisco de Assis Barbosa, um acontecimento teria marcado profundamente sua infância de menino mulato, órfão e descendente de escravos: a assinatura da Lei Áurea e os festejos da Abolição, no dia em que completou sete anos. Já não se diria o mesmo de outra data simbólica: o dia 15 de novembro de 1889. Sobre seu significado, o próprio Lima Barreto afirmou, em crônica incluída na obra póstuma Coisas do reino do Jambon, que "via-a com desgosto", acentuando que, com o regime republicano ali inaugurado, o Brasil se tornara "uma vasta comilança"; era "a subida do partido conservador ao poder, sobretudo da parte mais retrógrada dele, os escravocratas de quatro costados".

Não espere de Lima Barreto uma literatura fácil, palatável. Enquanto seu contemporâneo, o enorme Machado de Assis, também negro e de origem humilde, era aclamado pelos críticos por sua literatura elegante e dentro das normas, Lima, com sua escrita à flor da pele negra, com seu vocabulário das ruas, incomodava. É quase possível sentir a textura dos cabelos de seus personagens, sentir a fé que professam, a maneira como vivem, o tipo de habitação. Com isso, Lima Barreto antecipa-se mais de um século e faz uma literatura negra por opção. Ela já falava de feminicídio, corrupção, racismo naquela época. Por isso, sua obra transpira atualidade. Para a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, autora da biografia Lima Barreto: Triste Visionário, lançada junto à FLIP 2017, "... os personagens, nas tramas, em escritos pessoais, a atenção para a questão racial e as descrições dos tipos físicos dos personagens estão sempre em evidência", frisa.

Isso em uma época - o começo do século XX - em que mestiços e negros eram considerados biologicamente mais fracos. Lima vai na contramão do conceito e deixa isso bem claro em seu Diário, em 1904: "A capacidade mental do negro é medida a priori, a do branco a posteriori"


CACHAÇA, LITERATURA E MANICÔMIO


Em 1914, Lima Barreto foi internado pela primeira vez no Hospício Nacional, no Rio de Janeiro, com o diagnóstico de alcoolismo. O branqueamento de algumas celebridades e alguns intelectuais corria solto. Com Lima foi assim: em sua ficha lia-se branco, abaixo sua foto desmentia a descrição. Mas se para alguns isso parecia benéfico, não a ele, que a questão da negritude e de o Brasil ser o último país a abolir a escravidão do mundo foram temas centrais em sua obra.

Recordações do escrivão Isaías Caminha, seu primeiro livro, publicado em 1909, já dizia a que vinha. Ácido, não fazia concessões: atacava a sociedade carioca, e nem mesmo os mandachuvas do jornalismo foram poupados, a ponto de O Jornal do Commercio, o mais influente da época, proibir que se escrevesse uma linha a seu respeito. Em pouco tempo, toda a imprensa seguia o ditame. Portanto, Lima viu-se com o livro embaixo do braço e sem divulgação. Apenas José Veríssimo, um dos maiores críticos e historiadores da literatura brasileira, debulhou-se em elogios para Recordações... Lima Barreto foi fino e retribui-lhe a gentileza indo visitá-lo em sua residência.

Sua obra mais conhecida - e hoje admirada pelos estudiosos -, Triste Fim de Policarpo Quaresma, saiu em 1911. Mas não havia quem quisesse arriscar a editá-lo, fato que só aconteceu em 1915. E dessa vez - talvez graças aos esforços de José Veríssimo - foi bem recebido pela crítica.

O romance foi publicado inicialmente em folhetim pelo próprio Jornal do Commercio, que havia batido a porta em sua cara, anos antes. O protagonista de Triste Fim... é o retrato de um nacionalismo patético e ufanista, ao qual Lima Barreto, ao qual Lima Barreto se opunha veementemente. A história traz uma crítica mordaz à perversão dos ideais republicanos pelos militares e grandes fazendeiros. O maior atingido por esse livro foi o presidente Floriano Peixoto.

O nacionalismo do major Policarpo Quaresma deságua em grande confusão, quando ele é condenado por traição à pátria, crime que ele não cometeu. O subsecretário do Arsenal de Guerra, nacionalista até a raiz dos cabelos, começa a se interessar por tudo que acha genuinamente brasileiro: tocar violão, instrumento marginalizado no fim do século XIX, aprende tupi-guarani, passa a estudar folclore, usos e costumes dos índios. O tupi-guarani o fascina tanto que o subsecretário envia um requerimento à Câmara solicitando que a língua indígena passe a ser oficial no Brasil. É considerado louco, e para em um manicômio.

O mesmo acontece com Lima Barreto. Nem mesmo a boa recepção da crítica e público o tiram do atoleiro em que se meteu: além das dificuldades financeiras, o escritor estava bebendo cada vez mais. E viver de literatura somente nunca foi fácil por aqui: em 1922 foram lançados em folhetim O Chamisco ou O Querido das Mulheres, Entra Senhórr! e no final do ano As Aventuras do Doutor Bogóloff. Para comer , pagar seu aluguel e a conta do bar, trabalhava como amanuense, na Secretaria da Guerra, algo como os escreventes de hoje. Já não estava bem. Ácido, teria proferido: "O Brasil não tem povo, tem público".

Em 1914 começa a ter alucinações. É quando o rebelde acaba internado no manicômio pela primeira vez. Numa e Ninfa foi escrito logo após Lima ter saído do hospício, no final daquele ano, e publicado pelo jornal A Noite, também como folhetim, entre março e julho de 1915. No seu Diário, no começo de 1917, ele relata que está novamente tendo problemas com a bebida. É internado no Hospital Central do Exército devido a contusões obtidas por causa das alucinações e, em 1919, já aposentado do funcionalismo público, volta para o Hospital Nacional dos Alienados, com o mesmo diagnóstico de alcoólico (alcoólatra na época). Dessa vez, suas experiências renderam um retrato ácido e cru sobre as instituições psiquiátricas no Brasil, o livro Cemitério dos Vivos, publicado em 1920.

Em 1922, ano em que as artes no Brasil colocaram tudo de cabeça para baixo, Affonso de Henriques de Lima Barreto morre. Fim do mulato carioca, como era chamado, defensor "das gentes" dos subúrbios, que deixou gravado em seu Diário: "É difícil não nascer branco" e "A raça para os brancos é conceito, para os negros pré-conceito".

É preciso resgatá-lo para sempre.


Texto de Maria Beatriz retirado do revista Língua Portuguesa e Literatura - Conhecimento Prático, Editora Escala, São Paulo, Edição 77, Junho/Julho 2019.

sábado, 21 de outubro de 2023

Profissão de risco

Há alguns anos, tem-se percebido aumento da procura por atendimento psiquiátrico por parte de professores do ensino médio de escolas públicas, sejam elas municipais ou estaduais. Depressão, ansiedade e transtorno de estresse pós-traumático têm sido os principais diagnósticos para esses trabalhadores, e, não raramente, muitos deles acabam necessitando permanecer afastados do trabalho por longos períodos.

E por qual motivo? O nome da "doença" que causa essa doença é violência. O professor tem sido vítima de vários tipos de violência, um monstro de várias cabeças que não ataca silenciosamente: gestores truculentos e insensíveis; perseguições e assédio moral no ambiente de trabalho; violência psicológica e mesmo física por parte de alunos e até de pais de alunos; remuneração insuficiente, que obriga professores a cargas horárias triplas, exaustivas e inviáveis do ponto de vista da saúde. Tudo isso muitas vezes vem em bloco e se soma aos problemas na vida pessoal desses que, muitas vezes, escolheram a profissão pelo sonho em exercer a vocação de ensinar, o que tem se tornado cada vez mais difícil nesse contexto tão árido.

A violência não para por aí. Grande parte dos professores que precisa recorrer ao atendimento psiquiátrico nos hospitais aos quais têm direito se vê desamparada e descoberta de um atendimento de qualidade. E quando necessitam se afastar do trabalho, têm seus direitos muitas vezes negados, com suspensão e negativas de licenças. Além disso, quando afastados do trabalho, perdem muitas das premiações, e seus rendimentos são drasticamente reduzidos em um momento bastante crítico da vida.

O cenário é bem crítico, e as soluções parecem cada vez mais difíceis de ser encontradas. Aos iniciantes na carreira, pode ser um pouco mais fácil, porque há mais chances de esse professor encontrar novos caminhos profissionais, seja na rede de ensino privado, seja até mudando de profissão; mas como resolver o dilema de professores que dedicaram a vida ao ensino e suas opções profissionais se encontram mais estreitas? Em um momento em que o ensino público  encontra-se cada vez mais sucateado, a saúde psíquica dos nossos mestres vai sendo cada vez mais estrangulada.

Mais recentemente, um novo ataque: a chamada "Escola sem partido" e o aumento da vigilância sobre o livre pensamento daqueles que teriam por função primordial desenvolver o senso crítico e a capacidade de reflexão nas mentes dos indivíduos em formação.

Diante de problemas tão complexos, o risco de adoecer mentalmente torna-se uma rápida e crescente realidade. Entretanto, uma vez que se adoece, é imprescindível buscar tratamento, sendo que, muitas vezes, o apoio psiquiátrico com medicação faz-se necessário. Além disso, o apoio psicológico é de fundamental importância, porque é preciso, com a ajuda de um profissional capacitado, fortalecer-se para poder garantir a volta ao trabalho ou até tomar decisões que envolvam novos rumos profissionais.

Mas, antes de adoecer, é recomendável que esses profissionais procurem apoio psicológico preventivo: psicoterapias, atividade física, atividade artísticas e de lazer podem funcionar como válvulas de escape par o estresse ocupacional e afastar as doenças para longe.


Texto de Marcelo Niel retirado da revista Língua Portuguesa e Literatura - Conhecimento Prático, Editora Escala, São Paulo, edição 75, ano 8. Fevereiro/Março 2019.

sábado, 14 de outubro de 2023

A importância da alfabetização midiática

O advento das inovações tecnológicas trouxe como contrapartida novos tipos de problemas para os jovens que as utilizam. O contato com a mídia e a tecnologia acontece cada vez mais cedo devido à facilidade dos nativos digitais em utilizarem smartphones, tablets e computadores. Hoje é comum ver bebês que nem mesmo sabem andar ou falar ainda, mas que já dominam a técnica de passar o dedinho em telas iluminadas. Mas essas ferramentas trazem alguns perigos para a nova geração, como o uso inapropriado das redes sociais até as fake news. Os jovens precisam, portanto, ser educados para aprender a utilizar as novas mídias de forma segura. Eis que surge, então, um novo conceito capaz de mudar a educação básica, permitindo discernir os conteúdos vinculados às mais diferentes mídias. É a media literacy (alfabetização midiática).

O celular é hoje o principal meio utilizado por 49% da população brasileira para acessar a internet. Uma pesquisa da TIC Kids apontou que 80% dos jovens de 9 a 17 anos utilizam a grande rede. Com isso, a alfabetização midiática surge com o objetivo de desenvolver, em crianças e jovens, a habilidade de pensar sobre as informações que criam e consomem usando os mais diferentes canais de mídia. Isso inclui a possibilidade de distinguir fato de opinião e a capacidade de criar um pensamento crítico com base em uma informação recebida. Hoje, mais do que nunca, alunos precisam ser educados em diferentes tópicos durante sua formação. Dessa forma, esses alunos poderão compreender melhor o papel e as funções da mídia na sociedade.

Nos Estados Unidos e na Europa, o debate sobre a importância da alfabetização midiática está a todo vapor com o aumento das fakes news. O Brasil também já começa a engatinhar nesse assunto. As notícias falsas são um fenômeno mundial; elas têm maior facilidade de ser aceitas quando veiculadas por grupos de conversa instantânea ou compartilhadas nas redes sociais por amigos e pessoas próximas. E essas notícias falsas podem influenciar negativamente o poder de decisão do leitor.

É preciso ensinar crianças e jovens a entenderem que os fatos existem, mas que opiniões são interpretações ou pontos de vista sobre esses fatos. Pais e educadores podem - e devem - instigar esses jovens a fazer perguntas sobre o conteúdo que leem, além de orientá-los sobre a importância de verificar uma notícia antes de tomá-la como verdadeira. Motivar os alunos a pensar se o conteúdo parece verdadeiro; se uma URL parece legítima; se o que é debatido é uma opinião ou uma apuração - tudo isso são ferramentas propostas nesse novo modelo de alfabetização.

A educação mudou, os meios mudaram, e o conteúdo a ser transmitido precisa acompanhar as tendências. Como temos visto, alfabetizar vai bem além de ensinar a ler e a escrever. O bê-á-bá agora é bem mais amplo, e o currículo escolar precisa abranger essas interdisciplinaridades. No entanto, como o educador é, na maioria das vezes, um "imigrante digital" que precisa entender como as novas mídias funcionam, é preciso capacitá-lo para que ele atue com maestria nesse processo. Uma preparação escolar midiática pode ajudar os jovens a selecionarem  mensagem que recebem, navegando, assim, de forma segura, evitando os perigos do mundo virtual.


Texto de Luís Antônio Namura Poblacion retirado da revista Língua Portuguesa e Literatura - Conhecimento Prático, Editora Escala, São Paulo, Edição 74, ano 8. Edições Dezembro 2018/Janeiro 2019.

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Sobre a Inteligência

Trata-se de um poder sem discriminação moral, que desconhece o bem e o mal


Tenho vergonha do que pensei quando adolescente. Mais que vergonha, tenho raiva de mim mesmo, do que fui. Eu fui aquilo que hoje detesto: arrogante e presunçoso. Fui assim por causa das ideias religiosas em que eu acreditava. E me pergunto: "Como é que eu pude acreditar naquelas doideiras?". Fui religioso fundamentalista e acreditei com certeza absoluta na existência do inferno. O Vinícius e o Chico também sofreram perturbação semelhante quando adolescentes.

E eu me pergunto: Onde estava a minha inteligência? Onde estava a inteligência deles?

As histórias das Mil e uma noites me ajudam a entender. Lá se encontram lâmpadas e garrafas onde vivem gênios aprisionados com poderes ilimitados. Se alguém - místico ou bandido, não importa - abre a tampa da garrafa, o gênio sai e se torna escravo daquele que o libertou. O gênio tem o poder dos deuses. Mas não tem vontade própria. Faz o que seu mestre ordena.

O místico lhe dirá que deseja ver Deus. O gênio, sem discutir, o levará ao Paraíso. O bandido dirá que deseja roubar o tesouro de Ali Babá. O gênio o levará até a gruta e a abrirá dizendo "Abre-te Sésamo".

Assim é a inteligência: ela é um poder sem discriminação moral, desconhece o bem e o mal. Tanto pode produzir armas letais como pode produzir vacinas. Para distinguir o bem do mal, a inteligência teria de ser serva da sabedoria. Mas, como o gênio da garrafa, ela é serva do coração do seu dono... A sabedoria mora em outro lugar.

Então o meu problema nada tinha a ver com a minha inteligência, que era então o que ela é hoje. O problema tinha a ver com o coração do dono da garrafa: eu.

A inteligência se parece com as lâmpadas. As lâmpadas servem para iluminar. Para isso são dotadas de potências de iluminação diferentes. Há lâmpadas de 60, 100, 150 watts... Esse número em watts diz o poder de iluminação da lâmpada.

Também as inteligências servem para iluminar. Nos gibis, os ilustradores desenham uma lâmpada acesa sobre a cabeça de alguém que tenha tido uma ideia  brilhante. E as inteligências, à semelhança das lâmpadas, também têm potências de iluminação diferentes.

Os psicólogos inventaram testes com o objetivo de medir o poder de iluminação da inteligência, a que deram o nome de QI. Eu prefiro, em vez de QI, as letras "WI", "wattagem" da inteligência. Essa imagem ilumina mais.

Há WIs as mais diferentes. Inteligências de WI 200 têm um extraordinário poder de iluminação. Havia um professor universitário que se gabava de ter WI 200 e, para provar, mostrava a carteirinha.

Mas as lâmpadas, a gente não fica olhando para elas. Olhamos para o objeto que elas iluminam. Uma lâmpada de 200 watts pode iluminar o rosto de dor de um homem numa câmara de torturas, enquanto uma lâmpada de 60 watts pode iluminar uma mãe embalando o filhinho.

As lâmpadas valem pelas cenas que iluminam e não pelo seu poder de iluminar. Há inteligências de QI 200 que só iluminam esgotos e cemitérios. E há inteligências modestas que iluminam as asas de uma borboleta.

A inteligência, como as lâmpadas, não tem vontade. Ela obedece a mão que direciona o seu foco. É mandada. Como o gênio.

O problema não estava na minha inteligência, mas no objeto que ela iluminava. Doideira. A escolha do objeto não é coisa da inteligência. É coisa do coração, onde mora a sabedoria.


Texto de Rubem Alves retirado do Revista Educação, Editora Segmento, São Paulo, janeiro de 2008,  ano 11, nº 129.

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

A árvore que floresce no inverno

E ele me falou, naquela linguagem que só as plantas entendem, que o inverno de fora não lhe importava


Os sinais eram inequívocos. Aquelas nuvens baixas, escuras... O vento que soprava desde a véspera, arrancando das árvores folhas amarelas e vermelhas. É, estava chegando o inverso. Deveria nevar. Viriam então a tristeza, as árvores peladas, a vida recolhida para funduras mais quentes, os pássaros já ausentes, fugidos para outro clima, e aquele longo sono da natureza, bonito quando cai a primeira nevada, triste com o passar do tempo... Resolvi passear, para dizer adeus às plantas que se preparavam para dormir, e fui, assim, andando, encontrando-as silenciosas e conformadas diante do inevitável, o inverno que se aproximava. E foi então que me espantei ao ver um arbusto estranho. Se fosse um ser humano, certamente o internariam num hospício, pois lhe faltava o senso da realidade, não sabia reconhecer os sinais do tempo. Lá estava ele, ignorando tudo, cheio de botões, alguns deles já abrindo, como se a primavera estivesse chegando. Não resisti e, me aproveitando de que não houvesse ninguém por perto, comecei a conversar com ele. Perguntei se não percebia que o inverno estava chegando, que os seus botões seriam queimados pela neve naquela mesma tarde.

Argumentei sobre a inutilidade daquilo tudo, um gesto tão fraco que não faria diferença alguma. Dentro em breve tudo estaria morto... E ele me falou, naquela linguagem que só as plantas entendem, que o inverno de fora não lhe importava, o seu era um ritmo diferente, o ritmo das estações que havia dentro. Se era inverno do lado de fora, era primavera lá dentro dele, e seus botões eram um testemunho da teimosia da vida que se compraz mesmo em fazer o gesto inútil. As razões para isso? Puro prazer. Ah! Há tantas canções inúteis, fracas para entortar o cano das armas, para ressuscitar os mortos, para engravidar as virgens, mas não tem importância, elas continuam a ser cantadas pela alegria que contêm... E há os gestos de amor, os nomes que se escrevem em troncos de árvores, preces silenciosas que ninguém escuta, corpos que se abraçam, árvores que se plantam para gerações futuras, lugares que ficam vazios, à espera do retorno, poemas inúteis que se escrevem para ouvidos que não podem mais ouvir, porque alguma coisa vai crescendo por dentro, um ritmo, uma esperança, um botão - pela pura alegria, um gozo de amor. E me lembrei de um pôster que tenho no meu escritório, palavras de Albert Camus: "No meio do inverno, eu finalmente aprendi que havia dentro de mim um verão invencível".

E aí a alucinação teológica tomou conta da minha cabeça, e me lembrei de uma velha tradição de Natal, ligada à árvore. As famílias levavam arbustos para dentro das casas. E ali, neve por todas as partes, elas os faziam florescer, regando-os com água aquecida. Para que não se esquecessem de que, em meio ao inverno, a primavera continuava escondida em alguma parte.

Inverno: o frio, a neve, o silêncio, a morte.

Herodes: cascos de cavalos, espadas de aço e queixos de ferro.

Quando as plantas florescem na primavera, ali os homens escrevem os seus nomes. Mas quando as plantas florescem no inverno, ali se escreve o nome do Grande Mistério...


Texto de Rubem Alves retirado do Revista Educação, Editora Segmento, São Paulo, Ano 11, nº 128, Dezembro de 2007.

sábado, 23 de setembro de 2023

Oração de Intercessão

A oração intercessora em favor dos que sofrem, constitui sempre uma contribuição valiosa para aquele a quem é dirigida.

Não resolve o problema nem retira a aflição, que constituem recurso de reeducação; todavia, suaviza a aspereza da prova e inspira o calceta, auxiliando-o a atenuar os golpes do próprio infortúnio.

Ademais, acalma e dulcifica aquele que ora, por elevá-lo às Regiões Superiores, onde haure as emoções transcendentais que lhe alteram para melhorar as disposições íntimas.

A oração é sempre um bálsamo para a alma, que se torna medicação para os equipamentos fisiológicos.

A emissão do pensamento em prece canaliza forças vivas em direção do objetivo almejado, terminando por alterar a constituição de que  se reveste o ser.

Quem ora, encontra-se, porque sintoniza com a ideia divina em faixas de sutis vibrações, inabituais nas esferas mais densas.

Dirigida aos enfermos, estimula-lhes os centros atingidos pela doença, restaurando o equilíbrio das células e recompondo o quadro, que o paciente deve preservar.

Projetada no rumo do atormentado, alcança-o, desde que este se encontre receptivo, como é fácil de compreender-se. E mesmo que ele não sintonize com a onda benéfica que o alcança, não deixará de receber-lhe o conteúdo vibratório.

Alguém que se recusa à luz solar, mesmo assim é bafejado pela radiação e pelas ondas preservadoras da saúde e da vida.

A oração propicia equivalentes resultados salutares.

A oração pelos mortos constitui valioso contributo de amor por eles, demonstração de ternura e recurso de caridade inestimável.

Semelhante a telefonema coloquial, a rogativa lhes chega ungida de afeto que os sensibiliza, e o conteúdo emocional os desperta para as aspirações mais elevadas, que passam a plenificá-los.

Além disso, pelo processo natural de sintonia com as Fontes geradoras da Vida, aumenta o potencial que se derrama, vigoroso, sobre os destinatários, ensejando-lhes abrir-se à ajuda que verte do Pai na sua direção.

Deve-se orar no lar, sem qualquer perigo de atrair-se para o recinto doméstico o Espírito mentalizado, sendo que, pelo contrário, se este permanece aturdido ou perturbado, junto à família, libera-se ou vai recambiado para hospitais e recintos próprios do Além, onde se restabelece e se equilibra.

Demonstra o teu amor pelos desencarnados, orando por eles, recordando-os com afeto e mantendo na mente as cenas felizes que com eles viveste.

Evita evocações dolorosas, que os farão sofrer o impacto da tua mente neles fixada.

Reveste o teu impulso oracional com os reais desejos de felicidade para eles, que se reconfortarão, por sua vez, bendizendo-te o gesto e o sentimento.

Ninguém, que esteja degredado para sempre. Portanto, todos aguardam intercessão, socorro, oportunidade liberativa.

Ora, pois, quanto possas, pelos que sofrem, pelos que partiram da Terra, igualmente por ti mesmo, repletando-te da paz que deflui do ato de comungar com Deus.


Retirado do livro Momentos de Meditação; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 3ª Edição, 2014.

sábado, 16 de setembro de 2023

Firmeza no Amor

Deixa que o amor te luarize o íntimo e aprenderás o real significado da tua existência.

Sob a sua inspiração, terás alento para enfrentar as vicissitudes, porque compreenderás que a transitoriedade dos acontecimentos leva à meta final da felicidade.

Inspirado pelo seu conteúdo, disporás de paciência e coragem para os desafios ásperos do caminho e as agressões da brutalidade que, não raro, tentam interceptar a marcha do bem.

Com ele no coração, cantarás a melodia da esperança e alterarás a conduta, não revidando mal por mal.

O amor é de origem divina.

Ínsito em todas as coisas, é emanação de Deus vitalizando a Criação.

Quando o amor se afasta do homem, estruge a desesperação, aparece a suspeita, predomina o crime, e o ódio intoxica a vida.

O homem sem amor é qual embarcação sem leme, à matroca.

Difícil a vida, quando destituída de amor.

Herdeiro da agressividade ancestral, o homem reage, enquanto o amor ensina a agir com correção. Como efeito, somente quando se ama é que se alcança a maioridade, a superior finalidade da existência.

Assim, faze uma pausa no turbilhão de conflitos e atividades nos quais te debates, e ausculta o amor. Ele te falará de bênçãos não fruídas e alegrias ainda não experimentadas, que te despertarão para as emoções libertadoras.

Banha-te, portanto, nos rios invisíveis do amor de Deus e deixa-te arrastar pela sua correnteza...

Jesus, ensinando libertação plena, estabeleceu no amor a Deus e ao próximo a condição única e poderosa para o homem ser feliz.

Ama e dulcifica-te, porquanto, porquanto somente o amor propicia a luz do entendimento e o repouso da paz.


Retirado do livro Momentos de Iluminação; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 4ª Edição, 2015.

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Esquecer

O que marca o nascimento de um educador é ter olhos para ver o que nunca se viu


Era uma menina de nove anos. Caminhava segura

domingo, 10 de setembro de 2023

Diretores e Diretoras

Não deixem que seus "outros significativos" se transformem em burocracia e relatórios


"Outros significativos" é um conceito de sociologia de que me valho sempre. Estamos cercados por "outros": os caminhantes na rua, os que compram nas feiras, as torcidas de futebol, a gente nas igrejas, os doentes nos hospitais, os motoristas que guiam carros, os deputados e senadores. Todas as pessoas que não são "eu" são os "outros". Sei que esses outros existem, mas a maioria não me importa. Nada significam para mim. Mas, nessa multidão anônima de outros, há uns poucos que me são importantes. Em relação a eles, organizo o meu pensamento e os meus pensamentos. Meus filhos, por exemplo. Meus amigos. Meus leitores. Importa-me o que os meus leitores sentem ao ler um texto meu. Esses são meus "outros significativos".

Dize-me com quem andas e dir-te-ei quem és." Vou alterar esse ditado: "Dize-me quem são os teus outros significativos e dir-te-ei quem és." São os meus outros significativos que fazem de mim o que sou. Isso é uma lição importante para se compreender as razões por que os meninos e adolescentes, nas favelas, optam pela violência: porque aqueles que eles admiram, que têm coragem, que desafiam a polícia, que enfrentam a morte, aos quais damos os nomes de bandidos, são seus "outros significativos", seus heróis.

Dirigindo-me então a você, diretor, diretora, pergunto: "Quem são seus outros significativos?" Ser diretor é pertencer a uma rede política de poder. A função de diretoria se abre para cima - pode chegar mesmo até a Secretaria de Educação ou Ministério da Educação!

O mundo da burocracia é o mundo das pessoas sem face. Elas só têm existência como funções das estruturas burocráticas. Se, por acaso, uma diretora cair em desgraça frente a um superior, ela sabe o que lhe acontecerá. Nada de convites para reuniões, para as quais ela deveria se vestir como diretora. Pois não é verdade isso, que há uma forma de vestir apropriada para as solenidades? Se os seus outros significativos são aqueles que compõe a rede burocrática impessoal, então a sua cabeça estará cheia das coisas que a burocracia determina. Relatórios. Os burocratas são os modernos hereges. O evangelho diz: "No princípio é o Verbo." Os burocratas dizem: "No princípio é o relatório." Se estiver no relatório, existe, mesmo que não tenha existido de fato. Se não está no relatório não existe, mesmo que tenha existido de fato.

Uma professora do sul de Minas fez uma pesquisa sobre o conteúdo das reuniões entre diretores e professoras de várias escolas. O que ela achou foi de arrepiar. Nas atas havia registro de todas as atividades burocráticas, mas não havia referências aos alunos. Os alunos só eram mencionados quando se tornavam "problemas disciplinares".

Para você descobrir quem são seus "outros significativos" é fácil. Anote quantas horas você gasta por semana, lidando com papelada burocrática. Anote também quantas horas ou minutos você gasta misturando-se com os alunos (quem sabe brincando com eles). Aí você saberá...


Texto de Rubem Alves retirado da revista Educação, Editora Segmento, São Paulo. Agosto de 2006.

sábado, 9 de setembro de 2023

Terapia Libertadora

Diante das admiráveis conquistas psicológicas modernas, apresentando terapêuticas valiosas para os graves problemas emocionais da criatura humana, não podemos subestimar os recursos excepcionais que nos foram  ministrados por Jesus, desde há vinte séculos.

Ensinando a liberação dos traumas e dos conflitos que geram as emoções perturbadoras, os hodiernos tratadistas da psicoterapia recomendam as ações nobilitantes dos pacientes, o autoconhecimento, a expansão dos sentimentos nobres, a alegria nas suas várias facetas, o inter-relacionamento social, ao lado de outros mecanismos que contribuem para uma existência sadia, rica de criatividade e de realização.

Se fizermos uma releitura do Evangelho de Jesus, iremos encontrar as mesmas diretrizes, exaradas em propostas simples quão eficientes, contribuindo para que o mesmo se realize, superando os limites e as constrições que oprimem e afligem o ser.

Ame indiscriminadamente - é a recomendação central, porque o amor é método de libertação de todas as mazelas emocionais e agente poderoso de renovação, motivador de crescimento íntimo e realização pessoal.

Perdoe, sem condicionamento - constituindo a consequência do amor, única maneira de vencer os complexos de inferioridade, de narcisismo, filhos diletos do orgulho insensato.

Caminhe ao lado de quem necessita de companhia - sendo um impositivo de solidariedade, participando dos problemas do outro, graças ao que, constata a insignificância das próprias dificuldades.

Ajude em qualquer circunstância - tornando-se uma terapia de ação benéfica, que permite o olvido das queixas e autoflagelação diante das inumeráveis necessidades das demais pessoas.

Ore sempre - através deste processo, utilizando-se a autoanálise, descobre-se a realidade íntima e ilumina-se pelo esclarecimento de que se torna possuidor.

Todas as propostas de Jesus convidam o indivíduo para o encontro da própria consciência, o descobrimento da identidade e a superação da sombra da personalidade doentia.

O homem ignora-se, mantendo uma atitude infantil, que teima por impor ao grupo social no qual se movimenta.

Crê-se merecedor de consideração e assistência, que nega aos companheiros.

Supõe que a vida lhe deve ser colocada a serviço dos caprichos, em postura egocêntrica, que não faculta aos outros.

Reclama sofrer de carências de vária ordem, que recusa diminuir nos mais necessitados.

Coloca-se em uma posição de vítima, enquanto se torna indiferente, quando não se transforma em sicário de outras criaturas.

Permite-se direitos e créditos, que não concede a ninguém.

A sua, como efeito, é uma jornada solitária, por desprezo sistemático às Leis da Vida.

Nisto consistem as mais graves enfermidades, nas quais se apoiam os indivíduos que elegem a acomodação e a autopiedade como mecanismos de evasão dos compromissos que lhes cumpre atender.

O Evangelho conclama a uma fé dinâmica, objetiva, racional e produtiva.

Propõe a saída da ilha do egoísmo, para a conquista das praias da solidariedade.

Quem se negue a praticá-lo, incide nas patologias psicológicas e em algumas de outras áreas, carecendo de tratamento especializado.

Não obstante, mesmo após esses valiosos recursos, se não muda de atitude interior, adotando o comportamento do amor, do perdão, do auxílio fraternal, da autoiluminação, volve às posturas primitivas e enfermiças, porquanto, só na doação que induz ao auto-oferecimento é que o homem se realiza e se plenifica, adquire a saúde real.


Retirado do livro Momentos de Harmonia; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 3ª Edição, 2014.